A Nova Agenda para Cooperação e Desenvolvimento Fronteiriço entre Brasil e Uruguai


Bruno de Oliveira Lemos
Geógrafo da Secretaria de Planejamento, Gestão e Participação Cidadã (RS).

Aldomar Arnaldo Rückert


1 Introdução

O objetivo deste artigo é identificar e analisar, através de uma perspectiva multiescalar, os impactos da Nova Agenda para Cooperação e Desenvolvimento Fronteiriço entre Brasil e Uruguai nas cidades-gêmeas de Sant’Ana do Livramento e Rivera. Para tanto, numa primeira parte, é apresentada a referida política de cooperação fronteiriça e a legislação dela originada, seguido de suas repercussões territoriais e políticas em ambos os municípios. Logo após, são apontadas as contribuições dos atores das escalas global, supranacional, nacional e local para a referida política.

É tomada como premissa a concepção de que os territórios fronteiriços devem ser analisados sob um prisma multiescalar, no qual se cruzam as lógicas das escalas local, regional, nacional e internacional (DATAR, 2011). Tal postura é justificada pelo fato de que a espacialidade do processo decisório se dá em diferentes escalas, não sendo possível determinar o domínio de uma sobre a outra (CASTRO, 2009, p. 128). Uma abordagem que contemple tanto a grande escala quanto a pequena escala, na conceituação de Racine, Raffestin e Ruffy (1983, p. 129), permite uma análise sobre a heterogeneidade e a homogeneidade dos fenômenos em um território.

Para realizar uma análise multiescalar é preciso ter claro o que aqui é chamado de sociedade civil. Bobbio (2010, p. 1210) define-a como a esfera das relações entre indivíduos, grupos ou classes sociais que se desenvolvem à margem das relações de poder que caracterizam as instituições estatais. O autor evoca a distinção de Max Weber entre poder de fato e poder legítimo para pensar as distinções entre sociedade civil e Estado: a primeira é, para ele, o espaço das relações de poder de fato e o segundo, das relações de poder legítimo. Essa divisão está ligada à ideia de que a esfera política está incluída numa esfera mais ampla, a da sociedade civil, e que não existe decisão política que não esteja condicionada por aquilo que acontece na sociedade civil. Portanto, uma coisa é a democratização política, outra é a democratização da sociedade (BOBBIO, 1992, p. 156). Considerando a definição de Bobbio, as funções das instituições políticas é dar respostas às demandas provenientes do ambiente social ou, igualmente, converter tais demandas em respostas (BOBBIO, 1992, p. 60).

Esse tipo de relação entre sociedade civil e Estado deve existir também nas regiões de fronteira. Schweitzer (2000, p. 15) define o processo de articulação dos atores fronteiriços nas esferas locais como “integração a partir de baixo”. Ocorrem alianças desses atores locais binacionais com outros de instâncias superiores, demandando ações de cooperação transfronteiriças por parte dos Estados envolvidos. Como exemplo, a Nova Agenda surgiu da integração fronteiriça horizontal no âmbito da sociedade civil, demandando políticas públicas (verticais) que se adequassem à realidade do cidadão fronteiriço. É para a discussão sobre essa Nova Agenda e os atores nela implicados que o trabalho agora se direciona.

2 A Nova Agenda para Cooperação e Desenvolvimento Fronteiriço entre Brasil e Uruguai

A Nova Agenda para Cooperação e Desenvolvimento Fronteiriço constitui, atualmente, a mais alta instância para cooperação e integração fronteiriça entre Brasil e Uruguai. Ela surgiu, em 2002, no plano das diplomacias brasileira e uruguaia, com a meta de adotar ações bilaterais que beneficiassem os cidadãos que viviam na região de fronteira. Baseou-se no diagnóstico de que a anterior experiência de integração fronteiriça brasileiro-uruguaia era marcada pela imprecisão e superposição de competências das unidades institucionais, com pouca eficácia dos Comitês de Fronteira, criados no início da década de 1990.

O primeiro passo para a fundação da Nova Agenda foi dado em fevereiro de 2002, quando a sede do Ministério das Relações Exteriores uruguaio – o Palácio Santos – enviou uma nota à Embaixada do Brasil em Montevidéu, apresentando o documento intitulado “Elementos para uma Política Conjunta em Matéria Fronteiriça” (PUCCI, 2010, p. 117).

A Nova Agenda funciona, basicamente, através de duas instâncias: as Reuniões de Alto Nível e os Grupos de Trabalho, assessorados pelos Comitês de Fronteira. Segundo Pucci (2010, p. 119), foi durante a I Reunião de Alto Nível que o nome “Nova Agenda para Cooperação e Desenvolvimento Fronteiriço”, baseado em documentos uruguaios que traziam essa denominação, consolidou-se.

As Reuniões de Alto Nível têm como função coordenar e sistematizar os trabalhos da Nova Agenda (AVEIRO, 2006, p. 116). Até o ano de 2013, já haviam ocorrido nove delas, das quais participaram, dentre outros atores, representantes do governo central, contribuindo para substituir o caráter recomendativo dos Comitês de Fronteira, pouco eficientes e com baixo nível de participação das autoridades nacionais (RÓTULO, DAMIANI; 2010, p. 28). Por essa razão, a Nova Agenda permite uma melhor articulação entre as escalas local e nacional na resolução dos problemas fronteiriços. Para Santos e Santos (2005, p. 50), [...] a experiência da cooperação fronteiriça Brasil-Uruguai fortalece a chamada vertente federativa ou o sentido de interiorização da diplomacia. No caso brasileiro, valoriza-se a participação das autoridades do Estado do Rio Grande do Sul, bem como dos municípios gaúchos situados na faixa de fronteira com o Uruguai. No caso uruguaio, a ação dos departamentos que lindam com o território brasileiro tendem, de igual modo, a intensificar-se. Toda essa articulação que se processa no nível local, de um lado, torna necessária a ativa participação da sociedade civil, por meio de seus representantes nas comunidades fronteiriças, e, de outro, requer, certamente, estreita coordenação entre as respectivas chancelarias.

Já os Grupos de Trabalho analisam as demandas da fronteira e suas necessidades específicas em determinado tema e, posteriormente, repassam-nas às respectivas chancelarias. Durante a I Reunião de Alto Nível, os grupos foram divididos em quatro grandes áreas de atuação – saúde, desenvolvimento integrado (desdobrado nos subgrupos de educação, formação profissional e prestação de serviços), saneamento e meio ambiente, cooperação policial e judicial –, para as quais deveriam elaborar propostas de ação a serem apresentadas nas reuniões. Para cumprir esse objetivo, passaram a contar com a colaboração dos Comitês de Fronteira, reativados a partir da IV Reunião de Alto Nível, em 2004, e fortalecidos com a criação da Nova Agenda.

Cumpre assinalar que, além das reuniões de Alto Nível e dos Grupos de Trabalho, convergem para a Nova Agenda outras instâncias relacionadas à integração fronteiriça, tais como: o Comitê Binacional de Intendentes e Prefeitos (com reuniões concomitantes, surgido a partir da III Reunião de Alto Nível da Nova Agenda, em 2003); o Grupo Permanente de Coordenação Consular; os seis Comitês de Fronteira; a Comissão para o Desenvolvimento da Bacia da Lagoa Mirim (CLM) e a Comissão para o Desenvolvimento da Bacia do Rio Quaraí (CRQ), reformuladas na V Reunião de Alto Nível, em 2007 (SIMÕES, 2011, p. 111).

Dessa maneira, a Nova Agenda procura canalizar todas as iniciativas de integração fronteiriça presentes na fronteira entre Brasil e Uruguai para levar a cabo suas propostas de ação.

3 Repercussões dos acordos da Nova Agenda nas cidades-gêmeas de Sant’Ana do Livramento e Rivera

Serão analisadas, a seguir, as repercussões dos acordos da Nova Agenda para Cooperação e Desenvolvimento Fronteiriço entre Brasil e Uruguai nas cidades-gêmeas de Sant’Ana do Livramento e Rivera. Ao lado disso, serão apresentadas as legislações derivadas dessa política e sua articulação com a escala local.

3.1 O Acordo para Permissão de Residência, Estudo e Trabalho a Nacionais Fronteiriços Brasileiros e Uruguaios

O Acordo para Permissão de Residência, Estudo e Trabalho a Nacionais Fronteiriços Brasileiros e Uruguaios foi assinado, em Montevidéu, pelos Chanceleres Celso Amorim e Didier Opertti, quando da visita do presidente brasileiro Fernando Henrique Cardoso ao Uruguai, em 21 de agosto de 2002 (BRASIL, 2002), e entrou em vigor em 2004. Trata-se de um avanço logrado pelas diplomacias dos dois países no plano da Nova Agenda para a Cooperação e Desenvolvimento Fronteiriço, ratificado pela IV Reunião de Alto Nível da Nova Agenda, ocorrida em Porto Alegre, nos dias 23 e 24 de novembro de 2004, a mais importante reunião no âmbito da Nova Agenda (REUNIÃO DE ALTO NÍVEL DA NOVA AGENDA, 2004).

Tal acordo prescreve os parâmetros para habitantes de Sant’Ana do Livramento e Rivera – e também de outras dez cidades-gêmeas brasileiras e uruguaias – residirem, exercerem profissão ou ofício com direitos previdenciários e frequentarem estabelecimentos de ensino público e/ou privado, situados no território de qualquer uma das partes. Por meio dele, foram extintas as penalidades administrativas aplicáveis em razão da permanência irregular de pessoas no território fronteiriço de um dos dois países, especificamente as que ingressaram até março de 2002 nas localidades abrangidas pela lei, conforme mostra a figura 1 (2). Resumidamente, o acordo resolveu a antiga situação dos indocumentados, isto é, das pessoas que residiam, trabalhavam ou estudavam ilegalmente em um dos lados da fronteira. Antes, para um uruguaio de Rivera legalizar sua situação de permanência em Sant’Ana do Livramento, ele devia cumprir os mesmos processos burocráticos de um uruguaio que fosse morar em São Paulo, por exemplo (AVEIRO, 2006, p. 148).

A permissão de permanência é concedida através do chamado Documento Especial de Fronteiriço, que pode ser outorgado por cinco anos, prorrogável por igual período ou, ainda, por prazo indeterminado. Sua concessão está a cargo do Departamento da Polícia Federal, no Brasil, e da Dirección Nacional de Migración, no Uruguai.

Embora restrito a localidades bem definidas, o acordo já previa uma espécie de dupla cidadania local, mas precisava avançar no sentido de abarcar uma região mais ampla, caso quisesse refletir, verdadeiramente, o propósito de livre circulação de pessoas do MERCOSUL. Assim, em 2011, durante a VII Reunião de Alto Nível da Nova Agenda, o embaixador Ruy Nogueira, Secretário-Geral das Relações Exteriores do Brasil, anunciou que as chancelarias brasileira e uruguaia haviam acordado a criação de um Grupo de Trabalho ad hoc para dar início às negociações de um acordo de livre circulação de pessoas entre os dois países (REUNIÃO ALTO NÍVEL DA NOVA AGENDA, 2011). Mais uma vez, a Nova Agenda apresentou-se à frente nos trâmites de livre circulação previstos para o MERCOSUL.

Figura 1: – Localidades vinculadas ao Acordo para Permissão de Residência, Estudo e Trabalho entre Brasil e Uruguai  

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Fonte: Divisão de Atos Internacionais do Ministério das Relações Exteriores do Brasil

Pucci (2010, p.164) afirma que o Acordo Fronteiriço instituiu uma matriz jurídica a partir da qual se desdobraram acordos conexos, como o de criação de escolas e/ou institutos binacionais, e ajustes complementares importantes, como o de acesso recíproco à saúde na fronteira. Com efeito, o principal avanço do referido acordo foi servir de subsídio para políticas públicas mais próximas da realidade do cidadão fronteiriço. Esse é também um dos pontos ressaltados por Santos e Santos (2005, p. 51). Como eles argumentam, A garantia jurídica dos direitos de residência, estudo e trabalho deixa a descoberto a necessidade de se resolver uma infinidade de problemas práticos, tais como a regularização do licenciamento e trânsito de veículos da população fronteiriça, maior coordenação entre as autoridades policiais e judiciais, acesso da população fronteiriça aos serviços de saúde dos dois lados da linha de fronteira, etc.

Com o passar do tempo, o Documento Especial de Fronteiriço teve uma diminuição no número de solicitantes, por entrar em vigor, no Brasil e Uruguai, com a bilateralização a partir de 26 de outubro de 2006, o Acordo sobre Residência para Nacionais dos Estados Partes do MERCOSUL, aprovado pela Decisão do Conselho do Mercado Comum n°28/02, de 6 de dezembro de 2002, originada do interesse brasileiro em conceder uma anistia migratória para brasiguaios, para paraguaios na Argentina, bolivianos no Brasil e argentinos no Chile, para citar os casos mais notórios (PUCCI, 2010, p. 165).

As vantagens do novo acordo residiam em sua maior abrangência, ou seja, por não ser restrito aos cidadãos fronteiriços e às localidades da fronteira, mas, ao contrário, por cobrir todos os territórios dos países, além de abrir a possibilidade de o requerente ser considerado cidadão permanente, após estar legalizado por dois no país. Conforme exposto na VIII RAN da Nova Agenda, a demora para o Acordo de Residência do MERCOSUL (3) entrar em vigor foi o que motivou o rápido desenvolvimento do Acordo para Residência, Estudo e Trabalho entre Brasil e Uruguai, posto em ação em 2004 (REUNIÃO DE ALTO NÍVEL DA NOVA AGENDA, 2012).

Segundo informações da Polícia Federal de Sant’Ana do Livramento (4), existem dois tipos de documentos para a legalização de estrangeiros dentro do acordo do MERCOSUL: o temporário e o permanente. A carteira temporária traz como benefícios os mesmos direitos e liberdades civis, sociais, culturais e econômicas concedidos aos nacionais do país de recepção – em particular, o direito ao trabalho, à livre iniciativa e às condições previstas na legislação interna. A carteira temporária possui validade de dois anos, sendo que, noventa dias antes de seu término, o portador pode solicitar a transformação de seu visto através de comprovante de rendimento. Caso a solicitação seja deferida, o estrangeiro passa à condição de permanente. Os dados da tabela 1, coletados no Consulado do Brasil em Rivera em 2010 (5), permitem identificar a superação do Acordo Fronteiriço pelo Acordo do Mercosul.

Tabela 1: – Cidadãos uruguaios cadastrados no período 2006-2009 com base no Acordo Operacional de Residência do MERCOSUL entre Brasil e Uruguai 

 

 

Fonte: Divisão de Cadastro e Registro de Estrangeiros, Coordenação Geral de Polícia de Imigração, Departamento de Polícia Federal. Atualizado em março de 2010.

O total de uruguaios cadastrados pelo Acordo do MERCOSUL, entre os anos de 2006 e 2010, foi de 3459. Já o número de uruguaios fronteiriços cadastrados, no período entre 2003 e 2010, com base no Acordo para Permissão de Residência, Estudo e Trabalho, foi de 2458 (6).

Em 2 de julho de 2009, após entrar vigor , no Brasil, a Lei n°11.961 (BRASIL, 2009), que flexibilizou a legislação para a legalização de estrangeiros de qualquer nacionalidade no território nacional, conhecida também como Lei da Anistia, diminuiu-se ainda mais as requisições de documento fronteiriço por parte de uruguaios. Um ofício enviado ao então Consulado do Brasil em Rivera pela Inspectoria de Rivera da Dirección Nacional de Migración, demonstrava esse fato. Ele apresentava os seguintes números:

Tabela 2: – Número de documentos requisitados por brasileiros de cidadão fronteiriço realizados pela Dirección Nacional de Migración do Uruguai, Inspectoria de Rivera 

Fonte: Fonte: Inspectoria de Rivera da Dirección Nacional de Migración do Uruguai.

Pode-se observar, de fato, uma diminuição substancial das requisições de documento fronteiriço na Inspectoria de Rivera a partir do ano de 2006, quando passou a vigorar, como já apontado, o Acordo de Residência do MERCOSUL, bilateralizado por Brasil e Uruguai. Também contribuíram para essa mudança de cenário o Acordo sobre Residência para Nacionais dos Estados Partes do MERCOSUL e a lei uruguaia n°18250, de janeiro de 2008 (URUGUAI, 2008), a qual flexibilizou os requisitos para cidadãos estrangeiros obterem sua legalização no Uruguai.

A tendência do Acordo para Permissão de Residência, Estudo e Trabalho é ser absorvido pelas legislações futuras que vierem a tratar da livre circulação de pessoas no MERCOSUL. O interessante é que, como as relações bilaterais são efetivadas de maneira mais rápida, quando comparadas aos lentos trâmites do referido bloco, a tendência das relações multilaterais é englobar as políticas de integração entre Brasil e Uruguai. De acordo com Santos e Santos (2005, p. 52), [...] [q]uando se estabelecer o livre trânsito de pessoas e for realidade o direito de residir, trabalhar e estudar dos cidadãos de todas as nações do Mercosul em toda a extensão dos territórios dos outros Estados-membros, a política de conceder um tratamento jurídico específico para as fronteiras deixará de ter razão de ser. Mas, até mesmo para subsidiar esse processo mais amplo de integração entre nossos povos, a cooperação fronteiriça Brasil-Uruguai traz lições importantes.

De forma semelhante, Pucci (2010, p. 21), ao analisar o tema da Nova Agenda em relação ao MERCOSUL, afirma que [...] enquanto o ideal da livre circulação no âmbito regional, solenemente proclamado no Artigo 1º do Tratado de Assunção, não for plenamente alcançado, persistirá a necessidade de provar bilateralmente soluções criativas num terreno onde os atores sociais e políticos estejam predispostos a acolhê-las. Esse laboratório é a fronteira brasileiro-uruguaia.

Vale assinalar, para concluir esta parte, que, como postulou Izaura Maria Soares, Diretora do Departamento de Estrangeiros do Ministério da Justiça do Brasil, o livre trânsito de pessoas está sendo negociado na escala do MERCOSUL, tendo como exemplo a proposta de criação de uma futura carteira de identidade do bloco, que garantirá a livre circulação no espaço interno a ele a partir da passagem por apenas um controle migratório (REUNIÃO DE ALTO NÍVEL DA NOVA AGENDA, 2012). A evolução desse acordo, conjuntamente ao Acordo de Residência, pode gerar uma nova identidade supranacional, como ocorre com a União Europeia, marcada pela possibilidade de livre circulação e residência em seu espaço interno. Ao mesmo tempo, reduzirá a importância de políticas específicas para residência, estudo e trabalho nas regiões de fronteira.

3.2 Ajuste complementar ao Acordo para Permissão de Residência, Estudo e Trabalho a nacionais fronteiriços brasileiros e uruguaios para prestação de serviços de saúde

O ajuste complementar ao Acordo para Permissão de Residência, Estudo e Trabalho para Prestação de Serviços de Saúde visa a permitir a prestação de serviços de saúde humana por pessoas físicas ou jurídicas situadas nas localidades estabelecidas no próprio acordo. A pessoa física ou jurídica contratada pode admitir somente pacientes residentes nessas localidades, os quais devem apresentar uma documentação, expedida por autoridade policial correspondente ou outro documento comprobatório de residência, para confirmar a identidade e o domicílio, como, por exemplo, o Documento Especial de Fronteiriço. A prestação de serviços de saúde pode ser feita pelos respectivos sistemas públicos de saúde dos países ou por meio de contratos celebrados entre uma pessoa jurídica como contratante, de um lado, e uma pessoa física ou pessoa jurídica como contratada, do outro, sendo esta de direito público ou privado.

Tal ajuste foi assinado em 2008, mas, no Brasil, passou a vigorar a partir de 2010, através do Decreto N° 7.239, de 26 de julho. Ele, como se pode inferir do exposto acima, busca melhorar o atendimento básico em saúde na fronteira e a prevenir situações complicadas em torno dessa temática, como a descrita pelo prefeito de Sant’Ana do Livramento, Wainer Machado (7). Segundo ele, em 2006, os obstetras da Santa Casa de Misericórdia de Livramento realizaram uma greve por causa do decréscimo de R$ 110.000,00 para R$ 55.000,00 no aporte mensal de recursos do município, um valor complementar aos pagamentos do Sistema Único de Saúde, o que obrigou o Hospital de Rivera a realizar partos de mais de 40 gestantes brasileiras sem uma legislação que lhe desse amparo, ocorrendo a transcrição dos documentos das crianças nascidas no Uruguai pelo Consulado do Brasil em Rivera. Na ocasião, foi ajuizada, pela mesma Santa Casa, uma ação ordinária buscando amparo para contratação de médicos uruguaios em face de semelhante negativa de atendimento, ao hospital e ao Sistema Único de Saúde, por médicos brasileiros (BRASIL, 2011). O juiz federal Belmiro Tadeu Nascimento Krieger concedeu liminar inédita à Santa Casa de Misericórdia, autorizando-a a contratar médicos uruguaios nas especialidades de anestesiologia, neurologia, traumatologia, urologia, cirurgia plástica reparadora, cirurgia geral e obstetrícia (CONSULADO, 2006b).

Em outubro de 2009, o fato se repetiu, devido à interdição da Santa Casa de Misericórdia de Livramento por parte do Conselho Regional de Medicina do estado do Rio Grande do Sul (CREMERS), que alegava a falta de condições para funcionamento do hospital, com riscos para seus médicos e pacientes (BEBÊS, 2009). Nessa oportunidade, nove partos foram realizados no Hospital de Rivera, com o Consulado do Brasil em Rivera realizando a mediação entre o hospital uruguaio e as instituições brasileiras.

No ano de 2011, por conta de uma greve na Fundação Hospital de Caridade de Quaraí, seguida da contratação de três médicos uruguaios pelo mesmo hospital, o CREMERS, abriu uma ação civil pública, em Sant’Ana do Livramento, pedindo a imediata suspensão do exercício das atividades profissionais desses médicos, porquanto eles não haviam feito a revalidação de seus diplomas em uma universidade brasileira, nem possuíam inscrição no próprio CREMERS, fatos que sustentavam a ilegalidade e a temeridade das referidas contratações. A instituição sul-rio-grandense também alegava que o Ajuste Complementar autorizava o atendimento dos pacientes no país vizinho, não a atividade dos médicos nos dois lados da fronteira.

A Santa Casa de Misericórdia de Sant’Ana do Livramento, em vista de anunciada paralisação por parte dos médicos que trabalhavam no hospital, marcada para o dia 26 de maio de 2011, ajuizou uma ação ordinária com pedido de antecipação de tutela contra o CREMERS, a fim de obter autorização judicial para contratar, caso fosse necessário, médicos de cidadania uruguaia residentes em Rivera, nos moldes do Ajuste Complementar ao Acordo para Permissão de Residência, Estudo e Trabalho a Nacionais Fronteiriços Brasileiros e Uruguaios para Prestação de Serviços de Saúde (BRASIL, 2011). As duas ações foram consideradas conexas, com sentença única, assinada pelo juiz federal Belmiro Tadeu Nascimento Krieger e publicada em Sant’Ana do Livramento, no dia 28 de novembro de 2011.

Na ação ordinária supracitada, a direção da Santa Casa de Misericórdia argumentava que possuía enormes dificuldades para encontrar profissionais médicos brasileiros dispostos a trabalhar na região, pois, em razão da escassez de profissionais, os médicos que aceitavam trabalhar impunham honorários tão altos que inviabilizavam a prestação de serviços. Assim, segundo o juiz federal Krieger, não se tratava da singela escolha entre o médico uruguaio e o médico brasileiro, mas sim entre o médico uruguaio ou nenhum médico (BRASIL, 2011). Independentemente da discussão quanto ao Ajuste Complementar, tratava-se de uma eventual situação configuradora de lesão ao direito à saúde, assegurado pela Constituição Federal do Brasil de 1988 (art. 196) e garantido pelo Estado, o que, por si só, autorizava o exercício da medicina no território nacional por médicos uruguaios. Para o juiz, portanto, cabia ao judiciário prover solução de cunho emergencial para evitar iminente colapso da saúde pública em Sant’Ana do Livramento.

No que se refere ao Ajuste Complementar, Krieger considerou-o uma norma especial que abrangia o exercício da medicina, sobrepondo-se às normas relativas ao exercício da medicina no Brasil (Lei n°3.268/1957), por ser mais recente e especial para as localidades vinculadas. Ademais, por ser intergovernamental, sobrepunha-se à lei que regulava a situação do estrangeiro no Brasil (Estatuto do Estrangeiro, Lei n°6.815/1980) (BRASIL, 2011). Portanto, para Krieger, a prestação de serviços de saúde humana, nas localidades vinculadas, seriam reguladas pelo Ajuste Complementar ao Acordo para Permissão de Residência, Estudo e Trabalho a Nacionais Fronteiriços Brasileiros e Uruguaios, para Prestação de Serviços de Saúde. Conforme Krieger:

Tendo o Brasil firmado esse Acordo e seu ajuste Complementar, não há como, legitimamente, negar-lhe vigência em território nacional, sob pena de assentamento e consagração da pecha, infelizmente até certo ponto adequada, de país leviano no trato das questões internacionais, pelo fato de seguidamente aderir ou firmar tratados no âmbito da comunidade internacional e, recorrentemente, no âmbito interno, negar-lhe vigência ou dificultar-lhe sobremaneira a necessária efetividade, notadamente através da Administração (BRASIL, 2011).

O referido Ajuste Complementar concedeu, dessa maneira, amparo legal para a contratação de médicos uruguaios e brasileiros nas localidades associadas ao Acordo para Permissão de Residência, Estudo e Trabalho.

Os casos descritos acima, ainda que de forma breve, deixam claro que se faz necessário aprofundar a integração fronteiriça na área da saúde, tornando prática corrente o atendimento e a prestação de serviços binacionais em tal região. Na VIII RAN da Nova Agenda, diversos entraves foram apontados pelas autoridades locais para a aplicabilidade do Ajuste, sobretudo para os respectivos pagamentos dos serviços dos médicos por parte das prefeituras (REUNIÃO DE ALTO NÍVEL DA NOVA AGENDA, 2012).

3.3 Acordo para Criação de Escolas e/ou Institutos Binacionais Fronteiriços Profissionais e/ou Técnicos e para o Credenciamento de Cursos Técnicos Bifronteiriços

O presente acordo foi elaborado pela chancelaria uruguaia, que o propôs na IV Reunião de Alto Nível da Nova Agenda (REUNIÃO DE ALTO NÍVEL DA NOVA AGENDA, 2004). Por meio dele, autorizou-se o estabelecimento de Escolas e/ou Institutos Binacionais Fronteiriços Profissionais e/ou Técnicos na zona de fronteira definida no Acordo para Permissão de Residência, Estudo e Trabalho a Nacionais Fronteiriços Brasileiros e Uruguaios (BRASIL, 2005). Assim, assumindo a educação como um elemento fundamental no processo de integração, as escolas ou institutos binacionais têm como objetivo principal promover a qualificação e a formação profissional, de forma a permitir a inclusão social da população fronteiriça.

No dia 1º de abril de 2005, esse acordo foi assinado em Brasília, passando a vigorar no Uruguai em 2007 (PUCCI, 2010, p. 121). No Brasil, sua tramitação protelou-se um pouco mais, em função de dúvidas suscitadas pela Secretaria de Educação do Rio Grande do Sul e do Ministério da Educação do Brasil quanto a eventuais repartições de custos de sua aplicação. Na VII Reunião de Alto Nível da Nova Agenda, em 2011, o Grupo de Trabalho sobre Educação e Formação Profissional reafirmou a importância de serem realizadas as gestões necessárias para sua aprovação e efetivação no Brasil (REUNIÃO DE ALTO NÍVEL DA NOVA AGENDA, 2011). Cumpre frisar, no entanto, que o decreto legislativo brasileiro n° 804, de 20 de dezembro de 2010 já havia autorizado a instalação dessas escolas.

O acordo definiu que as escolas e institutos deveriam funcionar da seguinte forma: os postulantes teriam 50% das vagas reservadas para cada uma das partes, sendo que as vagas não preenchidas seriam postas à disposição de qualquer um dos países; em relação ao idioma, os professores poderiam ministrar os cursos na língua materna deles.

Em Sant’Ana do Livramento e Rivera, funciona, desde março de 2011, o projeto-piloto acordado entre o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-Rio-Grandense (IFSul), campus Sant’Ana do Livramento, e o Consejo de Educación Tecnico Profesional, da Universidad Del Trabajo Del Uruguay (UTU). No caso do campus Sant’Ana do Livramento, é oferecido o curso técnico em Informática para Internet, sendo ofertadas 40 vagas (20 no turno da tarde e 20, no da noite). Dessas vagas, 50% são destinadas a alunos brasileiros e os outros 50%, a alunos uruguaios. Na Escola Técnica Superior de Rivera, é oferecido o curso técnico em Controle Ambiental, sendo ofertadas 30 vagas no turno da noite (isto é, 15 para brasileiros e 15 para uruguaios). Na VII Reunião de Alto Nível da Nova Agenda, o IFSul e a UTU comprometeram-se, com o intuito de favorecer a atuação profissional na área de fronteira, a facilitar a revalidação de diplomas em áreas de atuação comum, definidas pelas duas instituições. As formaturas das primeiras turmas binacionais em Sant’Ana do Livramento e Rivera ocorreram em dezembro de 2011 (REUNIÃO DE ALTO NÍVEL DA AGENDA, 2012).

O projeto-piloto supracitado deve vir servir de padrão para outros institutos técnicos e escolas binacionais. Na verdade, já há exemplos de sua absorção: os cursos técnicos binacionais abertos nas cidades de Jaguarão, no Brasil, e de Rio Branco, no Uruguai, seguem o padrão implantado em Sant’Ana do Livramento e Rivera, com a parceria entre o IFSul e a UTU. A tendência é de que essas escolas ou institutos difundam-se pela fronteira entre Brasil e Uruguai.

3.4 Acordo sobre Cooperação Policial em Matéria de Investigação, Prevenção e Controle de Fatos Delituosos

O Acordo sobre Cooperação Policial em Matéria de Investigação, Prevenção e Controle de Fatos Delituosos, fruto do Grupo de Trabalho sobre Cooperação Policial e Judicial – negociado na III Reunião de Alto Nível em 2003 (REUNIÃO DE ALTO NÍVEL DA NOVA AGENDA, 2003) e assinado no ano de 2004 (BRASIL, 2004), na cidade uruguaia de Rio Branco, mas entrando em vigor em 2008 – prevê o intercâmbio de informações entre as autoridades policiais de ambos os países e a possibilidade de as autoridades ingressarem no território de qualquer uma das partes para requerer, à autoridade policial mais próxima, o procedimento legal correspondente, quando da perseguição a delinquentes. Ele permite uma ação ágil e integrada das autoridades brasileiras e uruguaias (8) e não está restrito à região de fronteira; ao contrário, funciona em todo o território dos dois países. Além disso, tal acordo busca pôr fim a uma prática corrente entre responsáveis por delitos na região: cruzar a fronteira no intuito de dificultar ou impedir a perseguição deles pela polícia.

A articulação entre a Polícia Federal do Brasil e a Polícia Nacional do Uruguai encontra-se adiantada em Sant’Ana do Livramento e Rivera, ocorrendo ações conjuntas e intensa troca de informações entre ambas as instituições. Esse intercâmbio de informações já ocorria anteriormente, o acordo apenas legalizou-o. No entanto, as ações conjuntas, principalmente no combate ao abigeato, necessitam ainda de uma legislação para sua legalização, pois o acordo permite somente que uma das partes requisite a perseguição dos responsáveis por crimes, quando estes adentram o território do outro Estado.

Conforme foi tratado no Grupo de Trabalho sobre Cooperação em Matéria de Segurança Pública e Judicial / Áreas de Controle Integrado da VIII RAN da Nova Agenda, em 2012, há um acordo, ainda não internalizado, para o desenvolvimento de equipes conjuntas de investigação na escala do MERCOSUL (REUNIÃO DE ALTO NÍVEL DA NOVA AGENDA, 2012). Na verdade, ações dessas equipes já ocorrem em todo o bloco; atualmente, elas necessitam de amparos jurídicos no âmbito do MERCOSUL.

O acordo apresentado é mais um exemplo de legislação que surgiu na esfera bilateral da Nova Agenda, mas que, em seguida, foi conduzida para o bloco do MERCOSUL. A legislação produzida na escala dele tende, mais uma vez, a superar os acordos binacionais entre Brasil e Uruguai.

A multiescalaridade da Nova Agenda para Cooperação e Desenvolvimento Fronteiriço entre Brasil e Uruguai

Na esfera global, a globalização – embora não seja um ator, mas sim um fenômeno promovido por atores político-econômicos – afetou as fronteiras dos Estados-nação, provocando, em algumas, uma maior porosidade e cooperação e, em outras, um maior fechamento e separação (NEWMAN, 2006, p. 181).

O processo de globalização permeou toda a análise aqui realizada, uma vez que ele influenciou (e influencia) as práticas de integração nas múltiplas escalas: na supranacional, via MERCOSUL, com a proposta inicial de inserção global (regionalismo aberto); na nacional, motivando a reforma dos Estados brasileiro e uruguaio e a adequação deles à nova conjuntura político-econômica, que pôs o Estado em uma postura de gestor do território (BECKER, 2009, p. 296); e em escala local, reforçando a transfronteirização (já existente na fronteira entre Brasil e Uruguai) através do aumento dos fluxos comerciais e do intercâmbio cultural. Conjuntamente, o processo de globalização intensificou as relações entre a escala local e a global, ao promover um maior protagonismo dos atores locais fronteiriços nas políticas territoriais.

Na escala supranacional, o MERCOSUL fortaleceu a aproximação entre os países do Cone Sul, intensificando a interdependência econômica (no caso uruguaio, uma dependência acentuada) e incentivando a cooperação política, conquanto ainda ocorram medidas unilaterais por parte de alguns de seus países membros. Essa conjuntura foi fundamental para o desenvolvimento das políticas fronteiriças bilaterais brasileiro-uruguaias, como a Nova Agenda.

A crise do MERCOSUL, mais intensa entre 1999 e 2002, fez com que fossem acentuadas as negociações bilaterais, mais rápidas em relação aos lentos trâmites internos ao bloco, como destacado anteriormente. A relativa inoperância do Grupo de Trabalho ad hoc sobre Integração Fronteiriça (GAHIF) do MERCOSUL, surgido no mesmo ano da Nova Agenda, na resolução dos problemas fronteiriços também contribuiu para o desenvolvimento de negociações independentes entre Brasil e Uruguai. Dessa forma, no que diz respeito a políticas de integração fronteiriça, o MERCOSUL ainda se encontra muito atrasado em comparação à União Europeia, possuidora de regiões transfronteiriças que recebem apoio de programas de desenvolvimento regional de origem supranacional, como o INTERREG.

A Nova Agenda representou o início de institucionalização da cooperação na região da fronteira entre Brasil e Uruguai, processo que se assemelha à supracitada formação de regiões transfronteiriças na Europa antes da década de 1990. Em ambos, pode-se observar a valorização da escala local com a descentralização política, e, no caso da fronteira brasileiro-uruguaia, em particular, vê-se, ainda, um déficit de participação dos atores da escala supranacional – isto é, do MERCOSUL. Assim, na Nova Agenda, as negociações se dão entre os atores da escala local e nacional, principalmente. O aprofundamento da cooperação no MERCOSUL vai depender da evolução do bloco nos próximos anos. A supranacionalidade, limitando a soberania dos Estados membros, possibilitaria a formação de regiões transfronteiriças no MERCOSUL. Outro fator que, nessa região, condiciona a evolução do processo de cooperação transfronteiriça refere-se à parcela de soberania que os dois países estão dispostos a perder, pois no caso do MERCOSUL, essa parcela é ínfima.

Cabe notar que, à medida que o MERCOSUL passa a adotar políticas sociais mais próximas dos cidadãos dos países membros e a promover a livre circulação de pessoas em seus territórios, a tendência das políticas bilaterais de cooperação entre Brasil e Uruguai é ser superada pelas políticas do bloco como um todo. Esse tipo de tendência, marcada por um menor comercialismo e uma maior adoção de políticas sociais, ocorreu, com maior visibilidade, durante os anos 2000. Contudo, o MERCOSUL ainda se encontra distante da realidade dos cidadãos dos Estados Partes, devendo aperfeiçoar seus mecanismos de participação da sociedade civil fronteiriça, como ocorre no âmbito bilateral entre Brasil e Uruguai.

Na Nova Agenda para Cooperação e Desenvolvimento Fronteiriço entre Brasil e Uruguai, os atores das escalas nacional e local são predominantes. Observa-se, no caso dos sistemas políticos dos dois países, que a descentralização política intensificou-se com a volta dos regimes democráticos durante os anos 1980. Isso conduziu as regiões a um maior protagonismo, reforçando a necessidade de políticas territoriais que envolvessem atores multiescalares para a consecução dos objetivos delineados e, igualmente, o aperfeiçoamento das respostas das instituições políticas às demandas da sociedade civil. Por exemplo, a transfronteirização presente nas cidades-gêmeas da fronteira entre Brasil e Uruguai exigiu a resolução do conflito entre a escala local, integradora, e a escala nacional, que via a fronteira como elemento de separação até o momento da predominância das relações de cooperação entre os dois países. Nesse sentido, uma integração a partir de baixo (SCHWEITZER, 2000), preexistente às políticas de cooperação bilateral, gerou alianças dos atores locais com outros de instâncias superiores a partir do período democrático.

Esse processo iniciou-se com a criação dos Comitês de Fronteira, os quais pretendiam articular a sociedade civil fronteiriça com as instituições centrais dos Estados brasileiro e uruguaio. Diante da ineficiência dos Comitês, uma reestruturação das políticas de integração fronteiriça foi realizada durante a década de 2000, com a Nova Agenda aproximando as reivindicações das pessoas às instituições políticas centrais. O Acordo para Permissão, Estudo e Trabalho e o Ajuste Complementar ao Acordo para Permissão de Residência, Estudo e Trabalho a Nacionais Fronteiriços Brasileiros e Uruguaios para Prestação de Serviços de Saúde são exemplos de políticas forjadas para atender devidamente as necessidades da população local. Na Nova Agenda, nota-se tanto um movimento de “baixo para cima”, com a canalização das demandas da sociedade civil fronteiriça em direção às instituições políticas superiores, quanto de “cima para baixo”, com a formulação de políticas que favorecem a transfronteirização.

Concomitantemente à integração transfronteiriça em escala local, os Estados nacionais, atualmente, também veem essas políticas de maneira positiva. O Brasil busca reforçar sua parceria com os países do MERCOSUL e da América do Sul em geral para, assim, alcançar uma melhor inserção global, ao mesmo tempo em que aumenta sua participação político-econômica na região. Já o Uruguai intenta reforçar as políticas de cooperação com o Brasil, especialmente depois do estabelecimento deste país como potência regional. Ademais, o país do sudeste da América do Sul possui uma dependência cada vez maior em relação a seus vizinhos regionais, reforçada pela entrada em vigor do MERCOSUL, na metade da década de 1990 (GINESTA, 1999, p. 110).

Por fim, é perceptível na escala local uma transfronteirização intensa, resultado do desenvolvimento conjunto da região de fronteira entre Brasil e Uruguai. As cidades-gêmeas de Sant’Ana do Livramento e Rivera tiveram, em sua fundação, o claro propósito de estimular a defesa dos dois Estados-nação. Entretanto, as relações socioeconômicas e culturais locais sempre se desenvolveram de forma a anular a fronteira em questão. A integração em escala local ocorria, assim, em desacordo com a política dos dois Estados-nação, que viam a fronteira como um elemento de separação.

A Nova Agenda para Cooperação e Desenvolvimento Fronteiriço entre Brasil e Uruguai representa, dessa modo, uma adequação dos dois Estados à realidade de integração local da fronteira brasileiro-uruguaia. Essa adaptação não ocorreria se o paradigma na relação entre os dois países não houvesse superado o realismo geopolítico para, em contrapartida, privilegiar a cooperação. Em tal transição, mais uma vez, o MERCOSUL, ao lado da democratização dos dois países, cumpriu (e ainda cumpre) um papel fundamental.

Pelo exposto, as transformações nas ações dos atores multiescalares foram fundamentais para o desenvolvimento da Nova Agenda, sendo impossível identificar uma escala determinante para o surgimento da referida política, embora se destaquem as escalas nacional e local. A multiescalaridade da Nova Agenda para Cooperação e Desenvolvimento Fronteiriço acentua-se por se tratar de uma política relativa à fronteira, elemento no qual confluem, com maior intensidade, atores das escalas internacional, nacional e local.

5 Considerações finais

Este artigo analisou a política territorial binacional da Nova Agenda para Cooperação e Desenvolvimento Fronteiriço entre Brasil e Uruguai e suas repercussões nas cidades-gêmeas de Sant'Ana do Livramento e Rivera. A principal contribuição dele residiu na abordagem multiescalar de uma política que obteve efetividade na resolução de algumas deficiências nas regiões brasileiras de fronteira e em suas cidades-gêmeas. Para o cumprimento dos objetos da política territorial da Nova Agenda, houve a confluência de ações dos atores das escalas internacional, nacional, regional e local. Ao contrário das políticas restritivas que historicamente foram estimuladas nas fronteiras do Brasil com seus vizinhos sul-americanos, a Nova Agenda visava a promover uma visão positiva da fronteira.

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