A estruturação do espaço urbano e regional a partir da transposição do Rio São Francisco (2007-2017)


Andre Paiva Rodrigues
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da PUC de Campinas

Vera Santana Luz
Doutora em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo; Professora do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da PUC de Campinas

REVISTA POLÍTICA E PLANEJAMENTO REGIONAL – RPPR – Rio de Janeiro, Vol. 8, No. 2, maio a agosto de 2021, p. 233 - 252   ISBN 2358-4556

Submetido em 08.07.2020, aprovado em 12.06.2021

1. Introdução 

Grandes projetos de infraestrutura econômica impõem-se nos territórios com o desenrolar da globalização neste início de século; a partir da introdução crescente de ciência, tecnologia e informação novos ramos econômicos surgem transformando velozmente os arranjos produtivos e a circulação de mercadorias e pessoas. Essa realidade generalizou os investimentos transnacionais por todo o planeta transformando-o, cada vez mais, em esfera única para realização e acumulação capitalista, em um movimento de constante incorporação de novas áreas ao processo produtivo e a construção/reestruturação do espaço habitado (transformados também em esferas de inversões e lucros crescentes ao setor financeiro).

Como consequência, o que crescentemente se projeta sobre os territórios é, por um lado, a financeirização do mercado de terras, um reforço da produção corporativa do espaço, bem como uma competição repressora sobre as terras e recursos – naturais e sociais – territorializados (LEFEBVRE, 2000; KURZ, 1997; GUDYNAS, 2012); por outro lado, a generalização das condições e meios de produção sobre espaços cada vez mais vastos, para além das áreas concentradas (zonas industriais das grandes cidades), e sua distribuição sobre todos os lugares onde haja “vantagens comparativas” a serem capturadas ou conectadas, redesenham uma nova organização territorial e divisão espacial do trabalho (SANTOS, 1998; MONTE-MÓR, 1994 e 2006).

A disseminação ou dispersão sobre o território dos processos de produção/reprodução das outrora zonas urbano-industriais fordistas produzem ou expandem, ao longo de seus sistemas técnicos e incorporações imobiliárias, uma trama de relações socioespaciais que se estende em formas de manchas, eixos ou fragmentos ao campo, integrando-o ao tecido urbano. Tal processo, descrito por Roberto Monte-Mór (1994 e 2006) como urbanização extensiva, é resultado da “explosão” das cidades industriais sobre toda “sua” região e para áreas cada vez mais vastas, conforme seguem a ampliação das infraestruturas econômicas e dos negócios formados e realizados a partir da especulação imobiliária.

Às mudanças que se verificam com a ampliação do tecido urbano sobre o campo (urbanização extensiva), somam-se as transformações tecnológicas ao nível do processo de produção agrícola, no sentido de criar aquilo que Santos (2000) classificou como agricultura científica globalizada – exigente que é de tecnologia e ciência. Ao adicionar procedimentos, técnicas e insumos modernos para a realização da produção agropecuária – com vistas ao aumento de eficiência, produtividade, competitividade e redução de custos –, tal agricultura aprimora e torna mais denso e complexo o processo produtivo no setor, impondo importantes transformações no sentido de desenvolver um processo agrícola via industrialização (agroindústria) e sua fusão com os setores terciário (comércio e serviços) e quaternário (pesquisa e desenvolvimento) urbanos, caracterizando o agronegócio.

Onde quer que haja uma agropecuária dependente de bens e serviços típicos da terceira fase da revolução industrial, promove-se uma gradual e constante substituição do meio natural e do meio técnico herdado de períodos anteriores, por um meio denso de objetos e sistemas de engenharia típicos da atual fase mundializada da economia (SANTOS, 2000). Verifica-se também para muitas cidades “cuja urbanização se deve diretamente à consecução e expansão do agronegócio”, um fortalecimento de seu papel de apoio e extensão às atividades modernizadas do mesmo, enquadrando-as em funções urbanas associadas – e mesmo dependentes – deste setor (ELIAS, 2006), fazendo surgir as cidades do agronegócio globalizado ou simplesmente cidades do agronegócio (ELIAS, 2006 e 2017). 

2. O Projeto de Integração do Rio São Francisco com Bacias do Nordeste Setentrional (PISF) no discurso do desenvolvimento econômico

Para cada um desses processos descritos, o Projeto de Integração do rio São Francisco com Bacias do Nordeste Setentrional (PISF) é, em maior ou menor grau, indutor e/ou acelerador destes fenômenos nos locais em que alcança. Tal como esclarece Rodrigues (2020), é um macrossistema de engenharia que busca criar e estender as condições de reprodução da forma valor no semiárido brasileiro, inserindo essa região nos circuitos espaciais de produção do agronegócio globalizado, da urbanização corporativa e da especulação financeira.

Trata-se (...) de um padrão de desenvolvimento que busca na interiorização do investimento transformar partes da região do semiárido em uma das principais plataformas de beneficiamento e exportação de commodities e insumos primários, bem como encontrar setores capazes de absorver e valorizar o montante de capitais disponíveis no sistema financeiro, organizando-se verdadeiras redes técnicas de irrigação, eletrificação, armazenagem, transportes e telecomunicações que, em conjunto, produzirão um estreitamento das relações campo-cidade via o espraiamento de sistemas técnicos, objetos, serviços e relações de trabalho típicos das regiões urbano-industriais do país (urbanização extensiva) sobre as áreas diretamente afetadas pelo projeto, bem como qualificação e (ou) reforço das cidades da região como cidades do agronegócio (....). Do ponto de vista espacial o que se projeta é, por um lado, a expansão do agronegócio e dos sistemas técnicos típicos da atual fase da economia globalizada; por outro lado, um investimento extremamente seletivo que acarretará profundas requalificações e mudança na hierarquia dos lugares – e da própria região, no interior da divisão territorial do trabalho nacional (RODRIGUES, 2020, p. 20).

 

Conforme se pode entender a partir dos informes oficiais do projeto (BRASIL, 2008; BRASIL, 2011; BRASIL, 2017; CODEVASF, 2018) e do conjunto de documentos produzidos referentes ao plano de integração de bacias (BRASIL, 2004; BRASIL, 2005a; BRASIL, 2005b; BRASIL, 2005c; BRASIL, 2005d), tal projeto estrutura-se como um plano de novo ordenamento econômico e territorial que justifica o “estratégico” na concepção dos agentes que o impuseram, qual seja, integrar as bacias hidrográficas regionais e combater a seca – considerando-a como fator principal, por vezes único, das rebaixadas condições materiais e de vida da população sertaneja –, dentro de uma concepção conhecida como hidráulica de solução.

Este tipo de diagnóstico que, de maneira intencional, associa os elementos mais proeminentemente subdesenvolvidos da civilização material nordestina às condições climáticas e pedológicas ditas “desfavoráveis” tem sido a tônica das políticas territoriais na região do semiárido brasileiro (SAB), o que demanda, consequentemente, intervenções que favoreçam modelos de desenvolvimento baseados em soluções hídricas e hidráulicas, os quais beneficiam grandes proprietários de terras, políticos e elites empresariais regionais. 

O grande problema deste diagnóstico não é tanto a desconsideração das muitas e grandes diferenças naturais e mesológicas do SAB – que, dada sua diversidade, requer modelos pontuais e diversificados tanto de convivência com o clima semiárido como de produção –, mas o escamoteamento da exploração da seca pelos grandes proprietários locais que controlam o acesso às terras e águas represadas, dominam a exploração dos recursos naturais e a aplicação de investimentos federais e estaduais de combate/minoramento da seca, bem como a comercialização da produção agrícola e seu financiamento.

O crescimento das atividades que têm na água um de seus mais importantes fatores – notadamente, a agroprodução de gêneros irrigados – como modelo de desenvolvimento, antes de se constituir em socorro ou resposta a demandas populares na região do semiárido brasileiro (SAB) é a estruturação de um sistema que tem como fundamento determinações da produção, do consumo e das finanças em sua fase mundializada (RODRIGUES, 2020).

Muito característico nesse sentido é o informe oficial do ex-secretário de infraestrutura hídrica do Ministério da Integração Nacional (2007-2010) e ex-Ministro da Integração Nacional (2010-2011), João Reis Santana Filho (2007), ao comentar o principal objetivo do PISF. De acordo com o autor, o projeto está relacionado ao “impulso de desenvolvimento da região semiárida”, ampliando sua integração com outras regiões (dentro e fora do país), “tendo como pressuposto básico a garantia hídrica para a região”. A apresentação desses elementos, ainda de acordo com o ministro, definiria os limites de ação do Projeto, a saber: “servir de apoio ao aumento da produção, de forma a superar a configuração de uma ‘economia sem produção’, tal como alguns autores percebem a face econômica do semiárido (...)” (SANTANA FILHO, 2007, p. 15; grifos no original).   

Verifica-se que o objetivo principal do PISF é a dinamização da economia regional e incorporação de novas áreas ao processo produtivo (e especulativo), via aumento e garantia de oferta hídrica, sem confrontação com os agentes hegemônicos da ordem política e econômica locais, sem criar ou garantir condições que favoreçam uma sociedade menos desigual (RODRIGUES, 2020).     

Neste sentido, pudemos constatar que tanto na comunicação oficial dos ministérios encarregados da execução das obras do PISF (Ministério da Integração e, atualmente, Ministério do Desenvolvimento Regional) como entre as burocracias e instituições que apoiam o projeto (BRASIL, 2004, 2005 e 2008)[1] são poucos os momentos em que os planos de transposição do rio São Francisco se referem à pequena e média produção agrícola ou agricultura familiar, sendo atividades consideradas beneficiárias do programa nos mesmos termos que a grande produção ou as atividades urbanas. 

Ainda mais grave, “não há qualquer menção à possibilidade de uma reforma agrária pautada em princípios agroecológicos e (ou) distributivos” (RODRIGUES e LUZ, 2018 apud RODRIGUES, 2020, p. 21) que poderia ser, ainda de acordo com os autores, “um dos principais indutores de uma política de elevação das condições de vida da população sertaneja e de combate aos efeitos da seca”. Ainda, prevê-se no Relatório de Impactos Ambientais (RIMA) “um aumento na procura das terras mais próximas e mais aptas para o cultivo”, e um “êxodo de pequenos produtores”, combinado a um aumento persistente e mesmo exagerado do valor dos imóveis rurais (BRASIL, 2004) sem considerar, contudo, esses elementos como fatores centrais ou característicos do projeto.

O Papel do Estado tem sido central na tradição de grandes obras hídricas no nordeste brasileiro; ainda o é em sua versão atualizada do qual o PISF é o sistema de engenharia mais completo e recente. Procurando responder à crescente demanda global por commodities, os governos recentes do Brasil – entre tantos outros na América Latina – reforçaram, e mesmo estimularam, uma matriz de desenvolvimento baseada em exportação de especialização produtiva (agromineral), incorporando terras e recursos naturais territorializados às cadeias de produção do agronegócio globalizado, bem como intensificando a exploração das “vantagens comparativas” dos territórios, por meio do aumento de sua produtividade, via incremento de sua composição técnica, onde quer que seja necessário (GUERREIRO, 2017).

Com Lula da Silva (2003-2010), este novo padrão de reprodução do capital, baseado em exploração e exportação de especialização produtiva – em linguagem proposta por Osório (2012a; 2012b) – consolidou o Brasil como potência em mineração e em monocultivos de gêneros tropicais. Convém ressaltar, seguindo Singer (2012), que a força da expansão mundial associada à valorização das commodities possibilitou ao Brasil, ainda no primeiro mandato do presidente Lula, um incremento de mais de 67% em seu ritmo de crescimento em relação ao governo anterior – compatibilizando, deste modo, os imperativos da economia em sua fase mundializada, que impõe ao país um “novo” papel na divisão internacional do trabalho, com crescimento interno e miragens desenvolvimentistas. 

Grande parte, pois, daquilo que ficou consagrado como economia política do lulismo – que se estende até os governos da presidente Dilma Rousseff (2011-2016) –, baseado em uma pacificação social e conciliação de classes sem questionamentos à ordem capitalista no país, com negociação de melhores condições de vida às classes trabalhadoras e ao subproletariado via políticas sociais e ações que emularam práticas e discursos nacionalistas do passado, encontrou espaço fiscal para sua realização no aprofundamento deste novo padrão de reprodução do capital, em um momento de excepcional alta nos preços das commodities[2].

O projeto de integração de bacias (PISF) foi concebido em meio a um discurso de combate à pobreza, em especial onde ela é mais forte: o Nordeste do Brasil. Reagindo ao imaginário popular e senso comum político que historicamente associam as rebaixadas condições de vida dos sertanejos com a seca – onde Lula conta com elementos biográficos[3] –, o presidente anuncia, em 2005, em mensagem ao Congresso Nacional, o Projeto de Integração do rio São Francisco com as bacias do semiárido nordestino – colocando-se na vanguarda do movimento de intervenção do Estado no semiárido, isto é, como realizador do maior e mais recente projeto de hidráulica de solução nordestino. 

Não obstante o grande número de propostas e modelos de desenvolvimento endógenos, baseados na generalização das chamadas tecnologias sociais hídricas[4], o PISF organizou-se no sentido de disponibilizar água em quantidades consideradas suficientes (segurança hídrica) para as diversas atividades econômicas e abastecimento (usos múltiplos), a partir do manejo de uma grande vazão aduzida (de 1% a 3% do volume do rio São Francisco) e integração com os demais objetos e sistemas de “hidráulica de solução” do semiárido brasileiro (sinergia hídrica) – portanto, como uma peça de desenvolvimento regional. 

As vazões transpostas pelo projeto para “múltiplos usos” ou “múltiplos propósitos”, conforme se observa no relatório “Projeto São Francisco” (CODEVASF, 2018), da empresa gestora do projeto (Companha de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e Parnaíba), significam, essencialmente, água para irrigação (53% do total) – desconsiderando qualquer outro uso “rural” que possam ter como, por exemplo, dessedentação humana e animal (ditas prioridades do projeto) – e apenas em um segundo e terceiro lugares distantes, abastecimento urbano (28%) e água para indústria (13%) nos estados atendidos pelo projeto (CE, PB, PE e RN).

Tais dados, associados à natureza da empresa responsável pela gestão do PISF – uma empresa de construção e gestão de perímetros irrigados (CODEVASF) –, revelam inequivocamente a vocação natural do projeto: “dinamização da atividade agrícola e incorporação de novas áreas ao processo produtivo”, conforme aponta seu próprio Relatório de Impactos Ambientais (BRASIL, 2004, p. 11). 

Como parte do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) – conjunto de medidas que tem como objetivo incrementar a produtividade em setores estratégicos, impulsionar a modernização produtiva e aquecer a economia do país, a fim de torná-lo mais competitivo em termos regionais e mesmo globais – as obras de transposição do rio São Francisco foram concebidas e se concretizaram, em linhas gerais, a partir de um discurso dualista onde o setor moderno (agronegócio) deve ser livre para crescer tão rapidamente quanto possível e, assim, promover uma dinâmica onde o “crescimento” absorva os meios de produção e relações sociais do setor tradicional da economia sertaneja – dito arcaico, com pouco ou nenhum uso de insumos modernos e excedentes (BRASIL, 2011; SANTANA FILHO, 2007).

As contradições que eventualmente surgirem com a implantação deste processo, por seu turno, devem ser consideradas – na lógica de seus idealizadores e defensores – como um problema momentâneo, decorrente mais da pouca presença dos setores modernizados ou “ajustados” introduzidos pelo projeto do que de uma natureza supostamente excludente de tal modelo de crescimento, não devendo, pois, servir de justificativa para seu impedimento.

Neste contexto, propõem-se entender o Projeto de Integração do rio São Francisco com Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional (PISF), enquanto sistema técnico que tem como fundamento as demandas da produção e consumo em sua fase mundializada – emulando um padrão de crescimento e inserção já presentes no vale do rio São Francisco (RIDE Petrolina - Juazeiro e MATOPIBA) – não obstante seu discurso desenvolvimentista e regionalista. 

Trata-se de um modelo de desenvolvimento que busca, essencialmente, transformar partes da região do semiárido em uma plataforma de produção e exportação de commodities, insumos primários e industriais de baixo valor agregado – articulando-as às áreas de expansão do agronegócio no cerrado nordestino, e às chamadas Zonas de Processamento de Exportações (ZPE) do Nordeste. De igual maneira, dado o elevado grau de financeirização da economia brasileira, em especial de seu mercado de terras, é um projeto que também busca absorver e valorizar o montante de capitais especulativos disponíveis, bem como diversificar a carteira de projetos e investimentos de incorporadoras e fundos imobiliários através da organização e produção do espaço vivido e habitado que, entre outros fatores, produzirão um estreitamento das relações campo-cidade via o espraiamento de sistemas técnicos, objetos, serviços e relações de trabalho típicos das regiões urbano-industriais do país (urbanização extensiva) sobre as áreas diretamente afetadas pelo projeto, bem como qualificação e (ou) reforço das cidades da região como cidades do agronegócio (RODRIGUES, 2020).

3. Urbanização e “ajustes” territoriais a partir do PISF: o exemplo de Salgueiro e entorno 

Proposta como uma região de planejamento, desenvolvimento e aportes estratégicos pela Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) e pela Agência Estadual de Planejamento e Pesquisa de Pernambuco (CONDEPE/FIDEM), em função da “grande concentração de investimentos públicos, com importantes projetos de infraestrutura” entre os anos de 2007 e 2014 (PERNAMBUCO, 2017, p. 06), a Região de Salgueiro e entorno é composta por municípios pertencentes a duas Regiões Geográficas Imediatas (IBGE, 2017), compreendendo uma extensão territorial de 13. 556,57 km² (Figura 1).

Figura 1: Região de Salgueiro e entorno

Fonte: RODRIGUES, 2020, p. 98.

A condição de Salgueiro no interior de sua região é de município primaz; possui uma localização singular em relação aos dois vetores de conexão macrorregionais nas direções Norte-Sul e Leste-Oeste (o cruzamento das rodovias BR-232 e BR-116). O que fortalece mais sua vocação de cidade-polo são a localização da ferrovia Nova Transnordestina e o Eixo Norte do Projeto de Integração do Rio São Francisco com Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional (PISF), principais projetos estruturantes que atravessam seu território (Figura 2).

Figura 2: Equipamentos e projetos de infraestrutura.

Fonte: PERNAMBUCO, 2017, p. 40.

O “entorno” do município de Salgueiro é responsável pela maior parte do produto agropecuário do território, destacando-se a produção de frutas, grãos e a caprinocultura em pequenas e médias propriedades (COELHO et. al., 2015). A dinâmica econômica traçada a partir do valor adicionado bruto (VAB) da região (PERNAMBUCO, 2017; IBGE, 2017; COELHO et. al. 2015), confere aos municípios do entorno uma vocação evidentemente agropecuária – em contraste com a economia de Salgueiro, mais diversificada e centrada nos setores de comércio, serviço e indústria da construção civil.

Quando procuramos avaliar os impactos do projeto de integração de bacias nas regiões que alcança, dois períodos precisam ser considerados. Um primeiro, entre os anos de 2007-2012, marcado por uma etapa de crescimento acelerado, decorrente, sobretudo, da implantação de obras de infraestruturas e investimentos públicos e privados – que no caso de Salgueiro e entorno proporcionou taxas de crescimento superiores da média estadual (entre os anos de realização do principal das obras do PISF, entre 2007 e 2011, a taxa de crescimento do produto interno bruto foi de 14,5% ao ano, enquanto o produto estadual cresceu à taxa de 4,5% a.a.) – bem como de uma crescente diversificação na qualidade do valor adicionado bruto (VAB) regional, impulsionando o crescimento do segmento industrial (construção civil) que saltou de 10,0% para 30,5% do VAB em Salgueiro, e ampliação dos setores de comércio e serviço, especialmente transporte, alojamento, alimentação, educação e saúde, além de diversos segmentos do varejo (PERNAMBUCO, 2017, p. 19).

Um segundo período, iniciado em 2013 que vai até o momento, é marcado pela paralisação e mesmo reversão dos processos encaminhados no período anterior. Atingida diretamente pelos efeitos da agenda nacional anticorrupção, da operação Lava Jato e seus impactos sobre as empreiteiras brasileiras, bem como pela queda dos preços internacionais das commodities – que, simultaneamente, permitiram conciliar neoliberalismo e inserção internacional via reprimarização das pautas exportadoras com uma linguagem neodesenvolvimentista, de forte apelo trabalhista e mesmo nacionalista – a região de Salgueiro e entorno encontra-se imersa em uma crise de novo tipo, baseada em custo econômico de paralisação de projetos[5] – tornando-se a maior e, por hora, mais duradoura transformação ocasionada pelas obras de integração de bacias em seu território.

3.1 A primeira fase de extensão territorial em forma de uma “proto-urbanização”[6]

Na primeira fase de transformações a partir das obras do PISF, a região de Salgueiro e entorno se encaminhou, entre os anos de 2007-2012, para um forte incremento de seu potencial produtivo. Conforme esclarece Rodrigues (2020, p. 104), as transformações impostas a Salgueiro e entorno, como consequência direta das obras de transposição do rio São Francisco, essencialmente se dão “na intervenção do Estado sobre seu rebaixado nível e diversidade de meios de produção – um movimento de criação e incremento da composição constante de capital em grande escala”. Deste modo, o aumento no nível das forças produtivas locais agiu, simultaneamente, no sentido de aumentar o grau de interação da economia com o fenômeno tecnológico – interação técnica e econômica, na linguagem proposta por Silva Neto (2002) – e de mudanças no processo de urbanização e de organização regional vigentes.

Entre os principais equipamentos e projetos concebidos e instalados na área hídrica nesta primeira fase, destacam-se a construção de canais, a instalação de perímetros irrigados para lavouras, sistemas de integração das águas transpostas com os açudes e barragens, bem como aportes obtidos em saneamento básico (41,18 milhões), de acordo com Agência Estadual de Planejamento e Pesquisas de Pernambuco (PERNAMBUCO, 2017, p. 14). 

Investimentos que procuram reforçar o já proeminente papel de entroncamento e articulação de Salgueiro, dentro de uma visão que os associa à consecução do agronegócio em áreas do interior nordestino, também foram realizados e foram representados nos projetos de construção da Plataforma Logística Multimodal Miguel Arraes(grande conjunto de instalações de centrais de cargas rodoviárias, sedes de operadoras de logística, estação de armazenagem aduaneira) e da estrada de ferro Nova Transnordestina – que, em áreas do município de Salgueiro, conta com estruturas de arranjo e derivação de seus ramais, ligando-os aos centros portuário-industriais de Pecém (CE) e Suape (PE). 

Como consequência deste conjunto de projetos estruturantes, insinuou-se a partir dos investimentos e crescimento em Salgueiro um tipo de “função urbana” que inaugura ou reforça seu papel de apoio e intermediação de serviços e comércio que os empreendimentos do agronegócio globalizados demandam para financiar, produzir e fazer circular seus produtos; uma transformação onde crescentemente passa a realizar as condições gerais da reprodução do capital do agronegócio – neste caso, funções ligadas à agrologística de transporte e armazenamento[7] –, capaz de imprimir racionalidade, fluidez e velocidade condizentes com o potencial produtivo que estará disponível a partir do projeto de integração de bacias (PISF) em “sua” região e mesmo em circuitos de produção primário-exportadores mais amplos – permitindo à cidade adquirir contornos de uma cidade do agronegócio, nos termos propostos por Elias (2006 e 2017).

Entre 2010 e 2013 observa-se que Salgueiro se qualifica no sentido de tornar-se local de realização de parte das atividades da cadeia produtiva de valor do agronegócio – seja de relações próximas ou distantes do município – pois, crescentemente, organiza-se como ponto de concentração de serviços, produtos e agentes necessários à agroprodução, bem como centro privilegiado de armazenagem, distribuição e transporte para círculos mais amplos – conforme atestam alguns dos projetos estruturantes em curso no município –, associado a uma relevante infraestrutura rodoviária, já consolidada, mas também em fase de modernização (...). Por força do estágio ainda inacabado dos projetos estruturantes que cingem a região – todos, aliás, em atenção às demandas do agronegócio –, as funções de atendimento às necessidades do campo moderno ainda não são hegemônicas no conjunto de sua economia, porém “as ações estratégicas para o Desenvolvimento Econômico de Salgueiro”, conforme esclarece seu Plano Diretor (SALGUEIRO, 2008, p. 03-04), priorizam este modelo de crescimento, isto é, a ampliação e consolidação das infraestruturas e serviços ligados à agrologística e ao “potencial produtivo que estará disponível a partir do Projeto de Integração do Rio São Francisco com Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional – PISF, com especial atenção à gestão dos recursos hídricos dos açudes, dos cursos d’água e das águas subterrâneas do município”, bem como “o desenvolvimento tecnológico correspondente à possibilidade de aplicação de novas técnicas e processos para o aumento da produtividade na agricultura”.  Não queremos dizer com isto que o crescimento urbano de Salgueiro e a reestruturação técnico-produtiva de seu “entorno” no sentido de transformá-las, respectivamente, em cidade do agronegócio e região produtiva do agronegócio (...) estão inscritos na ordem necessária das coisas, como um fenômeno inexorável. O que buscamos ressaltar é que tomadas de decisão nesta direção – obtidas a partir do elevado incremento na interação técnica e econômica de Salgueiro e entorno, proporcionadas pelos projetos estruturantes – já foram dadas, bem como racionalizadas como modelo de desenvolvimento (...) (RODRIGUES, 2020, p. 109-111).

 

Ainda no interior desse processo, temos que a grande realocação da população sertaneja atingida pelas obras do PISF em “agrovilas” no interior de Salgueiro e entorno são dados importantes aos quais precisamos nos ater como elementos que marcam uma nova dinâmica da urbanização nessa região. A constituição de um relevante número das chamadas Vilas Produtivas Rurais (VPR), distribuídas ao longo do Eixo Norte do projeto de integração de bacias, morfologicamente e sob a ótica da adoção de novos modos de vida, trabalho e consumo (“cotidiano”) alteram a configuração do tecido urbano e da relação de suas partes – podendo ser explicadas a partir da noção de urbanização extensiva.

Conforme esclarece Rodrigues (2020, p. 112), seguindo Monte-Mór (2006), tais vilas fisicamente formam manchas urbanas ou pontos urbanizados dispersos pelo campo, integrados a partir de grandes eixos rodoviários entre si e a sede municipal, funcionando como partes de uma única cidade; sob a ótica da adoção do “cotidiano urbano” pela população reassentada passam a ser locais onde cresce o exercício de novas atividades não-agrícolas, relacionadas à incorporação do modo de vida urbano – em especial, a possibilidade de obtenção de renda da terraem sua modalidade urbana, nas formas de ampliação da moradia, aluguel, turismo e lazer a partir dos lotes recebidos pelos reassentados.

As VPR constituem-se em sítios estruturados pelo Ministério da Interação Nacional que contam com casas de 99 m² em lotes de meio hectare, além de postos de saúde, escolas, praças, quadras poliesportivas, campo de futebol, centro comunitário, rede de água, esgoto, energia elétrica e setores produtivos comerciais e agropecuários (com no mínimo cinco hectares por beneficiário, sendo um destinado à irrigação). 

As VPR são resultado do processo de retirada da população residente na faixa de obras do empreendimento para realocação em novas áreas, ou para áreas remanescentes das propriedades afetadas. De acordo com informações do Programa de Reassentamento de Populações (BRASIL, 2005c, p. 3), ao todo foram construídas 18 vilas ao longo dos Eixos Norte e Leste, para o reassentamento de 273 famílias proprietárias e 572 famílias não proprietárias, totalizando 845 famílias.

Do ponto de vista da produção material do espaço, estas agrovilas possuem importante papel na reestruturação urbana dos municípios onde foram implantadas, também porque reorientam o sentido para onde as cidades crescem – já que se localizam, em geral, distantes das sedes de municípios –, agindo como espécie de extensores urbanos[8] (Figura 3). Por ocuparem linearmente os eixos de transposição das águas, potencialmente acirram a disputa pelas terras alcançadas pelos sistemas de regadio, bem como agem no reforço de atração demográfica para estas áreas, sobretudo porque disponibilizam equipamentos urbanos e sociais em uma região carente desses recursos[9].

Em tais vilas, conforme observa Rodrigues (2020), um grande número de famílias têm aplicado recursos na ampliação da casa que receberam pelos programas de realocação, bem como na construção de outras casas nos lotes originalmente destinados à produção agropecuária; tais empreendimentos buscam atrair ou fixar membros de suas famílias no local, mas também obter renda com locação imobiliária – em um claro flagrante de obtenção da renda da terra em sua face urbana, “desruralizando” estas comunidades. Conforme esclarece o autor,

As chamadas Vilas Produtivas Rurais (VPR) atendem a cada uma das características daquilo que estamos a descrever, a partir de Roberto Monte-Mór (1994 e 2006), como urbanização extensiva: fisicamente, formam manchas urbanas ou pontos urbanizados dispersos pelo campo, integrados a partir de grandes eixos de transporte entre si e a sede municipal, como partes de uma única cidade “mediante a expansão da base material requerida pela sociedade e pela economia contemporâneas” (MONTE-MOR 2006, p. 17); sob a ótica da adoção de novos modos de vida, trabalho e consumo (“cotidiano”) pela população, passam a ser locais onde cresce o exercício de novas atividades não-agrícolas, relacionadas à incorporação do modo de vida urbano – em especial, a possibilidade de obtenção de renda da terra em sua modalidade urbana, nas formas de ampliação da moradia, aluguel, turismo e lazer a partir dos lotes recebidos pelos reassentados (RODRIGUES, 2020, p. 112).

 

Na região de Salgueiro e entorno, encontram-se ao todo sete VPR, sendo quatro Vilas Produtivas Rurais em território de Salgueiro (VPR de Negreiros, Uri, Queimada Grande e Malícia) e duas vilas produtivas próximas de seus limites municipais, a saber, VPR de Pilões e Baixio dos Grandes, respectivamente, nos municípios de Verdejante e Cabrobó. Há, ainda, a VPR de Captação, distante de Salgueiro, no município de Cabrobó, no vale do rio São Francisco.

Figura 3: Vilas Produtivas Rurais (VPR) em Salgueiro e entorno

Fonte: BRASIL, 2017.

De igual maneira, o processo de retirada da população residente na faixa de obras do PISF para novas áreas também afetou as sedes de municípios, por ocasião da migração temporária e definitiva de pessoas da área rural para urbana, incrementando seu processo de urbanização. Parte considerável das pessoas que aguardavam a construção das VPR permaneceram nas cidades, após a conclusão das obras – em especial as pessoas mais jovens, não obstante a dificuldade de adaptação em ambiente urbano de idosos e uma parte dos agricultores[10]. Algumas comunidades rurais que não foram realocadas em vilas produtivas entraram em processo de desaparecimento, dando lugar a equipamentos e objetos técnicos do projeto de transposição, com boa parte de seus antigos moradores migrando para as zonas urbanas de seus municípios[11].

3.2 Paralização e parcial desmanche dos processos na segunda fase pós 2013

Desse modo, o conjunto de transformações referentes à primeira fase de implantação do PISF (2007-2013) apontou para a consolidação de Salgueiro e seu entorno como polo de interiorização do desenvolvimento de Pernambuco. As transformações observadas foram no sentido de crescimento das cidades e do tecido urbano sobre o território ao mesmo tempo em que apontaram para o fortalecimento de Salgueiro como centro logístico e de racionalização da circulação de mercadorias e serviços do agronegócio em “sua” região e mesmo em áreas mais distantes do nordeste brasileiro, em especial de suas áreas de cerrado (MATOPIBA). Não obstante esses fenômenos, Salgueiro e entorno desde 2013 e, em especial, a partir de 2016, foi diretamente atingido pela agenda anticorrupção da Operação Lava Jato e do reestabelecimento das condições típica e estritamente neoliberais com o impedimento da presidente Dilma Rousseff e retirada do Partido dos Trabalhadores do poder, em lugar do pacto conservador e reformismo fraco[12] que vigorou até então.

A partir desse momento, na região, o desmanche do modelo de desenvolvimento adotado pelo lulismoproduziu uma paralisação e posterior reversão do crescimento e reestruturação econômica de Salgueiro e dos municípios ao seu redor. Ao acréscimo de até 30 milhões de toneladas por ano de minérios e grãos distribuídos, armazenados e negociados a partir dos grandes projetos logísticos de Salgueiro, bem como a adequação e requalificação das zonas rurais da região em áreas crescentemente produtivas, em função dos sistemas hídricos do PISF, foram interrompidos parcial ou totalmente[13].

Conforme esclarece Correia (2018), o avanço indicado na região, a partir do conjunto de obras estruturantes do PISF e outras obras do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), que em Salgueiro viveu seus dias mais prósperos entre 2007-2013, sucumbiram ao ritmo do reordenamento político e econômico da Operação Lava Jato e do processo de Impeachment da então presidente Dilma Rousseff (2011-2016).  O forte ânimo conferido ao crescimento do mercado de trabalho local – atraindo profissionais de vários estados, promovendo rápido aumento de renda e demanda por produtos e serviços –, e o acelerado incremento na arrecadação municipal e na composição técnica e orgânica do capital em Salgueiro e entorno foi marcado crescentemente, a partir de 2013, pela estagnação e mesmo reversão dos processos surgidos no primeiro período. 

A operação Lava Jato, descrita por vários analistas como a desarticulação dos mecanismos de proteção que resguardavam às empresas brasileiras o mercado doméstico de obras e serviços de engenharia[14] – uma verdadeira desnacionalização do setor de construção civil –, fez de Salgueiro “o espelho da história de sonhos desconstruídos do Brasil na última década” (CORREIA, 2018, s/n). Os novos horizontes que se abriram na região a partir dos projetos de infraestrutura, prossegue a autora, incentivaram investimentos altos dos empresários locais sem, contudo, concretizarem-se, inaugurando “uma onda de desemprego e de falências de empresas [que] derrubou a economia local, que ainda não se recuperou do baque”.

O rastro de prejuízos, apenas no município de Salgueiro, pode ser medido tanto em termos da situação orçamentária da prefeitura e de empresas endividadas ou falidas como em número de desempregados. Dados disponibilizados por Correia (2018, s/n), indicam que a arrecadação municipal de Salgueiro registrou queda de 66% desde 2015, bem como dívidas deixadas pela Mendes Júnior – empresa responsável pelas obras do PISF na região – na ordem de R$ 5 milhões ao município e de, ao menos, R$ 100 milhões junto aos setores de comércio e serviço local. 

Em relação ao número de desempregados, segundo o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados, de recordista na geração de empregos em Pernambuco em 2010 – com 5.273 postos de trabalhos criados neste ano (CAGED, 2010) –, Salgueiro foi parar em quarto lugar no ranking das cidades que mais demitiram no país em 2013, com a perda de 3.402 postos de trabalho formais no acumulado deste ano (CAGED, 2013) – resultados que se repetem até a presente data[15].

Até o momento, as tendências observadas na qualificação de Salgueiro como cidade do agronegócio – via incremento de sua vocação logística e diversificação de seu setor de serviços e comércio auxiliares às atividades no campo – foram interrompidas, assim como nos demais municípios da região a consecução das condições necessárias para seu desenvolvimento agrícola e pecuário – no sentido de torná-los aptos à organização de uma agropecuária em modelos industriais e comerciais modernos – não se concretizaram; permanecem à espera da conclusão das obras do PISF, do qual são dependentes qualquer outro investimento em infraestrutura de hidráulica de solução e projeto de diversificação produtiva – notadamente aqueles ancorados em consecução de perímetros irrigados.

A inauguração dos trechos do Eixo Norte do PISF entre Salgueiro e entorno (PE) e Jati (CE) em Julho de 2020 pode significar o início de uma reversão deste quadro, a depender da retomada dos investimentos em obras hídricas complementares – açudes, ramais de derivação de água dos eixos principais e novos sistemas adutores – e nos setores produtivos delas dependentes, bem como de um reaquecimento da demanda por bens e serviços produzidos nestes locais, via recomposição de seus preços em mercados mais amplos. A depender da qualidade e escala destes fenômenos, estaremos ou não diante de uma nova fase de reestruturação do espaço urbano e regional no sertão pernambucano, que encontra no projeto de integração do rio São Francisco com bacias no Nordeste Setentrional seu ponto de apoio e sentido como arranjo produtivo.   

4. Conclusão

Nos governos Lula da Silva (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2016) o modelo de crescimento que vigorou no Brasil foi um reforço à estruturação de um conjunto de novos arranjos territoriais produtivos, a partir de grandes projetos de infraestrutura econômica de enormes implicações socioespaciais. Estes empreendimentos são alguns dos elementos que no período em tela “endogeneizaram” os imperativos da acumulação capitalista em sua esfera global.   

Propomos que tais projetos, deste modo, possam ser entendidos como instrumentos importantes de articulação das forças produtivas, condizentes simultaneamente tanto com as forças mundializadas da economia de mercado (globalização), como com a linguagem desenvolvimentista e regionalista dos agentes e setores nacionais ligados à consecução do PISF. 

Algumas das implicações socioespaciais, das quais o PISF é portador enquanto grande projeto de investimento, podem ser descritas como incorporação de áreas do semiárido aos circuitos espaciais de produção do agronegócio globalizado e de inserção com o restante do país e do mundo, a partir de um padrão de exportação de especialização produtiva agromineral, com expressiva modernização e concentração de meios de produção no campo e urbanização de seu território, produzindo os fenômenos da urbanização extensiva e surgimento de cidades do agronegócio – ambos processos iniciados na região de Salgueiro e entorno entre os anos de 2007-2012. 

Como resultado do desmonte do projeto nacional encabeçado pelo Partido dos Trabalhadores, em sua maioria ancorados na realização de grandes projetos de infraestrutura e na política de favorecimento das “campeãs nacionais”, observou-se no período de 2013 em diante a interrupção parcial ou total das obras e inversões na região estudada – impondo ao nível do território uma forte crise do tipo custo econômico de paralisação de projetos.

A aliança que, em esfera nacional, se organizou para colocar fim à política de coalizão de classes e reformismo fraco – reestabelecendo as condições de reprodução do capitalismo à brasileira, superexplorador do trabalho e avesso a qualquer coalizão e concessão de classes a longo e médio prazos –, via Operação Lava Jato, impeachment e desmonte do segmento da construção civil, repercutiu de maneira tão forte e generalizada sobre Salgueiro e entorno que as inversões feitas em seu território não se viabilizaram por completo, podendo mesmo serem observados processos de regressão em algumas transformações iniciadas em sua primeira fase, em especial sua reorganização em termos de uma cidade de racionalização e comando regional. 

Todavia, dada a prevalência do novo padrão de especialização produtiva (OSÓRIO, 2012a; 2012b), infere-se que, aos primeiros sinais de alta nos preços das commodities e da demanda internacional, a reativação dos grandes projetos de infraestrutura voltados à agrologística, em Salgueiro, e à agricultura de regadio em bases industriais e comerciais modernas nos municípios do “entorno”, tendam a se tornar, novamente, prioridades do ponto de vista das estratégias de desenvolvimento do estado na região e da valorização do capital nestes setores – apagando, todavia, os rastros e concessões de uma insuficiente, porém efetiva, política de coalizões e reformismo, estabelecendo apenas os imperativos de uma “competição repressora” do mercado e das finanças globais pelas terras e recursos naturais territorializados (tendência que parece se insinuar com as recentes intervenções do governo federal, sob o comando do presidente Jair Bolsonaro, na região do semiárido brasileiro).

 

[1] Cf. Comunicações oficiais do Departamento Nacional de Obras contra Seca (DNOCS) <http://www.dnocs.gov.br/> Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) <http://www.sudene.gov.br/> e Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e Parnaíba (CODEVASF) <http://www.codesvasf.gov.br/>.

[2] Cf. SINGER, A. (2012) Os sentidos do Lulismo: reforma gradual e pacto conservador e CARVALHO, L. (2018) Valsa Brasileira. Do Boom ao caos econômico.

[3] Cf. “Eu sei o que é carregar pote de água na cabeça”. Partido dos Trabalhadores, 28. Ago. 2017. Disponível em: <http://www.pt.org.br/eu-sei-o-que-e-carregar-pote-de-agua-na-cabeca-diz-lula/> Acesso: 15 Dez. 2018.

[4]  Objetos e sistemas técnicos de pequeno e médio porte, concebidos a partir das necessidades das comunidades que os utilizam, descentralizados, de baixo custo e ambientalmente adequados ao ambiente. Cf. ASA BRASIL. Disponível em: <https://www.asabrasil.org.br/> Acesso: 20 Fev.2020.

[5] Trata-se de um custo de oportunidade dos recursos investidos no projeto, que permaneceram até recentemente sem gerar benefícios à sociedade, associado aos prejuízos causados pela depreciação das instalações de canais e de açudes construídos, porém, subutilizados ou sequer usados (RODRIGUES, 2020).

[6] Ao se referir a seus estudos sobre Rondônia e sul do Pará, Monte-Mor (1994) menciona que novas formas de urbanização lá encontradas devem ser chamadas de “protourbanas” por “serem manifestações incompletas do padrão urbano-industrial que caracteriza as vidas contemporâneas nacionais e regionais”. Apesar de poderem ser compreendidas com formas de urbanização extensiva, não são resultado do processo dialético da implosão/explosão de cidades, especialmente de metrópoles.

[7] Agrologística, aqui, refere-se ao segmento empresarial, não apenas ao conjunto de infraestruturas, que se ocupa do transporte, armazenagem e distribuição de produtos e insumos da agroindústria e da mineração, bem como de serviços associados. 

 

[8] Objetos ou conjunto de equipamentos que direcionam/induzem o crescimento das cidades, integrando seus núcleos secundários. Tais infraestruturas variam em termos de formas, funções e dimensões, apresentando semelhança quanto à expansão das cidades em sua direção (SILVA NETO, 1990, p. 14).

[9] Cf. Obras de transposição modifica jeito de viver no interior de Pernambuco e Paraíba. Portal G1 de notícias. Disponível em: <http://g1.globo.com/pernambuco/noticia/2012/02/obra-da-transposicao-modifica-jeito-de-viver-dos-sertanejos-de-pe-e-pb.html>. Acesso em: 21 Jan. 2019. 

[10] Cf. COUTINHO, Katherine. Desapropriados pela transposição têm adaptação difícil à vida na cidade. Portal G1 de notícias. Dezembro de 2014. Disponível em: <http://g1.globo.com/pernambuco/noticia/2014/12/desapropriados-pela-transposicao-tem-adaptacao-dificil-vida-na-cidade.html> Acesso em:  21 Jan. 2019. 

[11] Cf. Obras de transposição modifica jeito de viver no interior de Pernambuco e Paraíba. Portal G1 de notícias. Fevereiro de 2012. Disponível em: http://g1.globo.com/pernambuco/noticia/2012/02/obra-da-transposicao-modifica-jeito-de-viver-dos-sertanejos-de-pe-e-pb.html. Acesso em: 21 Jan. 2019 

 

[12] Projeto nacional, fortemente ancorado em conjuntura internacional favorável ao Brasil, baseada na adoção de um conjunto de “políticas para redução da pobreza – com destaque para o combate à miséria – e para ativação do mercado interno, sem confronto com o capital” (SINGER, 2012, p. 13; grifos no original). 

[13] Apenas recentemente, entre os anos de 2019 e 2020, foram retomados alguns projetos de infraestrutura já iniciados, em especial o trecho norte do PISF, entre os estados do Ceará e Pernambuco, entregue em Julho 2020.

[14] Cf. Balanço Econômico da Lava Jato. Jornal dos Economistas. Conselho Regional de Economia do Rio de Janeiro – CORECON/ RJ, Edição nº 360, Agosto de 2019.

[15] Cf. Ministério do Trabalho (MT). Evolução do Emprego do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados. Disponível em: <http://portalfat.mte.gov.br/cadastro-geral-de-empregados-e-desempregados-caged/> Acesso em: 28 Fev. de 2019.

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