Da soja ao boi: análise da distribuição do Programa Nacional de Apoio ao Médio Produtor Rural


Juliano Luiz Fossá
Doutor em Administração pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); Professor na Faculdade Empresarial de Chapecó (UCEFF).

Alessandra Matte
Doutora em Desenvolvimento Rural pelo Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural (PGDR),UFRGS; Profa. no Programa de Pós-Graduação em Agroecossistemas (PPGSIS), Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR)

Arlene Renk
Doutora em Antropologia pelo Museu Nacional, UFRJ; Professora titular da Unochapecó; Docente Permanente do Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais

Lauro Francisco Mattei
Doutor em Ciência Econômica pela Universidade Estadual de Campinas, Prof. do Programa de Pós-Graduação de Administração da UFSC

Referências

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[1] Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF).

[2] Outras iniciativas como a assistência técnica e extensão rural também foram adotadas a este respeito.

[3] Ver: Veiga (1991), Abramovay (1992) e Lamarche (1993).

[4] Aquino, Gazolla e Schneider (2015); Bianchini (2015); Wesz Junior (2020); Schneider, Cazella e Mattei (2021b); Fossá (2021).

[5] Conforme mencionado na seção metodológica, os valores financeiros foram deflacionados pelo INPC para o ano de 2020.

1. Introdução

O crédito rural se constitui, ao longo da trajetória da agricultura brasileira, como a principal política pública de apoio ao setor. Institucionalmente, a partir do Sistema Nacional de Crédito Rural (SNCR), em 1965, as ações se unem em um programa de Estado. Com o passar dos anos, a agricultura familiar se viu à margem deste acesso e, por meio das suas organizações sociais, entendimento governamental e concepção conceitual, alcançou somente em 1996 um programa específico de crédito a sua categoria[1].

Adicionalmente, no plano histórico, em 2010, é instituído o Programa Nacional de Apoio ao Médio Produtor Rural (PRONAMP) com objetivo de apoio a esta classe, exclusivamente pelo mecanismo de crédito, categoria esta que até os dias atuais está definida somente pelo critério econômico da renda.

Ao considerar sua história recente, o programa se caracteriza por financiar montantes expressivos em termos de recursos, contudo, apresenta ainda um número reduzido de operações contratuais, o que, consequentemente, causa um valor médio dos contratos bem acima, por exemplo, das operações via Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF). Além desta, outras características são marcantes ao PRONAMP, a saber: i) concentração dos recursos e dos contratos nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste; ii) destinação da ampla maioria dos recursos de custeio para poucas culturas e atividades, preponderantemente à soja e à bovinocultura.

Isto posto, o objetivo deste estudo é analisar a distribuição dos contratos e recursos do PRONAMP entre as regiões e estados brasileiros. Foram consideradas as informações da Matriz de Dados do Crédito Rural do Banco Central do Brasil (BACEN), quanto ao número de contratos, recursos acessados e destinação entre as principais culturas e atividades.

Em termos de organização, este trabalho está estruturado em quatro partes, além desta introdução. Na primeira parte, são constituídas as discussões sobre a política de crédito rural no país até o estabelecimento do PRONAMP. Em seguida, é apresentado o percurso metodológico, escolhas e delimitações da pesquisa. Na terceira seção são analisados os resultados a partir das estatísticas do programa, bem como é estabelecido um diálogo com outros autores sobre a temática. Por fim, nas considerações finais, são retomadas as principais reflexões sobre o estudo, bem como são apresentadas proposições para o horizonte futuro.

2. Crédito rural: Programa Nacional de Apoio ao Médio Produtor Rural (PRONAMP)

O apoio do Estado brasileiro à agricultura nacional até a década de 1960 foi marcado por ações e iniciativas setoriais e pela seletividade dos direcionamentos dos recursos materializados pelo crédito rural. Delgado (1985, 2020) destaca a existência de mecanismos de crédito rural mesmo antes da criação do SNCR em 1965.

Esse sistema, sob a perspectiva da conhecida “revolução verde”, estabelecia que o crédito rural fosse operacionalizado em conformidade com a política de desenvolvimento à produção rural nacional. Em outras palavras, os recursos foram direcionados para viabilizar a tecnificação/mecanização, especialização e estruturação produtiva e, principalmente, no que se refere ao financiamento em grande escala de insumos e produtos químicos na agropecuária brasileira. Nessa direção, o Estado brasileiro se utilizou do SNCR[2] para induzir o processo seletivo de modernização da agricultura, ao priorizar os grandes produtores para produzir em grande escala e, com isso, servir ao mercado externo e gerar saldos na balança comercial.

Na mesma perspectiva, Grisa e Schneider (2015, p. 24), ao relatarem a trajetória do SNCR e as ações governamentais, apontam que neste período foram realizadas diversas iniciativas, como “[...] garantia de preços mínimos, seguro agrícola, pesquisa agropecuária, assistência técnica e extensão rural, incentivos fiscais às exportações, minidesvalorizações cambiais subsídios à aquisição de insumos [...]”.

Ao longo das décadas subsequentes, a concessão de crédito rural não ocorreu de forma igualitária, antes pelo contrário, seguiu a lógica já estabelecida, especialmente quanto a um processo discricionário e de privilégios. Nos termos de Sorj (1980) e Graziano da Silva (1982), a maior parte dos volumes de crédito rural foi direcionada para os grandes produtores, especialmente aqueles das regiões Sul e Sudeste que se dedicavam às culturas e atividades para exportação. A consequência deste processo, já de amplo conhecimento na comunidade acadêmica, resultou na exclusão e marginalização do segmento atualmente reconhecido majoritariamente como agricultura familiar.

A redução do crédito rural durante a década de 1980 foi gerada pela dependência dos recursos oriundos do governo federal, destinando para outros setores produtivos, o que causou estagnação ao setor agrícola. Graziano da Silva (1998) aponta quatro fatores decisivos para o enfraquecimento da agricultura nessa década: a) expressiva redução dos incentivos do crédito rural; b) recessão da economia nacional; c) caráter desigual e de exclusão originado no processo de modernização; d) alto custo de importação de novas tecnologias.

A partir dos anos 1990, no que se refere ao crédito rural, as importantes alterações de concepção de entendimento[3] sobre a agricultura familiar culminaram, em 1996, na criação do PRONAF. O programa, em termos de intervenção estatal, foi um divisor de águas na atenção ao segmento da agricultura familiar no país e ao longo de sua trajetória passou por inúmeras alterações, especialmente no sentido de ganhar capilaridade em cobertura e expansão entre todas as regiões brasileira (MATTEI, 2015; SCHNEIDER, CAZELLA; MATTEI, 2021a).

Em relação ao PRONAMP, este foi criado em 2010, no Plano Safra 2010/2011, com objetivo de incentivar e potencializar a “classe média” de produtores rurais. Ao considerar que já se passaram mais de uma década da criação deste programa, há de se considerar que ainda falta uma definição conceitual no meio acadêmico sobre esta classe, e se de fato possa a existir, pois até o momento não estão claras as diferenciações para além da questão dos rendimentos econômicos.

Atualmente, o enquadramento estabelecido no Manual do Crédito Rural vigente condiciona à categoria aqueles agricultores com renda bruta anual de até R$ 2.400.000,00 (dois milhões e quatrocentos mil reais). A taxa de juros do programa foi fixada ao ano em 5,5% ao custeio e 6,5% sobre o investimento, conforme o último Plano Safra (2021/2022), posicionando-se no centro entre as tarifas executadas pelo PRONAF e aos demais agricultores (os grandes e muito grandes). Acerca das demais condições, especialmente quanto aos períodos de pagamento, o PRONAMP tem o prazo de 12 meses para o pagamento do custeio e de até oito anos para o investimento.

Segundo Brinker (2019), os recursos de investimento do PRONAMP podem ser direcionados tanto para construção, reformas e ampliação de estruturas permanentes quanto para irrigação, drenagem, florestamento, reflorestamento e formação de lavouras permanentes. Além disso, tais recursos podem ser alocados na compra de veículos, máquinas e equipamento novos e usados. Em síntese, o programa contempla as demandas tanto de custeio quanto de investimento requeridas via crédito rural.

É necessário ressaltar que o programa PRONAMP não se diferencia muito as condições do acesso ao crédito rural, com exceção do PRONAF, das linhas tradicionalmente existentes. A questão de diferenciação da taxa de juros à “classe média rural” poderia ser equacionada nas próprias regras contratuais, não necessitando da criação de um programa específico, que, nos parece, foi institucionalizado mais com fins políticos em 2010 do que com outros interesses, como o desenvolvimento da agricultura brasileira.

Contudo, considerando sua existência, é fundamental o debate sobre os rumos que o programa deve assumir no futuro, especialmente quanto aos itens financiados, visando o pleno fortalecimento rural e o atendimento das demandas da sociedade brasileira no que se refere à produção agropecuária.

3. Determinação da abordagem e definição das características investigadas do PRONAMP 

Para encontrar as características do PRONAMP que serão selecionados para o atual estudo, seguiu-se preceitos de métodos científicos, que, conforme Flick 2009, indicam caminhos percorridos pelo pesquisador com o objetivo de encontrar seus resultados de pesquisa. A este respeito, a pesquisa aqui apresentada baseou-se nesta perspectiva, ou seja, guiada por métodos científicos com o objetivo de compreender a realidade social.

No que se refere à sua abordagem, optou-se por métodos quantitativos e qualitativos. Por pesquisa quantitativa partimos da definição de Martins e Theóphilo (2016, p. 107), que consideram “aquelas em que os dados e evidências coletados podem ser quantificados, mensurados”, em que essas se orientam a partir de conceitos estatísticos. Já acerca da abordagem qualitativa, compreendemos que esta possibilita dois aspectos fundamentais aos pesquisadores: o primeiro diz respeito a um olhar interdisciplinar e o segundo está associado ao pleno aprofundamento do objeto de estudo (DENZIN; LINCOLN, 2010; MARCONI; LAKATOS, 2018). Desta forma, utilizamos o conceito de Creswell (2010), que assume na pesquisa qualitativa a valorização dos sentidos e os significados de indivíduos ou grupos diante dos problemas sociais (CRESWELL, 2010).

O primeiro movimento para a realização deste estudo foi uma pesquisa bibliográfica nos principais referenciais teóricos sobre a temática, especialmente no que se refere aos trabalhos acadêmicos sobre o PRONAMP. As informações estatísticas relacionadas ao crédito rural, fonte principal de dados para análise neste artigo, foram acessadas junto ao BACEN, especificamente na plataforma digital “Matriz de Dados do Crédito Rural”. Essa plataforma possibilita a busca e pesquisa de dados de forma personalizada, a qual foi efetiva em garantir as informações utilizadas neste estudo.

Foram observados os dados quanto ao número de contratos, volume de recursos e principais produtos financiados. Quanto aos valores monetários, estes foram deflacionados a partir do Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), mensurados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), para o ano de 2020. O período analisado da série histórica é de 2013 a 2020, conforme disponibilidade dos dados públicos na referida plataforma.

Foram contemplados dados da Matriz de Dados do Crédito Rural junto ao BACEN. O período analisado foi compreendido entre 2013 e 2020 e as informações apresentadas dizem respeito ao número de contratos, valores financeiros e suas derivações, bem como a distribuição dos recursos entre as unidades federativas do país. Foram contemplados os dados em todo o território nacional, considerando, principalmente, a existência dos dados estatísticos e o objetivo proposto para este estudo. 

A análise dos resultados quantitativos compreendeu o uso da estatística descritiva. Já as informações qualitativas, obtidas por meio de pesquisa bibliográfica, deram suporte à discussão dos resultados. Desse modo, com intuito de compreender a dinâmica de acesso, os resultados foram analisados por grandes regiões do país e por estado, com o objetivo de compreender e correlacionar com a diversidade de sistemas produtivos presentes nas principais regiões em termos de acesso ao crédito.

 

4. Distribuição das contratações realizadas no âmbito do PRONAMP

No período em apreciação foram efetivadas 1.522.684 operações contratuais no âmbito do PRONAMP, passando de 213.933 em 2013 para 184.170 em 2020 (Tabela 1). Consequentemente, isso resultou em uma redução de 16,16% quanto ao número de contratos, além de uma média anual de contratos de 190.336 operações.

Tabela 1 – Distribuição dos contratos realizados via PRONAMP no Brasil por grande região geográfica, entre 2013 e 2020

 

 

Fonte: elaboração dos autores (2022), a partir de dados do Banco Central do Brasil (2021).

 

Entre as grandes regiões brasileiras (Gráfico 1), assim como ocorre com o PRONAF[4], a maior parte dos contratos realizados via PRONAMP está concentrado na região Sul do país, a qual, entre 2013 e 2020, alcançou 51,76% das operações. Na sequência, posicionam-se as regiões Sudeste e Centro-Oeste, que, respectivamente, registraram 24,62% e 13,98% do total de contratos realizados.

Gráfico 1 – Total de contratos realizados via PRONAMP por grande região geográfica, entre 2013 e 2020

 

Fonte: elaboração dos autores (2022), a partir de dados do Banco Central do Brasil (2021).

 

Estes resultados se aproximam aos apresentados por Brinker (2019), em que, segundo o autor, estas regiões registram a maior concentração em função das características e do perfil da agricultura presentes em tais localidades. Corroborando com o autor, Fossá et al. (2021), ao analisarem o acesso ao PRONAF nos municípios brasileiros em paralelo aos dados do Censo Agropecuário de 2017, constatam que os perfis relativos à produção agropecuária nos municípios com maiores contratantes, localizados principalmente na região Sul, caracterizam-se pela importante presença da atividade pecuária e pela produção agrícola de soja e milho.

As regiões Nordeste e Norte, somadas, acumularam apenas 9,64% das operações, o que pode ser explicado majoritariamente a partir de três aspectos principais: i) perfil da agricultura regional centrada nos extremos, ou seja, agricultura familiar e empresarial, tendo como consequência um número reduzido de agricultores que se enquadram nos termos do PRONAMP; ii) falta de mobilização e um delay tanto do sistema bancário regional como dos próprios agricultores familiares acerca do acesso por esta linha de crédito; iii) condições de financiamento não atrativas no comparativo com as linhas tradicionais de crédito rural historicamente existentes. Este cenário dialoga com obras clássicas da literatura brasileira, como Graziano da Silva (1982) e Delgado (1985), que discorrem sobre a mesma problemática em torno do crédito rural.

No que se refere à distribuição entre os estados da Federação, o Paraná é o estado com maior número de registros contratuais (359.334) entre 2013 e 2020. Em segundo lugar se posiciona o estado do Rio Grande do Sul,com 317.506 contratos no período, o que significa 20,85% do total no país. Essa informação se instrui de alta relevância, pois, no âmbito do PRONAMP, a constituição do estado do Paraná como o maior em número de contratos rompe com a prevalência do Rio Grande do Sul a partir de 2015, condição esta que, por exemplo, via PRONAF nunca ocorreu na trajetória do programa.

Apesar desse montante, ambos os estados apresentaram taxa de crescimento negativa na proporção de -15,2% para o Paraná e -33,1% para o Rio Grande do Sul. Entre os dez estados, Goiás apresentou maior taxa de crescimento na proporção de 35,9%, o que pode ser explicado por investimentos, especialmente na atividade pecuária, uma vez que esse estado é o maior produtor de peru no país, por exemplo.

Em terceiro lugar, quanto ao número de contratos, encontra-se o estado de Minas Gerais, com 182.969. A relação dos dez estados é completada por São Paulo, Santa Catarina, Goiás, Mato Grosso do Sul, Bahia, Mato Grosso e Espírito Santo. A concentração das operações contratuais é evidenciada a partir da Tabela 2, ao demonstrar que somente estas dez unidades da Federação concentram aproximadamente 93% do total das operações contratuais realizadas no país entre 2013 e 2020.

Tabela 2 – Distribuição dos contratos realizados via PRONAMP entre os dez estados com maior número de contratos realizados, no período 2013-2020 

 

 

Fonte: elaboração dos autores (2022), a partir de dados do Banco Central do Brasil (2021).

 

A condicionante da concentração não é algo novo em se tratando das ações de crédito rural no país, pelo contrário, pois, antes mesmo da institucionalização do SNCR em 1965, até os dias atuais, esta é uma das principais marcas da política de financiamento da agricultura brasileira, não obstante, se manifesta ao PRONAMP no período analisado no que se refere ao número de contratos.

5. Distribuição do montante financeiro disponibilizado pelo PRONAMP e seu destino

O montante financeiro disponibilizado pelo programa, entre 2013 e 2020, alcançou o total de R$ 188.872.485.930,12, passando de aproximadamente R$ 19,77 bilhões em 2013 para algo em torno de R$ 28,78 bilhões em 2020[5], ou seja, um crescimento de 45,53% nesse período. É importante ressaltar que, conforme destacado anteriormente, no mesmo período o número de contratos apresentou redução equivalente a 16,16%.

Tabela 3 – Distribuição dos montantes financeiros disponibilizados via PRONAMP no Brasil por grande região geográfica, entre 2013 e 2020

Fonte: elaboração dos autores (2022), a partir de dados do Banco Central do Brasil (2021).

Ao analisarmos a distribuição entre as grandes regiões do país, conforme Tabela 3 e Gráfico 2, o cenário modifica-se apenas levemente em relação ao quadro apresentado quanto ao número de contratos. A região Sul concentrou 42,70% do montante dos recursos, seguida das regiões Sudeste e Centro-Oeste, com 26,66% e 19,49%, respectivamente. Estas três regiões, somadas, alcançam o total de 88,85% dos recursos distribuídos pelo PRONAMP entre 2013 e 2020. As regiões Norte e Nordeste, juntas, alcançaram pouco mais de 11%, com destaque aos estados do Tocantins e da Bahia em relação ao volume de crédito contratado. Notadamente, Nordeste e Norte apresentaram menor taxa de crescimento e menor oscilação ao longo do período analisado, alcançando crescimento de apenas 7,9% e 29,6%, respectivamente.

Gráfico 2 – Montante de recursos contratados via PRONAMP por grande região geográfica e ano, entre 2013 e 2020

 

Fonte: elaboração dos autores (2022), a partir de dados do Banco Central do Brasil (2021).

No que se refere à distribuição entre os estados brasileiros, o Paraná foi o que mais aproveitou o programa, pois entre 2013 e 2020 foram praticamente R$ 40 bilhões (21,12% do total) acessados em crédito rural via PRONAMP (Tabela 4). Na sequência está o estado do Rio Grande do Sul, com acesso em torno de R$ 32,4 bilhões (17,15% do total), e Minas Gerais, com aproximadamente R$ 24,9 bilhões (13,18% do total). Entre os dez estados com maior acesso aos recursos do programa estão ainda: São Paulo, Goiás, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Santa Catarina, Bahia e Tocantins. 

Tabela 4 – Distribuição dos recursos financeiros via PRONAMP entre os dez estados com maior número volume de crédito contratado, no período 2013-2020

 

Fonte: elaboração dos autores (2022), a partir de dados do Banco Central do Brasil (2021).

É importante destacar a alta concentração desses recursos, visto que somente tais estados acessaram 92,01% do montante financeiro. Uma segunda questão que já pode ser identificada é que o programa PRONAMP segue a lógica das linhas tradicionais de crédito rural, ou seja, seletividade e marginalização territorial.

Nota-se, então, que o valor médio dos contratos entre 2013 e 2020 foi próximo a R$ 124 mil, o que expressa amagnitude dos valores financiados pelo programa. Em termos comparativos, no mesmo período, de acordo com Fossá et al. (2021), o valor médio dos contratos do PRONAF foi de aproximadamente R$ 16,9 mil. Entre os estados, destacamos os que apresentaram os três maiores valores médios dos contratos entre 2013 e 2020, a saber: Amapá, com R$ 310.596; Piauí, com R$ 258.751; e Mato Grosso, com R$ 214.231.

Neste sentido, diante das estatísticas apresentadas, o PRONAMP, no período analisado, demonstra um perfil bem distante do programa PRONAF, especialmente quanto ao volume médio dos contratos. Há de se considerar que não se trata de uma etapa na trajetória do acesso ao crédito rural por agricultores brasileiros, pois, certamente, há condicionantes estruturais que limitam a passagem de um programa (PRONAF) para outro (PRONAMP), pelo menos na realidade da ampla maioria dos casos.

No que se refere aos produtos financiados de custeio, quanto às atividades agrícolas entre 2013 e 2020, foram mais de 150 culturas que acessaram os recursos, contudo, há claramente uma concentração em determinados produtos. A este respeito, somente soja, milho, café, arroz e trigo acumularam 74,56% dos contratos e 83,36% do total dos recursos. Nesta perspectiva, percebe-se que o PRONAMP segue a lógica da especialização produtiva, da monocultura e do financiamento de commodities. Já em relação aos recursos de custeio pecuário, a categoria “bovinos”, sozinha, ficou com 93,40% das operações contratuais e 93,79% do volume de recursos, reafirmando o que mencionamos anteriormente quanto à concentração dos recursos em poucas culturas e atividades.

Acerca do destino do recurso para custeio, levantamentos uma hipótese, pautados nas constatações feitas por Matte (2017) e Matte e Waquil (2020). Ao realizar estudo sobre os mercados da pecuária e as mudanças produtivas no Sul do Brasil, os autores apontam a emergência do perfil de criador de bovinos em que sua aptidão principal é a produção de lavouras. Ou seja, parte dos produtores de lavouras temporárias tem investido na atividade pecuária como nova alternativa de renda, uma vez que utilizam resíduos das lavouras e até mesmo o intervalo entre culturas para criação desses animais. Isso significa que o custeio acessado serve para adquirir animais, principalmente, para terminação. Isso nos conduz a levantar a hipótese de que o custeio por parte do PRONAMP possa estar chegando a agricultores familiares, uma vez que os principais fornecedores de terneiros ainda são as formas familiares de produção e pecuaristas familiares. Adicionalmente, o Brasil aumentou incentivos à exportação de carne bovina, o que reacendeu o mercado interno e aumentou o interesse pela atividade (MATTE, 2017; MATTE et al., 2020).

Em relação aos créditos de investimento em atividades agrícolas, as informações da Matriz de Dados do Crédito Rural demonstram que os recursos são realizados, majoritariamente, em máquinas/equipamentos, tratores, demais veículos e galpões/demais estruturas. Ao considerar a grande diversidade de categorização em torno de tais investimentos, é inviável o agrupamento para fins de análise, contudo, com objetivo de registro, somente a variável “trator” significou 12,29% dos contratos e 18,53% dos recursos de investimento agrícola via PRONAMP entre 2013 e 2020.

Acerca dos recursos de investimento em pecuária, assim como ocorreu com o custeio em pecuária, a maior parte foi direcionada à atividade da bovinocultura. A contratação alcançada nesta modalidade de financiamento registrou 61,80% dos contratos e 73,52% dos recursos somente em “bovinos”. Ao acrescentarmos, por exemplo, a rubrica “pastagem”, que, por sua vez, pode ser associada à atividade da bovinocultura, tais percentuais alcançam 68,01% e 79,30%, respectivamente.

6. Considerações

O crédito rural, desde o início do século XX, tem se colocado como principal política pública de apoio à agricultura brasileira, mesmo diante das recentes críticas de necessidade de avançar sobre novas ações. A última grande iniciativa do Estado brasileiro em termos de programa foi a criação do PRONAMP em 2010. Há de se considerar que, sob a égide do discurso de apoio ao segmento dos chamados “médios produtores”, o PRONAMP seguiu a trajetória histórica do crédito rural tradicional ao concentrar recursos, baseando-se em uma afirmação de Sorj (1980), pois, 40 anos depois, o percurso do crédito rural no país segue triplamente seletivo ao priorizar tipos de agricultores, regiões e produtos.

Nesta esteira, a distribuição do PRONAMP, no período analisado (2013-2020), caracterizou-se por concentrar tanto os contratos como os recursos preponderantemente nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste; consequentemente, houve um acesso significativamente restrito nas regiões Norte e Nordeste.

O PRONAMP se manifesta de igual forma ao direcionar a ampla maioria dos contratos e recursos de custeio de investimentos para a cultura da soja e para as atividades da bovinocultura. Está muito claro que esta condição não é somente inerente ao programa, mas também de forma estrutural no desenvolvimento das atividades da agropecuária brasileira, em especial, nas políticas públicas de crédito.

O que se pode constatar é que, ao incentivar a produção da soja, esse recurso massivamente é destinado a indústrias e cooperativas que gerenciam a venda de insumos e a compra do produto final. Por outro lado, na pecuária ainda é preciso compreender melhor quem tem fornecido esses animais e se, indiretamente, essa política não estaria injetando circulação monetária entre outras formas de produção rural.

Por fim, ressaltamos a importância da temática apresentada, uma vez que o crédito rural se constitui, no país, como a principal ação do Estado em prol da agricultura brasileira. Os estudos acadêmicos são fundamentais para compreensão e avaliação de como estes processos se constituem e se, de fato, cumprem os propósitos estabelecidos em seu desenho institucional. Ao finalizarmos esta discussão, apontamos para a necessidade de que novas pesquisas em torno do programa PRONAMP sejam realizadas, especialmente por se tratar de um assunto ainda escasso no meio acadêmico brasileiro. Particularmente, entender sobre o destino do custeio desse programa e sobre a cadeia da criação pecuária nos estados com maior montante destinado para a atividade.

 

 

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