A produção do espaço urbano e o planejamento das áreas de transição rural-urbana: o caso do Município de Cariacica (ES)


Lívia Barraque
mestre em Estudos Urbanos e Regionais formada pela Universidade Federal do Espírito Santo. Experiência profissional concentrada nas áreas de Geoprocessamento, Planejamento Territorial e Regional, Apoio à Gestão Pública e Gerenciamento de Projetos

1     Introdução
Nas últimas décadas, o espaço urbano sofreu significativas mudanças nos fenômenos de centralidades e periferias. O surgimento de diversas centralidades foi acompanhado pela transformação da periferia. Até então caracterizada enquanto lócus da população de baixa renda, desprezada pelo mercado formal, ela, atualmente, inseriu-se no mercado imobiliário, em função das recentes estratégias adotadas pelo setor, que expandiu suas atividades para municípios e bairros com disponibilidade de grandes porções de terra a preços menos elevados.
O deslocamento espacial da atuação do mercado imobiliário foi impulsionado pelo Programa Federal Minha Casa, Minha Vida (PMCMV)1 – programa governamental criado em 2009, quando foi estabelecido subsídio direto, proporcional à renda das famílias. As determinações dessa política, fundamentadas na instituição do preço máximo das unidades habitacionais, ampliou o estímulo do crescimento das cidades em direção às áreas periféricas com terras disponíveis e a preços baixos.
Na medida em que a urbanização se expandiu, assumindo uma forma espraiada, as áreas rurais e de transição rural-urbana tornaram-se zonas de interesses e conflitos diversos, pois concentraram tanto estoque de terras, mananciais, matas e produção rural quanto conflitos urbanos, como a própria questão da moradia. Nessa perspectiva, Miranda (2008) defende que as Áreas de Transição Rural-Urbana se revelaram como um palco complexo, no qual se materializou, em articulação e, por vezes, de modo conflituoso, uma diversidade de interesses e processos de diferentes agentes modeladores do espaço.
Ainda não há um consenso em torno da definição das áreas de transição rural-urbana e os critérios técnicos, legais e administrativos não são adequados para a identificação dos processos socioeconômicos e espaciais que caracterizariam esses espaços. Neste artigo, adotamos a definição de áreas de transição rural-urbana desenvolvida por Miranda (2008), visto que ela expõe, de forma clara, os aspectos relacionados ao uso do solo, infraestrutura e vínculo com núcleos urbanos:

As áreas de transição rural-urbana são espaços plurifuncionais, em que coexistem características e usos do solo tanto urbanos como rurais – presença dispersa e fragmentada de usos e ausência de estrutura urbana coerente que proporcione unidade espacial, submetidos a profundas transformações econômicas, sociais e físicas, com uma dinâmica estreitamente vinculada à presença próxima de um núcleo urbano (MIRANDA, 2008, p. 28).

Considerando isso, o mote desta pesquisa é a identificação dos interesses e processos de diversos agentes modeladores do espaço, em especial do imobiliário, imprescindíveis para a compreensão da influência da produção do espaço urbano sobre as demais áreas do território, as quais são objeto dos planejamentos atuais. Esse objetivo baseia-se na premissa de que a nova forma de produção do espaço urbano modificou a tradicional expansão periférica, em que predominava a ocupação informal, realizada por iniciativa da população de menor renda. Atualmente, a ocupação dessa área também é promovida pelo mercado imobiliário por meio dos condomínios fechados residenciais.
Empiricamente, o foco deste trabalho é o município de Cariacica, localizado na Região Metropolitana da Grande Vitória, e sua atual conformação territorial.

2     A lógica capitalista inserida na produção do espaço urbano
A periferia urbana tem sido considerada, comumente, como uma área situada nos arredores da cidade. Entretanto, é fundamental salientar que ela não se revela como uma faixa circular homogênea em torno dos centros urbanos, bem como a existência de diferentes periferias apresentam-se como resultado de práticas já efetivadas e, ao mesmo tempo, como fundamento da reprodução dessas mesmas práticas.
Pereira (2004) defende que o desenvolvimento das cidades é comandado por fundamentos tradicionais do patrimonialismo. Para ele, a verticalização das áreas centrais está intrinsecamente relacionada à periferização, numa relação de causa e efeito, uma vez que todos os métodos da atuação imobiliária respondem à estratégia de máxima acumulação capitalista, materializada, singularmente, em cada região da cidade, “justamente por seguirem o mesmo plano: obter o máximo com qualquer método e em cada lugar da cidade” (PEREIRA, 2004, p. 9). O autor ainda pontua:

A metrópole atual caracteriza-se por novas centralidades, cada uma competindo com seus atrativos e posicionamentos no mercado imobiliário: centro empresarial, shopping center, condomínio horizontal, residencial sofisticado. Enfim, produtos imobiliários e arquitetônicos que rompem com o dualismo fenomênico da urbanização fundada na modelização da cidade com base na antiga dialética do centro e periferia (PEREIRA, 2004, p. 17).

A metrópole assume, assim, características dominantes diferentes das décadas anteriores: não há mais apenas uma centralidade e a periferia não se resume ao lugar da autoconstrução destinado à população de baixa renda. O desenvolvimento das cidades brasileiras – caracteristicamente homogeneizadas, hierarquizadas e fragmentadas – fundamenta-se em aspectos teóricos de sua produção/construção capazes de explicar sua conformação espacial2.
Segundo Pereira (2004), os estudos focados no desenvolvimento capitalista da construção da cidade devem compreender a unicidade dos processos de industrialização e urbanização, como produção e consumo da cidade, permitindo uma análise da singularidade da atividade da construção no âmbito da fórmula trinitária do valor. Tal fórmula envolve a produção, a realização e a distribuição do valor e permite “[...] desvendar as tensões sociais entre proprietários da terra, do capital e do trabalho, considerando a especificidade dos ajustamentos desses personagens na construção da cidade” (PEREIRA, 2004, p.16).
É importante ressaltar que os fenômenos de industrialização e urbanização (produção e consumo da cidade) particularizam o setor da construção na questão da reprodução do capital. A elevação do preço do produto imobiliário, além de fundado no sobrelucro formado na própria unidade produtiva como renda fundiária, origina-se fora da sua unidade produtiva como renda imobiliária. Assim sendo, a valorização imobiliária pode ocorrer em tempos diferentes, antes ou depois da produção do imóvel.
Durante muito tempo, o setor imobiliário foi considerado secundário, convertendo-se em um setor paralelo destinado a inserir-se no circuito de reprodução capitalista, caso este fosse interrompido. Esse setor possui uma função essencial na luta contra a baixa tendencial das taxas médias de lucro, porque a construção possui lucros superiores à média da produção geral (BOTELHO, 2007, p. 25).
A taxa de lucro superior à média da produção geral é explicada pela baixa composição orgânica do capital no setor da construção civil em relação aos outros setores: nele há uma massiva utilização de mão de obra. Embasados na premissa de que o trabalho gera valor (MARX, 1989), compreendemos que, quanto mais trabalho empregado em uma atividade produtiva, mais riqueza é materializada no produto pela exploração da mais-valia. Portanto, a utilização de maquinários favorece a diminuição do emprego da mão de obra, por conseguinte, individualmente, os produtos materializam uma quantidade menor de valor.
Nos outros setores, essa situação é compensada pelo aumento da produção: aumentam-se a escala e os esforços em progresso técnico em resposta à concorrência intercapitalista. O movimento apresentado leva a uma tendência de diminuição da taxa de lucro geral da produção, impulsionada pelo emprego de maquinários, mas é compensada pela atuação dos segmentos considerados “atrasados”, como a construção civil.

Essa particularização obscurece o processo industrial, pois, de um lado, não ocorreu emprego excessivo de maquinária e, de outro, a apropriação da valorização imobiliária aparece naturalizada, como se ela fosse resultado da terra ou da cidade, e não consequência das relações sociais que se estabeleciam na apropriação e na produção do espaço, como produto imobiliário (PEREIRA, 2004, p. 165).

Outro aspecto singular refere-se à questão da terra. Pereira (2004, p. 95) afirma que as mercadorias, em geral, devem viabilizar, no seu preço de custo, a reposição de todos os elementos necessários para sua reprodução, entre os quais aquele que corresponde à renda referente à propriedade da terra. Porém, na produção imobiliária, a terra integra o próprio produto.
Aqui, disputam a mais-valia, o construtor/incorporador e o proprietário da terra, considerados capitalistas, ou seja, à reprodução do capital no setor da construção civil opõe-se a propriedade fundiária. Desse modo, a propriedade privada da terra urbana dificulta a reprodução do setor, limitando as possibilidades de construção, elevando o preço do produto final e comprometendo a demanda.
O grande volume de recursos necessários para a produção apresenta-se também como obstáculo à reprodução do capital, dado que os custos nela envolvidos superam a capacidade de investimento dos empresários do setor. Por essa razão, surge a necessidade de um capital independente para o financiamento desse processo, que, logicamente, extrai parte da mais-valia em forma de juros e contribui para o encarecimento do produto final (BOTELHO, 2007, p. 56). Essas limitações, criadas dentro e pelas próprias práticas capitalistas, incentivam o desenvolvimento de meios para superá-las, como o aumento do crédito, da expansão urbana para novas regiões, da intensificação do uso do solo (verticalização), da terceirização dos serviços, entre outros.
Nessa perspectiva de limites à reprodução do capital, Botelho (2007) pontua que o loteamento e a incorporação emergem como atividades fundamentais para a realização da produção imobiliária, considerando-se os obstáculos surgidos com a propriedade privada e seus custos. Por sua vez, Ribeiro (1997) defende a ideia de que o incorporador surge para viabilizar a produção, contornando os obstáculos impostos pela propriedade dos terrenos. A função do incorporador (figura jurídica) é a criação da disponibilidade de terrenos para construir. Cabe a ele ser o agente que compra o terreno, detém o financiamento para a construção e comercialização do imóvel, definindo o processo de produção e focando na construção de edifícios verticais, com vistas à obtenção de renda fundiária e lucro capitalista de empresa, caso seja ele também o construtor.
Com todas as peculiaridades e entraves do processo produtivo da construção, o setor se reestrutura em torno de um produto imobiliário “reciclado” que torna possível a viabilidade dos empreendimentos: a forma “condomínio”.
Idealizados como o único meio de recuperar a qualidade de vida presente em períodos anteriores, os condomínios transformam-se no modo de vida desejado por grande parte da população urbana. Trata-se de uma forma de vida criada no bojo das exigências do mercado:

A disponibilidade de grandes terrenos combinou bem com o conceito de condomínio-clube. Esta foi a forma que as empresas encontraram para convencer clientes de classe média a mudarem para bairros de “menor status”, tendo como contrapartida a disponibilidade de um conjunto de equipamentos dentro do próprio condomínio – um clube de uso exclusivo. Simultaneamente, os grandes terrenos viabilizam altos potenciais construtivos, cujos índices permitidos têm sido flexibilizados através de novos instrumentos, construindo condomínios compostos por várias torres. Além disso, pelo grande número de unidades, torna [sic] os gastos condominiais mais baixos (TONE, 2010, p. 70).
A nova forma de vida criada pelo capitalismo moderno caracteriza-se pela tendência à homogeneização geradora de padrões de vida que expressam o individualismo, que é, por sua vez, a negação da individualidade, o lado rico de ser humano, a dimensão que transcende as necessidades materiais da sua reprodução e que compreende também os desejos como parte das necessidades humanas (CAMPOS JÚNIOR, 2002, p. 23).

Nesse novo movimento do mercado imobiliário, destacam-se, ainda, a ascensão dos profissionais do “marketing” e financistas e a requalificação de todos os demais profissionais envolvidos no processo. O “marketing” é ponto fundamental para a “realização” dos empreendimentos. Para otimizar a comercialização desse produto e até mesmo garantir lucros extraordinários, são criadas “novas formas de morar ”, novos desejos, divulgando a possibilidade do contato com a natureza, a segurança para a família, a disponibilidade de equipamentos de lazer e de equipamentos públicos. Concomitantemente, a atuação, nos órgãos estatais, para a determinação de investimentos e a flexibilização da legislação ambiental e urbanística mostra-se essencial para a viabilização do negócio. Questões ambientais e patrimoniais, antes apresentadas como obstáculos ao desenvolvimento dos empreendimentos, transformam-se em instrumentos de “marketing”.
O acesso às “exclusividades” (natureza e patrimônios histórico-culturais) favorece a criação dos denominados preços de monopólio como assinala Costa (2002):

Podemos, então, falar de uma produção cultural de novas necessidades e formas de vida, empenhada em seduzir os indivíduos para o consumo programado de mercadorias, por meio de um complexo de mecanismos de leitura e troca com o imaginário social, do qual a publicidade seria um instrumento fundamental. O sentido da mercadoria, seu valor-signo, seria o combustível que faria girar as engrenagens da produção do consumo (p. 6).

Pelo exposto, os diversos atores sociais envolvidos na produção/construção da cidade conformam-na como um meio para valorização do capital, materializado no fenômeno do espraiamento das cidades, resultante de práticas que envolvem a criação da escassez, com a especulação imobiliária, a diferenciação dos lugares por meio dos atrativos do seu entorno (amenidades), a expulsão das classes mais baixas para áreas mais distantes, com pouca ou nenhuma infraestrutura (mas onde o preço da terra é mais acessível, como morros, alagados e mangues), e a instituição de “novas formas de morar”.
Nas próximas páginas analisaremos a materialização desse processo no município de Cariacica, Espírito Santo.

3     Estudo de caso: A recente atuação do mercado imobiliário no município de Cariacica
O município de Cariacica (Mapa 1) é um dos municípios que compõem a Região Metropolitana da Grande Vitória (RMGV), juntamente com Vitória, Vila Velha, Serra, Fundão, Guarapari e Viana. Segundo dados do IBGE, a população estimada em 2010 era de 348.738 habitantes, sendo 95% desse total residente em área urbana.

Mapa 1

Fonte: IBGE (2011).

O município apresenta um histórico de ocupação desordenada de seu território, com altos índices de pobreza e infraestrutura insuficiente, em decorrência do forte processo migratório ocorrido nas últimas décadas. As décadas de 1960 e 1970 são marcos na ocupação dos municípios metropolitanos. Com a intensificação do fluxo migratório, oriundo do interior do Estado – ocasionado pelas políticas de erradicação da cultura cafeeira –, grandes levas populacionais alocaram-se na região. Nesse período, a capital Vitória tornou-se inviável para a população com menor renda, visto que, como centro econômico do Espírito Santo, a propriedade imobiliária apresentava-se, nela, mais valorizada. A cidade foi palco da construção por incorporação através da produção verticalizada e de preço diferenciado, impulsionada pela expansão da atividade industrial e pelos financiamentos imobiliários advindos do Banco Nacional de Habitação (CAMPOS JÚNIOR, 2002).
Em Cariacica, a produção do espaço urbano, tradicionalmente, vinculava-se à reprodução/expansão da periferia, lócus da população das classes de menor rendimento e caracteristicamente ocupada por moradias autoconstruídas. A propriedade fundiária dela não favorecia ganhos imobiliários capazes de viabilizar a produção imobiliária privada por meio da construção de edifícios para venda. Assim, “[f]oi necessário que se criassem com o processo de urbanização novas centralidades na Região Metropolitana [...] e a construção também precisou sofrer mudanças para se apropriar do novo contexto” (CAMPOS JÚNIOR.; GONÇALVES, 2009).
O fim da década de 1980 apresentou significativas transformações do espaço metropolitano capixaba – fenômeno ocorrido também em outros estados. O bairro Campo Grande ascendeu como um importante subcentro metropolitano. Ademais, referente às formas de produção imobiliária e seus produtos, o contexto atual do município de Cariacica exibe importantes mudanças no uso e ocupação do solo urbano, como a valorização de áreas anteriormente desvalorizadas e a implantação de empreendimentos imobiliários diversificados (condomínios residenciais e shopping center, por exemplo).
Essas mudanças, primeiramente, estão refletidas na atuação do Sindicato da Indústria da Construção Civil no Estado do Espírito Santo (SINDUSCON-ES). Em 2007, a produção imobiliária em Cariacica – mais especificamente no bairro Campo Grande – é incluída nos Censos Imobiliários desenvolvidos por essa entidade, revelando o incipiente interesse do setor nesse município.
Esses dados de caráter mais geral tomam forma a partir do levantamento dos empreendimentos imobiliários em implantação e em processo de aprovação no município de Cariacica – informações disponíveis na Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano, onde foram identificados 14 projetos de condomínios residenciais e um shopping center, alocados em diferentes áreas do município e direcionados para diferentes faixas de renda. Nesse contexto, um aspecto significativo é a existência de 12 empreendimentos inseridos no Programa Federal “Minha Casa, Minha Vida”.
A crescente produção imobiliária destinada ao “segmento econômico” constituiu-se como uma alternativa para essa atividade, limitada por conta da saturada oferta de imóveis até então fortemente orientada para os segmentos da população de maior poder aquisitivo.
A estratégia encontrada pelo setor de construção foi a busca por áreas com preços menores para o desenvolvimento dos novos empreendimentos. Estes, como consequência, deslocaram-se para localizações mais afastadas, onde havia extensas áreas vazias, tradicionalmente ocupadas pela população de baixa renda, com preços menos elevados, mas, ao mesmo tempo, com infraestrutura precária, impondo, pois, uma brusca interrupção da paisagem do entorno.
A espacialização dessas informações revela a implantação dos novos empreendimentos a oeste do município, próximo às áreas de transição rural-urbana e rurais, isto se se considera a BR-101 (Rodovia do Contorno) como um limite aproximado entre as áreas rurais e urbanas.
A reconfiguração territorial que se inicia em Cariacica apresenta-se como peça-chave para a compreensão da influência do espaço urbano em seu entorno, permitindo-nos analisar os desdobramentos de tal processo de produção da cidade. As particularidades dos empreendimentos revelam que: (1) Os projetos residenciais focados na população “de baixa renda” (PMCMV – Faixa 1) localizam-se em bairros afastados das áreas mais centrais do município, sobretudo Campo Grande, e próximo aos limites estabelecidos entre as áreas rurais e urbanas. Essas regiões possuem pouca infraestrutura, como drenagem e pavimentação de ruas, e carência de equipamentos públicos de lazer e transportes; (2) Já os empreendimentos do MCMV – Faixa 2 e 3 encontram-se em bairros com infraestrutura mediana, próximo às centralidades e a equipamentos públicos, como terminal rodoviário e shopping center; (3) O empreendimento focado no MCMV – Faixas 1, 2 e 3, Condomínio Residencial Serra do Anil, diferencia-se por localizar-se em uma área com poucos atrativos (às margens da BR-101), mas, em contrapartida, prevê a construção de diversos equipamentos de lazer, um centro comercial, além das unidades de saúde e ensino no próprio empreendimento, o que possibilita uma maior agregação de valor ao produto.
A implantação desses empreendimentos leva para Cariacica a atual lógica de produção imobiliária: o investimento em condomínios fechados, destinados, sobretudo, ao segmento econômico. Cariacica se insere, desse modo, no circuito do mercado imobiliário consolidado.
O direcionamento para o segmento econômico por intermédio do condomínio fechado é uma tendência recente no Espírito Santo, concentrando grande parte dos projetos nos municípios de Serra e de Vila Velha, devido, principalmente, à procura de alternativas para continuação das atividades da indústria da construção, bem como à existência de grandes áreas livres, com infraestrutura básica, relativamente próxima às centralidades e com preços que não inviabilizam a realização do produto. Cardoso e colaboradores (2011, p. 5) afirmam que

[...] [a] implementação de uma política habitacional regida por uma lógica empresarial trouxe reflexos diferenciados para a construção do espaço urbano, assim como para a eficácia da política de habitação como mecanismo de redução das desigualdades socioespaciais.

Esses reflexos fundamentam-se no fato de as empresas objetivarem sempre a ampliação dos lucros e, nesse processo, esbarrarem nos preços máximos das habitações pré-definidos pelo governo federal. Tendo isso em vista, os ganhos com a produção habitacional realizam-se de duas formas. A primeira, a partir da redução do custo de execução do projeto definido como lucro da construção. Essa estratégia é viabilizada pela ampliação da escala, utilização de novas tecnologias, racionalização do processo produtivo, redução de perdas, terceirização de diversas atividades e padronização dos empreendimentos. Como exemplo, nos empreendimentos desenvolvidos pela MRV Engenharia, além do uso de lajes içadas, que dispensam a necessidade de fazer contra-piso, o principal item de diminuição de custos tem sido a utilização de alvenaria estrutural, em vez de alvenaria convencional, propiciando, assim, a feitura de revestimentos de menor espessura. Vale ressaltar também a estratégia de terceirização de algumas etapas da construção. Algumas empresas, focadas em empreendimentos destinados às maiores faixas de renda, preferem exercer a atividade de incorporação, isto porque há maiores possibilidades de aumentar, nessa fase, os lucros obtidos.
Neste estudo, foram analisados os três empreendimentos da MRV Engenharia que apresentam fachadas, áreas, preços e opções de lazer similares, favorecendo a redução de custos com a replicação de projetos e execução das obras. No entanto, essa redução de custo é limitada pela estrutura mínima requerida pelo PMCMV. Para edificações destinadas à faixa 1 do programa, por exemplo, a “planta mínima” é constituída por sala, cozinha, banheiro, circulação, dois dormitórios e área de serviço com tanque, totalizando 32 m² de área útil para casa ou 37 m² para apartamento.
A segunda forma de realização dos ganhos com a produção habitacional apoia-se na redução do preço da terra. Essa ação baseia-se na redução do valor pago aos proprietários fundiários por meio de estratégias como constituição de estoque de terras, transformação do solo rural em solo urbano ou até mesmo parcerias entre construtoras e proprietários dos terrenos, conforme identificado nos empreendimentos do Shopping Moxuara e do Condomínio Residencial Serra do Anil. Nessas parcerias, o terreno é cedido para a implantação do empreendimento em troca de algumas unidades habitacionais e/ou comerciais.
Outra possibilidade para contornar o preço da terra é a transformação de solo rural em solo urbano. No levantamento dos projetos em Cariacica, foram identificados três empreendimentos em que houve flexibilização da legislação municipal. Os condomínios residenciais localizados nos bairros Antônio Ferreira Borges, Santa Luzia e Cariacica Sede foram projetados em áreas definidas como Áreas de Transição e Rurais, sendo determinante, para a implantação deles, a modificação do perímetro urbano.
 O adensamento das “franjas urbanas”, conhecidas como Zona de Transição Rural-Urbana ou Zona Rurbana, é uma prática comum nos municípios em crescimento. Tal área compreende “a Zona de Transição entre o ambiente rural e o urbano, localizada dentro do perímetro urbano concentrando atividades turísticas, ecoturísticas, agrícolas, pecuária e beneficiamento de produtos agrícolas” (CARIACICA (ES), 2006).
O Plano Diretor Municipal de Cariacica, desenvolvido em 2006, define os seguintes objetivos das Zonas Rurbanas: conter o avanço da malha urbana sobre a área rural; promover o uso racional dos recursos do solo e dos recursos hídricos; incentivar as atividades voltadas à agricultura, pecuária, turismo cultural, ecoturismo e ao beneficiamento de produtos agrícolas; promover a proteção dos mananciais; definir padrões de uso e ocupação do solo, específicos às peculiaridades locais, favorecendo a ocupação na forma de chácaras e com padrão de assentamento de baixa densidade. Essas macrozonas possuem entraves ao adensamento urbano, posto que proíbem fracionamentos de lotes inferiores a 10.000 m². No entanto, o baixo preço da terra torna essas áreas interessantes para a implantação de empreendimentos destinados ao PMCMV de até três salários mínimos, legitimando, por um lado, as mudanças no perímetro urbano com base nas necessidades da população carente, faixa em que reside a maior parte do deficit de moradias, e, por outro, atendendo às demandas do mercado imobiliário.
A camada populacional de menor renda, sem opções de moradias próximas aos centros, vai residir em áreas mais distantes, onde o preço dos imóveis é adequado à sua condição financeira. Os antigos moradores da periferia, quando não inseridos nos programas do governo, tendem a ser expulsos do seu território, porque os empreendimentos imobiliários têm o poder de promover a valorização da propriedade imobiliária nessas áreas.
Os equipamentos de lazer e segurança, por sua vez, são o diferencial que atrai, cada vez mais, a população de classes baixa e/ou média que não dispõe de recursos suficientes para adquirir um imóvel localizado em áreas valorizadas.
Esses espaços privados e os equipamentos públicos estão sendo utilizados como atrativos (vantagens) para facilitar a comercialização dessas unidades habitacionais do PMCMV, operando como aspectos que compensam a localização pouco favorável dos condomínios e a pequena área dos apartamentos. A isso, soma-se o novo estilo de vida desejado por muitas pessoas e criado por profissionais de marketing altamente focados.

A diminuta área das unidades habitacionais e sua verticalização, características dos novos condomínios residenciais, [...] é explicada [sic] como uma “forma de intensificar o uso do terreno, obtendo várias unidades imobiliárias no mesmo terreno, pois por meios do consumo praticamente igual de quantidade de trabalho e material de construção, aumenta-se o número de mercadorias produzidas e, também, o excedente, sendo, nesse sentido, causa e efeito da valorização imobiliária” (PEREIRA 2004, p. 129).

Retomando a questão dos atrativos inseridos na realização dos projetos residenciais, foram identificados vários pontos convergentes entre os empreendimentos analisados.
Os sete condomínios residenciais, inseridos (ou não) no “Programa Minha Casa, Minha Vida”, dispõem de diversos equipamentos de lazer, como piscina, churrasqueira, salão de festas e playground. Destacam-se, nesse quesito, o Condomínio Moxuara Residencial Clube, o Condomínio Residencial Villagio Campo Grande e o Condomínio Residencial Serra do Anil, por apresentarem mais de dez equipamentos diferenciados, como pista de cooper, espaço fitness, SPA center e cancha de bocha.
Indo além, o projeto do Condomínio Residencial Serra do Anil, como destacado anteriormente, prevê a construção de uma Unidade de Saúde e de uma escola no terreno do empreendimento. A parceria entre a Construtora Decottignies e a Prefeitura Municipal de Cariacica fundamenta-se na cessão de uma fração do terreno em favor da prefeitura. Apesar da aura benéfica dessa parceria, é possível interpretá-la como mais um mecanismo de viabilização do empreendimento, aliado aos diversos equipamentos de lazer e de compras previstos no projeto. Saúde e educação públicas estão inseridos nos atrativos do condomínio.
Seabra (1988) e Santos (2006) afirmam que a atuação ideal do Estado está permeada de interesses privados: o investimento privado estaria sendo capitalizado com recursos públicos e possibilitando a alguns encontrar as condições de sua plena realização, ou seja, a venda de seus produtos.
Outro aspecto relevante identificado nos empreendimentos Villagio Campo Grande, Vila Platina, Vila da Prata e Vila Imperial é a tentativa de customização das unidades residenciais. A tendência de padronização/homogeneização das formas de moradia, por vezes, abre espaço ao desejo de individualização em meio à monotonia dos modelos pré-definidos. Nos empreendimentos supracitados, por exemplo, foi identificada a possibilidade de escolha da planta e dos acabamentos das unidades habitacionais, o que demonstra a preocupação dos empreendedores em alcançar a clientela que preza pela manutenção de sua individualidade, ainda que ilusória.
Além disso, foi observada, em todos os projetos, a divulgação da proximidade com Campo Grande, o bairro economicamente mais importante do município de Cariacica. Por concentrar as principais atividades de comércio e serviços, os terrenos disponíveis apresentam altos preços, o que, em grande medida, inviabilizaria os empreendimentos para a população de baixa renda. Para ultrapassar tal empecilho, a solução encontrada foi a intensificação do uso do solo nas regiões vizinhas por meio da implantação de condomínios residenciais de vários pavimentos e torres. Ressalte-se que a dita proximidade do bairro Campo Grande não é configurada, frequentemente, como distância a ser percorrida a pé.
Outro artifício utilizado para agregar valor ao produto imobiliário é a divulgação da localização do empreendimento, utilizando o nome de bairros mais conhecidos e com aspectos mais aprazíveis, como são os caso do Condomínio Residencial Serra do Anil, cuja divulgação localiza-o no bairro Santa Cecília, em lugar de aloca-lo em Vila Capixaba, sua real localização, e do Condomínio Residencial Villagio Campo Grande, que supostamente localiza-se no bairro Campo Grande, mas que, de fato, será implantado no bairro Rio Branco, próximo ao Estádio Kléber Andrade.
Por fim, aspectos como proximidade ao Shopping Moxuara, aos terminais rodoviários e aos principais eixos viários são destacados na divulgação dos projetos habitacionais, na tentativa de atrair certa parcela da população a partir de itens que são considerados importantes.

4     Conclusões sobre a relação entre produção do espaço urbano e áreas de transição rural-urbana

Como apresentado anteriormente, as áreas de transição rural-urbana localizam-se na interface dos espaços rural e urbano. O fenômeno da expansão urbana, identificado na grande maioria das cidades brasileiras em que os limites urbanos modificam-se, frequentemente, em decorrência dos mecanismos de produção/construção da cidade, apodera-se das áreas de transição rural-urbana e até mesmo das rurais, com fins relacionados ao processo de especulação imobiliária. Nesse movimento, as áreas de transição são interpretadas como estoque para especulação imobiliária, ficando impossibilitadas de exercer suas funções, principalmente a de amortizar ações desenvolvidas no campo e na cidade.
Dada a dinâmica estreitamente vinculada à presença próxima de um núcleo urbano, compreendeu-se a necessidade de investigação do processo de produção da cidade, as causas de sua constante expansão e os agentes envolvidos nesse fenômeno, com vistas ao planejamento e gestão dessas áreas.
Em Cariacica, município tradicionalmente com aspectos periféricos e lócus desta pesquisa, grande parte dos empreendimentos insere-se no Programa Federal “Minha Casa, Minha Vida”, o que favorece a adoção de estratégias como a diminuição do valor referente à renda paga ao proprietário da terra, para garantir a devida margem de lucratividade com a realização do empreendimento. Os reflexos das mudanças na atuação do setor imobiliário são observados em Cariacica com a valorização de bairros que não apresentam “amenidades”, distantes dos principais centros de comércios e serviços. Tempos atrás seria impossível conceber a ideia de um condomínio fechado com piscina e playground nessas regiões.
Essa dinâmica de valorização de novas áreas resultou na elevação do preço das terras próximas às áreas fora do perímetro urbano, pressionando a transformação de áreas rurais e de transição em áreas urbanas, como visto em três empreendimentos do tipo PMCMV nas faixas 1 e 2.
Neste artigo, o espaço urbano é caracterizado como uma arena em que se defrontam diferentes grupos sociais (MIRANDA, 2008). Cada agente possui seus interesses e estratégias de apropriação dos espaços e de controle das localizações socialmente produzidas, refletidos na desigualdade e na diversidade das formas de produção.
 Considerando esses pontos, a pergunta que se apresenta é: como é possível planejar efetivamente essas áreas de transição rural-urbana?
O Estatuto das Cidades exige que todos os municípios com mais de 20 mil habitantes, elaborem Planos Diretores que considerem todo o município, tanto a área urbana quanto a rural, buscando a integração e a complementaridade entre as atividades desenvolvidas nesses dois espaços, com vistas ao desenvolvimento socioeconômico do município e do território. Entretanto, essa legislação não apresenta qualquer tipo de instrumento para os estudos das áreas de transição rural-urbana, tampouco das áreas rurais e sua interação com a cidade, promovendo uma espécie de legitimação dos planos de desenvolvimento essencialmente urbanos. Nos planejamentos de desenvolvimento atuais, as áreas de transição e rurais, na maioria dos casos (considerando-se aqueles em que são abordadas), não são analisadas de forma a reconhecer a importância delas como território ou suas inúmeras interações com o urbano. Predominam estudos que supervalorizam o urbano e ignoram territórios igualmente importantes e amplamente influenciados por ele.
O que temos até o momento são programas e planos que preveem o planejamento dos municípios como um todo, mas que, na prática, não se efetivam, por não serem compreendidos como ferramentas que dependem da compreensão das diversas variáveis envolvidas em um processo que está em constante renovação. Por fim, devemos apontar que somente a partir da compreensão dessa complexa rede de variáveis que compõem o espaço urbano é possível o entendimento e o planejamento dos territórios rurais e de transição. Caso contrário, a prática de elaboração desses materiais continuará sendo de pouca efetividade, destinada, simplesmente, ao cumprimento de determinações governamentais.


Notas
1    Com o objetivo de criar condições para ampliação do mercado habitacional para atendimento das famílias com renda de até 10 salários mínimos, no ano de 2009, o governo anuncia o Programa “Minha Casa Minha Vida” (PMCMV) em que é estabelecido subsídio direto, proporcional à renda das famílias. Além dos subsídios, o Programa objetiva também aumentar o volume de crédito para aquisição e produção de moradias, com juros reduzidos e disponibilização de recursos para pagamento das prestações, em caso de inadimplência, por desemprego e outras eventualidades. Contudo, diversos pesquisadores identificam, na implementação dessa política, uma tentativa de manutenção do desenvolvimento do setor imobiliário que desde 2006 apresenta significativos índices de crescimento, mas que foi afetado pela crise econômica mundial.
2    Lefebvre (1980, p. 151) apud Botelho (2007, p. 15), afirma que a homogeneização é a repetição de elementos no espaço, como aeroportos, rodovias, verticalização das residências, horizontalidade dos condomínios, que criam uma monotonia repetitiva na paisagem. A fragmentação relaciona-se aos espaços separados, ocupados pelas funções exercidas nesses espaços distintos, como trabalho, moradia, lazer, transportes e produção. Botelho (2007, p. 26) assevera que a fragmentação é um instrumento de poder político, “pois separa para reinar”. Complementarmente, a homogeneidade assume posições hierárquicas que distinguem o espaço entre pontos fortes (centros) e periferias, interpretadas como pontos fracos. Aqui, a ideia de anticidade de Lefebvre (1999) se faz presente, pois esses processos intensificam a segregação socioespacial, criando obstáculos para a cidade ser vivida em sua totalidade.

 

Referências
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