Assistência social no Brasil no contexto da pandemia da COVID-19: uma documentação de ações de assistência e do Auxílio Emergencial Temporário (AET)


Francisco Fernando Pinheiro Leite
Mestrando em Planejamento e Dinâmicas Territoriais no Semiárido pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte.

Larissa da Silva Ferreira Alves
Doutora em Geografia; Professora do Departamento de Geografia e do Programa de Pós-Graduação em Planejamento e Dinâmicas Territoriais no Semiárido (PLANDITES) da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN).

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1. Introdução 

A pandemia da COVID-19, que emergiu na passagem dos anos 2019/2020 e foi reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como pandemia em março de 2020, é uma situação emergencial de saúde com efeitos colaterais econômicos, sociais e políticos. No Brasil, a rápida disseminação do vírus resultou em preocupações de uma possível ou iminente sobrecarga do Sistema Único de Saúde (SUS) e em incertezas a respeito do enfrentamento do vírus. Exigia tomar medidas emergenciais para contenção da taxa de contaminação. Isolamento e distanciamento social foram apontados por epidemiologistas como indispensáveis medidas ao combate à transmissão do SARS-CoV-2 e tiveram forte impacto social e econômico na população brasileira (COSTA, 2020).

O aumento da taxa de desemprego, a redução de salários de funcionários, o fechamento temporário do comércio não-essencial e a proibição da circulação de vendedores ambulantes na maioria das cidades brasileiras resultaram num agravamento da situação econômica do país, assim como no aumento da miséria (MORIN, 2020).  

O Sistema de Proteção Social se mostra extremamente necessário para garantir os direitos básicos de cidadania à população mais afetada pela desigualdade social e econômica de um país. Em uma situação emergencial, como a da pandemia da COVID-19, a necessidade de fortalecimento desse sistema se torna evidente.

Este artigo visa documentar uma trajetória e algumas das suas etapas e características dos principais serviços da Assistência Social no Brasil durante a crise da COVID-19, seus principais programas e a importância do seu fortalecimento frente a situações emergenciais como a pandemia enfrentada. Serão identificadas algumas das iniciativas previamente existentes à pandemia, que possibilitaram com suas bases de dados elaborar agilmente novas políticas e avaliar o andamento da execução dos serviços numa análise das principais ações da Assistência Social. 

Para essa documentação foram realizados tanto um estudo bibliográfico de natureza exploratória mediante uma revisão de produções científicas sob a temática registrada em bases de dados como o Google Acadêmico e Scielo, quanto uma pesquisa documental de informações das páginas oficiais do Ministério da Cidadania. 

Documentar essa trajetória parece não apenas relevante, mas também importante em vista ao atual cenário social e econômico moldado pelos impactos da pandemia no país, em que a vulnerabilidade social da população se acentua e os esforços do Estado para garantia dos direitos fundamentais se mostram indispensáveis.

Estruturalmente, além desta introdução, apresentamos os principais programas de transferência de renda previamente existentes no país pós Constituição Federal de 1988 que foram os responsáveis pelo fortalecimento do debate e da discussão em torno da Proteção Social no Brasil. Segue-se uma apresentação do Auxílio Emergencial Temporário (AET) como estratégia principal do Governo Federal para conter um colapso socioeconômico no país para, no fim, discutir algumas consequências e desafios que a pandemia COVID-19 traz para a Proteção Social no Brasil.

2. Proteção social e transferência de renda no Brasil pós-CF de 1988 

Já no século XIX, é possível, identificar os primeiros indícios de debates em torno do surgimento de sistemas de proteção social. Observa-se a relação entre a expansão das relações formais de trabalho e a insegurança social causada pela ausência de acesso ao trabalho ou dificuldade de permanência por motivos diversos tem consequências como doenças, idade avançada, salários insuficientes para a manutenção do empregado e seus familiares e morte de membros da família (ALVES; SOARES, 2021). Não obstante, uma “questão social” propriamente dita apenas se consolida no século XX e teve sua expressão no assim chamado Estado de Bem Estar (welfare state) em algumas partes do mundo.  

No Brasil, o início do surgimento do movimento em prol da construção de um sistema de proteção social não se deu através do Estado. Instituições filantrópicas, grupos de apoio, sociedades religiosas e movimentos de solidariedade foram os pioneiros neste quesito (ALVES; SANTOS, 2021). Após alguns avanços com relação à proteção de trabalhadores (CLT) no período Vargas entre guerra, é no período pós-Segunda Guerra que o Estado toma para si a responsabilidade de desenvolver ações que reestabeleçam a ordem capitalista na sociedade, prestando serviços e ofertando benefícios capazes de estimular o consumo e manter ou recuperar as condições materiais mínimas para sobrevivência (SANTOS, 2007; ALVES; SOARES, 2021).

O modelo próximo de welfare state presente no país, até então, seguia duas linhas distintas:  uma que se resumia a políticas assistencialistas, de caráter compensatório, a fim de diminuir a desigualdade provocada pelo forte desenvolvimento capitalista do período militar e getulista, e a segunda que focalizava seus interesses na contribuição do crescimento econômico através, por exemplo, de políticas de educação que qualificassem trabalhadores para um melhor resultado na produtividade (MEDEIROS, 2001).

Com a Constituição Federal de 1988, que embora garantisse um modelo de seguridade e proteção social que abrangesse todas as classes de trabalhadores, para Dain e Soares (1998, apud Medeiros (2005) as condições econômicas do país impossibilitavam que os gastos sociais e com políticas públicas fossem significamente ampliados com o resultado em tornar mais difícil o cumprimento da garantia constitucional de proteção e garantia de cidadania.

Ao desvincular a proteção social no Brasil da solidariedade, ela passa a ser considerada um direito social.  A configuração deste sistema foi complexa e envolveu legislações sociais, políticas públicas, questões econômicas e garantias de acesso real a investimentos e serviços públicos (SPOSATI, 2008). A partir daí foram criados sistemas protetivos de extrema relevância no país, a exemplo do Sistema Único de Saúde (SUS) e do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). O SUAS é responsável institucional pela regulamentação da Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS), de 1993, que traça as novas concepções e fundamentos da Assistência Social no Brasil (SILVA; SOUSA; LIMA, 2021).

A Assistência Social passa a ser garantida a quem dela necessitar (BRASIL, 1988) e a proteção social no Brasil se modificou, conforme Silva, Yazbek e Giovanni (2004), com a inclusão da participação social na elaboração e no controle das políticas públicas. 

A fim de mostrar, sem maior aprofundamento, a trajetória de alguns projetos e programas de benefícios assistenciais, serão apontadas abaixo algumas características de medidas de transferência de renda.

2.1 Programas de transferência de renda

Já em 1991, o Senador Suplicy (2002), ao pressupor que o Estado deveria ser capaz de amenizar as marcas da desigualdade social e econômica no país, apresentou ao Senado Federal o projeto de lei autor do projeto de lei nº 80/1991 que ia instituir um programa universal de transferência de renda de forma direta aos cidadãos brasileiros inseridos em uma faixa de renda pré-determinada um valor que possibilitasse que o beneficiado se equiparasse economicamente ao restante da população. O projeto foi o principal responsável pelo surgimento da discussão sobre transferência de renda no Brasil (SILVA, 2009).

O Programa de Garantia de Renda Familiar Mínima (PGRFM) foi criado, em Campinas/SP em 1995, destinado a famílias residentes no município há mais de 02 anos e com filhos menores de 14 anos de idade em sua composição, com o objetivo de complementar a renda familiar (RAMOS, FRAIBEG e SANTOS, 2011). Para Silva et al(2004), o PGRFM foi o pioneiro nos programas de transferência de renda no modelo proposto na época e responsável pela geração de opinião pública na discussão.

Em 1996, a fim de combater a presença de crianças e adolescentes no ofício de lixões, carvoarias, pedreiras, plantações e demais tipos de trabalho irregular, o Governo Federal lançou o Programa de Erradicação ao Trabalho Infantil (PETI), que agia através de transferência de renda, trabalho social com famílias de crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil e na oferta de serviços socioeducativos para os contemplados (MINISTÉRIO DA CIDADANIA, 2021).

No mesmo ano, foi implantado o Benefício de Prestação Continuada (BPC), baseado no artigo 203 da Constituição Federal, que garante a transferência monetária de 01 salário mínimo a pessoas com deficiência e idosos em situação de pobreza que não tenham condições de prover o seu sustento, sendo direito garantido e referenciado na Lei Orgânica de Assistência Social (NOBRE, 2020). Sem ser tão conhecido e presente nestas discussões, o BPC é muito abrangente e responsável pelo sustento de milhares de pessoas pelo país através do repasse no valor de um salário mínimo. O benefício pode ser recebido por mais de uma pessoa no núcleo familiar, desde que comprovados os requisitos e tem revisão a cada dois anos, seja por perícia médica ou por revisão cadastral, a fim de garantir que o beneficiado ainda esteja nos critérios de recebimento (MINISTÉRIO DA CIDADANIA, 2020).

A década de 2000 foi marcada pela criação de diferentes benefícios de transferência de renda, decorrente de diferentes experiências municipais com iniciativas do mesmo gênero. Em 2001, na gestão de Fernando Henrique Cardoso, foi criado no âmbito do Ministério da Educação o Programa Bolsa Escola com o objetivo de proporcionar melhorias na qualidade de vida das famílias e incentivar a presença de crianças e adolescentes nas escolas por meio de repasse financeiro de R$ 15,00 para cada filho com idade entre 6 e 15 anos, até o limite de três filhos. As gestões municipais eram responsáveis pelo cadastramento dos candidatos e tinham o compromisso de realizar ações socioeducativas com o público-alvo (DIAS, 2006).

Neste mesmo ano de 2001, visando promover melhores condições de saúde e nutrição de gestantes e nutrizes pertencentes a família de baixa renda e atuando na complementação da renda familiar e no incentivo à realização de ações básicas de saúde preventiva, foi criado o Programa Bolsa Alimentação (BRASIL, 2001).    

O Projeto Agente Jovem de Desenvolvimento Social e Humano também foi instituído em 2001, destinado a adolescentes de 15 a 17 anos em situação de risco e vulnerabilidade social, e visava possibilitar sua permanência no sistema educacional, oferecendo participação em experiências práticas que o preparem para uma futura inserção no mercado de trabalho sem que seu desenvolvimento educacional fosse interrompido. A esses jovens, era repassado um valor de R$ 65,00 (MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL, 2001). 

Em 2002, ainda no governo de FHC, foi instituído o Auxílio-Gás, do Ministério de Minas e Energia, e tinha objetivo de subsidiar o preço do gás para as famílias de baixa renda, compensando as famílias pelos efeitos da liberação do comércio de combustíveis no país e transferia às famílias o valor de R$ 7,50 por mês (DIAS, 2006).

Para Zimmermann (2006, p. 149), neste período faltou uma coordenação entre os diversos programas e ações governamentais:

Nos últimos dois anos da gestão Fernando Henrique Cardoso, esses projetos foram implementados por distintos ministérios e secretarias, não havendo uma ação interministerial coordenada. Muitas vezes, tais programas chegavam a concorrer entre si quando da liberação de recursos, como por exemplo: Programa Bolsa Escola, Programa de Erradicação do Trabalho Infantil e o Bolsa-Alimentação. Tais programas foram executados por diferentes ministérios, impedindo a otimização das ações, resultando em alto custo operacional, em pouca efetividade e na falta de referência a direitos. Além disso, os municípios recebiam uma quota máxima de famílias a serem contempladas pelos benefícios acima citados. Com isso, novas famílias, mesmo que fossem extremamente vulneráveis e, portanto, portadoras desse direito, não podiam ser inseridas nos Programas. Na perspectiva dos direitos, essas famílias deveriam ter a possibilidade de requerer os benefícios e serem contempladas pelos Programas em um curto período.

 

            Em 2003, no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, houve a criação do Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome (MESA) a fim de formular e implantar a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. No ano seguinte, o ministério foi extinto e criado, em seu lugar, o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), que teve como objetivo inicial promover a intersetorialidade nas ações governamentais de inclusão social e combate à fome e pobreza, incluído nessas ações,  o Programa Fome Zero, que implantou o Cartão Alimentação a fim de diminuir os gastos operacionais com o pagamento de diferentes benefícios, possibilitando que as famílias recebessem os valores em uma única ação (ZIMMERMANN, 2006).

2.2 Articulação de diferentes ações no Programa Bolsa família (PGF)

Assim, já em 2003, foi criado o Programa Bolsa Família (PBF), fruto da unificação dos programas de transferência de renda previamente existentes e em funcionamento, reduzindo gastos administrativos, construindo uma gestão coordenada e intersetorial e possibilitando melhor execução por meio dos agentes envolvidos, evitando a fragmentação e facilitando aos usuários o acesso aos serviços (idem, 2006).

O Programa Bolsa Família funcionou de forma intersetorial, em três eixos fundamentais: a transferência direta de renda às famílias, a fim de diminuir os efeitos da pobreza e da extrema pobreza; o segundo submetendo os seus beneficiários ao cumprimento de condicionalidades nas áreas de educação, saúde e assistência social com o objetivo de garantir e incentivar a essas famílias o acesso aos direitos básicos de cidadania que deverão ser assegurados com qualidade pelo poder público; e o terceiro que visa possibilitar a emancipação das famílias através de outras ações (MDS, 2015).

Diferente dos programas que o precederam, o PBF também é direcionado a famílias que não possuam em sua composição crianças, adolescentes, gestantes e nutrizes, aumentando a abrangência do programa e possibilitando que mais famílias sejam assistidas.

Além do Benefício Básico, o programa conta com o Benefício Variável direcionado a crianças até 16 anos de idade, a pessoas entre 17 e 18 anos completos, à Gestante e vinculado à Nutriz. Há também o Benefício de Superação da Extrema Pobreza, direcionado a famílias que, ao receber os benefícios básicos e variáveis e, realizado o cálculo pelo número de componentes não superam a extrema pobreza, sendo acrescentado a esse benefício o valor necessário para ultrapassar o valor-limite de família extremamente pobre (MINISTÉRIO DA CIDADANIA, 2021).

Nesse contexto, ainda é necessário considerar as limitações no que diz respeito aos investimentos em políticas sociais através das políticas de austeridade fiscal e econômica implantadas pelo governo federal a partir de 2016. A Emenda Constitucional 95/2016 limita o gasto primário do governo federal pelo montante gasto no ano anterior, reajustado pela inflação acumulada (BRASIL, 2016). Essa política (neoliberal) do então governo federal no ano de 2016 impacta de forma direta a política de Assistência Social e Seguridade Social. Ao contrário do que acontece com os investimentos em Educação e Saúde, não há um percentual mínimo assegurado da arrecadação para o Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Assim a limitação interposto pela reforma fiscal interfere na manutenção e oferta dos serviços do considerando o cofinanciamento federal de parcela dos equipamentos da Assistência. (REINHOLZ, 2018).

Atualmente, o PBF ainda é o maior programa de transferência de renda do país e é responsável por retirar da extrema pobreza mais de 14 milhões de famílias (MINISTÉRIO DA CIDADANIA, 2021). Através do Cadastro Único (Cadúnico) para Programas Sociais do Governo Federal que reúne informações de famílias com renda mensal de até 3 salários mínimos ou meio salário mínimo por pessoa, são selecionadas famílias com rendimento mensal de até R$ 178,00 por família com membros menores de 18 anos e de até R$ 89,00 por família sem crianças e adolescentes em sua composição. O Cadastro Único é uma importante ferramenta de banco de dados que está disponível aos governos federal, estadual e municipal, para auxiliar na formulação de benefícios e políticas públicas, assim como no mapeamento das condições socioeconômicas de sua população (SENARC, 2011). 

3. Ações de assistência social e o Auxílio Emergencial Temporário (AET) durante a pandemia

            A partir do reconhecimento oficial pela Organização Mundial da Saúde em março de 2020 do caráter de pandemia da difusão do COVID-19 (UNASUS, 2020), medidas como lockdown, isolamento e distanciamento social foram adotadas por países, estados e municípios do mundo inteiro como estratégia para controle da disseminação do vírus, ainda que os impactos econômicos fossem fortemente temidos e discutidos (TEBET, 2021). Com o objetivo de controlar o forte impacto econômico e social das medidas de restrição aproximadamente 151 países segundo Gentilini et al, (2020), criaram ou reforçaram políticas trabalhistas e de assistência social. 

Tebet (2021) destaca que, dentre as medidas discutidas, as propostas de criação ou ampliação de iniciativas de transferência de renda foram as mais relevantes. Inicialmente, as movimentações políticas encaminhavam-se para amenizar o impacto da pandemia sobre os trabalhadores informais e pequenos comerciantes. Mas, apesar das preocupações e incertezas que surgiram após o anuncio oficial da pandemia, para a realização de serviços e uso de equipamentos de assistência social no Brasil não houve clara orientação e informação. A exemplo do Programa Bolsa Família (PBF), o informe oficial repassado aos gestores e equipes técnicas foi o de número 707, de 25 de março de 2020, sobre o “Uso dos recursos do IGD/PBF no enfrentamento da emergência causada pelo Covid-19” que orienta sobre a possibilidade de gasto de recursos com equipamentos de proteção individual (EPI[1]).

Em 2 de abril de 2020, decorrente de grande mobilização social, foi criado o Auxílio Emergencial Temporário (AET), através da Lei 13.982[2], que estabeleceu medidas de proteção social durante o período pandêmico e instituído pela Medida Provisória n. 936. Inicialmente, o Auxílio Emergencial foi um repasse financeiro no valor de R$ 600,00 por pessoa, no limite de 2 beneficiários na família. Para mães-solo desempregadas, autônomas, trabalhadoras informais ou micro empreendedoras individuais foram concedidos R$ 1.200.00 com duração de três meses, podendo o prazo ser estendido (SIQUEIRA et al, 2021). 

3.1 Ações de assistência social durante a pandemia

Nesse contexto de incertezas e tumulto para assegurar a instalação do Auxílio Emergencial, os demais equipamentos e modalidades da Assistência Social[3] permaneceram sem orientações ou determinações operacionais oficiais. Enquanto os Postos de Atendimento ao Cadastro Único e Programa Bolsa Família foram orientados por instruções operacionais e publicações de Decretos que informaram sobre o adiamento de prazos de atualização cadastral, acompanhamento de condicionalidades e averiguação cadastral, os Centros de Referência da Assistência Social sem orientações oficiais de como proceder no funcionamento permaneceram de portas abertas e dependeram das deliberações de gestões municipais.

 Mesmo a Portaria nº 54/2020 de 01.04.2020 teve um teor apenas burocrático no dia-a-dia do trabalho, embora dispusesse sobre o funcionamento dos serviços assistenciais na pandemia. Com isto, os municípios pelo país afora tiveram dificuldade no acesso a EPI’s para os técnicos da Assistência Social, não houve flexibilização do horário de trabalho ou divisão de trabalho por escala, dentre outros agravantes que foram motivados pelos ideais negacionistas de diferentes gestores.

O Programa Criança Feliz que realiza visitas domiciliares às crianças participantes e reforça a integração das políticas de atenção à primeira infância no território a fim de aproximar os serviços da Política Social às famílias tiveram seus serviços presenciais interrompidos e precisaram utilizar-se dos meios tecnológicos e remotos[4] para realização dos seus serviços. Este caso mostra uma problemática que foi igual ao que ocorreu no restante dos serviços: o público da assistência social, em especial os beneficiários do PBF, nem sempre dispõe dos recursos necessários para participar dos encontros. 

Isto se verifica também no Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos que realiza, regularmente, atividades em grupos separados por faixa etária com eventos artísticas, culturais, de lazer e esportivas. Procura, com isto, orientado por uma intervenção social, estimular os usuários construir ou reconstruir vivências individuais e coletivas de grupos. Público-alvo dessa iniciativa são todas as pessoas que tiveram seus direitos violados, submetidas a trabalho infantil, jovens e crianças fora da escola, jovens cumprindo medidas socioeducativas, idosos em situação de vulnerabilidade sem apoio familiar e sem acesso a serviços sociais e demais públicos identificados como potenciais vulneráveis. O distanciamento social impede ou dificulta sua finalidade em promover a interação social e fortalecer as relações comunitárias como garantia de integração e de troca de experiências entre os participantes (MINISTÉRIO DA CIDADANIA, 2021).

Por causa da impossibilidade de deslocamento de idosos e pessoas com deficiência durante o período de maior transmissibilidade houve discussão a respeito do Benefício de Prestação Continuada (BPC) [5]. O BPC é operacionalizado pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e, indiretamente, pelo Cadastro Único porque todos seus beneficiários devem estar cadastrados e com suas informações atualizadas no período limite de 2 anos. Como medida de combate ao coronavírus, o Cadastro Único também suspendeu seus atendimentos presenciais o que criou um entrave aos beneficiários e candidatos ao benefício. 

Neste cenário, mesmo o fortalecimento dos canais remotos de comunicação com as centrais de atendimento responsáveis pelo BPC não foi capaz de garantir a totalidade do acesso aos serviços por falta da universalidade da inclusão digital. Com a ressalva que o pagamento da parcela não implicaria no reconhecimento do direito ao benefício, a Lei nº 13.982, de 2 de abril de 2020, também autorizou o INSS repassar parcelas mensais de R$ 600,00 a requerentes do BPC, mesmo se ainda aguardavam análise dos seus requerimentos a benefício.

No âmbito do Cadastro Único, conforme as portarias e decretos já citados anteriormente, alguns prazos operacionais para manutenção e revisão cadastral foram alterados ou suspensos. Assim foi adiado o processo de Averiguação Cadastral, que identifica e trata possíveis irregularidades ou conflito de informações de beneficiários de programas sociais, de execução anual. De mesma forma, o processo de Revisão Cadastral, que faz o levantamento dos cadastros desatualizados há mais de 24 meses, emitindo alertas e penalidades em benefícios até sua regularização também foi suspenso. Com isso, PBF e demais benefícios, mesmo que com data de atualização expirada, não tiveram seus pagamentos interrompidos. Os processos de bloqueio, suspensão e cancelamento de PBF por descumprimento de condicionalidades e de BPC por não inserção no Cadastro Único também sofreram suspensão.

Em dezembro de 2019, segundo dados obtidos pelo Sistema de Consulta, Seleção e Extração de Informações do CadÚnico – CECAD (2022), haviam 28.884.00 famílias cadastradas. Em novembro de 2021, último mês disponível para consulta, o número de famílias em situação de pobreza havia aumentado para 32.166.847. Destas, 48% encontravam-se em situação de extrema pobreza, com rendimentos brutos per capita de até R$ 89,00; 10% estavam em situação de pobreza, com renda bruta per capita de até R$ 178,00.; e 21% caracterizavam-se como famílias de baixa renda, com renda de até meio salário mínimo per capita.

Por meio da Nota Técnica nº 20/2020 do Ministério da Cidadania as Secretarias Municipais de Assistência Social foram informadas sobre a regulamentação e possibilidade de oferta de benefícios eventuais no contexto do enfrentamento dos impactos da pandemia da COVID-19. Com a publicação deste documento, as gestões municipais puderam começar a organizar o destino de benefícios eventuais de caráter temporário a indivíduos e famílias que não possuíssem meios de satisfazer suas necessidades básicas com recursos próprios.

3.2 Auxílio Emergencial Temporário (AET) durante a pandemia

Durante toda a pandemia, na mídia e no esforço de operacionalização de serviços e programas, o carro-chefe da Assistência Social no Brasil foi o pagamento do Auxílio Emergencial Temporário. Para ser contemplado pelo auxílio, os candidatos deveriam ter idade mínima de 18 anos (com exceção de mães adolescentes a partir dos 16 anos de idade), não estar empregado formalmente, possuir renda familiar mensal dentro dos critérios do Cadastro Único, não ser beneficiário de programas previdenciários ou assistenciais do governo federal, com exceção do PBF, e não ter recebido, no ano de 2018, rendimentos tributáveis acima de R$ 28.559,70.

A aplicação destes critérios de elegibilidade ao auxílio chegou a diferenciar três grupos distintos de beneficiários: as famílias inseridas no Cadastro Único; os beneficiários do Programa Bolsa Família; e os trabalhadores autônomos, informais e microempreendedores que não estão na base de dados do CadÚnico. Dentro deste público, apenas o terceiro grupo precisaria se cadastrar por seus membros não serem registrados (“invisíveis”) nos sistemas de informação do Governo Federal. Os beneficiários do Programa Bolsa Família que atenderam ao critério de elegibilidade do Auxílio Emergencial tiveram seus benefícios suspensos para pagamento do auxílio. Os cidadãos inseridos na base de dados do Cadastro Único tiveram seus dados analisados automaticamente, conforme informações prestadas nas últimas entrevistas.

O grupo de candidatos ao recebimento do AET formado por público não-CadÚnico teve que fazer sua solicitação através de aplicativo por celular ou site oficial com a garantia de que o processo de aprovação (ou não) duraria 05 dias úteis e, caso aprovado, sairia em 03 dias o pagamento. Entretanto, na prática, esse processo atrasou e chegou a durar na média 60 dias[6]. Como consequência, o processo de solicitação, aprovação e pagamento do Auxílio Emergencial invalidou, em boa parte, ações de incentivo ao distanciamento social porque órgãos públicos responsáveis pelo pagamento e informações[7] tornaram-se locais de aglomeração em caso de atrasos dos processos e rejeição de solicitações sem maiores justificativas.

Cabe aqui também destacar que, no período inicial do pagamento do AET, os sistemas se mostraram instáveis e consequentemente os órgãos públicos ficaram superlotados. Aí surgiram, em partes da sociedade, suspeitas e discursos estigmatizantes (SILVA, GUERRA e COSTA, 2018) de caráter negacionista ou oposicionista em relação à população beneficiada por transferências, conforme se pôde ouvir durante a prestação dos serviços no âmbito da assistência social: “Não pode sair de casa para trabalhar, mas pode sair para ficar na fila do banco”, “Recomendam ficar em casa, mas aglomerar para ganhar dinheiro fácil pode.”, “É isso que esse pessoal quer: arranjar desculpa para não trabalhar e ganhar dinheiro fácil.”.

No que tange as principais problemáticas, Tebet et al (2021, p. 683) colocam:

Os pontos, para fins do debate aqui proposto, passam pela falta de transparência pública sobre as aprovações, reprovações e análises dos cadastros, as demoras em realizar as avaliações e a dificuldade em fazer com que o benefício chegue até as famílias. A estes problemas da implementação, somam-se ainda as dificuldades de acessibilidade digital como: uso do aplicativo, que exige familiaridade com a tecnologia, acesso à internet e posse de smartphones. Além disso, a falta de um canal de atendimento e orientação por telefone, ou mesmo on-line, dificultou a comunicação direta e de possíveis soluções simples de adequação do cadastro. A decisão de implementar o Auxílio Emergencial sem a articulação de estados e municípios, em uma perspectiva de pacto federativo e de descentralização das políticas públicas, também prejudicou ainda mais aqueles que necessitavam do benefício. Outro ponto importante observado no âmbito da implementação foi a ausência de esforços, em nível local, para a busca ativa das pessoas mais vulneráveis nos municípios.

            Ainda como problemática operacional, no contexto da suspensão das atividades presenciais e de diversos atendimentos, mesmo o público de PBF e Cadastro Único sofreu com a divergência de informações entre a situação atual da família e a situação informada na última entrevista. As primeiras listas com os motivos pelos quais os auxílios foram negados a estes públicos só foram disponibilizadas no Sistema de Gestão do Programa Bolsa Família (SIGPBF) em maio de 2020.

            Ainda que com todas as suas dificuldades na execução, o Auxílio Emergencial conseguiu atender a 68,3 milhões pessoas com pelo menos uma parcela do benefício. Segundo o Ministério da Cidadania, o programa foi capaz de atender a 60% da população[8].

A partir dos primeiros cinco meses, o governo federal redesenhou o benefício e acrescentou critérios de elegibilidade e maior rigidez no cruzamento de dados com objetivo de verificar o real direito de acesso ao programa. Nesta etapa, o valor repassado diminuiu para R$ 300,00 ou R$ 600,00 para famílias chefiadas por mulheres, durando o pagamento até 31 de dezembro de 2020 (SIQUEIRA et al, 2021).

Em 2021, com a permanência da situação de pandemia e agravamento econômico principalmente pelo alto índice de desempregados, ultrapassando os quatorze milhões (DE BOLLE, 2020) e considerando sem enquadrar no quantitativo citado os desalentados (SIQUEIRA et al, 2021), que por falta de condições materiais e perspectiva desistiram de buscar emprego, o governo federal retoma o pagamento do AET, mais uma vez com novas regras: desta vez, houve limitação de pagamento a uma pessoa por grupo familiar. Mulheres chefes de família monoparental receberam R$ 350,00; indivíduos que moram sozinhos receberam R$ 150,00; e pessoas com famílias mais numerosas ou que em 2020 tiveram mais de dois membros como beneficiários, tiveram direito a R$ 250,00. Não houveram novas solicitações de benefício, para esta etapa foram reavaliadas as pessoas que estavam elegíveis no último mês de pagamento em dezembro de 2020 (SILVA; SOUSA; LIMA, 2021).

Na primeira versão do Auxílio Emergencial, cerca de 66 milhões de brasileiros foram beneficiados com o repasse. Em 2021, na sua última versão, o número de beneficiários baixou para 39,4 milhões de pessoas. Conforme o Ministério da Cidadania (2021), o processo de reavaliação de cadastros resultou na redução deste número (ANDRETTA; ARAÚJO, 2021). Com o fim do auxílio, em setembro de 2021 o PBF contava com 14,6 milhões de famílias beneficiadas (MINISTÉRIO DA CIDADANIA, 2021).

Para Yazbek e Faleiros (2020), o Auxílio Emergencial não foi pensado e adotado pelo governo federal com o objetivo de fortalecer as ações do SUAS. O suporte financeiro repassado através do benefício emergencial teve como preocupação a situação do cenário econômico e foi fortalecido pela pressão popular. Entretanto, os impactos são refletidos diretamente na assistência social haja vista o cenário de perda de emprego, alta taxa de infecção e internações e variação das taxas de pobreza e miséria, somando-se às outras iniciativas de transferência de renda como o PBF e o BPC (SILVA; SOUSA; LIMA, 2021).

Segundo Silva Júnior e Bartholo (2020), o AET teve grande papel na redução da pobreza no Brasil, tendo refletido na menor taxa de extrema pobreza das últimas décadas: "esses dados revelam a efetividade do AET em termos de meca­nismo de transferência de renda no Brasil, cujos reflexos também podem ser observados em relação à queda do PIB projetada no início da pandemia". O AET foi responsável por impactar positivamente no acesso aos níveis básicos de consumo de grande parte da população brasileira, considerada desfavorecida economicamente, auxiliando na sobrevivência e amenizando o contexto de vulnerabilidade social agravado (SIQUEIRA et al, 2021).

4. Considerações finais

            No Brasil, a situação emergencial de saúde causada pela descontrolada disseminação do coronavírus em 2020 refletiu diretamente em inúmeros setores da sociedade de forma desigual. Os setores trabalhista e econômico foram gravemente atingidos como mostra o aumento do desemprego, a impossibilidade de continuar a exercer diversas modalidades de trabalho informal, o agravamento da pobreza e a volta ao risco de fome.

As discussões em torno de políticas públicas de assistência social e transferência de renda voltaram a ser prioridade na agenda política brasileira e na sociedade que, muitas vezes alheia a essas discussões, pôde perceber a importância de um sistema de Proteção Social concreto, bem estruturado e com orçamento mais amplo. 

O AET surgiu como consequência da já existente discussão sobre o fortalecimento da Rede Protetiva de Assistência Social, da possibilidade de criação de um programa de Renda Básica Universal e da pressão popular através das associações civis, economistas, cientistas sociais e dos mais diversos grupos de pessoas afetadas pela onda de pobreza e desemprego acentuada com a crise sanitária (RBRB, 2019).

O histórico de enxugamento das políticas públicas e dos equipamentos e serviços da Assistência Social no Brasil, a diminuição dos recursos destinados à promoção e oferta destes serviços e o não planejamento prévio de ações emergenciais para eventuais situações de calamidade pública foram fatores cruciais para a crise econômico-social enfrentada de 2020 até os dias atuais.

O contexto econômico, social e político em curso no período pré-pandemia já se mostrava desfavorável. O conjunto de fatores vivenciados desde as melhorias nos índices econômicos e sociais apresentados no período entre os anos 2000 e 2014, somados à crise econômica que resultou na problemática político-institucional ocorrida em 2016 favoreceu a mudança no percurso das políticas públicas para um ramo conservador. A exemplo de ações que impactaram, principalmente nos serviços de Assistência Social, a Emenda Constitucional 95/2016 à medida que promove o ajuste fiscal reflete no andamento da oferta dos serviços e benefícios do SUAS.

Conforme afirma Boschetti (2020), o foco reforçado em programas de transferência de renda em situações emergenciais, como a da pandemia da COVID-19 é capaz de amenizar os efeitos da perda de direitos trabalhistas e impactos econômicos, mas falha na promoção da redução das desigualdades sociais vindas do convívio e das relações de inclusão e fortalecimento de vínculos.

A criação e implementação do AET, com sua divisão de grupos-alvo, parece-nos também ter tido falhas que poderiam ter sido evitadas. Um exemplo prático diz respeito a continuidade e ampliação da fila de espera do Programa Bolsa Família. Com os enxugamentos ocorridos, mesmo as pessoas que estavam elegíveis ao PBF estivessem inseridas no Cadúnico e continuassem como público do AET passaram a ficar fora da folha de pagamento dos dois benefícios, resultando numa interrupção e reversão caminhando no processo de redução da situação de pobreza extrema no país.

Com levantamento histórico da existência dos programas sociais de transferência de renda no Brasil e das principais ações no âmbito da Assistência Social no período da pandemia o, conseguimos perceber que parece necessário, ao superar este período pandêmico, incluir, nas discussões públicas, novas possibilidades para novos tempos. 

A Assistência Social empenha-se no acolhimento, na percepção das situações individuais de cada pessoa e família e no incentivo a ações de inclusão e interação social. O exemplo do aplicativo utilizado pelo AET mostra que ainda não estamos prontos, enquanto país, para adotar sistemas de concessão de benefícios à população em situação de vulnerabilidade social e econômica como apoio de meios tecnológicos, quiçá possivelmente digitalizados, ou atendimentos remotos psicossociais e especializados.

O Sistema de Proteção Social brasileiro deve cumprir para o que, supostamente, foi proposto: a proteção social. O histórico de programas mostra suas pretensões inicias ambiciosas, mas que sofrem enxugamentos, e como a distribuição de recursos altos sofre reduções e, neste sentido, caminha contra a Política Nacional de Assistência Social. Para fortalecer esses sistemas, seria importante movimentos sociais e organizações manter com firmeza os diálogos e as reivindicações a fim de não permitir que, num futuro remoto, soframos as consequências de mais ações emergenciais desordenadas.

 

[1] Instituído pela Norma Regulamentadora NR06 do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), que o define como: ‘‘todo dispositivo ou produto, de uso individual utilizado pelo trabalhador, destinado à proteção de riscos suscetíveis de ameaçar a segurança e a saúde no trabalho’’ - https://sistemaeso.com.br/blog/seguranca-no-trabalho/o-que-e-um-epi-equipamento-de-protecao-individual

[2] “Altera a Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993, para dispor sobre parâmetros adicionais de caracterização da situação de vulnerabilidade social para fins de elegibilidade ao benefício de prestação continuada (BPC), e estabelece medidas excepcionais de proteção social a serem adotadas durante o período de enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (Covid-19) responsável pelo surto de 2019, a que se refere a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020”; https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2020/lei-13982-2-abril-2020-789931-norma-pl.html

[3] Como equipamentos da Assistência Social, aqui nos referimos aos Postos de atendimento do Cadastro Único e Programa Bolsa Família, Centro de Referência da Assistência Social (CRAS), Centro de Referência Especializada da Assistência Social (CREAS) e Secretarias Municipais de Assistência Social.

[7] Caixa Econômica Federal, Casas Lotéricas, CRAS, Cadastro Único, Secretarias Municipais de Assistência Social.

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