O “conceito antropológico de cultura” no campo das políticas públicas: um estudo de caso a partir da Coordenação para Povos Tradicionais e Populações Rurais da Secretaria de Estado da Cultura de Pernambuco


Jaqueline de Oliveira e Silva
Coordenadoria de Patrimônio Imaterial da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco; Mestre em Antropologia pela Universidade Federal de Pernambuco

1     Políticas culturais e Antropologia: primeiros diálogos

As ações de órgãos públicos, associações civis e outros atores não governamentais que possuem como foco iniciativas de fomento, incentivo e preservação de aspectos da cultura podem ser chamadas de políticas culturais. De acordo com Rubim (2007), são raros os estudos preocupados com a teorização e a definição de políticas culturais, sendo que as principais referências nesse sentido são as do museólogo Teixeira Coelho (1997), do doutor em Comunicação Alexandre Barbalho (2005) e do antropólogo argentino Néstor Canclini (2001). 
Políticas culturais podem ser definidas como um conjunto de intervenções realizadas pelo Estado, instituições civis e grupos comunitários organizados com o intuito de orientar o desenvolvimento simbólico, satisfazer as necessidades culturais da população e obter consenso para um tipo de ordem ou de transformação social. Um aspecto relevante da definição de Canclini está no fato de que ela não restringe ao Estado o papel de orientação e desenvolvimento de políticas culturais, ampliando também essa atuação a outras instituições, como associações civis. Tal discussão está em consonância com a análise de Antônio Rubim, em que

[...] ao lado do tradicional e, por vezes, todo poderoso ator das políticas culturais, o Estado-Nação, tem-se um conjunto complexo de atores estatais e particulares possíveis. A recente discussão sobre as políticas culturais tem enfatizado que, na atualidade, elas não podem ser pensadas apenas por sua remissão ao Estado. (...) o próprio Estado-Nação não pode mais ser concebido como um ator monolítico, mas como um denso sistema de múltiplos atores. A existência de governos nacionais, supranacionais (sistema das nações unidas, organismos multilaterais, comunidades e uniões de países, etc.) e infranacionais (provinciais, intermunicipais, municipais, etc.) é uma das faces deste processo de complexificação da intervenção estatal (RUBIM, 2007, p. 150). 

Historicamente, a atuação das políticas culturais engendradas pelo poder público diz respeito à “cultura com c maiúsculo”, como salienta Isaura Botelho (2007). Segundo essa autora, a noção de cultura que origina as políticas de universalização cultural surgidas nos anos de 1960-1970 refere-se a uma herança feita de práticas e representações relacionadas, em especial, ao mundo das artes, considerada como a “única” cultura ou a cultura mais “legítima”, e que, por isso, deve ser socialmente difundida. Botelho afirma que 

[...] [t]ais políticas de democratização repousam sobre dois postulados básicos: o primeiro define que a cultura socialmente legitimada é aquela que deve ser difundida; o segundo supõe que basta haver o encontro (mágico) entre a obra (erudita) e o público (indiferenciado) para que este seja por ela conquistado. Tais políticas levam em conta fundamentalmente os obstáculos materiais às práticas culturais, como a má distribuição ou a ausência de espaços culturais ou os preços elevados dos ingressos. Elas não atentam, no entanto, para outros fatores, tão decisivos quanto os citados e que não se reduzem à dimensão econômica e de oferta (BOTELHO, 2007, p. 171).

Entre as décadas de 1940 e 1970, as teorias antropológicas ganharam grande ressonância dentro das instâncias de poder, “influenciando em alguma medida a formulação de políticas governamentais” (PITOMBO, 2012, p. 128). Dessa forma, foi alterado o conceito de cultura utilizado como pressuposto para a elaboração de políticas públicas. Ganha destaque, nesse contexto, a atuação de organismos internacionais como a UNESCO e a OIT (Organização Internacional do Trabalho). 
De acordo com Mariella Pitombo, imbuída do espírito de equacionamento das tensões e desigualdades entre os povos, a UNESCO se constitui como um dos organismos de cooperação multilateral mais importantes do sistema das Organizações Unidas. As conferências regionais da UNESCO na África (1975) e na América Latina e Caribe (1978) põem em cena o tema da diversidade cultural. Em 1998, na Conferência Intergovernamental sobre Políticas Culturais para o Desenvolvimento, temas como “integralidade e transversalidade da cultura e da política cultural, política cultural como dado central da política de desenvolvimento (sustentável) e patrimônio imaterial/intangível” (RUBIM, 2012a) recebem maior atenção. Assim, entre as ações políticas encabeçadas pela UNESCO,

[...] [a] cultura passou a ser concebida como um conjunto de aspectos distintivos, espirituais e materiais, intelectuais e afetivos que caracterizam uma sociedade ou um grupo social. Ela engloba, além das artes e das letras, os modos de vida, os direitos fundamentais do ser humano, os sistemas de valores, as tradições e as crenças (PITOMBO, 2012, p. 129). 

A OIT, organismo das Nações Unidas, possui como missão promover oportunidades para que homens e mulheres possam ter acesso a um trabalho decente e produtivo, em condições de liberdade, equidade, segurança e dignidade (OIT, 2012). A Convenção 169 sobre os Povos Indígenas e Tribais foi ratificada pelo Brasil em 2002 e entrou em vigor em julho de 2003. Os países signatários da Convenção se comprometem, então, a consultar os povos interessados quando forem previstas medidas legislativas ou administrativas que os afetem diretamente, garantindo a efetiva participação dos povos indígenas e tribais na tomada de decisões. Esse documento, juntamente das declarações e convenções da UNESCO, é considerado um orientador das políticas públicas para comunidades tradicionais no Brasil. Como será detalhado adiante, após a ratificação da Convenção, que coincide com o governo do presidente petista Luiz Inácio Lula da Silva, outras estéticas ligadas ao cotidiano, compreendidas na noção de cultura popular, passaram a ser fomentadas pelas políticas culturais. 

2     Políticas culturais no Brasil: 2003-20131
As políticas culturais no Brasil adquiriram novos contornos a partir do governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011). Em decorrência das propostas viabilizadas na sua gestão, amparadas, como citado no tópico anterior, por um contexto internacional favorável, o campo de atuação das políticas culturais “se desloca do quase exclusivo universo das artes para a cultura em sua dimensão mais abrangente, tendo como objetivo a cultura como direito e como cidadania” (BOTELHO, 2007, p.171). 
O Ministério da Cultura (MINC), sob as direções de Gilberto Gil (2003-2008) e Juca Ferreira (2008-2010), ampliou o seu escopo de atuação do patrimônio material e das artes reconhecidas para outras formas de cultura, sobretudo de grupos historicamente excluídos das políticas desse ministério. No discurso proferido pelo ministro Gilberto Gil na ocasião de sua posse, encontramos alguns dos pressupostos das políticas desenvolvidas em seu mandato:

O ministério não pode, portanto, ser apenas uma caixa de repasse de verbas para uma clientela preferencial. Tenho, então, de fazer a ressalva: não cabe ao Estado fazer cultura, a não ser num sentido muito específico e inevitável. No sentido de que formular políticas públicas para a cultura é, também, fazer cultura. No sentido de que toda política cultural faz parte da cultura política de uma sociedade e de um povo, num determinado momento da sua existência. No sentido de que toda política cultural não pode deixar nunca de expressar aspectos essenciais da cultura desse mesmo povo. Mas, também, no sentido de que é preciso intervir. Não segundo a cartilha do velho modelo estatizante, mas para clarear caminhos, abrir clareiras, estimular, abrigar. Para fazer uma espécie de “do-in antropológico”, massageando os pontos vitais, mas momentaneamente desprezados ou adormecidos, do corpo cultural do país (GIL, 2003 apud NUSSBAUMER, 2012, p. 99 – Grifo nosso). 

Esses pressupostos conceituais foram institucionalizados por meio das ações políticas do Programa Cultura Viva, dentre as quais podemos citar as ações para culturas LGBT, juventude, culturas ciganas e culturas populares. Tais vertentes foram contempladas por editais específicos, com especial atenção ao Prêmio Culturas Indígenas e ao Prêmio Culturas Populares. Ainda, dentro do Programa Cultura Viva, mencionamos os Pontos de Cultura, ação responsável pela efetiva interiorização das políticas desse ministério. Vale ressaltar a importância adquirida pela concessão de prêmios e bolsas, que não necessitam de captação, em detrimento das leis de incentivo, forma de financiamento que predominava até o governo de Fernando Henrique Cardoso (2002). Para suprir as novas formas de financiamento, foi erguido o Fundo Nacional de Cultura (FNC); este passou a ser o principal mecanismo de financiamento das ações do ministério na área, com 40% das dotações orçamentárias do MINC. 
Predomina, sobretudo, um discurso de democratização por meio de um processo de diálogo recorrente com a população, no qual proliferam seminários, congressos e conferências (RUBIM, 2012). Esse conjunto de ações conta frequentemente com a participação de representantes das comunidades tradicionais, numa proposta política mais ampla de diálogo com os movimentos sociais, adotada pelo presidente Lula e, em menor ênfase, pela atual presidente Dilma Rouseff. Se tais conferências são formas efetivas de planejamento de políticas públicas ou uma forma meramente consultiva de viabilizar políticas, cabe questionar. 
As primeiras ações do Governo Dilma Rouseff (2011-atualidade) apontavam para um possível retrocesso no campo da cultura, em comparação àquelas adotadas pelo governo anterior. Ana de Hollanda, primeira a ocupar o cargo de ministra da cultura nesse governo, foi alvo de diversas críticas da classe artística em virtude da falta de diálogo com a sociedade civil e da não continuidade das ações do seu antecessor, Juca Ferreira, sendo taxada de conservadora e anacrônica2. A senadora Marta Suplicy assumiu, em setembro de 2012, o ministério, sendo que sua atuação retomou algumas das atividades propostas por Gil/Juca Ferreira. Destacamos a aprovação do Plano Nacional de Cultura, o programa Mais Cultura e a reformulação do Programa Cultura Viva. 
Se existe uma intenção de ampliar a presença do Estado no campo das políticas culturais, há também o crescimento do processo de burocratização e controle institucional com o objetivo de se adequar às exigências cada vez maiores dos órgãos de controle da administração pública por meio de órgãos como o Tribunal de Contas e o Ministério Público. Um paradoxo decorrente dessa burocratização relaciona-se ao fato de que a população alvo de políticas específicas, como os grupos indígenas e quilombolas, não consegue cumprir as exigências dos editais e acaba recorrendo ao trabalho de produtores culturais profissionais para a implantação de projeto em suas comunidades. Outra situação é também recorrente: os produtores culturais escrevem projetos em nome das comunidades ou grupos populares sem o conhecimento deles. O processo de escrita, a aprovação e a posterior prestação de contas acontecem sem um diálogo com o grupo, visto, pelos produtores, apenas como um objeto das políticas. Essa situação é comum em algumas comunidades quilombolas de Pernambuco, como foi possível perceber durante encontros do movimento quilombola que presenciei no contexto desta pesquisa. 

3 Política cultural e comunidades culturalmente diferenciadas
Partindo de uma discussão acadêmica (VIANA, 2008), o Decreto 6.040 de 2007 define povos e comunidades tradicionais como: 

[...] grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição (BRASIL, 2012). 

Comunidades quilombolas são um dos povos tradicionais existentes no território brasileiro3. A Comissão Estadual de Articulação das Comunidades Quilombolas de Pernambuco estima a existência de 150 comunidades espalhadas em várias regiões do estado. Segundo esse movimento, o principal desafio a ser enfrentado pelas comunidades para ter acesso a políticas públicas é o fato de os gestores “não as reconhecerem como grupos etnicamente diferenciados e, dessa forma, insistirem em desenvolver políticas universalizantes sem respeitar as diferenças culturais dos grupos” (FUNDARPE, 2013, p. 13). 
Se o pleito inicial das comunidades concentrava-se na certificação dos territórios tradicionalmente ocupados, atualmente os grupos, articulados pelos movimentos sociais rurais e urbanos e com o apoio de agentes externos como ONGs, pastorais e universidades, apresentam uma ampla pauta de reivindicações, dentre as quais se encontra o direito à cultura. É necessário esclarecer que, tratando-se de povos tradicionais, as políticas públicas pleiteadas para a cultura não são apenas aquelas que abordam as linguagens artísticas, como dança, música e/ou literatura. São políticas que têm como pressuposto o respeito às especificidades culturais dos povos por elas beneficiados. Assim, se em virtude do contexto político internacional a noção de cultura como direito passou a fazer parte da agenda política governamental, ela tornou-se, para as comunidades tradicionais, um argumento utilizado para justificar as mais diversas reivindicações, como aquelas concernentes à terra, à saúde, à educação etc. Essa situação se relaciona a um processo de culturalização da política em que, de acordo com Rubim,

[...] aos ‘tradicionais’ temas da política moderna – tais como Estado, governos (executivo, legislativo, judiciário), monopólio da violência legal, direitos civis, liberalismo econômico etc. – a partir do séc. XX são agregadas novas demandas político-sociais, muitas delas de teor cultural. Ecologia; gênero; orientação sexual; modos de vida; estilos de sociabilidade; comportamentos; desigualdades societárias; diferenças étnicas, religiosas e nacionais; diversidade cultural; valores sociais distintos etc., são temáticas incorporadas ao dia-a-dia da política, passam a compor os programas dos partidos políticos e a fazer parte das políticas governamentais, sendo, simultaneamente, reivindicados pelos movimentos sociais e pela sociedade civil (RUBIM, 2007, p. 144).

Sahlins (2003; 2003a), Cunha (2009) e Rubim (2007) são autores que afirmam que a cultura hoje possui o poder de ser mobilizada como direito por diversos componentes da sociedade, em particular pelos grupos subalternos historicamente privados dos processos de participação política, assim como de distribuição e acesso a recursos públicos. O conceito de cultura, nesse caso, adquire um sentido peculiar. Um exemplo interessante está em um dos pontos sublinhados em ocasião do seminário “Política Pública de Cultura para Povos do Campo e Tradicionais de Pernambuco”, realizado, em 30 e 31 de outubro de 2013, pela Coordenação para Povos Tradicionais e Populações Rurais da Secretaria de Cultura de Pernambuco (Secult) e seu órgão executor, a Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco, a Fundarpe. 
Enquanto a Secult trabalha predominantemente com a ideia de “linguagens artísticas” – dança, artes cênicas, circo e artesanato –, cuja principal ferramenta de incentivo é o edital do Funcultura4 e os Festivais Pernambuco Nação Cultural (FPNC), os povos tradicionais apresentam uma demanda que perpassa amplamente a noção de território (FUNDARPE, 2013). Logo, se o incentivo à cultura é feito tradicionalmente por meio das festas, apoiando a apresentação em palcos, incentivando a formação e o debate de temas originalmente acadêmicos como “patrimônio”, “identidade” e mesmo “cultura”, o pleito dos povos tradicionais é que os grupos artísticos que estejam no palco sejam grupos locais, que as rodas de diálogo contem com a presença de mestres e “griôs” das comunidades e que os recursos dos editais de incentivo cheguem também a suas comunidades. Desse modo, o momento de elaboração e implantação de políticas culturais em comunidades tradicionais explicita tensões que envolvem aquilo que o Estado considera como pertencente à cultura do grupo e que, portanto, merece ser fomentado e incentivado, e aquilo que o grupo considera como pertencente ao domínio da sua cultura. Encontramos distanciamentos e aproximações entre as visões dos diversos sujeitos que compõem esses setores da sociedade. 
Com relação às políticas especificas para as comunidades quilombolas, podemos ressaltar que, diferentemente dos grupos indígenas, contemplados pelo Prêmio Culturas Indígenas, os quilombos não foram alvo de nenhuma política específica do Ministério da Cultura. Alguns quilombos foram atingidos por ações de inventário de patrimônio imaterial, caso do Jongo e do Samba de Roda do Recôncavo Baiano; pelos editais do IPHAN, como o Projeto de Salvaguarda do Jongo/Caxambu no Sudeste – Rede do Jongo, de 2012; e, por fim, pelo edital do Patrimônio Cultural Imaterial relacionado à música, canto e dança de comunidades afrodescendentes localizadas no território brasileiro, lançado em 2013. Recentemente, foram lançados editais pela Fundação Cultural Palmares, sendo que um conjunto deles, os Editais para Criadores, Produtores e Pesquisadores Negros do Ministério da Cultura (MinC), construído em parceria com a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), foi alvo de um processo de suspensão feito pelo juiz José Carlos do Vale Madeira, da 5ª Vara Federal da Seção Judiciária do Maranhão, ação revogada em dezembro de 2013. 
 É nesse sentido que, para tratar das políticas culturais que têm como foco as comunidades quilombolas, teremos que falar indiretamente de políticas para “culturas populares”, “cultura negra” e também de “cultura imaterial”, ressaltando a transversalidade imposta às políticas pelo “conceito de cultura antropológico”. 

4     A Coordenação para Povos Tradicionais e Populações Rurais
A “Coordenação para Povos Tradicionais e Populações Rurais”, conhecida como “Povos Tradicionais”, foi criada pelo então secretário de cultura de Pernambuco Fernando Duarte (PT). De acordo com o secretário, a coordenação foi criada

[...] como fruto da nossa experiência na prefeitura do Recife, na militância no movimento de cultura [...]. Montamos um plano de trabalho a partir das reivindicações desses sujeitos coletivos. A gente queria muito contribuir com esses grupos que têm um diferencial muito forte: a questão do território (FUNDARPE, 2013, p. 8). 

De acordo com a cartilha “No território das culturas: a experiência da Secretaria de Cultura de Pernambuco com populações tradicionais e povos do campo”, publicada em outubro de 2013, algo que une os diversos grupos para os quais são direcionadas suas ações – indígenas, quilombolas, ciganos, assentamentos e agrovilas – é a questão do território: 

Para esses grupos, o lugar onde vivem é o espaço onde criam e recriam suas culturas, mantêm relações afetivas, econômicas e sociais, enfrentam vários tipos de conflito, lutam pelas suas terras, relembrando suas histórias, praticando seus rituais, vivenciando sua organização social e seus patrimônios materiais e imateriais (Fundarpe, 2013, p. 11).

Para além do território, tal coordenação afirma que as relações de parentesco e o uso comum da terra são outros aspectos que definem os povos tradicionais. Complementando, 

[...] [s]ão esses grupos, compostos por sujeitos de direito específicos, diferenciados por suas etnias, culturas e por suas relações com a terra e o território, a quem se destinam as ações da Coordenação para Povos Tradicionais e Populações Rurais (Fundarpe, 2013, p. 11). 

As ações dessa coordenação se destacam das demais diretorias e coordenações da Fundarpe e da Secult não apenas pelo público que deseja atingir, mas também pela proposta metodológica que apresenta. A interiorização, entendida como a grande falha da Secretaria de Cultura (uma vez que grande parte das ações está concentrada na região metropolitana do Recife), é um dos pressupostos do trabalho da Povos Tradicionais. A equipe realizou desde a sua implementação, em meados de 2011, até outubro de 2013, 296 visitas às comunidades e esteve à frente da organização de 16 festivais por todo o Estado de Pernambuco, onde desenvolveu rodas de diálogo, encontros de mestres e exibições de filmes, além de apresentações de teatro, música e dança que priorizavam artistas e grupos locais. A metodologia utilizada para realização dessas ações se pautou no diálogo e em uma concepção alargada de educação e cultura:

O trabalho da coordenação foi gestado tendo como pano de fundo a concepção freireana de uma educação libertadora e geradora de práticas transformadoras, construídas a partir do diálogo entre saberes, necessidades e possibilidades dos sujeitos envolvidos (Fundarpe, 2013, p. 20). 

A respeito do conceito de cultura, enfatiza-se que, por serem o público das ações dessa coordenação, os “culturalmente diferenciados” devem receber um “atendimento diferenciado, não de menor ou maior qualidade, mas diferente, e com isso superar práticas homogeneizantes” (FUNDARPE, 2013, p. 20). 
Durante o tempo em que acompanhei as ações de tal coordenadoria, quem esteve à frente foi a assistente social Érika, de 35 anos, que possui em sua trajetória uma larga experiência como militante com as comunidades indígenas e quilombolas de Pernambuco. Érika é dotada de bastante carisma diante das comunidades tradicionais do estado e sua presença dentro da secretaria foi vista como um grande “alívio” pelos povos que nunca haviam tido contato com as ações da Fundarpe e da Secult e tampouco haviam travado diálogo com os gestores públicos de cultura. “O diálogo nunca aconteceu, está acontecendo agora só porque você [Érika] está lá. Isso é uma grande novidade pra gente. Às vezes eu esqueço que vocês são do governo. O diálogo está acontecendo e isso é estranho”, disse uma jovem liderança xucuru durante o Encontro de Produtores de Audiovisual de Povos Tradicionais no FIG de 2013. Outra liderança, da comunidade quilombola de Onze Negra, relatou: “acho que foi uma benção, uma luz, o governo ter colocado Érika na função que ela está hoje. Porque a gente já começa a ver mais possibilidades”. 
A respeito do conceito de cultura, Erika ressalta:

Eu sempre parto da concepção de cultura, inclusive a definição que se usa para povos tradicionais, tem uma que começa dizendo que são povos culturalmente diferenciados, né. E, compartilhando dessa perspectiva, a gente acredita que, para além dos aspectos artísticos que são expressos mesmo dentro das comunidades tradicionais, a relação cultural é uma relação que passa pela existência coletiva no território definido. Então, aquele território que te dá, que te orienta, que orienta a visão política dessa comunidade também está relacionado com o meio ambiente, que orienta as relações internas, as forma próprias de organização social que são diferentes das nossas, de cada povo, de cada grupo. Então, essas especificidades culturais, para mim, exigem do Estado um olhar diferenciado, um olhar de uma política diferenciada, que dialogue com isso e que respeite isso. Respeite essa forma própria de comunidade e que compreenda a visão de cultura, que a noção de cultura nesse caso está para além da noção de cultura normalmente utilizada para cada pessoa [...]. Nem toda população rural é comunidade tradicional, e nem todo povo tradicional está necessariamente na área rural, tem muitas diferenças, mas tem a nossa compreensão desse elemento central que é o território, a relação com a terra e o território. (Érika, 35 anos. Entrevista concedida no dia 28 de fevereiro de 2013. Grifos nossos).

A “Povos Tradicionais” depara-se com diversos limites com relação a orçamento, logística, equipe e material. As longas distâncias, o difícil acesso, o tempo necessário para a realização de um diálogo consistente, além da adequação de regras para a prestação de contas, contratação de pessoal e de serviços, são alguns dos problemas encontrados para realização das atividades dessa coordenação. Enfatiza-se, ainda, a defesa de uma ação integrada, não setorizada, em “linguagens artísticas”, como é comum na Fundarpe e na Secult. 
Ademais, vive-se na Fundarpe e na Secretaria de Cultura um momento politicamente conturbado. No final de 2013, especulou-se que a pasta seria extinta – fato que foi negado após algumas semanas pelo governador do Estado, Eduardo Campos. Posteriormente, o secretário de cultura, Fernando Durante, entregou o cargo no momento em que todos os gestores do Partido dos Trabalhadores (PT) de Pernambuco resolveram entregar os cargos que ainda mantinham no governo de Eduardo Campos, candidato à presidência do Brasil em 2014 pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB). Marcelo Canuto, advogado, assumiu como secretário interino e foi efetivado em janeiro de 2014. Nesse tempo, cerca de 70 funcionários da Fundarpe e Secult foram demitidos e outros tantos pediram o desligamento da instituição, que conta, hoje, com 290 funcionários terceirizados e 90 funcionários públicos concursados. Erika demitiu-se da Secult em setembro de 2013 e em dezembro outros dois funcionários da equipe foram demitidos, alterando o quadro de seis para três pessoas. Atualmente, três integrantes da coordenação estão alocados na Secretaria Especial do Carnaval, e não se sabe se a Povos Tradicionais voltará a funcionar. Pelo que se nota, o personalismo, a inconsistência e a descontinuidade, características tão comuns na política pública para cultura no Brasil, como ressalta Rubim (2012a), também se fizeram presentes nessa coordenação. 
Outro problema enfrentado pela Povos Tradicionais diz respeito à amplitude do conceito de cultura adotado e à necessidade de definição de conceitos imposta pelas políticas públicas. Houve uma tentativa de adequação entre uma ação que “respeitasse mais o contexto da comunidade” e a demanda por espetáculos que existe tanto por parte do estado quanto por parte da comunidade. Por conseguinte, foram postos à prova dois conceitos de cultura diferenciados, o que trouxe novas tensões, desafios e debates para a política cultural em Pernambuco. 
 Durante o seminário “Política pública de cultura para povos do campo e tradicionais”, realizado em outubro de 2013 no Centro Luiz Freire, em Olinda, foram reunidos representantes de comunidades quilombolas, indígenas, ciganas e do Movimento dos Sem Terra (MST). Durante o encontro, ficou visível, nas falas das lideranças, a ambiguidade com relação ao termo cultura e a dificuldade de definição do escopo de atuação da política cultural baseada na noção de território. A liderança indígena do povo Xucuru, quando indagada acerca da importância de políticas culturais para povos tradicionais, falou na existência de uma “cultura de luta pela terra e pelo território como a luta de todos os povos”. A liderança do MST presente no encontro ressaltou a luta contra uma “cultura individualista” em defesa de uma “cultura da luta e da disputa por uma sociedade igualitária”. A dos povos ciganos destacou a importância do reconhecimento da “cultura cigana através da criação do Dia Nacional do Cigano pelo presidente Lula”. Já Zé Carlos, liderança do Castainho, defendeu uma “cultura que considere conhecimento, alimentação, costumes, religião”; concluiu enfatizando que se deve “trabalhar a cultura com a própria cultura”. De maneira geral, foi possível perceber nesse encontro que a discussão ficava difusa quando o tema era a cultura, predominando o sentido do próximo ao de “costume” ou “tradição”. Mas é importante ressaltar que cultura como algo adquirido (“culto”, “escolarizado”) foi o único sentido em que o termo não foi citado.
A ambiguidade do termo cultura, enfatizada na fala de Zé Carlos, revela as incoerências e disputas que permeiam o campo de atuação da Povos Tradicionais. Um exemplo interessante se deu quando o representante de uma agrovila localizada na Mata Sul de Pernambuco relatou, em sua fala, que a comunidade estava investindo na cultura por meio da realização de festas e campeonatos de “corrida de carrinho de mão”, sendo que, para a construção da pista, haviam cortado uma “roça de chuchu”. Em seguida, a representante do MST declarou enfaticamente:

O capital se apropria e insere uma outra lógica de disputa, de premiação. A gente chega a tirar um roçado de chuchu que poderia alimentar uma família para dar local a uma pista. É este tipo de cultura que a gente quer defender? (Representante do MST. Fala do dia 31 de outubro de 2013).

Se nas propostas da Coordenadoria de Povos Tradicionais são comuns temas como território, direito, saúde, educação, modos próprios de viver e se relacionar com o outro, na prática, as ações políticas ainda acontecem no formato mais corriqueiro, isto é, nos eventos. Cumpre assinalar que, em dois anos de existência, a Povos Tradicionais realizou dezesseis festivais em todo Estado de Pernambuco, reproduzindo a política dos festivais que, como foi dito, é o foco das ações realizadas pela Secult/Fundarpe. 

5 Conclusão 
Isaura Botelho (2007) pontua que, quando o “conceito antropológico de cultura” é utilizado como base para a elaboração de políticas, o campo de ação se torna muito amplo e seu objetivo pode se apresentar de forma difusa. Indo um pouco além dessa questão, podemos pensar que, ao romper com um modelo de política já consolidada, balizada pelas linguagens artísticas, a ação da Povos Tradicionais encontrou resistência não apenas por parte do poder público, mas também por algumas populações com as quais foram realizadas, durante anos, ações com outra orientação teórica e metodológica. 
Salientamos, por fim, que os dados etnográficos levantados no decorrer deste trabalho levam-nos a um importante processo de culturalização da política, na qual a cultura passa a ser mobilizada como instrumento de acesso às políticas públicas pelas comunidades tradicionais. Nesse sentido, uma comunidade rural no interior de Pernambuco luta por recursos e ações políticas, junto de comunidades do estado que se encontram na mesma situação. Porém, uma comunidade quilombola adquire um novo status e suas reivindicações mobilizam outros argumentos, como o pagamento de uma dívida histórica que o Estado brasileiro possui com as comunidades negras, na esteira de reivindicações do movimento de ações afirmativas. Uma significativa ação nessa direção é a criação da Diretoria de Povos Tradicionais dentro da Secretaria Estadual de Cultura, cujo objetivo é atender as demandas das comunidades por políticas públicas para a cultura, dentro das suas especificidades, mas tendo como ponto em comum a relação com o território. 

 

Notas 
1.    Para um panorama da política cultural no Brasil antes de 2003, ver RUBIM (2012) e CALABRE (2009). 
2.    Para maiores referências, ver os seguintes links de jornais: http://blogs.estadao.com.br/link/ana-de-hollanda-sai-do-ministerio-da-cultura, http://www.muco.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=525:escandalo-no-ministerio-da-cultura-ou-ana-de-hollanda&catid=34:sala-dos-escandalos&Itemid=53, http://www1.folha.uol.com.br/serafina/1066485-ministra-ana-de-hollanda-resiste-ao-cai-cai-no-governo.shtml. 
3.    Há uma grande diversidade de povos e comunidades tradicionais no Brasil. Podemos citar os Povos Indígenas, Quilombolas, Seringueiros, Castanheiros, Quebradeiras de coco-de-babaçu, Comunidades de Fundo de Pasto, Faxinalenses, Pescadores Artesanais, Marisqueiras, Ribeirinhos, Varjeiros, Caiçaras, Praieiros,  Sertanejos, Jangadeiros, Ciganos, Açorianos, Campeiros, Varzanteiros, Pantaneiros, Geraizeiros, Veredeiros, Caatingueiros, Retireiros do Araguaia, dentre outros. Fonte: http://www.mma.gov.br/perguntas-frequentes?catid=16. Sítio acessado em 8 de novembro de 2011. 
4.    Criado em 2003, o Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura (Funcultura) é o mecanismo concebido e implantado pelo Governo de Pernambuco para unificar as ações de incentivo à produção cultural no Estado. O Funcultura é uma ferramenta que veio substituir o antigo Sistema de Incentivo à Cultura (SIC) Fonte: www.fundarpe.pe.gov.br . Sítio acessado em 8 de novembro de 2011.

 

Referências
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CALABRE, Lia. Políticas culturais no Brasil: dos anos 1930 ao século XXI. Rio de Janeiro: FGV, 2009.
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