Políticas públicas no contexto pandêmico: Um estudo da região metropolitana de Curitiba


Maria Tarcisa Silva Bega
Doutorado em Sociologia pela Universidade de São Paulo, Professora do Mestrado Profissional de Sociologia em Rede Nacional (PROFSOCIO) e do Programa de Pós-Graduação de Sociologia (PGSOCIO) da Universidade Federal do Paraná.

Luiz Belmiro Teixeira
Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná, Professor do Instituto Federal do Paraná no campus Paranaguá

Marcelo Nogueira de Souza
Doutor em Sociologia, pesquisador PNPD/Capes no Programa de Pós-graduação em Sociologia na UFPR

Marisete Hoffmann Horochovski
Doutora em Sociologia, Professora do Mestrado Profissional de Sociologia em Rede Nacional (PROFSOCIO) e do Programa de Pós-Graduação de Sociologia (PGSOCIO) da Universidade Federal do Paraná.

Referências

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1. Introdução

O presente artigo objetiva apresentar, à luz dos dados empíricos, como os poderes locais da grande Curitiba e o estadual produziram políticas públicas de gestão da pandemia do novo coronavírus, desde março de 2020 a agosto de 2021[1]. As ações públicas selecionadas foram expressas por meio de atos normativos na área das políticas de saúde[2] e para tanto monitoramos os dados epidemiológicos divulgados pela Secretaria Estadual de Saúde do estado do Paraná (SESA), bem como as legislações elaboradas pelas gestões municipais e estadual que versam sobre as medidas de enfrentamento, além de atentarmos para a violação de direitos básicos no contexto pandêmico. 

            A Região Metropolitana de Curitiba é composta por 29 municípios que possuem conjuntamente uma população estimada em 3.615.027 habitantes (IBGE, 2020). A capital paranaense é a maior cidade, com população de 1.912.757 habitantes, e detém centralidade política, socioeconômica e na prestação de serviços, incluindo os de saúde. Junto com outras 12 cidades localizadas em seu entorno, forma o Núcleo Urbano Central (NUC) e a Área de Concentração de População (ACP) de Curitiba, definida pela Região de Influência das Cidades – REGIC (IBGE, 2008). Estes 13 municípios cobrem uma área de 1.250 km², com aproximadamente três milhões de habitantes, que correspondem a 93% da população da RMC (ANTP, 2012). A Região Metropolitana coincide com a Segunda Regional de Saúde do Paraná e abarca os dois municípios que apresentam, respectivamente, o melhor e o pior Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) do estado: Curitiba (0,823) e Doutor Ulysses (0,546).

Neste cenário, analisamos as políticas públicas de enfrentamento à pandemia, que visavam sobretudo promover o distanciamento social e o isolamento/monitoramento dos casos suspeitos, mensurando seus impactos no ritmo de disseminação do novo coronavírus e dos óbitos provocados pela Covid-19 e refletindo sobre o lugar que a saúde pública ocupa no contexto do Brasil contemporâneo. Procuramos discutir as implicações dos marcos legais na modificação das ações práticas, tanto do Estado como da sociedade. 

Nossa hipótese opera em duas dimensões: a) há efetividade quando as decisões políticas convergem com os interesses empresariais; b) tais normas são transformadas em “letras mortas” quando não trazem mecanismos claros do que é permitido/proibido, inclusive as penalidades possíveis.  

O artigo está organizado em quatro partes, incluindo essa introdução. Na segunda apresentamos uma breve revisão teórica sobre políticas públicas no contexto federativo e a metodologia da pesquisa. Na sequência, nos debruçamos sobre a pandemia na RMC, destacando sua evolução em números de casos e óbitos, bem como as estratégias de gerenciamento adotadas pelos governos a partir de mecanismos legais e técnicos, que podem ser compreendidas pela gestão dos leitos hospitalares e pela linha do tempo de Curitiba. Nas considerações finais, ressaltamos os principais achados da pesquisa e as violações de direitos básicos. 

2. Políticas públicas no contexto federativo e o desenho da pesquisa na pandemia 

É tradicional a discussão no campo das políticas públicas sobre o pacto federativo e suas consequências. Sem a pretensão de uma revisão da grande literatura sobre o tema, tomamos como referência as análises de experiências em vários países (DAHL, 1989; LIJPHART, 2008; STEPAN, 1999) e a brasileira, em particular (ARRETCHE, 2013, 2012, 1996; FELICÌSSIMO, 1994; MELO, 1996; SOARES, 2016; SOUZA, 2013 e 2008). Há duas posições que atravessam a discussão e conformam a agenda política, no Brasil, após a Constituição de 1988. Por um lado, o entendimento do fortalecimento dos níveis subnacionais como um processo virtuoso, que não só robustece a democracia, como também produz uma maior eficiência alocativa no sistema de governo, produzindo uma leitura positiva da competição entre os estados federados. De outro, há uma crítica permanente de que estados e municípios são locais de clientelismo e ineficiência e que sua autonomização representa fonte de ingovernabilidade, imputando a eles irresponsabilidade fiscal que compromete os esforços de estabilização do governo central. 

Numa rápida contextualização histórica, este tema está presente na discussão entre conservadores e sociais democratas, desde o século XIX, atravessando todo o XX e ainda se mantém no XXI[3]. De Tocqueville a Hayek, passando por Buchanan, que são os teóricos conservadores, até se construir o paradigma pós-burocrático (mais moderno), a vertente conservadora enfatiza noções de estruturas mais horizontalizadas e cooperativas de governance em lugar de estruturas hierarquizadas. Já o campo analítico e empírico das perspectivas sociais democratas parte da experiência do socialismo municipal do início do século XX, mas as práticas pós-primeira guerra e acentuadas no pós-segunda guerra sempre privilegiaram a centralização. O melhor exemplo é o estado keynesiano, para os sociais democratas a centralização sempre foi entendida como requisito para a superação da desigualdade e pobreza. 

Desde o término da Segunda Guerra até a crise do petróleo, na década de 1970, os países europeus construíram o que ficou conhecido como o modelo de welfare state que operou em movimento brutal de centralização administrativa e política. Os governos locais foram destituídos de seu papel de provedor de serviços sociais. 

Mas, a partir dos anos 1970, o paradigma centralizado apresenta sinais de esgotamento como modelode organização do setor público. Surge aqui o consenso em torno da ideia de descentralização, tanto para conservadores como para sociais democratas. Também, foi ingrediente importante do elenco de reformas defendidas por governos neoliberais a partir da década de 1980, como na experiência inglesa. Por último, instituições multilaterais como o Banco Mundial, o FMI e o Banco Interamericano de Desenvolvimento, tornaram-se veículos de difusão em escala global da descentralização: a América Latina tornou-se um laboratório de experiências reformistas. 

A descentralização tornou-se a pedra de toque da agenda reformista da Nova República brasileira por duas razões: representar uma oposição à centralização do regime autoritário burocrático militar do período anterior; e estar presente no pensamento liberal de oposição ao regime. Esquerda e direita juntaram-se numa coalizão articulada que construiu um forte viés municipalista tanto na Constituição de 1988 como nas diversas propostas de política. São os princípios da descentralização que irão orientar a construção do texto constitucional, como pode ser evidenciado no artigo 1º e no 18º [4].

Portanto, quando tratamos de pacto federativo, neste artigo, referimo-nos às condições de coesão e integridade de uma federação, com as seguintes características: a) autonomia financeira: permitindo aos entes o exercício constitucional do poder político; b) autonomia administrativa: organização sem interferências externas ou sem se ater a modelos predeterminados; e c) autogoverno: possibilidade de escolha de seus líderes de forma independente.

Nesse sentido, na execução de políticas públicas, a questão do pacto federativo é essencial, na medida em que estados e municípios pautados pela autonomia financeira e administrativa e pelo autogoverno, podem acelerar, obstaculizar ou criar outros desenhos de políticas. Um dos modelos analíticos mais utilizados para entender a ação do governo é o chamado ciclo de políticas públicas que abarca alguns estágios fundamentais: identificação do problema, formação da agenda, formulação de alternativas, tomada de decisão, implementação, avaliação e extinção (SECCHI; COELHO; PIRES, 2019). Oliveira (2013) compila alguns desses elementos e destaca três momentos centrais no processo de políticas públicas: processo decisório, implementação e avaliação. 

O processo decisório congrega as fases iniciais, da identificação do problema como algo que pode (ou precisa) ser solucionado e entra na agenda governamental, para que ocorra a elaboração da política. Define-se as prioridades do governo e de acordo com o tipo de problema identificado, formula-se as alternativas para solucioná-lo. “A tomada de decisão representa o momento em que os interesses dos atores são equacionados e as intenções (objetivos e métodos) de enfrentamento de um problema público são explicitadas (SECCHI; COELHO; PIRES, 2019, p.65).

Após o processo decisório, a política passa a ser executada e produz seus primeiros resultados. A implementação das políticas públicas abre possibilidades de diferentes análises, que variam de acordo com a política em si e com a forma como ela é implantada, de forma top-dow (de cima para baixo) ou bottom-up (de baixo para cima). O desenho da política, seus objetivos, número de organizações e de atores envolvidos (visíveis e invisíveis), devem ser considerados na análise (OLIVEIRA, 2013). 

A avaliação, por sua vez, visa apurar os resultados da ação realizada, por meio da utilização de medidas de desempenho – insumos, resultados, impacto, produtividade, custos, satisfação do usuário, qualidade do serviço – que possibilitam verificar a eficiência, a eficácia e a efetividade da política implantada. Todavia, há problemas na avaliação devido a: falta de recursos humanos e/ou financeiros; dificuldades de mensurar determinadas áreas; falta de disposição política; e não reconhecimento de sua importância (OLIVEIRA, 2013). Problemas que podem levar ao questionamento da própria política. 

Guiamo-nos pelas reflexões sobre o federalismo e sobre os ciclos das políticas para apreender como os entes federados infra nacionais agiram ao tentar cumprir os princípios de justiça social, garantia de direitos, em especial os de saúde, na situação de emergência imposta pela pandemia da Covid-19. 

No nosso quadro analítico partimos da evidência de rompimento do pacto federativo no que tange ao encaminhamento do ente federado maior para o menor na definição das ações de distanciamento e restrições de circulação de bens e pessoas, menos por critérios científicos e mais por pautas político-ideológicas (neoliberalismo na economia e negacionismo nos costumes). Restou aos governadores e prefeitos recorrerem ao Supremo Tribunal Federal (STF) para legislar sobre a autonomia de estados e municípios na adoção de políticas próprias. 

Ou seja, os princípios basilares da CF nos seus artigos 1º e 18º (BRASIL, 1988) tiveram que ser reiterados pelo STF para que ações efetivas pudessem ser encaminhadas. Se num primeiro momento esta decisão deu as ferramentas para os poderes infra nacionais agirem, reforçou, por outro lado, a política de “lavar as mãos” do governo federal sobre os insucessos no combate à pandemia. Em outros termos, ela deixou de ser pauta nacional, restando aos outros poderes a responsabilidade executiva. Cada estado e município acabou decidindo pela política que estava ao seu alcance, no sabor das pressões dos interesses econômicos locais, e do cálculo eleitoral: afinal, apesar da pandemia, 2020 é ano de eleição municipal. Quando cada um faz o que acha correto, o risco de se errar no coletivo é grande. Este foi o quadro em que analisamos a ação dos governos municipais e estadual na Região Metropolitana de Curitiba, com destaque para a capital paranaense. 

Tendo tal conjuntura como locus de análise, monitoramos o ciclo das políticas públicas na RMC, considerando as legislações dos entes federativos (leis, decretos e instruções) para o enfrentamento da pandemia e os dados de contaminação e óbitos. Para viabilizar a coleta e análise dos dados, dividimos os municípios em cinco grupos: 1) Curitiba, que detém mais da metade da população (1.912.757 habitantes); 2) oito municípios do Núcleo Urbano Central (NUC) com mais de 100 mil habitantes, com estrutura urbana consolidada e maior independência da cidade polo (1.328.322 pessoas); 3) seis municípios do NUC de pequeno porte, com dependência de bens e serviços da capital (173.693 habitantes); 4) cinco municípios de pequeno porte, que constituem o segundo anel de proximidade de Curitiba (94.658 pessoas); 5) nove municípios que formam o terceiro anel de entorno da grande região de Curitiba, heterogêneos entre si e com pouca integração econômica com a capital (148.422 habitantes)[5].

Neste artigo, pelo grande volume de informações e heterogeneidade da região, destacamos duas dimensões de apropriação das informações: 1) a análise da evolução da pandemia na RMC; 2) o gerenciamento da pandemia, observando os mecanismos legais e técnicos utilizados estrategicamente pelos governos, por meio da análise da gestão dos leitos hospitalares do Sistema Único de Saúde na região e da linha do tempo de Curitiba[6]. Tal linha foi confeccionada considerando: os principais decretos do município que dizem respeito à pandemia; o número de casos e óbitos relatados nos boletins epidemiológicos; o intervalo de 14 dias definido pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como período máximo de incubação do coronavírus, da infecção até o surgimento dos primeiros sintomas, para avaliar o impacto das medidas. 

3. A pandemia na Região Metropolitana de Curitiba

3.1 A evolução da pandemia

            A pandemia da Covid-19 na RMC, foi se alastrando aos poucos, a partir de Curitiba que, no mês de março, apresentava 90 casos diagnosticados, com alguns outros casos nos municípios mais populosos, conforme Mapa 1. Já no mês de agosto de 2020, ilustrado no Mapa 2, a situação era bem diferente e a pandemia estava presente em toda a RMC.   

Os mapas 1 e 2 ilustram o primeiro e o último dos seis primeiros meses de pandemia na RMC[7], permitindo a visualização do seu alastramento no período. Ressaltamos, contudo, que o aumento exponencial do número de casos ocorreu no mês de julho, quando Curitiba passou de 5.178 para 19.326 casos confirmados (CURITIBA, 2020). O mês de agosto manteve essa tendência ascendente, fechando assim os primeiros seis meses: Curitiba com 32.972 casos; Araucária (3.134); São José dos Pinhais (2.765); Colombo (2.628); Campo Largo (2.619); Pinhais (2.414); Fazenda Rio Grande (1.958); Piraquara (1.719); Almirante Tamandaré (1.408). Em contrapartida, as cidades com menos casos confirmados até final de agosto eram: Tunas do Paraná (100); Agudos do Sul (69); Campo do Tenente (61); Piên (60); Dr. Ulysses (48). Em comum, estas cidades estão entre as mais afastadas e menos integradas ao NUC, algumas predominantemente rurais, evidenciando a influência que a cidade polo exerceu na transmissão do novo coronavírus. No geral, havia em 31 de agosto com 57.580 casos confirmados e 1.658 óbitos na RMC, atingindo todos os 29 municípios, após dois meses de intensificação da transmissão.

Conforme pode ser observado nos gráficos 1 a 4, a seguir, a curva de casos na RMC é tendencialmente ascendente, com momentos exponenciais (julho-agosto/20; dezembro e março de 2021). Os casos de óbitos ocorrem com a mesma tendência, em geral no mês seguinte aos picos da contaminação, confirmando outras análises e mesmo a posição da OMS que aponta um período entre 15 a 21 dias para as mortes se concretizarem após a contaminação.  Observa-se, no gráfico 4, que em junho/21 os óbitos aumentam, perdendo força somente em agosto, mesmo com a presença da vacinação: o número de mortos na RMC é de 1017 casos em julho/21, quase o dobro do primeiro pico de julho/20 (696) ou de janeiro/21 (712).  

 

Mapa 1:  Casos confirmados de Covid-19 por grupo de municípios na RMC – Março/2020

Fonte: Boletins epidemiológicos dos municípios da RMC; Paraná/SESA, 2020.

 

Mapa 2:  Casos confirmados de Covid-19 por grupo de municípios da RMC- Agosto/ 2020 

Fonte: Boletins epidemiológicos dos municípios da RMC; Paraná/SESA, 2020.

 

Gráfico 1 – Evolução acumulada de casos confirmados de Covid 19 na RMC – março/20 a agosto/21

 

Fonte: Boletins epidemiológicos (consolidados) coletados no último dia de cada mês- SESA/PR 

Nota: A elaboração de todos os gráficos é de autoria de Edivaldo Ramos de Oliveira 

 

Gráfico 2 – Casos confirmados de Covid 19, mês a mês, na RMC – março/20 a agosto/21

 

 

Fonte: Boletins epidemiológicos (consolidados) coletados no último dia de cada mês- SESA/PR 

 

Gráfico 3 – Evolução mensal acumulada de óbitos confirmados de Covid 19 na RMC – março/20 a agosto/21

 

 

Fonte: Boletins epidemiológicos (consolidados) coletados no último dia de cada mês- SESA/P

 

Gráfico 4 – Óbitos mensais por Covid 19 na RMC – março/20 a agosto/21

 

 

Fonte: Boletins epidemiológicos (consolidados) coletados no último dia de cada mês- SESA/PR 

 

Considerando que a cidade de Curitiba responde por mais da metade da população da RMC merece uma análise mais detalhada, no sentido de monitorar a disseminação da doença e ação do governo local. Ressaltamos que a cidade atingiu o patamar de mais de 10 mil casos em abril e maio de 2020, dobrando em agosto com mais de 20 mil novos casos/mês, conforme pode ser observado nos gráficos abaixo. 

Gráfico 5– Evolução acumulada de casos confirmados de Covid 19 em Curitiba – março/20 a agosto/21

 

 

Fonte: Boletins epidemiológicos (consolidados) coletados no último dia de cada mês- SESA/PR 

 

 

Gráfico 6 – Casos confirmados de Covid 19, mês a mês, em Curitiba – março/20 a agosto/21

 

Fonte: Boletins epidemiológicos (consolidados) coletados no último dia de cada mês- SESA/PR 

Gráfico 7 – Evolução mensal acumulada de óbitos confirmados de Covid 19 em Curitiba – março/20 a agosto/21

 

 

Fonte: Boletins epidemiológicos (consolidados) coletados no último dia de cada mês- SESA/PR 

 

Gráfico 8 – Óbitos mensais por Covid 19 em Curitiba – março/20 a agosto/21

 

 

Fonte: Boletins epidemiológicos (consolidados) coletados no último dia de cada mês- SESA/PR 

 

Curitiba chega em 31/08/2021 com 213.566 casos oficiais de Covid-19, indicando que 11% de toda sua população foi oficialmente contaminada. 

3.2 O gerenciamento da pandemia

Pelo cruzamento das legislações com os boletins epidemiológicos, constatamos que as medidas de distanciamento social mais restritivas são as mais bem sucedidas no enfrentamento da pandemia, pois, até os meses de abril e maio/20, o ritmo de transmissão se mantinha sob relativo controle, intensificando principalmente a partir da obrigatoriedade do uso de máscara, em público. Esta medida equivale a uma abertura do comércio e todos os municípios seguem Curitiba nesta obrigatoriedade, tanto que o primeiro pico de novos casos, como a entrada em fase exponencial de transmissão, se dá praticamente ao mesmo tempo em todo o conglomerado urbano. 

Em Araucária a data é 18 de maio, em São José 14 de maio, em Pinhais 19 de maio, em Piraquara 20 de maio; apenas em Colombo ocorre um pouco mais tarde no dia 28 de maio. Os principais picos, desde então, coincidem nos maiores municípios, com diferença de um ou dois dias, excetuando Curitiba que atinge os maiores picos antes dos demais. Isso nos permite dizer que se o conglomerado possui uma interdependência entre seus municípios, significa que as medidas de combate não poderiam ter sido tomadas individualmente como foram: era necessária uma coordenação regional para atuação conjunta dos municípios, com mais força para restringir a circulação de pessoas e as aglomerações dela decorrente.

Ao analisarmos as leis municipais salta aos olhos a grande quantidade de decretos editados em cada cidade, Campo Largo por exemplo ultrapassou a marca de dez normativas (entre leis e decretos) durante o período relatado aqui. Inicialmente os decretos eram mais restritivos, determinando a suspensão de todos os serviços considerados não essenciais, mas em apenas nove municípios sua validade foi maior do que 15 dias: Araucária; Fazenda Rio Grande; Pinhais; Piraquara; Quitandinha; Mandirituba; Lapa; Campo do Tenente; Piên; Rio Negro; Adrianópolis. Mas à medida em que a pandemia avançou, as legislações se tornaram cada vez mais flexíveis quanto às atividades e serviços que poderiam funcionar, bem como em relação aos horários de atendimento ao público. Os primeiros movimentos nesse sentido foram os decretos que ampliavam as atividades e serviços considerados essenciais, permitindo setores comerciais para além de supermercados e farmácias.

De forma geral, os decretos iniciais mais restritivos dificilmente resistiram à Páscoa, primeira data comercialmente importante ocorrida no fim de semana de 10 a 12 de abril, e ao Dia das Mães, em 10 de maio. Se a princípio a decisão do STF favorável à autonomia de estados e municípios atribuiu protagonismo a governadores e prefeitos, nossas evidências apontam que, ao mesmo tempo, também os submeteu à pressão direta de associações comerciais e industriais e aos grandes comerciantes locais. Para além das datas comerciais importantes, essa pressão pode ser percebida no próprio conteúdo dos decretos, que se tornaram cada vez mais extensos pois tinham de abarcar todas as atividades em funcionamento nas cidades: desde o turismo, as academias, até lojas de conveniência localizadas em trechos urbanos de rodovias. Aos poucos, restaurantes e bares também conseguiram reabrir. O único ramo de atividade que permaneceu com suas atividades suspensas foi o de entretenimento, notadamente casas noturnas e casas de festas, uma vez que seu funcionamento é praticamente impossível sem aglomerações dos clientes.

Destacamos este primeiro crescimento exponencial porque somente em julho há uma orientação mais incisiva do governo do Paraná no sentido de medidas restritivas a serem aplicadas pelas regionais de saúde no plano do atendimento setorial e medidas que irão impactar as atividades econômicas. Cabe destacar que esta ação governamental ocorreu em meio a pressões contrárias e favoráveis e foram desobedecidas em alguns lugares, sob orientação de algumas associações de municípios da região Noroeste e Oeste do Paraná. Na RMC, a Associação dos Municípios da Região Metropolitana de Curitiba (ASSOMEC), em acordo com a SESA, aderiu às determinações legais. 

Uma vez que a “quarentena” decretada pelo governo estadual não foi prorrogada, a ASSOMEC organizou o Fórum Metropolitano de Combate à Covid-19, em 15 de julho/20, que flexibilizou as restrições e aumentou, dentro do possível, os horários e dias de funcionamento do comércio e serviços. Os horários e normas eram praticamente os mesmos, excetuando as especificidades de cada município, demandando uma legislação em particular[8]. Na maioria dos casos as últimas legislações mais restritivas são do mês de julho, justamente na fase mais aguda da pandemia. Muito embora houvesse protocolos e normas sanitárias estabelecidas, observamos que essa flexibilização contribuiu para o aumento de casos diagnosticados e óbitos na região.

Destarte, o enfrentamento à pandemia na RMC assumiu um caráter sobretudo político, conciliando interesses e conflitos entre os segmentos econômicos mais afetados pelas medidas restritivas. Note-se que se trata de pautas de setores empresariais exclusivamente, posto que não encontramos nenhuma legislação que colocasse, entre seus objetivos principais, atender às demandas de trabalhadores e trabalhadoras. A única recomendação era para que os empregadores procurassem adequar os horários de abertura e fechamento de seus estabelecimentos visando evitar que aglomerações no caminho para casa. A eventual redução dos salários não é sequer mencionada, cabendo a cada empregador decidir por ela ou não.

Assim, o sentido assumido pelas políticas implementadas não é de enfrentamento da pandemia, mas de administração de seus impactos, ou, como denominamos, de gerenciamento da pandemia. Ao invés do poder público procurar evitar que o vírus circulasse e infectasse as pessoas, optou por manter o contágio sob níveis considerados toleráveis. 

A estratégia de gerenciamento foi possível graças a mecanismos de ordens legal e técnica. Os legais foram operados pelo poder executivo (prefeitos e governador), sendo constituídos pelo corpo de leis, decretos e instruções que estabeleceram as normas sanitárias e o distanciamento social nas seguintes condições: os decretos mais restritivos não resistem à primeira data comercial importante (Páscoa de 2020); o grupo de atividades e serviços considerados essenciais é gradativamente ampliado; a obrigatoriedade do uso de máscara permite a livre circulação das pessoas pelas ruas, mas a fiscalização do uso não é uniforme; os decretos que flexibilizam o isolamento são extensos porque devem contemplar todos os setores da economia local. Esta legislação instituiu uma espécie de “horário comercial pandêmico”, que ao permitir o funcionamento de todos os estabelecimentos por no mínimo seis horas assegurou que a economia da RMC não parasse durante a pandemia. 

Os mecanismos técnicos foram operados pelas secretarias de saúde (estadual e municipais), compreendendo informativos e procedimentos específicos a cargo da área: boletins epidemiológicos que não trazem todas as informações sobre o quadro da pandemia nos municípios; baixa testagem que mantém altos índices de subnotificação; suspensão de cirurgias eletivas; e a ampliação da capacidade leitos da rede pública de saúde. Tais mecanismos atuam de forma complementar aos legais, pois produzem artificialmente um quadro em que aparentemente a pandemia parece estar sob controle, não abrindo espaço para pressões pelo endurecimento das medidas de distanciamento social. 

3.3 A ocupação dos leitos

A ampliação dos leitos SUS foi um mecanismo técnico extremamente eficiente para gerenciar a pandemia em Curitiba e Região Metropolitana. Os municípios compõem a Segunda Regional de Saúde, que integra a macrorregional Leste. No início da pandemia disponibilizou-se 308 leitos de Unidade de Terapia Intensiva - UTI adulto exclusivos para os pacientes de Covid-19, mas esse número foi sendo gradativamente ampliado, de modo que, em agosto/20, havia 601 leitos na macrorregião. Apesar da gravidade da situação, a taxa de ocupação não ultrapassou 93% nos primeiros seis meses da doença. O colapso do sistema foi evitado. De qualquer modo, os dados demonstram que o sistema suportou a demanda não em decorrência da eficiência das políticas de mitigação da doença, mas da enorme capacidade do SUS de ampliar rapidamente o atendimento aos pacientes graves de Covid-19.

A partir de agosto de 2020 o quadro de leitos, embora expandido para 1.224 leitos totais (adulto, infantil, UTI e enfermaria), tende a não acompanhar o agravamento dos casos e, consequentemente óbitos. Neste mês a taxa de ocupação era de 86% para UTI adulto e 62% para enfermaria adulto, conforme Tabela 1 na página seguinte.

Na gestão da pandemia as regras de distanciamento e de proibição de aglomerações foram gradativamente afrouxadas, permanecendo com maior restrição as atividades de turismo, entretenimento, bares e restaurantes. Os casos e óbitos que haviam refluído em setembro e outubro/20 recobra o ritmo a partir de novembro. Neste último mês aponta para ocupação de 94% nos leitos UTI adulto e de 54% enfermaria adulto. Ou seja, enquanto o sistema de atendimento exclusivo Covid-19 aumenta em 11% (UTI adulto) e 32% nas enfermarias adulto, os casos confirmados e óbitos crescem 79% e 71% respectivamente, conforme apontamos nos gráficos anteriores.

Em novembro já era previsível colapso do sistema[9], mas não houve qualquer movimento, a não ser o de maior afrouxamento para as compras de final de ano, para as festas e as férias de verão. Em fevereiro de 2021 o sistema colapsa, com filas de espera nas Unidades e hospitais para vagas em enfermaria e, pior, em UTIs. Morrem as primeiras pessoas por falta de internamento em UTI, ou por consegui-lo tarde demais.

 

Tabela 1. Leitos SUS da RMC disponibilizados para Covid 19 e taxa de ocupação, no último dia de cada mês. Agosto/20 a julho/21

 

 

 

 

LEITOS EXCLUSIVOS COVID 19

 

 

Ocupação dos demais

 

MESES

 

ADULTO

 

 

PEDIÁTRICO

 

leitos SUS da Rede  

 

 

      UTI

 

ENFERMARIA

       UTI

 

ENFERMARIA

por casos COVID

 

 

existente

tx.ocup

existente

tx.ocup

existente

tx.ocup

existente

tx.ocup

UTI

ENF.

 

ago/20

477

86

646

62

21

43

30

30

6

44

 

set/20

461

89

598

56

16

63

20

35

9

33

 

out/20

412

85

549

49

16

50

20

20

10

26

 

nov/20

499

94

777

67

10

70

20

60

7

21

 

dez/20

529

84

856

54

10

60

20

40

13

35

 

jan/21

526

84

874

52

10

40

20

15

19

18

 

fev/21

533

96

850

73

10

30

20

40

8

55

 

mar/21

756

96

1270

87

10

30

20

35

23

71

 

abr/21

793

94

1122

78

10

20

20

30

19

31

 

mai/21

827

95

1152

87

10

40

20

5

64

57

 

jun/21

835

93

1152

67

10

10

20

40

24

27

 

jul/21

718

63

804

46

10

30

20

20

10

21

 

Fonte: Sistema Estadual de regulação -CARE PR e Secretarias municipais de saúde de Curitiba e de São José dos Pinhais.

Nota: Os dados relativos às SMS de Curitiba e de São José dos Pinhais são sempre preliminares. 

 

 

Novos hospitais da rede pública são incorporados para tratamento da Covid-19 e há expansão das vagas dos que já estavam no sistema. Curitiba altera seu plano de atendimento transformando Unidades 24 horas em hospitais Covid e UBS em leitos de enfermaria. Em março/21, no maior pico registrado nos 18 meses em análise, estão disponíveis 756 leitos UTI adulto e 1270 enfermaria adulto, que indicam um crescimento de 42% e 49% respectivamente em relação a fevereiro. Ainda assim, as taxas de ocupação chegam a 96% e 87%, para UTI e enfermaria, as mais altas deste ano e meio. 

As UTI adulto chegam a 835 em junho/21 com taxa de ocupação de 93%, mas as enfermarias começam a ser desabilitadas, com queda de 9,3% em relação ao número de maio. Ou seja, mesmo com o aumento da rede de atendimento e da vacinação, iniciada em janeiro/21, a Covid-19 na RMC segue com nível de contaminação e mortes que exigem políticas de controle das aglomerações, uso das medidas não farmacológicas e monitoramento constante. 

3.4 A linha do tempo de Curitiba

            Para uma melhor compreensão visual da relação entre as tomadas (ou não) de decisões de controle e enfrentamento da doença pelos poderes locais, analisamos o caso da capital do Paraná, por ser uma cidade com quase 2 milhões de habitantes e capacidade de argumentação política não apenas para impor políticas mais duras como de influenciar, com suas decisões, a RMC. Desenvolvemos um instrumento próprio de monitoramento das medidas de enfrentamento à pandemia do novo coronavírus: a linha do tempo de políticas públicas em implementação. Tal instrumento, cujas variáveis já foram indicadas anteriormente, nos permite localizar, temporalmente, as principais etapas do ciclo das políticas públicas, em especial: a colocação da demanda; o contexto que envolveu sua elaboração; sua publicação; os impactos imediatos pós publicação. 

A confecção da linha do tempo possibilitou a análise das principais medidas de enfretamento à pandemia adotadas pela gestão municipal e estadual, considerando os casos diagnosticados e de óbitos no momento de sua implantação. Por meio desse instrumento, aplicado nas grandes cidades da RMC, foi possível averiguar como se processou a gestão da pandemia na região e apontarmos um conjunto de considerações sobre as ações realizadas. A Figura 1 traz a linha do tempo de Curitiba, de março a dezembro de 2020. 

 

Figura 1: Linha do tempo Covid-19 Curitiba – março a dezembro/2020

 

 

 

 

Fonte: Prefeitura Municipal de Curitiba, 2020; Paraná/SESA; 2020.

Nota: Material organizado por Ana Cláudia Antunes Brizola, Bruna Lourenso, João Pedro Marques Curty Lage, Nathalia Milani e Tissiany Natalie do Prado.

 

Curitiba adotou o sistema de bandeiras, a partir de junho/20, como instrumento de gestão para definir o grau de restrição imposto às atividades econômicas (autorização de funcionamento, níveis de liberação e horário de atendimento). Com nove indicadores, cada um deles variando entre os números inteiros de 1 a 3, calcula-se uma média ponderada: os quatro critérios que medem a velocidade do avanço da contaminação da população possuem somados um peso de 1,5; os dois critérios que medem a incidência de novos casos em relação ao tamanho da população pesam juntos 3,5; o critério que mede a capacidade de atendimento tem peso 1 e os dois que medem a alteração da capacidade de atendimento possuem somados peso 4. A bandeira vermelha é atingida quando todos indicadores atingem o grau 3. Quando o resultado da média ponderada é 2 ou superior, a bandeira laranja é adotada. Nas demais situações, permanece a amarela. Na prática, a bandeira amarela refere-se a um estado de alerta constante, com todos os estabelecimentos funcionando de acordo com os protocolos de prevenção; a bandeira laranja indica risco moderado, implicando em restrições para o funcionamento dos setores de serviço, comércio e áreas com aglomeração; já a bandeira vermelha indica alto risco, nível de alerta total que restringe circulações de pessoas e permite (ou deveria permitir) apenas o funcionamento de serviços essenciais.

No período de 13 junho a 16 agosto de 2020, Curitiba adotou a bandeira laranja, mesmo com crescimento exponencial da curva de contágio e de mortes, que teve o seu pico no mês de julho. Na sequência, a cidade adotou a bandeira amarela, voltando para a bandeira laranja de 04 a 26 de setembro, quando os indicadores pioraram novamente. Entretanto, de 27 de setembro até 26 de novembro, período que compreende tanto a campanha eleitoral quanto as eleições, a cidade permaneceu sob bandeira amarela, mesmo com o crescimento das taxas de ocupação dos leitos do SUS exclusivos para a Covid-19, a partir de 13 de outubro. O prefeito de Curitiba Rafael Greca (DEM) foi reeleito no primeiro turno, em 15 de novembro de 2020. O aumento de contágios e óbitos fez com que em 27 de novembro fosse decretada novamente – mas tardiamente conforme nossos dados – a bandeira laranja, com o sistema de saúde (público e privado) totalmente sobrecarregado. O fechamento da Unidade de Pronto Atendimento (UPA) da Fazendinha para transformá-la em leitos clínicos de retaguarda para o Hospital do Idoso Zilda Arns, funcionou como estratégia da gestão municipal para evitar o colapso do sistema público. No sistema privado, por sua vez, de acordo com reportagem da BBC-Brasil[10], desde o dia 20 de novembro, os três maiores hospitais alertaram, em suas redes sociais, que 100% dos leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) estavam esgotados.

             A utilização do sistema de bandeiras e a ampliação do número de leitos na cidade, e RMC, permitiu o gerenciamento da pandemia e não seu enfrentamento. Em que pese as orientações sanitárias e a organização exemplar do sistema de saúde de Curitiba, a gestão pública priorizou, em muitos momentos, a preservação da economia em detrimento da saúde dos cidadãos. Nesse sentido, a bandeira vermelha só foi utilizada duas vezes: 13 de março a 5 de abril e 29 de maio a 09 junho/21. Períodos de crescimento exponencial de casos e óbitos, tal como apresentado nos gráficos 6 e 8. Neles, houve mais restrição na circulação e suspensão de diversas atividades não essenciais, assim como a ampliação do número de leitos, como já dito, com dez UPAs realizando internamentos de casos de Covid-19. 

4. Considerações finais

Ao retomarmos as questões do início deste trabalho – o pacto federativo (ARRETCHE, 2013, 2012, 1996; SOUZA, 2013, 2008) e o ciclo das políticas públicas (SECCHI, L.; COELHO, F. S.; PIRES, 2019; OLIVEIRA, 2013) em contexto pandêmico –, podemos afirmar que houve negligência na coordenação central na condução das políticas públicas de enfrentamento à pandemia. No plano econômico demorou-se a definir a política de auxílio emergencial, inicialmente pífio nos valores, que só pode se concretizar em patamares dignos por ação do Congresso Nacional. A centralização na Caixa Econômica Federal provocou demoras e filas, que provavelmente contribuíram para disseminação da doença, colocando em risco aqueles que buscavam o benefício e os trabalhadores do sistema. 

Na política de saúde e de assistência social, em que pese os sistemas SUS e SUAS que operam de forma centralizada, com bons índices de efetividade, o discurso negacionista do primeiro escalão do governo federal colidiu com as ações do executivo central na definição de agenda e na implementação da política. Desde o início da pandemia era conhecido o potencial de disseminação da doença e, mesmo assim, foram perdidos dois meses vitais – fevereiro e março – para aquisição de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) e contratação de reforços de pessoal para o SUS. Já com a pandemia em curso, mas ainda sob controle, enquanto se tentava equipar o sistema público de saúde com EPIs, torna-se insustentável a relação entre o Ministério da Saúde e o presidente, com a saída de dois ministros (e suas equipes) em menos de um mês.

A área da saúde, ancorada no SUS, obedece a protocolos centralizados, evitando que cada nível federado decida a seu bel prazer. Mas com o rompimento do pacto federativo promovido pelo Governo Bolsonaro a ação local descentralizada produziu políticas conflitantes, prevalecendo interesses econômicos em detrimento dos direitos básicos. Na RMC houve duas situações de lockdown parcial em pequenos municípios; enquanto Curitiba fechava shoppings, outros os mantiveram abertos, com pessoas se descolando para compras de um município para outro; alguns municípios restringiam o movimento de ônibus, outros mantiveram. De fato, enquanto a curva da disseminação do novo coronavírus subia, flexibilizava-se as atividades econômicas. Os grupos empresariais mais organizados, do comércio de bens a indústria, rapidamente voltaram às atividades, seguidos do comércio de serviços, permanecendo a restrição apenas para bares, restaurantes e atividades de entretenimento.

No balanço desses 18 meses de pandemia na RMC, a sobreposição de agendas do governo federal, estadual e 29 prefeituras municipais não permitiu a construção de políticas públicas que, mesmo tendo uma demanda comum – o enfrentamento da pandemia –, resultasse em ações articuladas desde o início. Tomando o modelo de ciclo de políticas públicas é possível afirmar que o processo decisório localizado em municípios - formulação localizada - produz resultados descoordenados e de baixa eficácia. Isso foi reconhecido, no primeiro pico, com a articulação dos gestores na associação dos municípios da RMC, para construção do consócio metropolitano para enfrentamento da pandemia, decidindo o que abre/fecha, mas sem enfrentar a questão da mobilidade urbana. Ou seja, passaram-se quatro meses de pandemia e somente quando se atinge o pico é que se busca a articulação de ações, as quais se reptem pontualmente nos picos de dezembro e março/21.

Na falta de política federal e na hesitação do governo estadual, coube às 29 prefeituras, quando o sistema de saúde estava prestes a colapsar, buscar uniformidade das ações quanto à flexibilização das atividades econômicas. O SUS, em sua gestão municipal e estadual, passa a gerenciar a doença. Para a população mais vulnerável não há políticas coordenadas, cabendo a cada município a gestão. Quem assume este papel são as redes de solidariedade da sociedade civil, distribuindo alimentos nas ocupações e para população em situação de rua. Segue, ao largo e em ritmo acelerado, a política de reintegração de posse em vários municípios, com despejos violentos, conforme noticiados semanalmente: prevalecem os interesses econômicos. 

Concluímos que ao se adotarem tais mecanismos de gestão da crise sanitária foram violados os direitos à saúde, à proteção trabalhista, à transparência e ao lazer. O direito à saúde e os direitos trabalhistas estavam condicionados às demandas do setor empresarial, pois mesmo com os boletins epidemiológicos apontando a entrada em fase exponencial de transmissão a flexibilização no isolamento social não foi revista, e foram definidos os horários de funcionamento das atividades e serviços sem terem sido dadas todas as condições para o acesso seguro ao trabalho, em função da não regulamentação do transporte público. O direito ao lazer foi cerceado, pois era permitido aos indivíduos apenas trabalhar e consumir. Devemos insistir na violação de direitos, mas reconhecemos que na lógica neoliberal, com a supressão dos direitos trabalhistas, aos trabalhadores resta tão somente a sua exploração quase que num retorno à noção de acumulação primitiva do capital. Isso, associado à aceleração dos tempos de trabalho, ao subemprego, ao trabalho uberizado travestido de auto empreendedorismo, gera uma precarização da vida. O lazer, que a população em geral ainda busca nas suas poucas folgas, só é aceito se for para consumir. Outras formas são culpabilizadas. Isso fica patente quando, no discurso oficial em coletivas de imprensa, se culpabiliza os indivíduos pelo agravamento da crise sanitária, identificando as “baladas clandestinas” como responsáveis pelo aumento de casos. 

O poder público procura se eximir da responsabilidade por não ter tomado as medidas cabíveis a tempo. Não obstante, identificamos que havia informações suficientes para orientar ações que interrompessem a aceleração do ritmo de transmissão, pois apesar da subnotificação (esta é uma agenda relevante de pesquisa) os boletins registraram os primeiros picos de contágio, o que nos leva a concluir que as principais decisões sobre os rumos do enfrentamento à pandemia foram políticas e não técnicas.

Uma outra consideração importante diz respeito a estrutura do SUS que se mostrou robusta no tratamento dos doentes, mesmo perto de funcionar em sua plena capacidade, minimizando os impactos da fase mais aguda da pandemia. Entretanto, o sistema não precisaria ter sido posto à prova desta maneira, havia medidas eficazes que poderiam ter sido tomadas em caráter preventivo, evitando que pessoas ficassem doentes ou morressem. Destacamos o distanciamento social, que tem sua eficácia comprovada pelas linhas do tempo, a exemplo da linha de Curitiba, aqui já abordada.  

Recordamos o já analisado, pois a data do primeiro pico na capital confirma isso, ocorrendo 13 dias após entrar em vigor a lei que permitiu que as pessoas voltassem a circular, combinada com a obrigatoriedade do uso de máscaras em espaços públicos e em estabelecimentos comerciais. Vários estudos da área da saúde atestam a eficácia das máscaras para evitar o contágio do novo coronavírus, porém isso não quer dizer que ela impeça o vírus de circular e os dados atestam isso. Não temos como estimar a quantidade de infectados caso não houvesse o uso das máscaras, mas afirmamos que elas não impediram a entrada na fase exponencial de transmissão. Na avaliação do poder público, contudo, a estratégia foi bem-sucedida. 

Não houve um esforço para viabilizar o distanciamento social por meio de formulação de medidas alternativas e/ou complementares, mas sim para garantir o funcionamento do comércio em meio à pandemia. A única ação efetiva durante os primeiros meses foram as suspensões das aulas em todos os estabelecimentos públicos e privados. Sem esta ação provavelmente o contágio seria ainda mais acelerado.  Cabe lembrar que a educação é dever do Estado (sendo a atividade privada exercitada por delegação do Estado). Como o peso das atividades privadas é pequena na educação fundamental e média, o Estado pode deliberar sem sofrer o mesmo tipo de pressão que o de outros setores econômicos. 

Com relação ao funcionamento da máquina administrativa pública, tanto o governo estadual quanto os poderes locais operaram com parte de suas atividades em trabalho remoto, o que garantiu a diminuição do deslocamento. Este trabalho remoto público, mais um grande segmento de trabalho remoto em atividades de prestação de serviço e administrativas do setor privado e o fechamento das escolas (primeiro total e depois parcial) foram os responsáveis pelo pouco do distanciamento social ocorrido. 

Nesse sentido, o gerenciamento da pandemia priorizou a preservação da economia em detrimento da saúde dos cidadãos da RMC; foi uma política alinhada ao posicionamento do governo federal; não houve, da parte dos agentes públicos locais, posicionamento contrário ao negacionismo presente no discurso presidencial; portanto, não se reivindicou com clareza a implementação de uma política nacional de enfrentamento à pandemia. A exceção ocorre a partir de 2021 com a implantação do Plano Nacional de Imunização, em todas as cidades da RMC.

Por fim, política pública, por definição é articulada em vários setores, dimensões e níveis. Em síntese, perdemos a capacidade de aproveitar uma das maiores experiências em política de saúde do mundo ocidental. No falso dilema entre salvar a saúde ou a economia, todos perderam até agora. Embora não seja do escopo deste trabalho, é notório as perdas econômicas derivadas da pandemia, associada à ação lenta dos governantes centrais. Nesse cenário, restou a gestão da doença e não sua evitação; o pico de março/21 - do colapso do sistema - elevou os casos de contaminados e de mortes. Mesmo com a vacinação presente, ainda vivemos em estado de alerta. Todas as fichas agora estão na vacinação, mas ela não representa cura. Sem política pública unificada, é muito difícil ter otimismo. 

 

[1] O artigo resulta da pesquisa Direitos Humanos, entre o público e o privado: monitoramento do efeito-território na pandemia do Corona vírus na RMC, financiada parcialmente por meio do edital PROIND 2020 da UFPR, para estudos sobre os impactos da pandemia. Durante 18 meses, foram coletados dados sobre casos e óbitos, nos dias 15 e 30/31 de cada mês, nos municípios da RMC, a partir da divulgação das secretarias municipais de saúde. No início as informações disponibilizadas localmente eram divergentes das consolidadas na Secretaria de Estado da Saúde (SESA). Ao longo do tempo as estatísticas tornaram-se mais uniformes, razão pela qual optamos pelo uso da base de dados estadual.

[2] A pesquisa contemplou o mapeamento de todos os atos normativos que tiveram como descritor a Covid 19. Pela intersetorialidade que o tema abrangeu (saúde, educação, assistência social, tributação, recursos humanos, segurança, finanças) nos deteremos aqui no conjunto de normas que envolveram os protocolos de distanciamento e isolamento social e as medidas não medicamentosas (uso de máscaras e de álcool em gel). 

[3] Sem entrar na discussão mais detalhada ilustramos que o federalismo, em sua dimensão fiscal, tem como vantagem a possibilidade da autonomia local, inclusive financeira. Neste modelo, cada tipo de bem público deve ser provido pelo nível de governo que tiver maior vantagem comparativa em responder à diversidade de preferências dos grupos da população. Tal estrutura governamental descentralizada diminuiria os riscos de que certos volumes de bens públicos ofertados não estariam em correspondência com a preferência dos cidadãos, assim como evitaria que o bem relativo a uma área territorial fosse arcado por cidadãos de outra circunscrição.

[4] Art. 1º - A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito [...]

Art. 18º - A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição (BRASIL, 1988).

 

[5] Os 29 municípios da RMC, divididos nesta pesquisa em grupos, correspondem a: 1) Curitiba; 2) Almirante Tamandaré, Araucária, Campo Largo, Colombo, Fazenda Rio Grande, Pinhais, Piraquara e São José dos Pinhais; 3) Campina Grande do Sul, Campo Magro, Itaperuçu, Quatro Barras e Rio Branco do Sul; 4) Balsa Nova, Contenda, Mandirituba, Quitandinha e Tijucas do Sul; 5) Adrianópolis, Agudos do Sul, Campo do Tenente, Cerro Azul, Dr. Ulysses, Lapa, Piên, Rio Negro e Tunas do Paraná.

[6] Foram construídas linhas do tempo para os municípios dos grupos 1 e 2, todavia, neste artigo, apresentamos somente a linha de Curitiba, para evidenciar a estratégia de gerenciamento da pandemia pela gestão pública.

[7] A partir de agosto, com a consolidação do primeiro pico de contaminação, o mapa não se altera significativamente, razão pela qual só apresentamos estes dois.

[8] Como aqueles em que há atividade de pesque-pague, por exemplo.

[9] Este argumento foi apresentado em relatório sobre a pandemia no ano de 2020. Disponível em: 

https://www.observatoriodasmetropoles.net.br/wp-content/uploads/2020/07/Dossie-Nucleo-Curitiba_Analise-Local_2020.pdf

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