Mudanças climáticas, dinâmica demográfica e saúde: desafios para o planejamento e as políticas públicas no Brasil


Bernardo Lanza Queiroz
Doutor em Demografia pela University California at Berkeley, Professor do Departamento de Demografia da Universidade Federal de Minas Gerais e Pesquisador do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (CEDEPLAR/UFMG)

Alisson F. Barbieri
Doutor em City and Regional Planning pela University of North Carolina at Chapel Hill, Professor do Departamento de Demografia da Universidade Federal de Minas Gerais; Pesquisador do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (CEDEPLAR/UFMG)

Ulisses E. Confalonieri
Doutor em Ciências (Parasitologia) pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e Universidade da Califórnia, Berkeley, Professor da Fundação Oswaldo Cruz e da Universidade Federal Fluminense

1. Introdução

O debate sobre os efeitos das mudanças climáticas sobre a vulnerabilidade e capacidade adaptativa da população tem-se concentrado nos estudos em relação a eventos catastróficos como furações e inundações. Existe uma significativa literatura identificando e discutindo os grupos mais afetados; por exemplo, as inundações em Nova Orleans decorrentes do Furacão Katrina, os grupos mais vulneráveis aos furacões que atingiram a América Central nos últimos anos (MARTINE e GUZMÁN, 2002; MYERS, SLACK & SINGELMANN, 2008), e os impactos das mudanças climáticas nos fluxos migratórios, e em particular, na produtividade agrícola e, consequentemente, na migração (PERCH-NIELSEN, 2008; BARBIERI et al., 2010; FENG, KRUEGER & OPPENHEIMER, 2010).

Por outro lado, a discussão sobre vulnerabilidade de determinados grupos populacionais em relação às mudanças climáticos de longo prazo são escassas (ver exemplos em ZAGHENI, 2009; MORETTI & DESCHENES, 2009; O’NEIL et al., 2010). A identificação e caracterização de populações expostas a diferentes riscos relacionados às mudanças climáticas, e a adoção de estratégias de adaptação, devem ser parte imprescindível de futuras políticas relacionadas às mudanças climáticas. Grande parte dos estudos sobre os efeitos e implicações das mudanças climáticas tem-se concentrado na mitigação (redução ou confinamento) das emissões antrópicas de gases estufa, com menor atenção às questões de adaptação aos impactos projetados pelas mudanças (INTERNATIONAL INSTITUTE FOR ENVIRONMENT AND DEVELOPMENT, 2007; URWIN e JORDAN, 2008). Essa diferença tem consequências importantes para o desenho de políticas públicas relacionadas aos impactos das mudanças climáticas visto que políticas de mitigação apresentam uma característica macro (esferas governamentais), top-down, enquanto políticas de adaptação apresentam uma interação entre processos macro e especificidades do contexto político local.

Conquanto a adoção simultânea de ambas as estratégias seja o mais adequado, Urwin e Jordan (2008) ressaltam o perigo potencial de incoerência entre políticas de adaptação formuladas em escalas mais agregadas (por exemplo, no nível federal) e alternativas e potencialidade de adaptação no nível local.

De qualquer forma, pode-se assumir que mecanismos de adaptação são particularmente relevantes para a atenuação dos problemas sociais e econômicos ocasionados pelas mudanças climáticas, pelo fato de serem alternativas de maior facilidade de implementação, de forma independente ou conjunta, em diferentes esferas de decisão (indivíduos, famílias e o Poder Público), em uma escala nacional.

Nesse sentido, a identificação e distinção de populações expostas a diferentes riscos e a adoção de estratégias de adaptação devem ser parte imprescindível de políticas futuras relacionadas aos impactos das mudanças climáticas. É importante, pois, definir e discutir, no contexto de projeções futuras de mudanças climáticas, o impacto sobre populações caracterizadas por determinada situação de vulnerabilidade1. Dow (1992) define vulnerabilidade como “a capacidade diferenciada de grupos e indivíduos de lidar com perigos, baseada em sua posição no mundo físico e social”. A vulnerabilidade é conceituada, de forma ampla, em termos de exposição capacidade e potencialidades (WATTS & BOHLE, 1993), sendo também identificada como uma condição ao mesmo tempo biofísica (espaço geográfico) e determinada pelas condições políticas, sociais e econômicas das sociedades (LIVERMAN, 1990). WOODWARD et al. (1998) indicam as causas que afetam total ou parcialmente a capacidade das populações de elaborar respostas à vulnerabilidade à deterioração da saúde, em face do stress ambiental; tais causas foram categorizadas como: crescimento econômico destrutivo, dependência, pobreza, rigidez política e isolamento geográfico.

A natureza multifacetada da vulnerabilidade requer estratégias de adaptação que incluam a elaboração de políticas e planejamento de longo prazo que se traduzam em resultados ou ações no curto prazo. Os impactos de curto prazo de variações climáticas devem ser pensados de forma distinta dos efeitos de longo prazo e duradouros, como os impactos diretos no funcionamento da economia, mas a sociedade deve ter mecanismos em ação para atenuar choques de temperatura, como ocorrido na França em 2003 (TOULEMON & BARBIERI, 2008). Nesse sentido, Hultman & Bozmoski (2006), através da investigação de estudos de caso em diversas partes do mundo, sugerem uma abordagem de redução de vulnerabilidade e facilitadora de adaptação que inclua três fatores: a) a descentralização da autoridade de tomada de decisões para níveis mais desagregados (local e regional); b) aumentar mecanismos de proteção contra a degradação ambiental; e c) transferir ou diversificar riscos ao longo do tempo, espaço e instituições.

O objetivo principal deste artigo é apontar e discutir as implicações, para o desenho de políticas de adaptação de longo prazo, impostas pelos efeitos potenciais das mudanças climáticas sobre a dinâmica demográfica e a saúde no Brasil. Apesar de as conclusões do trabalho buscarem uma abrangência nacional, a maior parte dos exemplos de cenários de vulnerabilidade às mudanças climáticas refere-se ao Nordeste brasileiro. Nesse caso, o controle de falácia individualística será feito ao apontar possíveis dimensões comuns de vulnerabilidade populacional no Nordeste e nas demais regiões do Brasil.

O clima na região Nordeste é marcado pelos períodos de seca e uma grande variabilidade na intensidade e periodicidade das chuvas (MARENGO, 2008). Em relação às políticas, em geral por serem intervenções emergenciais e fragmentadas (SILVA, 2003), além de apresentarem problemas técnicos, como na captação e armazenamento (AB’SÁBER, 2003). Em anos recentes, novas intervenções buscam possibilitar uma melhoria na condição de vida mesmo nos períodos de seca, como o programa de cisternas rurais (PONTES E MACHADO, 2012).

Todavia, o Nordeste é a região mais vulnerável aos efeitos das mudanças climáticas no Brasil (MARENGO, 2008). Variações climáticas que afetem os recursos hídricos terão um impacto ainda maior no Nordeste que atualmente já encontra restrições de oferta de água per capita. Além disso, as mudanças climáticas podem afetar o curto período de chuvas nas regiões, em especial no semiárido, o que pode acentuar a situação de vulnerabilidade da população mais pobre (MARENGO, 2008).

2. Mudanças climáticas, economia, população e saúde: o caso brasileiro

O objetivo desta seção é apresentar as possíveis repercussões sobre cenários de mudanças climáticas e as dimensões socioeconômicas, demográficas e de saúde no caso brasileiro. Esta discussão visa substanciar a análise, na próxima seção, sobre o desenho de políticas públicas e planejamento que abordem a redução da vulnerabilidade e aumento da capacidade adaptativa da população brasileira.

2.1. Cenários de mudanças climáticas

O Relatório de Clima do INPE – Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (2007) – descreve, para cada região brasileira, as potenciais consequências das mudanças climáticas até o final do século XXI, em cenários de alta emissão de carbono (A2) e de baixa emissão de carbono (B2)2. A Região Norte, onde se concentra a grande maioria da floresta amazônica brasileira, deverá experimentar aumentos substanciais de temperatura (4-8ºC mais quente no cenário A2 e 3-5ºC mais quente no cenário B2), e 15-20% mais seco (A2) ou 5-15% mais seco no cenário B2. Uma consequência dessas alterações climáticas é a transição de boa parte da cobertura florestal tropical para áreas similares às savanas, um processo que tem sido denominado “savanização” da floresta (OYAMA e Nobre, 2003)3. Haverá, consequentemente, perdas de biodiversidade, redução do transporte de umidade para Sudeste e Sul do Brasil afetando chuvas nestas regiões e aumento dos incêndios florestais. O aumento no número de dias secos e quentes deve impactar também na saúde da população4.

A Região Nordeste, assim como a Norte, deve sofrer as maiores consequências das mudanças climáticas, com aumentos de temperatura (2-4ºC mais quente no cenário A2 e 1-3ºC mais quente no cenário B2), e 15-20% mais seco (A2) ou 10-15% mais seco (B2). A alta evaporação deve aumentar a escassez de água e afetar negativamente a biodiversidade na caatinga. A escassez de água, o aumento no número de dias secos e nas ondas de calor deve impactar significativamente a agricultura e a saúde da população.

A Região Sudeste deverá experimentar aumentos de temperatura de 3-6ºC (A2) ou 2-3ºC (B2). Há uma grande incerteza sobre mudanças pluviométricas, embora os extremos de chuva e de ondas de calor devam aumentar, o que tende a agravar algumas situações de risco e vulnerabilidade em áreas urbanas. Dessa forma, a agricultura e a saúde populacional poderão ser afetadas de forma significativa. A Região Centro-Oeste apresenta tendências parecidas, com aumentos de temperatura de 3-6ºC (A2) ou 2-4ºC (B2), incerteza sobre mudanças pluviométricas, mas com projeções de aumentos nos extremos de chuva e de ondas de calor. A agricultura e saúde coletiva devem ser afetadas em função dessas tendências.

Por fim, a Região Sul deve apresentar aumentos de temperatura de 2-4ºC (A2) ou 1-3ºC (B2). A região deve ficar 5-10% (A2) ou 0-5% (B2) mais chuvosa, com maior intensidade de extremos de chuva e enchentes e ondas de calor, com repercussões sobre a agricultura e saúde populacional.

2.2. Impactos de cenários de mudanças climáticas: população e economia

Os potenciais cenários climáticos para o Brasil nas próximas décadas fizeram aumentar o interesse de pesquisadores de diversas áreas. Em particular, se deve destacar dois estudos que procuram associar as mudanças climáticas projetadas até o final do século com a dinâmica econômica e demográfica no Brasil. O primeiro – Migration, Climate Change and Public Health / Security – foi desenvolvido pelo Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da Universidade Federal de Minas Gerais (Cedeplar/UFMG) e pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), e procurou avaliar os impactos sociais e econômicos das mudanças climáticas sobre as populações localizadas na Região Nordeste – particularmente as mais vulneráveis, as implicações para as migrações internas no nordeste e conseqüências para a saúde pública (CEDEPLAR/FIOCRUZ, 2008; BARBIERI et al., 2010). O estudo “Economia da mudança do clima no Brasil: custos e oportunidades” envolveu um consórcio de algumas das principais instituições públicas de pesquisa do Brasil5 e teve como objetivo principal avaliar as consequências econômicas (e suas implicações sociais e ambientais) dos cenários de mudanças climáticas previstas para o país até o final do século.

O primeiro estudo utilizou como informação básica os cenários da Empresa Brasileira de Agropecuária – EMBRAPA (PINTO e ASSAD, 2008) sobre as consequências dos cenários A2 e B2 sobre a agricultura da região Nordeste, especialmente sobre a disponibilidade de terras para os principais cultivos da região. A partir destes cenários, foi elaborado um modelo de equilíbrio geral computacional denominado IMAGEM-B que gerou cenários econômicos de renda, emprego, produto e consumo das famílias em cenários tendenciais (sem os impactos climáticos) e com os impactos climáticos na agricultura descritos acima6. Tais impactos podem ser tanto diretos (diminuição na oferta de terra agriculturável) quanto indiretos (impactos da redução de oferta de terras sobre os outros setores econômicos).

A Tabela 1 mostra os resultados de variação do Produto Interno Bruto – PIB, do emprego e do consumo das famílias nos cenários A2 e B2 para os estados do Nordeste, em relação à projeção tendencial sem efeitos das mudanças climáticas. A região Nordeste, de modo geral, observará um ritmo de crescimento econômico mais lento devido aos efeitos das variações climáticas, sendo que em relação à variação do PIB, Pernambuco, Piauí, Paraíba e Ceará serão os estados mais afetados em ambos os cenários; Alagoas, Rio Grande do Norte, Sergipe e Bahia serão os estados menos afetados.

Em suma, o impacto negativo na atividade econômica nordestina, medida pela variação do PIB, é refletida nas tendências de emprego e no consumo das famílias da região, e explicita a forte relação do setor agropecuário com os demais setores econômicos da região. Em particular, os estados da Paraíba, Pernambuco, Piauí e Ceará apresentam as maiores variações em relação ao cenário tendencial e em relação à média do país. A economia desses estados seria fortemente afetada pelas mudanças climáticas, uma vez que o principal efeito direto mensurado pelos modelos foi no setor agrícola.

Como a variação da população e do emprego nacional é exógena, os resultados indicam que a variação do emprego é positiva no restante do Brasil, sinalizando o potencial de migração inter-regional decorrente dos choques climáticos. Além disso, a estagnação econômica e a redução dos níveis de emprego parece levar a uma queda do consumo das famílias – uma proxy das condições gerais de vida – em comparação ao que acontece no restante do Brasil.

O crescimento econômico mais lento devido aos impactos das mudanças climáticas no Nordeste será bastante heterogêneo tanto entre os estados como dentro de cada unidade da federação. Entretanto, chama a atenção que grande parte dos municípios vai observar uma redução significativa do crescimento do PIB. Os resultados das simulações apresentadas em Cedeplar & Fiocruz (2008) apontam que, para mais da metade dos municípios, a diferença entre o crescimento tendencial do PIB e o crescimento considerando as mudanças climáticas será de 12%. Por outro, efeitos pequenos ou nulos devem ser observados em menos de 1% dos municípios.

Queiroz & Barbieri (2009) mostram, ainda, que os municípios do Nordeste propensos a sofrer os maiores impactos das mudanças climáticas também apresentam os piores indicadores sociais da região, medidos pelo baixo nível médio de educação, concentração de famílias abaixo da linha de pobreza, maior dependência em relação às transferências governamentais e baixo acesso a serviços básicos de infraestrutura (água e esgoto). A maior parte dos membros dos grupos mais vulneráveis da população poderá permanecer em seus municípios e podem sofrer um impacto ainda maior das mudanças no clima; ou, as pessoas que migram para os grandes centros urbanos poderão encontrar um cenário de baixa qualidade habitacional e de infraestrutura, além da baixa capacidade de resposta e preparação dos indivíduos e das instituições como mitigadores dos potenciais efeitos do clima (CEDEPLAR & FIOCRUZ, 2008).

As simulações de cenários econômicos considerando os efeitos das mudanças climáticas foram utilizadas na construção dos cenários de saldos migratórios e taxas líquidas de migração7. No modelo desenvolvido em Barbieri et al. (2010), os saldos e taxas captam a sensibilidade da migração a cenários econômicos futuros, particularmente as variações de renda e emprego8.

A Tabela 2 sintetiza os resultados das projeções de migração tendencial e com mudanças climáticas nos cenários A2 e B2 (CEDEPLAR & FIOCRUZ, 2008; BARBIERI et al., 2010). Os impactos climáticos no período 2025-2030 podem ser considerados apenas marginais sobre o volume migratório no total da Região Nordeste, nos dois cenários, com valores próximos de zero nas taxas líquidas (0,03% no Cenário A2, e -0,01% no Cenário B2), e com baixo volume de migrantes (respectivamente, 17.752 e -6.026). Os impactos marginais do Cenário B2 ocorrem também para os dois quinquênios seguintes, o que, em grande parte sugere, efetivamente, um impacto modesto sobre as migrações líquidas até meados do Século XXI. De forma geral, pode-se sugerir que os impactos das mudanças climáticas no cenário B2 não apontam um processo drástico de redistribuição populacional, pelo menos no período de tempo considerado, entre 2030 e 2050.

Os impactos climáticos sobre as migrações serão gradativamente mais acentuados no cenário A2 à medida que se avance nas décadas seguintes, com um incremento do processo emigratório na região. Os resultados indicam, no quinquênio 2035-2040, a perda líquida de 246.777 pessoas da Região Nordeste, o que representa uma taxa líquida de migração de -0,36%; no quinquênio 2045-2050, a perda líquida seria de 236.065 pessoas, com uma taxa líquida de -0,34%. Ou seja, caso não ocorressem as mudanças climáticas previstas no Cenário A2 afetando os movimentos migratórios, a população nordestina seria acrescida, no final do quinquênio, em 0,36% e 0,34%, respectivamente. O cenário A2 de migração para 2035-2040 é 21% maior do que o saldo migratório tendencial, e 13% maior em 2045-2050. Em suma, a combinação entre as migrações resultantes do impacto líquido das mudanças climáticas no setor primário na economia e a migração tendencial devem gerar movimentos emigratórios significativos do Nordeste, os quais, combinados a outros fatores indutores da emigração não investigados no estudo (impactos sobre outros setores na economia, desabastecimento de água, elevação do nível do mar etc.) poderiam elevar o volume migratório na região a níveis relativamente maiores.

Além da migração, os cenários populacionais até 2050 indicam mudanças na estrutura demográfica que poderão ser importantes na definição das condições futuras de vulnerabilidade socioeconômica. A Tabela 3 apresenta a proporção populacional por grandes grupos etários – zero a quatorze anos, quinze a sessenta e quatro anos, e acima de sessenta e quatro anos – para o Brasil, o Nordeste e as Unidades de Federação do Nordeste, de 2000 a 2050. Os resultados seguem a tendência nacional de um declínio considerável na proporção de crianças até 2030-2040, caracterizando o chamado “bônus demográfico” em que a proporção menor de dependentes na economia vis-à-vis produtores resultaria, se devidamente aproveitada pelas políticas públicas, em ganho macroeconômico para o país. Após 2040, o processo de envelhecimento descrito na seção anterior levaria a um aumento gradativo na proporção de dependentes (grupos de zero a quatorze anos e acima de sessenta e quatro anos).

A análise por estado sugere que o processo descrito acima será mais rápido, seguindo a tendência nacional, onde a queda da fecundidade é mais rápida, por exemplo, em Pernambuco e Bahia. Por outro lado, em estados com queda mais lenta nos níveis de fecundidade, como Ceará, Maranhão e Piauí, esse processo de aumento da proporção de dependentes ocorrerá cerca de uma década após os estados de queda mais rápida.

2.3. Cenários climáticos: agravos à saúde populacional e uma medida sintética de vulnerabilidade da população

Os cenários climáticos, econômicos e demográficos para o Nordeste serviram de suporte para avaliar possíveis agravos à saúde populacional na região. Em dois estudos recentes (CEDEPLAR & FIOCRUZ, 2008; BARBIERI & CONFALONIERI, 2010), procurou-se associar dados históricos sobre agravos à saúde no Nordeste capazes de serem influenciados, direta ou indiretamente, pelas mudanças climáticas e pelos cenários demográficos e econômicos descritos na seção anterior. A premissa principal foi a de que, a partir das indicações de um aumento futuro da aridez, a escassez de água e alimentos agravará o quadro sanitário e ensejará migrações capazes de não só redistribuir doenças no espaço como aumentar a pressão sobre os serviços de saúde, nas áreas de destino dos migrantes.

A partir desses dois estudos, foram construídos indicadores quantitativos capazes de oferecer uma visão comparativa e multidimensional da vulnerabilidade por estado nordestino, os quais são descritos a seguir: optou-se pelo desenvolvimento de um índice composto, capaz de refletir, em parte, algumas importantes relações causais no contexto “insegurança alimentar/migrações/saúde”. Com o objetivo de sumarizar, em um único índice, o grau de vulnerabilidade das Unidades Federativas – UFs do Nordeste brasileiro, com relação ao impacto das mudanças climáticas na saúde, foi desenvolvido, para cada estado nordestino, um Índice de Vulnerabilidade Geral – IVG, composto de quatro subindicadores (ver discussão detalhada em BARBIERI & CONFALONIERI, 2010): a) Índice de Vulnerabilidade de Saúde – IVS, construído a partir de indicadores de taxas de incidência de doenças transmissíveis (Chagas, Dengue, Leishmaniose, Leptospirose e Esquistossomose) – cujas formas de transmissão e persistência estão relacionadas com o clima, ou que podem se dispersar espacialmente devido a processos migratórios desencadeados pelos fenômenos climáticos – e de mortalidade infantil por diarreia, e indicador de desnutrição infantil; b) Índice de Vulnerabilidade à Desertificação – IVD, composto por um indicador de susceptibilidade à desertificação de regiões do semiárido nordestino, conforme definição de Oliveira-Galvão (2001); c) Índice de Vulnerabilidade Econômico-Demográfico – IVED, composto por indicadores futuros de Produto Regional Bruto – PRB, emprego, e migração; e d) Índice de Vulnerabilidade de Custo do SUS – IVC, composto por estimativas de gastos ambulatoriais e hospitalares futuros do sistema público de saúde no Nordeste.

O IVS considera apenas tendências históricas de indicadores, e o IVD uma susceptibilidade geral à aridização; dessa forma, ambos os indicadores não consideram diferenciais conforme cenários A2 ou B2. O IVED e IVC, por outro lado, são construídos para os cenários A2 e B2. O IVG é, assim, estimado conforme a Equação 1:

O subscrito p indica que todos os indicadores são padronizados no intervalo entre zero (nenhuma vulnerabilidade) e 1 (vulnerabilidade máxima).

A Tabela 4 apresenta os resultados dos subindicadores e IVG, enquanto a Figura 1 ilustra os IVGs estimados para os estados da região nordeste, conforme cenário A2 ou B2.

A inclusão de dados sobre desertificação foi considerada importante pela relação que esta forma de degradação irreversível do solo tem não só com o clima (além do uso da terra) como também por sua repercussão na produtividade agrícola, e torna explícita a maior vulnerabilidade, nesse aspecto, da população nas UFs da Paraíba e Rio Grande do Norte. O IVS por sua vez, aponta as UFs de Maranhão, Bahia e Alagoas como os mais vulneráveis.

O IVED incorpora os cenários econômicos e demográficos descritos anteriormente, enquanto o IVC considera os custos do sistema de saúde decorrentes da nova estrutura demográfica e potenciais cenários de morbidade em função das mudanças no clima. Ao analisarmos os índices para os dois cenários de mudança do clima (A2 e B2), por estado, verificamos que os maiores índices, em ambos os cenários, foram verificados no Ceará e em Pernambuco. No cenário de emissões de carbono mais altas (A2), a Bahia também se apresentou com um grau de vulnerabilidade alto (Índice padronizado de 0,75) – índice este que caiu para 0,37 no cenário de menos emissão (B2). Tal fato se deve à diferença extrema nos valores do IVC encontrado para ambos os cenários, o que também foi verificado para o estado da Paraíba. Sergipe, Rio Grande do Norte e Paraíba apresentaram índices mais altos de vulnerabilidade no cenário B2, quando comparado com o A2. Em posição intermediária está o estado de Alagoas, que manteve praticamente o mesmo valor do indicador, nos dois cenários estudados.

Por fim, o indicador sintético de vulnerabilidade, IVG, sugere que Ceará e Pernambuco são as UFs de maior vulnerabilidade em ambos os cenários climáticos. No cenário A2 a Paraíba é apontada como a UF de menor vulnerabilidade, seguida de Sergipe e Rio Grande do Norte, enquanto no cenário B2 a UF de menor vulnerabilidade é o Maranhão, seguido da Paraíba, de Sergipe e do Piauí.

3. Implicações para o planejamento e as políticas públicas

Tendo em vista os cenários apontados, serão discutidos nesta seção os caminhos-chave para o desenho de políticas públicas e estratégias de planejamento que maximizem a capacidade adaptativa da população e minimizem situações de vulnerabilidade. Procura-se discutir a interação entre i) macro diretrizes de políticas que, informadas pelos cenários da seção anterior, apresentam potencial de capilaridade e de interação com políticas específicas em uma escala micro – particularmente os municípios – na região Nordeste; e ii) algumas alternativas de políticas, em escala micro, que poderiam potencializar a eficiência das políticas de caráter macro, a partir do “mapeamento” de situações de vulnerabilidade populacional (saúde, demográfica e socioeconômica, sistema público de saúde e desertificação) por UF. Subjacente a essa discussão, será dado enfoque às implicações das tendências demográficas, econômicas e de saúde afetadas pelas mudanças climáticas, sobre a vulnerabilidade populacional. Em particular, o status migratório é uma categoria central nessa análise, pois qualifica uma situação de vulnerabilidade populacional e atua como um mecanismo importante de adaptação às mudanças climáticas.

O desenho de políticas de adaptação deve perseguir necessariamente uma agenda de redução de situação de desigualdades socioeconômicas e de desenvolvimento que minimize ou anule situações de vulnerabilidade decorrentes dos cenários descritos nas seções anteriores. Nesse sentido, políticas de adaptação devem, prioritariamente, lidar com vulnerabilidades existentes, e não de forma exclusiva em torno de novas vulnerabilidades resultantes das mudanças climáticas. Justifica-se, dessa forma, a consecução de uma agenda que integre o desenho de políticas governamentais com a identificação de peculiaridades regionais que as potencializem no território.

3.1. Migrações e vulnerabilidade socioeconômica: impactos de cenários de renda, emprego, e capital humano

Tendo em vista que a migração em função das mudanças climáticas é, em parte, representativa dos grupos sociais e economicamente mais vulneráveis da população, o nível de vulnerabilidade dependerá da capacidade de mobilidade espacial da população. Tem-se, por exemplo, por um lado, pequenos produtores agrícolas que não dispõem de bens de produção ou mecanismos de adaptação dos sistemas produtivos; e por outro lado, aqueles que possuem meios suficientes para realocarem trabalho ou capital no espaço, de um local de maior risco, para um local de menor risco à produção e reprodução (GOLGHER, ARAÚJO & ROSA, 2008; SAHOTA, 1969).

A despeito da primazia de fatores econômicos, a literatura sugere uma gama de outros fatores relacionados às dinâmicas sociais, demográficas e aspectos institucionais na determinação da propensão a migrar. Em particular, fatores relacionados à dotação de capital humano, como a educação e a saúde, são, ao mesmo tempo, importantes determinantes tanto da migração, quanto da situação de vulnerabilidade populacional. Piores indicadores de nível de capital humano, como a baixa educação, e menor nível de renda, são fatores que dificultam a adaptação às mudanças climáticas e constituem, dessa forma, fatores críticos de vulnerabilidade.

Nesse sentido, o aumento do nível médio de qualificação da mão de obra qualificada em municípios nordestinos teria o potencial de amenizar os possíveis impactos das mudanças climáticas. A população mais educada, particularmente em áreas rurais, pode buscar diversas alternativas a esses impactos e, dessa forma, ativar mecanismos mais eficazes de adaptação, o que envolve a capacidade de produção de meios de subsistência em um bioma que passará por processo de aridização, particularmente nos estados de Alagoas, Paraíba e Rio Grande do Norte. Além disso, a educação está associada a um maior potencial de criação e assimilação de conhecimento que poderia: a) amenizar os impactos climáticos, b) facilitar a difusão de um novo perfil de comportamento demográfico de baixa fecundidade e busca de melhores oportunidades através da migração, e c) aumentarem a demanda por maiores cuidados e investimento na saúde.

Cedeplar & Fiocruz (2008) analisam cenários para a educação no Brasil e mostram uma situação bem mais otimista do que a observada em 2000. O percentual de população com educação média irá ultrapassar a população com educação fundamental em 2040, e continuará crescendo continuamente ate 2100. Além disso, observa-se uma evolução clara da população com nível superior. Os resultados também apontam para uma mão de obra mais qualificada nos próximos anos, o que pode gerar impactos positivos no aumento da capacidade adaptativa.

Em síntese, é fundamental a construção de políticas de adaptação que reconheçam o papel preponderante do capital humano. Tais políticas devem associar diretrizes macro (por exemplo, uma política nacional de educação básica) às realidades e necessidades locais – como, educação técnica de nível médio adequada às características ambientais e socioeconômicas e dos arranjos produtivos e base econômica local. Tais investimentos devem ser particularmente importantes e prioritários nos estados e municípios com menores IVED.

Por outro lado, se devem considerar “gargalos” decorrentes de VARIAÇÕES REGIONAIS. ESTUDOS PARA A REGIÃO NORDESTE (QUEIROZ & BARBIERI, 2009; CEDEPLAR & FIOCRUZ, 2008) mostram que os municípios nordestinos, com nível inicial mais elevado de concentração de capital humano, são aqueles que apresentam o ritmo mais rápido de crescimento no grupo de população com maior escolaridade. Esse cenário relaciona-se com o fato, apontado por Cedeplar & Fiocruz (2008) e Barbieri et al. (2010), de que em grande parte dos estados nordestinos, quase a totalidade dos municípios observará um efeito negativo das mudanças climáticas sobre o crescimento do PIB até 2050. Tal relação implica que os municípios com menor nível de capital humano são aqueles que apresentam menor ritmo de crescimento de capital humano e apresentariam menor capacidade adaptativa às mudanças do clima. Este cenário é particularmente mais grave no Nordeste brasileiro, onde um número significativo de municípios poderá apresentar uma evolução nos indicadores de escolaridade inferior à média nacional, e, portanto, apresentando uma maior vulnerabilidade socioeconômica.

O baixo dinamismo econômico pode gerar um círculo vicioso, reduzindo ainda mais a capacidade de formação de capital humano no Nordeste, gerando um pior funcionamento dos mercados de trabalho locais e, consequentemente, pior dinamismo econômico (QUEIROZ & GOLGHER, 2008). No mesmo sentido, as pessoas que não permanecerem e migrarem de áreas rurais ou pequenos municípios em direção aos grandes centros, podem se tornar os grupos mais vulneráveis nesses centros, já que teriam, a princípio, menor capacidade de conseguir empregos de qualidade, afetando o seu nível de renda e a condição de vida.

Por outro lado, considerando que a renda per capta é uma importante proxy da capacidade de adaptação da população aos efeitos da mudança climática, e que grande parte dos municípios nordestinos com maiores fluxos de emigração sofrerão queda na renda per capta em função das mudanças climáticas (CEDEPLAR & FIOCRUZ, 2008), pode-se sugerir que as pessoas com menor nível de educação e renda tenham menores chances de emigrar. Haveria, assim, uma seletividade positiva da migração, com os indivíduos mais qualificados buscando regiões mais desenvolvidas economicamente.

O resultado desse Cenário é um potencial agravamento das desigualdades regionais no Nordeste e a queda nas condições de vida das pessoas que permanecem nas cidades de origem. Experiências de desastres naturais, como, por exemplo, o Furacão Mitch na América Central, indicam que as populações mais vulneráveis são aquelas incapazes de mudarem seus locais de residência em risco a um desastre natural, para lugares com menor risco, em função de suas condições sócioeconômicas. Esse aspecto aponta, novamente, a necessidade de canalizar investimentos em capital humano para áreas mais vulneráveis como forma de aumentar a mobilidade em busca de melhores condições de vida.

3.2. Migrações e vulnerabilidade socioeconômica: impactos das transferências governamentais de renda e do consumo das famílias

O possível menor dinamismo econômico em algumas regiões, afetado pelas mudanças climáticas, pode aumentar a demanda por intervenções do Estado, particularmente no Nordeste. Neste sentido, as transferências governamentais tornam-se um importante instrumento para amenizar os efeitos do menor dinamismo econômico decorrente das mudanças climáticas. No Brasil, a quase totalidade das famílias pobres é coberta por algum programa de transferência de renda, como o Bolsa Família ou o Benefício de Prestação Continuada – BPC, sendo o grau de cobertura mais alto no Nordeste e no Sudeste do país. No caso do Nordeste, os municípios que mais sofrerão os impactos das mudanças climáticas são aqueles com maior grau de cobertura deste tipo de programa, e aqueles que recebem o maior fluxo de transferência per capita (total da população) (CEDEPLAR & FIOCRUZ, 2008; QUEIROZ & BARBIERI, 2009).

O impacto de programas de transferência de renda sobre aumento de capacidade adaptativa deve ser eficazmente monitorado em avaliações de políticas públicas de forma a corrigir, particularmente para os municípios mais vulneráveis do Nordeste, resultados ruins em termos de avaliação de frequência e qualidade educacional e atendimento à saúde das crianças.

Considerando cenários no médio e longo prazo, em que mecanismos de adaptação não sejam viabilizados, pode-se esperar, ceteris paribus, que o Estado necessite atuar de forma ainda mais intensa para reduzir a vulnerabilidade e aumentar a capacidade adaptativa da população residente nesses municípios. Um aumento do nível de educação e maior concentração de mão de obra qualificada, combinado a investimentos em tecnologia agrícola que aumentem a capacidade adaptativa dos principais cultivos ao aumento da temperatura, podem amenizar os impactos do clima na região, pois constituem mecanismos mais eficazes de adaptação e capacidade de produção de meios de subsistência e manutenção da qualidade de vida. Entretanto, a retração econômica combinada ao baixo potencial de crescimento e desenvolvimento de parte dos municípios nordestinos aumentará a demanda do papel do governo, e não é possível prever se o Estado terá as condições necessárias, institucionais e financeiras, de intervir onde e como for preciso.

Se, por um lado, a possibilidade de crescimento do consumo das famílias – proxy das condições gerais de vida de uma determinada população – ajudaria a sustentar o aumento do PIB, por outro lado o menor desempenho econômico pode levar a uma queda no nível de consumo das famílias. No caso do estudo de cenários socioeconômicos e demográficos para a região Nordeste (sintetizados no IVED), as variações no consumo das famílias podem ser explicadas pelo aumento da renda média, aumento no nível de emprego, estabilidade econômica, entre outros fatores. O pior desempenho econômico nos cenários A2 e B2 leva a uma queda no consumo das famílias em comparação com o que acontece no restante do Brasil.

Os estados da Paraíba, Pernambuco, Piauí e Ceará apresentam as maiores variações em relação ao cenário tendencial e em relação à média do país. A economia desses estados, que seria fortemente afetada pelas mudanças climáticas em função do peso do setor agrícola, deve ser objeto de estudos e políticas específicas sobre o potencial de adaptação de sistemas agrícolas no semiárido. Tais políticas, respeitando a heterogeneidade regional do Nordeste, devem propor ações relativas à prospecção, uso e conservação de recursos hídricos, tanto para uso agroindustrial como para utilização direta pela população humana (alimentação; higiene etc.). Dada a extrema importância desse recurso, para a economia e a saúde, devem ser destacadas e priorizadas as ações setoriais; e também devem ser propostas políticas de renda e emprego, visando a redução do componente socioeconômico da vulnerabilidade e seus efeitos na migração.

3.3. Migrações e vulnerabilidade socioeconômica: infraestrutura, habitação e adensamento urbano

Em um cenário de crescente urbanização fomentada pela migração em diversas partes do mundo em desenvolvimento, a escala do risco às mudanças climáticas será influenciada pela qualidade habitacional e de infraestrutura, o nível de preparação da população (proxy de fatores como educação, cultura, solidariedade) e a qualidade de serviços de emergência e outras respostas institucionais. Um segundo grupo com grande potencial de vulnerabilidade é a população de mais baixa renda que apresenta menor capacidade e propensão a emigrar.

Os estados do Norte e do Nordeste têm um grau de cobertura de saneamento básico baixo em relação à média do país, e apresentam, ainda, um ritmo de crescimento bastante lento. Além disso, o déficit de cobertura de saneamento básico está associado aos grupos socioeconômicos em piores condições, e aos municípios mais pobres. Queiroz & Barbieri (2009), em uma análise de censos demográficos recentes, mostram que os migrantes recentes (com menos de cinco anos de residência no município atual) vivem em áreas com grau de cobertura de saneamento bem menores do que a média da população residente não migrante.

    Nesse sentido, políticas públicas devem ser sensíveis à identificação de ações específicas para um potencial contingente futuro de populações migrantes em função de alterações climáticas, particularmente nas grandes regiões metropolitanas nordestinas (Fortaleza, Recife, Salvador). Em particular, os planos diretores municipais nessas regiões devem, como ferramenta de organização e gestão do território, constituir instrumentos que facilitem a criação de serviços e infraestrutura em novos assentamentos constituídos por migrantes recentes. Grupos populacionais em áreas urbanas são aqueles que têm maior dificuldade de acesso aos serviços, além de estarem situados onde os custos de implantação de um sistema de saneamento básico amplo são mais altos. Dessa forma, o ritmo lento de crescimento da taxa de cobertura apontado para o Nordeste do Brasil pode continuar pelas próximas décadas, aumentado ainda mais a vulnerabilidade desses grupos aos efeitos das mudanças climáticas.

Por exemplo, um incremento da população em algumas áreas com maior densidade populacional (particularmente no cenário demográfico tendencial), ou a redistribuição da população (por exemplo, do centro para a periferia da região metropolitana, em um cenário de mudanças climáticas), pode ampliar ainda mais a escassez de água (BRASIL, 2007) prejudicando significativamente às atividades econômicas e indicadores de mortalidade e morbidade, particularmente nos estados e municípios com maiores IVS e IVED.

3.4. Migrações, vulnerabilidade socioeconômica e saúde: impactos da transição demográfica

A população brasileira deverá apresentar crescimento absoluto nas próximas décadas, com posterior diminuição do ritmo e eventualmente reversão (para declínio) em algum momento das décadas seguintes. Conforme Cedeplar & Fiocruz (2008), no caso da região Nordeste, a redução no ritmo de crescimento populacional trará consequências importantes na composição populacional. O Nordeste seguirá a tendência nacional de um declínio considerável na Razão de Dependência Total até 2030-2040, com uma proporção menor de dependentes na economia vis-à-vis produtores, que poderia significar um ganho macroeconômico para o país. Após 2040, o processo de envelhecimento levaria a um aumento gradativo na Razão de Dependência Total, o que ocorrerá com maior intensidade onde a queda da fecundidade é mais rápida. Além disso, e, particularmente em função da redução na mortalidade infantil, haverá aumento nas expectativas de vida por sexo e grupo etário para a região Nordeste entre 2000 e 2050.

Essas mudanças demográficas são relativamente homogêneas entre os municípios do Nordeste. Em 2050, os idosos representarão cerca de 30% da População Economicamente Ativa. Os custos dos idosos, em termos de transferências governamentais, são mais elevados do que os dos jovens; e os custos de saúde são mais elevados e tendem a se elevar com o tempo. O maior custo do envelhecimento para o sistema público de saúde, conforme os cenários de IVC refletem uma tendência em todos os estados nordestinos, mas em ritmos diferentes, indicando a necessidade de um ajuste mais rápido onde a transição da fecundidade é mais acelerada (estados da Bahia e Pernambuco). Além disso, a renda de grande parte desses idosos depende da Previdência Social, o que gera um cenário de dependência do governo e das instituições para se adaptar ao processo de mudanças climáticas e seus impactos na economia e na sociedade.

Esses dois resultados combinados são importantes na definição do potencial de vulnerabilidade populacional, tendo em vista que representam proxies para as condições de saúde de uma população. É provável que os grupos com piores condições de saúde, particularmente os idosos e as crianças, sejam mais suscetíveis a possíveis choques causados pelas mudanças climáticas e tenham menor propensão e capacidade de buscar alternativa à piora nas condições de vida. O grupo de idosos é mais vulnerável a determinadas enfermidades e mudanças de temperatura (como no caso da França em 2003), o que pode demandar um papel mais ativo das agências de saúde pública na prevenção de problemas criados pela mudança climática.

Nota-se ainda que, apesar das grandes mudanças na estrutura etária em direção ao processo de envelhecimento, a pressão pelos serviços públicos pertinentes às faixas etárias jovens, como a educação, saúde e nutrição, ainda se manterá pelas próximas décadas. Embora os cenários indiquem uma menor participação relativa dos grupos mais jovens na população, a persistência de condições de vulnerabilidade, principalmente em termos de acesso a saneamento básico, pode gerar agravantes de morbimortalidade nos cenários previstos de mudanças climáticas, conforme apontado nos cenários de IVS.

Torna-se necessário, assim, intensificar o controle das endemias sensíveis à variação do clima, para redução de sua importância com fator contribuinte para a vulnerabilidade regional. No cômputo geral, podemos considerar esta como a estratégia de maior importância no Nordeste, pois trará benefícios à população de forma incondicional, ou seja, independentemente da magnitude e do ritmo da mudança do clima. Nesta estratégia se faz necessária a aplicação local do conjunto de ações clássicas específicas para cada doença, e também a vigilância ativa visando a detecção precoce destes agravos em populações de migrantes. Essa ação deve ser combinada ao aparelhamento dos serviços públicos de saúde, em nível assistencial, para o enfrentamento de uma maior carga de morbidade, determinada pelo processo de mudança climática e suas consequências, assim como as mudanças a serem induzidas em decorrência da transição demográfica. Um aspecto importante, a este respeito, seria o aumento da capacidade resolutiva das unidades de saúde nos municípios menores, especialmente aqueles que deverão ser mais afetados pelo clima e que apresentam maior IVS e IVC, o que, além de assistir à população em suas necessidades básicas, reduziria o papel da morbimortalidade como fator de deslocamento para os grandes centros, ou seja, pacientes em busca de melhor atendimento.

Deve-se considerar ainda que medidas emergenciais tendem a não resolver o problema crônico de saúde dessas regiões. Tais espaços, como o semiárido nordestino, necessitam de resiliência e desenvolvimento econômico dinâmico, o que requer estratégias regionais que busquem a diversificação da produção. Nestas regiões mais vulneráveis, o problema primário não é a variabilidade climática, a seca, ou a erosão do solo, mas a vulnerabilidade das populações aos efeitos de tais eventos. A vulnerabilidade, nesse sentido, é produto de fatores políticos, econômicos e sociais que agem de forma integrada (DEMO, 1989). Por exemplo, estratégias visando aumento da segurança alimentar devem incluir uma gama de ações setoriais, abrangendo desde políticas de combate à desertificação até intervenções técnicas relativas ao processo de produção agrícola e pecuária (desenvolvimento de variedades de cultivos mais resistentes à seca etc.).

4. Conclusão

Este artigo procura demonstrar que políticas de adaptação devem passar, inevitavelmente, pela identificação da heterogeneidade de graus de vulnerabilidade de diferentes grupos populacionais, dentre os quais se destacam as populações migrantes. Isso, por sua vez, requer a identificação do padrão migratório e de redistribuição populacional emergente das mudanças climáticas, e dos fatores críticos de vulnerabilidade socioeconômica e de saúde de diferentes grupos populacionais.

Nesse sentido, revela-se a necessidade de pensar estratégias de longo prazo que se concretizem em arranjos institucionais voltados a um planejamento integrado e intersetorial e que combine diretrizes de políticas federais e ações locais (estados e municípios). Tendo em vista o relativamente longo período de manifestação dos impactos climáticos (pelo menos em sua maior intensidade), a elaboração dessas estratégias de adaptação é absolutamente factível, dependendo dos arranjos institucionais necessários à sua elaboração e implementação. Tal planejamento de longo prazo é capaz de definir com maior exatidão, já no curto prazo, a necessidade de investimentos visando à adaptação dos sistemas sociais e econômicos aos cenários futuros.

A antecipação dos possíveis efeitos das mudanças climáticas é um passo necessário para que medidas adequadas sejam tomadas com vistas a reduzir os impactos das mudanças climáticas. As políticas públicas não devem, e não podem, se concentrar apenas na transferência de renda e recursos, mas devem envolver mecanismos que ampliem a capacidade dos grupos mais vulneráveis de saírem da condição de vulnerabilidade no curto e médio prazo e permitam a adaptação e superação dos efeitos das mudanças climáticas. Destaca-se, nesse sentido, a centralidade da construção de capacidades de planejamento de médio e longo prazo, e sua plena incorporação às políticas públicas em suas diversas esferas, com estratégias de adaptação aos impactos das mudanças climáticas sobre as dinâmicas demográfica, econômica e de saúde no Brasil.

Agradecimentos

O financiamento para este artigo foi fornecido pelo Inter-American Institute (IAI), Projeto “LUCIA – Land Use, ClimateandInfections in Western Amazonia” (CRNIII3036), desenvolvido na UFMG (Brasil) em colaboração com a Duke University (USA), Universidad Peruana CayetanoHeredia (Peru), e Unibversidad San Francisco de Quito (Ecuador); e pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG), através do Projeto PPM- 00125-14.

Notas

1     O IPCC Third Assessment Report (2001) define vulnerabilidade às mudanças climáticas como “the degree to which a system is susceptible to, or unable to cope with, adverse effects of climate change, including climate variability and extremes. Vulnerability is a function of the character, magnitude, and rate of climate variation and to which a system is exposed, its sensitivity, and its adaptive capacity”.

2     Os cenários climáticos desenvolvidos pelo INPE para o caso brasileiro são baseados no modelo regional do Hadley Center (Reino Unido) denominado HadRM3P.

3     Segundo Economia do Clima (2009), em um cenário sem medidas de mitigação e apenas em função das mudanças climáticas, a perda de cobertura florestal da Amazônia deve situar-se entre 40% (caso o desmatamento seja próximo de zero) e 85% (com as taxas correntes de desmatamento).

4     Segundo os autores, uma porção ocidental da Amazônia brasileira deve apresentar um processo diferente, com aumento na quantidade de chuvas e de dias chuvosos.

5     O estudo contou com a participação de pesquisadores do Cedeplar/UFMG, Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz), Embrapa, INPE, Universidade de São Paulo (USP), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Instituto de Pesquisas Ambientais da Amazônia (IPAM) e Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável (FBDS).

6     Os principais insumos do modelo são cenários macroeconômicos e de população, mudanças tecnológicas e de preferências de consumidores, e cenários econômicos desagregados (nível estadual). Ver uma descrição do modelo IMAGEM-B em Domingues et al. (2007) e Cedeplar/Fiocruz (2008).

7     O saldo migratório refere-se ao balanço entre imigrantes e emigrantes em uma população em um quinquênio. Um saldo negativo implica, assim, em uma população que diminui de tamanho em função da migração. A Taxa Líquida de Migração é a relação entre esse Saldo Migratório e a população total.

8     Ver uma descrição detalhada do modelo em Barbieri et al. (2010) e Cedeplar & Fiocruz (2008). Para estudos sobre a influência de fatores econômicos na migração, ver Sahota (1968) e Ramos e Araújo (1999).

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