Da Região ao Território: uma análise estilizada sobre abordagens debates e novos desafios do desenvolvimento urbano-regional
Silvia Gorenstein
Pesquisadora do Instituto de Estudios Económicos y SocialesdelSur (IEES-CONICET), Pesquisadora convidada (visitante) do Centro de Estudios Urbanos y Regionales (CEUR-CONICET), Professora Titular do Departamento de Economía da Universidad Nacional delSur.
1 Introdução
O título deste artigo é reflexo de uma constatação: no Brasil, conservam-se, ainda hoje, referências próprias do planejamento regional das décadas de 1960 e 1970, sobretudo as concepções de região e desenvolvimento regional. E mais. Apesar das preocupações expostas nos debates atuais, e comparando-as, em especial, com o posicionamento da Argentina, é indubitável que a importante trajetória do planejamento urbano-regional envolve uma ativa discussão acadêmica e política em torno de problemáticas socioeconômicas e espaciais.
No restante da América Latina, o discurso teórico sobre a “questão regional” abandonou a noção de região e absorveu, de maneira mais frequente, o termo território. Tal mudança não é apenas semântica; a referência ao território carrega uma forte ambiguidade e envolve novos conceitos e categorias analíticas desenvolvidas e imbricadas no amplo campo das ciências sociais, além da geografia e economia.
No presente artigo, tentamos esboçar algumas das ideias associadas a essa mudança, centrando-nos em dois conjuntos de questões. Primeiramente, apresentamos a perspectiva das mediações teóricas, que, como entendemos, são essenciais para explicar por que e como a referência ao território posicionou-se nos discursos acadêmicos e no campo das políticas públicas. A hierarquização dos dois termos no discurso acadêmico e político esconde ou subsume o esvaziamento das problemáticas regionais? Em segundo lugar, pretendemos refletir acerca de algumas das dinâmicas socioeconômicas que estão moldando ou redefinindo territórios em nossos países. A ideia consiste em que sejam planejados, dentro do campo urbano-regional, novos ou renovados conteúdos e que certos eixos temáticos tornem-se fundamentais para a futura agenda teórica sobre desenvolvimento e território.
2 Ascensão teórica e política da dimensão espacial
A região, nos manuais dos planejadores, era concebida, metodologicamente, como um recorte oportuno (2); um campo de observação dos processos e fenômenos “contidos” em um espaço dotado de recursos e fatores de produção. O espaço continha objetos e esses objetos eram um ponto crucial para o desenvolvimento. A questão regional era, basicamente, a questão das desigualdades no crescimento e no desenvolvimento dos espaços subnacionais. A acumulação de capital e a dinâmica do processo de industrialização estavam no centro dos debates teóricos e políticos que, com o aparato conceitual das abordagens keynesianas e estruturalistas, problematizavam as desigualdades regionais existentes, integrando, com diferentes ênfases, elementos sociais e políticos que mantinham e retroalimentavam as relações centro-periferia dentro dos sistemas nacionais.
Nos maiores países da América Latina que passaram pelo processo de industrialização por substituição de importações, os impactos sumamente limitados fora das áreas metropolitanas ou centrais funcionaram como justificativa para as difundidas orientações de política regional. Havia uma nítida associação do desenvolvimento como um fenômeno essencialmente urbano-industrial, em paralelo com a ideia do rural como sinônimo de pobreza, subdesenvolvimento e marginalidade. Além disso, nas economias nacionais relativamente fechadas, o princípio teórico keynesiano da demanda efetiva sustentava a necessidade de intervenção estatal por meio de estratégias deliberadas de indução do crescimento regional, dentre as quais se destacavam: criação de polos de crescimento; definição de prioridades para o investimento no setor industrial e nos mecanismos de promoção aplicados nas regiões menos desenvolvidas; investimentos estratégicos por parte do setor público (energia, infraestrutura rodoviária etc.); mecanismos de compensação para atividades econômicas e populações localizadas em regiões marginais.
A crítica à perspectiva "desenvolvimentista" começou no início dos anos 1970. Os parcos resultados das políticas inspiradas por essa visão foram objeto de intenso debate durante quase uma década. Como exemplo disso, podem ser citadas, dentre outros materiais divulgados no continente, a movimentação de materiais dentro do ILPES-CEPAL (1976-1987), as apresentações e a declaração final do seminário sobre a "questão regional", realizado no México em 1978. Em um de seus trabalhos, Carlos de Mattos (1984) identifica duas questões importantes nessa discussão, as quais, de certa forma, permitem explicar a instalação da visão local e sua posterior hegemonia. Por um lado, a partir das conclusões do Seminário sobre a Questão Regional (1978), criticava-se o "espacialismo" do planejamento regional (keynesiano), que consistia em "realocar elementos materiais no território como uma estratégia" de omitir a necessária análise das "forças sociais operando nos processos sociais" (3). Por outro, a partir da corrente latino-americana mais ligada ao "desenvolvimentismo", também "se destaca[va] o papel dos dois atores fundamentais: o Estado e a região, esta última concebida não como um mero fato geográfico, mas como um ator social no processo de planejamento" (MATTOS, 1984, p 25).
Em outras palavras, o surgimento do localismo no debate teórico latino-americano não obedeceu, simplesmente, a uma trasladação automática das ideias produzidas pelo chamado Novo Regionalismo de vertente europeia ou anglo-saxônica. Matizando as reflexões de Fernandez e Brandão (2012, p. 18), consideramos que a rejeição ao "espacialismo" em ambas as vertentes e a maior atenção dada às "forças sociais" ou aos "atores sociais", num e noutro caso, evidenciam o início da virada teórica, motivada pelo fracasso ou pelos maus resultados das políticas regionais próprias do período de substituição.
Entretanto, a questão regional converteu-se, em definitivo, em uma questão local com a ascendência teórica e política do paradigma neoliberal. Difundiu-se, paralelamente, a ideia de território como uma construção social não cristalizada, com passado, presente e futuro, na qual se desdobram e interagem múltiplas dinâmicas (econômicas, sociais, políticas e institucionais). No território, e em suas diferentes escalas, surgiu a possibilidade de ação das políticas públicas com capacidade de impactar as características e a sustentabilidade dos processos de desenvolvimento (4).
Uma parte da literatura crítica elaborada nas últimas duas décadas, também originária de países latino-americanos, pôs em discussão os aspectos centrais da corrente de pensamento localista, seus limites teóricos e, mais especificamente, os pressupostos subjacentes à homogeneização das políticas econômicas subordinadas às exigências do capitalismo liberal global (AMIN, 2000; FERNANDEZ, 2007; BRANDÃO, 2007; MATTOS, 1991; JESSOP, 2002). Sem desconsiderar tais reflexões, queremos capturar apenas seus aspectos fundamentais para explicar a transição teórica e política da região (recorte apropriado para análise e/ou para a ação) para o território (construção social), ocorrida nas últimas décadas.
Em primeiro lugar, vamos falar da concepção de espaço e espacialização produzida no seio da teoria econômica. Historicamente, a disciplina econômica assimilou o espaço ao âmbito geográfico, visto como aquele que "contém" ou "suporta" a atividade econômica e influencia os processos de produção, circulação e distribuição de bens e pessoas (espaço/custo). A mudança não se fez há muito tempo. Por um lado, os modelos de crescimento endógeno começaram a desafiar o suposto mecanismo automático (mobilidade de fatores, mercado), que causaria a convergência regional, e contemplar os determinantes de longo prazo de crescimento, associados, em boa medida, aos rendimentos crescentes decorrentes da mudança tecnológica. Por outro lado, ainda dentro do mainstream da economia, o posicionamento da chamada Nova Geografia Econômica (NGE) tornou correto, teórica e politicamente, o tratamento analítico da dimensão espacial e do território e suas implicações nos fatos econômicos e sociais. Como indica Cuadrado Roura, (2012, p. 8), passou-se a reconhecer que “o território não é neutro... mas essa não foi, em absoluto, a posição dominante nas sucessivas correntes que foram dando forma à análise econômica até convergir para o que é hoje a Ciência Econômica".
Os processos que espacializam as formulações teóricas da NGE não são novos. Krugman (1992) retomou variáveis e fenômenos analisados a partir do paradigma teórico de desequilíbrio e formalizou um modelo de crescimento urbano, usando, para tanto, a noção myrdaliana de causação cumulativa circular. Resgatando a presença de rendimentos crescentes (economias externas tecnológicas, de mercado, etc), a tese central de sua análise consistiu na afirmação de que o crescimento regional obedecia a uma lógica de causação circular, cujo início encontrava-se nos encadeamentos produtivos das empresas promotoras de concentração de atividades econômicas de tipo acumulativo. Esse processo de causação acumulativa, longe de produzir a equalização territorial, conduzia a uma maior divergência entre as regiões, já que as atividades econômicas tendia a concentrar-se de acordo com a possibilidade de aproveitamento das economias de aglomeração. Passou-se, assim, o tratar o espaço menos como fonte como fonte de custos econômicos – teoria da localização – que como fonte geradora de economias externas.
Nesse quadro podem ser interpretadas, então, as implicações teóricas e políticas do discurso da competitividade. A partir das formulações de Porter (1990), e seguindo a abordagem da competitividade sistêmica, foi afirmada a importância do território para gerar e/ou recriar vantagens competitivas dinâmicas nos mercados globais. Como sugere Harvey (2000, p. 77), produziu-se um “espaço adaptado“, uma paisagem geográfica (de relações espaciais, de organização territorial, etc.) adequada para dinâmica da acumulação do sistema capitalista em um determinado momento da sua história. O território, com seus atributos, constituiu-se como um fator a mais para as disputas competitivas das empresas. O empresarialismo (território/cidade empresa) foi afirmando-se nas análises e práticas da área urbana na década de noventa, algo que foi criticado, de forma lúcida e oportuna, por Vainer (2000).
Por último, no modelo de desenvolvimento endógeno, na sua vertente italiana e europeia em geral, o espaço é visto através de uma perspectiva analítica que enfatiza o relacional. O espaço local é concebido como o "lugar" de encontro entre agentes e atores econômicos. É aí onde são produzidas diversas modalidades de colaboração interempresarial e especificada e decidida a divisão social do trabalho, ou seja, onde é configurado o espaço de encontro entre as forças do mercado e as formas de regulação social (BECATTINI, 2002). O foco recai sobre a autonomia do processo de transformação da economia local, ressaltando a centralidade dos processos decisórios dos atores locais e sua capacidade de controlar e internalizar os conhecimentos e as informações externas, em um caminho de desenvolvimento autossustentado (5). Essa concepção conecta-se com a perspectiva institucionalista do território, que, em sua ênfase nas externalidades não-comerciais e, particularmente, no tecido institucional adequado, visualiza possibilidades locais de adaptação progressiva diante da incerteza econômica (mercadológica, tecnológica etc.).
Em suma, há uma reconfiguração teórica que rejeita a visão do espaço como "recipiente" de recursos e fatores produtivos. O lugar importa e, nesse sentido, o território é conceituado a partir da combinação de atributos que compõem um palco privilegiado para inter-relações econômicas baseadas na confiança e na proximidade. No entanto, o resgate da dimensão espacial – local-territorial – implica significantes quebras com as proposições fundamentais do campo da teoria da acumulação e suas aplicações urbano-regionais. Trata-se de um processo paradoxal em que, como mostra Brandão (2007, p. 43), [...] [o]u bem o espaço local é meramente um nó em uma vasta rede (ou seja, um ponto quase anônimo subsumido em um conjunto gigante, em função da determinação instrumental de uma totalidade onipresente), ou bem aparece como um recorte singular, dotado de vantagens idiossincráticas e únicas, com capacidade de autopropulsão, identidade e autonomia.
Quais são essas vantagens ou atributos? As possibilidades de atração de novos investimentos e, por sua vez, a recriação de ambientes capazes de impulsionar atividades locais competitivas. Dessa perspectiva, a ênfase recai nas instituições e a preocupação central é com o papel do conhecimento e da inovação no atual estágio de desenvolvimento.
A associação entre indústria e desenvolvimento urbano-regional, posta nas formulações estruturalistas da década de 1960, é agora mediada por análises que enfatizam os fatores que condicionam a inovação e as dificuldades do processo de industrialização com maior conteúdo tecnológico, sem descartar a possibilidade das aglomerações primárias ou terciárias especializadas em agroindústria e agroturismo. Nesse contexto, e conforme grande parte da literatura recente, as vantagens aglomerantes e de proximidade são enfatizadas como uma das fontes de conhecimento e aprendizagem, procurando visualizar de que forma é possível gestar sinergias coletivas para a construção de vantagens competitivas dinâmicas (isto é, políticas de cluster).
Duas observações antes de prosseguir para o segundo aspecto. A primeira refere-se à heterogeneidade teórica que sustenta o resgate da dimensão espacial e do território: por um lado, estão as contribuições baseadas em instrumentos desenvolvidos a partir da chamada NGE; por outro, estão aqueles que fazem parte do chamado Novo Regionalismo, abrangendo várias correntes, nenhuma delas claramente dominante (os neoinstitucionalistas, evolucionistas, regulacionistas, neoestruturalistas). Na América Latina, por sua vez, junto ao localismo discursivo, instalado pelas usinas de difusão dos organismos multilaterais de crédito (BM, BID), está a gênese da abordagem contestatória dos anos 1970 e sua proposta contemporânea sobre as possibilidades locais da "economia popular".
A segunda observação relaciona-se com as traduções feitas no plano das formulações políticas. O êxito do discurso da competitividade na academia, por exemplo, foi derivado de diretrizes de políticas públicas que enfatizaram e promoveram as "capacidades" territoriais para competir na economia global; a “cidade competitiva", os "clusters competitivos" etc. A promoção da competitividade combinou-se, logo depois, com o surgimento da "economia do conhecimento" e com os "novos" formatos de parques industriais – parques tecnológicos e/ou polos científico-tecnológicos –, concebidos como áreas em que a acumulação de conhecimentos tácitos (enraizados) possibilita a transmissão dos saberes-conhecimentos codificados (globais). Por sua parte, atrás das capacidades endógenas de organização e da autonomia de decisão, agrupam-se iniciativas muito diferentes: desde aquelas que promovem comunidades populares – da economia social ou solidaria – aos empreendimentos associativos de pequenas e médias empresas urbanas ou rurais.
3 Transformações socioeconômicas e espaciais
O segundo aspecto da transição teórica da região para o território refere-se, sem dúvida, às mudanças na organização do capital tecnologicamente aprimorado. Como diz Harvey (2000, p. 77), "o capitalismo está sujeito ao impulso de eliminar todas as barreiras espaciais, (...), mas só pode ser feito através da produção de um espaço adaptado"; e, nesse sentido, a volatilidade e o dinamismo das formas geográficas contemporâneas, sistemicamente desiguais.
Quais são alguns dos processos econômicos e sociais que redefinem espacialidades, desafiando abordagens e metodologias de análise nas áreas urbano-regional? Os estudos de reterritorialização e reespacialização do capitalismo levantaram novas imagens e categorias analíticas para capturar as complexidades das transformações urbano-regionais que vêm manifestando-se ao longo dos últimos trinta ou quarenta anos.
A imagem do "arquipélago", formulada por Veltz (1996), por exemplo, pôs em discussão as configurações espaciais ordenadas pela distância física, assim como a consideração das novas formas de integração/exclusão socioeconômica e espacial. Veltz advertia sobre a diferença radical que surge entre um espaço dominado/dependente (relacionado às leituras perrouxianas e myrdalianas das décadas anteriores) e um espaço excluído, dentro de uma dinâmica em que a “segregação dissociada” substitui cada vez mais à “segregação associada” (VELTZ, 1996, p. 57.). Nesse sentido, Oliveira (2006, p. 47), ao analisar evidências recentes no Brasil refere-se à "balcanização das regiões", no sentido de recortes não integradores que conduzem a uma divisão repetida dos espaços.
No entanto, os espaços não excluídos economicamente são, como no passado, os que possuem as condições mais favoráveis para a valorização do capital, enquanto os melhor articulados constituem os nós que permitem a conectividade com outros nós ou filiais de redes localizadas em diferentes lugares especializados. Em ambos os tipos de área, podem-se distinguir os âmbitos que estão integrados à sociedade global daqueles que ficam excluídos das economias nacionais abertas e dos espaços de acumulação "des-fronterizados", conforme alerta Mattos (2010). Esse renovado processo de dispersão geográfica e fragmentação dos sistemas de produção, no contexto das redefinições nas divisões do trabalho e especialização, aprofunda a centralização do capital (fusões, aquisições, etc.).
Em relação ao último ponto, é importante notar o seguinte paradoxo: o potencial competitivo do "pequeno", enraizado em laços de solidariedade e complementaridade socioterritorial, como enfatizado pela literatura localista, depara-se com realidades econômicas locais dominadas por dinâmicas interssetoriais de acumulação oligopolista (ou até mesmo monopolista), sujeitas a poderosas economias de escala e barreiras de entrada, bem como a decisões engendradas, geralmente, fora desses espaços (6).
Desse modo, as abordagens dos sistemas de produção (nacionais, subnacionais) remetem a escalas de observação muito mais amplas. Do ponto de vista metodológico, a passagem começa dos complexos de produção, circulação e apropriação do excedente econômico regionalizados e nacionais para os complexos ou redes globalizadas. Devem ser identificadas as redes, as estratégias dos atores (diversos) que as integram, os marcos regulatórios (Organização Mundial do Comércio – OMC, os países de origem dos ET).
Tomemos as atividades intensivas em recursos naturais como exemplo das preocupações acerca da "reprimarização" das exportações de parte das economias latino-americanas.
A primeira fase de produção, atribuída a um espaço com certos recursos e atributos (terra, água, clima, minerais, etc.), tem, com o surgimento de novas tecnologias e formas de organização, maior flexibilidade (locacional) e potencial de reprodução em outros lugares. Os territórios ganham atratividade por sua dotação de recursos naturais – vantagem estática ou ricardianas – e, ao mesmo tempo, são integrados com as novas modalidades de expansão dos capitais, com capacidade de atuar em vários locais e capturar lucros extraordinários associados a seus encadeamentos globais.
O surgimento e a drástica expansão vivida pelo cultivo da soja na Argentina e no Brasil, por exemplo, ilustram a dinâmica do funcionamento econômico e espacial dessas cadeias globais. Em ambos os países convergem uma série de variáveis: a disponibilidade de terras cultiváveis; o "pacote tecnológico" espalhado e sua capacidade de diluir as barreiras naturais; o quadro institucional e os regulamentos que recriam condições de "atratividade" para o investimento (políticas fundiária, tecnológica, de promoção de biocombustíveis, de tratamento da floresta, de infraestrutura de transporte etc.); o aumento da demanda internacional; as estratégias das grandes empresas agroprocessadoras em sua integração aos mercados globais; e, por fim, as modalidades organizacionais consolidadas no complexo da soja argentina ou, seguindo a terminologia de estudos no Brasil, do agronegócio da soja desde a década de 1990 (GORENSTEIN; LANDRISCINI, HERNÁNDEZ, 2012; HEREDIA; PALMEIRA; LEITTE, 2010).
Observando-se, rapidamente, os mapas de produção-localização de infraestrutura de processamento de ambos os países, percebe-se a dimensão espacial do fenômeno da soja. Esse complexo produtivo, além de suas especificidades nacionais, expressa as novas dinâmicas (globalizadas) que modulam o acesso aos recursos e mercados no contexto da generalizada internacionalização da propriedade patrimonial (terras, pacotes tecnológicos pré-projetados, infraestrutura de armazenamento, equipamentos etc.) As empresas transnacionais são os motores dessa nova configuração produtiva, demarcando várias possibilidades para a integração das zonas de produção locais, sob diferentes cadeias e/ou redes globais. A "integração" ou “subordinação” de cada complexo produtivo a tais circuitos se traduz em sua capacidade efetiva de estimular o tecido econômico local ou, no pior dos casos, danificá-lo ou empobrecê-lo.
Nas novas áreas de produção e/ou nos âmbitos de reestruturação produtiva, multiplicam-se equipamentos e infraestruturas voltadas para a exportação, surgem novos vilarejos e cidades, são reconfiguradas as relações intra e inter-regionais direcionadas tanto para dentro e quanto para fora (MERCOSUL), exibindo, com isso, novas problemáticas econômicas, sociais e políticas.
Considerando essas questões, pode-se relacionar um terceiro eixo, o qual se refere à passagem teórica e política da região para o território: a extensão e profundidade do processo de urbanização da população – a “hiperurbanização”, segundo Harvey (2003, p 83) –, com suas formas geográficas contemporâneas (cidades e regiões metropolitanas (7), as recentes articulações urbano-rurais etc.). Diferentes contribuições da sociologia e da geografia rural orientam as novas visões sobre o ambiente rural, os processos rururbanos e os debates que fazem a reconfiguração do próprio espaço rural.
Dentre os fenômenos supracitados, interessa-nos destacar dois deles, que, a nosso ver, devem ser considerados, com maior atenção, em países como Argentina e Brasil, dada a importância geográfica e econômica de suas agriculturas. O primeiro está relacionado com a organização dos territórios ligados à agricultura. Nesses lugares, configuram-se unidades econômico-espaciais em que as pessoas manifestam diversas mobilidades: alterações no local de residência (emigração rural-urbana); movimentos pendulares (rural-rural, rural-urbano) induzidos pela busca de trabalho, educação, saúde etc. Esses processos envolvem, por um lado, a dinâmica de "involução" urbana – no sentido socioespacial proposto por Davis (2004) –, refletida nos assentamentos precários das cidades. Por outro, eles implicam a conformação de espaços de interação econômica e populacional entre a hierarquia urbana (capital da província, estadual) e o resto do sistema, com os equipamentos e infraestruturas distribuídos nas áreas de inter-relação rural-urbana e com a rede de cidades regionais onde se concentram as economias de aglomeração necessárias para essas atividades (GORENSTEIN; SCHORR; SOLER, 2011, p. 6).
As funções das cidades médias (prestação de serviços, localização de mão de obra, mercado de trabalho alternativo para a população rural etc.) coexistem com outras no interior da rede de cidades, mostrando uma dupla lógica derivada das especificidades do setor agrícola e, de modo mais geral, das atividades intensivas em recursos naturais: relações espaciais caracterizadas pela contiguidade resultante, sobretudo, da configuração e dinâmica de cadeias produtivas globais. Essas interações espaciais, entre elas as rururbanas, constituem um plano analítico significativo e complexo, permeado de novos desafios para as políticas regionais e urbanas (como educação, saúde, infraestrutura etc.).
O segundo fenômeno a contemplar vincula-se à exploração do recurso terra e ao uso dos ecossistemas de suporte, como as fontes de água doce ou a questão estratégica em matéria alimentar e de habitat, frente à disputa pela exploração de outros recursos naturais. Em algumas partes da Argentina, por exemplo, existem movimentos que militam contra projetos implantados pelo capital transnacional (com o apoio dos governos provinciais e nacionais), como a rejeição de certos projetos de mineração em territórios localizados no Norte e na Patagônia. Há, em tais territórios, fortes tensões socioeconômicas e espaciais: pela combinação dos atributos físicos, define-se uma certa "vocação natural" para acolher atividades, mas seu uso, associado a diversas estratégias de acumulação, enfrenta a outras lógicas sociais e econômicas locais (atividades pastoris, turismo etc).
A questão principal na discussão sobre a exploração dos recursos naturais continua sendo o excedente, os mecanismos de apropriação e, definitivamente, seu impacto no processo de acumulação e distribuição da riqueza em um território determinado. Na fase atual do capitalismo, por sua vez, vem à tona, como aponta Coriat (2002), um novo aspecto estratégico: o direito de propriedade sobre o conhecimento. Ou seja, passou-se para um esquema em que a patente representa um direito de exploração e este direito pode ser convertido na concessão de propriedade para entrar em um território considerado, até então, como público.
4 Alguns desafios para a agenda teórica sobre território e desenvolvimento
A partir das considerações anteriores, a pergunta que fica é se estamos diante de um ponto de ruptura com as abordagens teóricas e políticas dos anos noventa. Entre as questões apresentadas, são identificadas diferentes perspectivas e dimensões de análise que desafiam a agenda futura.
Atualmente, passamos por um período de grande incerteza no capitalismo global. Ratificando a ideia de um cenário de ruptura e reformulação teórico-política, sobressaem duas mudanças. Por um lado, observam-se, nos países centrais, a crise de acumulação associada à globalização liberal e o impacto que a grande recessão tem na configuração das interações entre o global e o local. Particularmente no laboratório analítico e de políticas territoriais das últimas três décadas – a União Europeia –, é possível enxergar as fortes barreiras impostas pelo quadro macroeconômico atual para acionar o local. A esse respeito, Zurbano (2012, p.1000-1001) enfatiza:
Em primeiro lugar, [...] é uma crise de acumulação associada ao modelo de globalização liberal e precipitada pela dualidade entre a esfera econômica global e os espaços de regulação nacionais obsoletos, mas, longe de resolver ou redirecionar o paradoxo, reforça-o, num cenário de debilidade na conciliação e coordenação das medidas e das políticas. Em segundo lugar, a instabilidade e a crise financeira provocou nos países europeus uma drenagem de recursos da esfera produtiva para a financeira que prioriza esta última e questiona a eficácia das contribuições teóricas de desenvolvimento local restritas à reativação produtiva em um ambiente de volatilidade e insegurança macroeconômica permanente.
Por outro lado, estão os processos de integração econômica e também política produzidos, na América Latina, com os governos que incorporam, cada um com suas especificidades, ideias contrárias à ideologia neoliberal dos anos noventa. Há aqui tensões discursivas com as agências multilaterais de financiamento e sua influência habitual nas decisões de políticas públicas.
Embora já tenha transcorrido mais de uma década desde a ruptura com as ideias do Consenso de Washington (o chamado “noventismo”), as práticas inspiradas por esta teoria não foram diluídas. Favaretto (2009), em sua análise sobre a "abordagem territorial" das políticas de desenvolvimento rural no Brasil, sustenta que, na realidade, se produziu mais uma mudança discursiva que uma transformação na orientação das políticas públicas. Em sua abordagem, aparecem três observações generalizáveis: 1ª) o predomínio da lógica setorial, apesar da referência territorial afirmada no discurso público e, definitivamente, da "resiliência" institucional; 2ª) as dificuldades associadas com a necessidade de gerir componentes "não-monetarizáveis/"não-mercantis" (capital social, conhecimentos ...) no momento de influenciar a apropriação ou regulamentação do uso social desses espaços; 3ª) a multiplicidade e diversidade de atores envolvidos na abordagem territorial frente à nitidez dos interesses envolvidos nas políticas setoriais.
Se se admite que, em geral, não se produziram mudança no modo de regulação, também se deve notar que os novos ares políticos na América Latina não têm, de forma alguma, significado uma transformação no modo de acumulação. Além disso, o padrão de especialização produtivo baseado em recursos naturais tem-se aprofundado e ampliado. A diferença mais significativa entre a América Latina e outras periferias mundiais, como a Ásia, por exemplo, é que seu processo de crescimento econômico ocorre sem alterações significativas no tipo de produtos exportados, ou seja, sem a dinâmica que apresentam as exportações asiáticas, consequência de um processo paralelo de industrialização e diversificação estrutural (ARCEO, 2009).
A "reprimatização" de nossos países é feita com base em um uso eficiente das "tecnologias de fronteira". E, aqui, surge outro eixo do atual debate teórico sobre o desenvolvimento: a reversão da "maldição" dos recursos naturais. A ênfase é posta no papel fundamental que os países têm de "moldar os mercados e tecnologias relacionadas com energia, materiais, água e alimentos", tornando sua posse numa vantagem ainda maior. Desse forma, na medida em que os preços das matérias primas aumentam pela incidência dos custos de transporte, há maiores incentivos para um maior processamento local (PEREZ, 2010, p. 141).
A discussão sobre as "novas" possibilidades de desenvolvimento associadas com os recursos naturais é central no caso argentino. Do ponto de vista territorial, essas possibilidades necessariamente interagem com algumas das condições do contexto impostas pelo esquema essencialmente extrativo existente no país, expresso em diferentes áreas e regiões com importantes e revalorizadas dotações de recursos naturais.
As evidências que surgem de estudos recentes são as seguintes: a) a estrutura produtiva segue baseada em vínculos ou funções de baixo valor agregado; b) escassos efeitos de indução a partir dos pacotes tecnológicos implementados pelas ET, ainda que sejam incorporadas inovações incrementais, derivadas dos processos de adaptação das tecnologias importadas (máquinas agrícolas, sementeiras); c) os sistemas produtivos regionais experimentam uma adaptação dinâmica às novas relações de produção gerada nas cadeias transnacionais. Ao mesmo tempo, são gerados processos de exclusão nesses mesmos territórios e em outros, onde sistemas locais de produção são destruídos, tendo, como resultado desses processos globais, desemprego, desintegração social e empobrecimento.
Em síntese, a especialização produtiva não é neutra em termos de distribuição de ingressos – repercussões socioprodutivas e territoriais. Permanece sendo fundamental a questão de quão largas ou curtas são as cadeias de valor vinculadas a esses recursos naturais e, como mostrou Tânia Bacelar (8), é preciso questionar quais são os processos que se localizam, em quais lugares e sob as decisões de que tipo de atores econômicos.
Termino este artigo com duas ou três questões ou, se se quiser, desafios. Primeiramente, há a necessidade de não se descuidar da dimensão macroespacial. Em segundo lugar, há que se aprofundar a mediação analítica da acumulação do capital, o que implica ter uma visão das lógicas globais de acumulação, em que se subsumem as dinâmica e tensões territoriais, com novas e múltiplas escalas do urbano regional.
Igualmente, são projetadas novas regionalizações econômica e política (UNASUL, MERCOSUL, etc.) que exigem reflexão para que possam ser construídas outras perspectivas de análise. Nesse sentido, e pensando no papel acadêmico, precisa-se rever o conteúdo dos programas de pós-graduação. A questão geopolítica deve percorrer os temas estudados, como, por exemplo, a estratégica temática da propriedade do conhecimento sob o chamado paradigma da "ciência proprietária" e o novo papel do público nos sistemas de nacionais e regionais de inovação. Por último, mas não menos importante, acrescente-se a necessidade da revisão das políticas públicas e de seus efeitos, supostamente neutros, sobre o território; muitas vezes tais efeitos reproduzem ou são causa de desigualdades territoriais.
Os grandes investimentos: onde, como, quem, por que, quais os mecanismos de regulação, seus planos e efetividades (9). Estas são, dentre outras, questões cuja resposta exige uma análise sistemática no âmbito das novas discussões sobre estratégias de desenvolvimento urbano regional em nossos países.
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