A política regional do governo Lula (2003-2010)


Vitarque Lucas Paes Coelho
Doutor em Desenvolvimento Econômico pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e atualmente Espe- cialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental cedido desde 2003 ao Ministério da Integração Nacional.

1.  Introdução

 O presente trabalho pretende analisar as razões da persistente dificuldade de implementar uma política de desenvolvimento regional no Brasil. A análise focaliza a Política Nacional de Desenvolvimento Regional (PNDR) conduzida pelo governo Lula entre 2003 e 2010, baseando-se na tese defendida por Coêlho (2014).

As origens teóricas e metodológicas da PNDR datam dos anos 1990. Em 1999, Tânia Bacelar de Araújo discorreu sobre a necessidade, a possibilidade e a pertinência de se formular e implementar uma política nacional de desenvolvimento regional no Brasil. Ela denunciava o desaparecimento do tema da pauta de discussão nacional em decorrência da hegemonia neoliberal. Em 2003, Tânia Bacelar aceitou o convite do recém-eleito presidente Lula para chefiar a Secretaria de Políticas de Desenvolvimento Regional do Ministério da Integração Nacional, e, efetivamente, liderou a equipe de trabalho que formulou a proposta da PNDR.

Todavia, mesmo após sua institucionalização por meio do Decreto nº 6.047, de 22/02/2007 (quase quatro anos depois de sua apresentação formal), a PNDR continuou sem instrumentos orçamentários, institucionais ou organizações substantivos para entrar em execução. A isso, acrescente-se a aparente falta de “vontade política” por parte das lideranças regionais para a sua viabilização.

Segundo Coêlho (2014), o avanço retórico e normativo da questão regional durante o governo Lula não foi acompanhado pela evolução dos meios concretos de intervenção nesse domínio, isto é, de políticas públicas. Em que pese o avanço da temática territorial/regional nos documentos das secretarias de governo – inclusive nas esferas subnacionais –, as instituições com mandato regional, como o Ministério da Integração Nacional (MI) e suas superintendências regionais, não contaram com instrumentos adequados para enfrentar as desigualdades regionais brasileiras.

A Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) e a Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM), recriadas durante o governo Lula, continuaram desprovidas de instrumentos efetivos de ação, carecendo tanto de recursos humanos e materiais quanto de legitimidade institucional para coordenar e implementar planos regionais de desenvolvimento. Em outras palavras, essas superintendências foram “esvaziadas” de seu histórico papel no planejamento do desenvolvimento regional. Além disso, até hoje o Congresso Nacional não chegou a um consenso sobre a viabilidade da criação do Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional (FNDR), potencial funding da PNDR, cuja gestão seria subordinada ao MI.

Entender essa visível paralisia da política regional é particularmente relevante no Brasil, onde as desigualdades regionais de renda e os indicadores sociais estão entre os mais graves de todo o mundo. Ademais, tendo em vista o caráter centralizador e concentrador do capitalismo moderno, a preocupação com a questão regional permanece sendo um tema importante. De fato, a ausência de políticas públicas ativas para a redução das desigualdades socioeconômicas regionais é uma questão problemática. Isso é ainda mais verdadeiro no caso do Brasil, país continental e subdesenvolvido em que há uma clivagem regional herdada de seu passado colonial e de sua industrialização recente, fortemente localizada no Centro-Sul.

Araújo (1999, p. 146) resume tal cenário: “entregue apenas às próprias decisões do mercado, a dinâmica regional tende a exacerbar seu caráter seletivo, ampliando fraturas herdadas. Tende a desintegrar o país”. O Nordeste Semiárido e a Região Amazônica compreendem alguns dos grandes espaços nacionais segregados por essa dinâmica regional seletiva. Na falta de uma política de desenvolvimento regional que atue como eixo aglutinador e articulador de ações, vicejam a “guerra fiscal” entre os estados e municípios, as iniciativas localistas e os particularismos nos processos de obtenção de recursos federais e de atração de investimentos privados.

2.  Relevância do projeto nacional de desenvolvimento

Coêlho (2014) afirma que a ausência de um projeto nacional de desenvolvimento econômico e social compromete a implementação de uma PNDR no Brasil. Lembrando os ensinamentos do professor Wilson Cano, uma política efetiva de desenvolvimento regional não pode prescindir da existência prévia de uma política nacional de desenvolvimento em sua formulação e subsequente implantação. Tal política deve contemplar, além dos objetivos nacionais mais gerais (econômicos, políticos e sociais), as linhas básicas que orientarão a formulação das políticas dela derivadas, isto é, as linhas de natureza temática (distribuição de renda, saúde pública, educação etc.), setoriais (agropecuária, mineração, siderurgia, transporte urbano etc.) e, notadamente, regionais, que, guardadas as especificidades territoriais, redesenham os objetivos gerais da política, adequando-os aos principais recortes espaciais do país.

O projeto nacional de desenvolvimento deve fixar claramente quais são seus objetivos e apresentar instrumentos de política econômica pertinentes, informando os limites e os rumos possíveis para a formulação de uma política de desenvolvimento regional coerente. É a partir da política nacional que as demais políticas – regionais, temáticas e setoriais – podem encontrar o arcabouço político, instrumental e institucional necessário à sua formulação e execução. Ela constitui o ancoradouro das demais políticas e antecipa a necessidade de compatibilização entre os planos nacional, regional, temático e/ou setorial.

O desenho dessa política nacional precisa contemplar a possibilidade concreta de manejo de instrumentos de política econômica, sem os quais não só a política nacional se inviabilizaria, mas também as políticas dela derivadas. Por exemplo, se, por força de acordos ou tratados políticos, o país não tiver a possibilidade do uso soberano da sua política cambial (monetária, fiscal ou outra política relevante), pouco se pode fazer em termos de orientação econômica. Assim, as restrições no uso dos principais instrumentos de política econômica podem levar a uma virtual “inação” governamental.

Sob a ótica internacional, com a disseminação do pensamento único neoliberal, as políticas de desenvolvimento regional tornaram-se ainda menos praticáveis e realistas. Nesse quesito, pesa a deterioração fiscal e financeira decorrente da crise econômica dos anos 1980 (a “década perdida”), que levou ao permanente ajuste fiscal, a elevações na taxa de juros e, em decorrência disso, ao baixo crescimento econômico. Na era do pensamento único – também chamada “era da globalização”–, advoga-se o princípio da articulação direta entre o global e o local, ignorando-se a mediação nacional. Essa tendência ampliou os riscos de fragmentação da nação (Pacheco, 1996) em função da desarticulação – e mesmo da competição – entre os diversos blocos de capitais e de interesses regionais. Esse movimento também deteriorou os mecanismos de integração do mercado nacional brasileiro, construí­dos ao longo do século XX.

O pensamento único neoliberal soube incentivar uma outra forma ilusória de desenvolvimento, a saber: a do poder local. No Brasil, a precariedade das políticas públicas de desenvolvimento levou à expansão da utopia da cidade-empresa-mercadoria (Vainer, 2000) e a uma pletora de iniciativas voltadas à promoção de arranjos produtivos locais (APL1), em parceria com os mais diversos órgãos de fomento, como entidades dos governos estaduais e do governo federal, além de organismos internacionais de cooperação.

Brandão (2003) salienta que as esferas subnacionais (estados e municípios) não contam com instrumentos fundamentais para o desenho e para a implementação de políticas públicas de desenvolvimento econômico, como o manejo da taxa de juros, do câmbio, do crédito e também de diferentes tributos e contribuições federais – sem contar alguns determinantes políticos e institucionais cujo domínio é restrito ao foro nacional (taxa de salário, benefícios previdenciários, política alfandegária, política salarial, entre outros). Já Lopreato (2004) demonstra como as finanças estaduais no Brasil encontram-se encilhadas, em função das dívidas renegociadas à época do Plano Reale dos limites impostos pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Tais elementos restringem ainda mais a possibilidade de desenhar e implementar políticas ativas de desenvolvimento econômico na esfera estadual.

Apesar das contribuições que podem trazer – e que efetivamente têm sido trazidas –, as iniciativas locais, dada a complexidade e a dimensão da economia brasileira, têm-se mostrado insuficientes para promover não somente um apreciável estímulo ao desenvolvimento econômico local, mas também regional ou nacional. Essas intervenções apresentam escasso poder de propulsão para ativar impulsos mais significativos ao desenvolvimento nacional, seja pelo reduzido volume de recursos envolvidos nas iniciativas, seja pelo baixo – ou mesmo inexistente – grau de coordenação entre as inúmeras ações efetuadas por uma miríade de instituições. Na melhor das hipóteses, elas se mostram oportunas para o campo das políticas sociais, ao promoverem, mediante a criação de postos de trabalho ou da geração complementar de renda, alternativas de inclusão produtiva para os beneficiários dos programas de assistência social e de distribuição de renda.

Amin (2007) pontua que o localismo não pode controlar as forças envolvidas nos espaços da organização econômica transterritorial. Essas forças, sob a forma de preços de ações, taxas de juros, decisões de investimentos corporativos e bancários, transferências financeiras, fluxos de informações, pessoas e conhecimentos, tomadas em níveis nacional e mundial, distorcem ou anulam os esforços realizados para trazer benefícios locais.

Com efeito, no atual contexto brasileiro de inserção externa, com limitações de ordem orçamentária, financeira e comercial, torna-se penosa a tarefa de implementar políticas públicas de desenvolvimento. O país convive com juros elevados que deprimem a atividade econômica produtiva e privilegiam o rentismo e um regime de câmbio valorizado e instável, o qual estimula as importações e limita as exportações.

No âmbito externo, sobrevêm decisões que constrangem ainda mais a política econômica nacional, como as emanadas das regras da Organização Mundial do Comércio e da Basiléia (regulação bancária), assim como as avaliações promovidas pelas agências internacionais de rating, que reivindicam permanente ajuste à ortodoxia macroeconômica.

Os constrangimentos acima descritos dificultam a formulação e a implementação de uma política nacional de desenvolvimento no Brasil, pois impõem limites aos instrumentos tradicionais de fomento, amplificando os conflitos regionais para obter aplicações federais e levando ao esgarçamento do princípio de solidariedade regional e ao questionamento do próprio sistema federativo brasileiro.

3.  A política econômica do Governo Lula

A ascensão de Luís Inácio Lula da Silva à Presidência da República, em janeiro de 2003, foi um momento de comoção nacional que despertou profundas expectativas em torno de uma gestão compromissada com a justiça social, com a distribuição de renda e com o enfrentamento das desigualdades individuais, sociais e regionais brasileiras. A vitória de Lula e do Partido dos Trabalhadores (PT) já era previsível desde meados de 2002. As histórias do candidato e do partido sempre estiveram associadas à contestação da doutrina liberal do período FHC, marcada pela política de privatizações, pela desregulamentação financeira, pela abertura comercial e pelo ajuste fiscal. Assim, a mera possibilidade de mudanças na condução da política macroeconômica deixou segmentos dos mercados financeiros um tanto quanto “apreensivos”.

No início do novo governo, assegurou-se a conservação da ortodoxia macroeconômica, com forte elevação da taxa de juros e recrudescimento do ajuste fiscal, apresentados como medidas necessárias para “acalmar” o mercado financeiro. Essa demonstração de respeito aos pilares básicos da macroeconomia liberal – ajuste fiscal, câmbio flutuante e livre mobilidade de capitais – aparentemente “convenceu” os mercados, e, em seguida, as taxas de câmbio e juros retornaram aos patamares pré-eleitorais.

Os compromissos com a estabilidade da moeda e com o regime de metas de inflação foram mantidos, bem como a continuidade de pesados superávits fiscais primários, superiores a 3% do PIB, destinados a saldar os colossais pagamentos, com juros e amortizações, da dívida pública.

O governo Lula, todavia, não foi uma mera repetição do período FHC. A política social recebeu prioridade desde o início, haja vista a proposta do Programa Fome Zero, que evoluiu, posteriormente, para o Programa Bolsa Família (PBF), tornando-se o maior programa de transferência condicional de renda do planeta (ORGANIZAÇÃO DE COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO, 2013). A consolidação e a expansão do PBF permitiram que cerca de 30 milhões de brasileiros suplantassem a linha de pobreza. Ao longo do período 2003-2010, o PBF ampliou sua cobertura de 3,6 milhões para 13 milhões de famílias, amparando cerca de 50 milhões de pessoas. Desse total de beneficiários, mais de 60% estão nas macrorregiões Norte e Nordeste2.

Além da expansão dos benefícios previdenciários e assistenciais, a política de valorização real do salário mínimo, associada à expansão do crédito e à queda das taxas de juros, contribuiu para uma substantiva melhoria das condições materiais da classe trabalhadora e para a diminuição das desigualdades pessoais – e regionais3– de renda. Esse “compromisso social” foi uma grande marca do governo Lula.

O segundo governo Lula (2007-2010) encetou a ampliação do investimento público, notadamente no setor de infraestrutura, por intermédio do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Os investimentos contemplados pelo PAC (CARNEIRO, 2008) totalizaram R$ 503,9 bilhões, que deveriam ser desembolsados ao longo do período de 2007-2010, em três diferentes áreas: (i) infraestrutura energética (petróleo, gás e energia elétrica); (ii) infraestrutura social e urbana (habitação e saneamento); (iii) infraestrutura logística (rodovias, ferrovias, portos e aeroportos).

Conforme Carneiro (2008), o PAC buscou elevar o crescimento econômico por meio da ampliação da taxa de investimento, da ampliação do investimento público em infraestrutura, do incentivo ao investimento privado e também da promoção de um ambiente business friendly, com a remoção de obstáculos normativos, burocráticos e jurídicos. Guimarães Neto (2011) comenta que as aplicações previstas pelo PAC para o Norte e o Nordeste possuíam percentuais maiores que o total da participação do PIB dessas regiões no produto nacional, o que representou uma tentativa do governo federal de desconcentração produtiva, fundamentada no investimento público e na indução do investimento privado.

Com o governo Lula também se observou considerável retomada do crescimento econômico, em comparação com as “décadas perdidas” de 1980 e 1990. Esse crescimento pode ser explicado pelo aumento do mercado interno, possibilitado pela expansão do crédito, pela valorização real da massa salarial (o salário mínimo praticamente dobrou), pelos investimentos em infraestrutura carreados pelo PAC, bem como pelo investimento expressivo de programas sociais de transferência de renda.

No front externo, merece destaque o acelerado crescimento asiático nos anos 2000, em particular da China, cuja demanda contribuiu para uma forte elevação do volume e do valor das exportações brasileiras, principalmente nos setores intensivos em recursos naturais, comoas commodities dos complexos de grãos, de proteína animal, da mineração e petroquímica. Entre 2003 e 2010, as exportações brasileiras quase triplicaram – de US$ 73 bilhões em 2003 para US$ 202 bilhões em 2010.

Em que pesem os avanços registrados no quadro sociorregional brasileiro, os resultados macroeconômicos da participação regional do PIB apresentaram melhorias bem modestas. Assim, embora as políticas sociais tenham mitigado a pobreza extrema nas periferias nacionais, persistiu um padrão macrorregional de diferenciação das principais variáveis socioeconômicas entre o Norte e Nordeste e o Sul-Sudeste, com o Centro-Oeste aproximando-se das últimas macrorregiões.

A recente expansão do emprego nas periferias nacionais concentrou-se em serviços de baixa qualificação e na construção civil, setores tradicionais de baixa produtividade, baixa formalização e baixo potencial inovador, que dificilmente conseguirão transformar as realidades regionais. Monteiro Neto (2005) sublinha um novo processo de concentração de ramos industriais dinâmicos em São Paulo. Segundo o autor, de modo geral, os ramos industriais de maior valor agregado têm voltado seus interesses para o Centro-Sul do país, em razão de sua maior dotação de infraestrutura, de mão de obra qualificada e de sua proximidade a grandes mercados consumidores – exigências locacionais do mundo globalizado.

As regiões mais pobres têm atraído indústrias tradicionais (construção civil, calçados, confecções e alimentos), além da expansão generalizada do setor terciá­rio, motivado pela abundância de mão de obra barata e pela ampliação recente dos mercados consumidores (Macedo, 2010). Soma-se a esse quadro o fato agravante de que as decisões de investimento se dão em regime de acirrada guerra fiscal, com graves perdas de arrecadação para o erário público (Cardozo, 2010).

Macedo (2010) argumenta que o complexo exportador brasileiro tem contribuído para a configuração urbana e regional do país, reforçando especializações regionais e levando a adaptações territoriais a fim de articular as produções locais ao mercado externo– essencialmente aquelas associadas à agropecuária e à indústria extrativa. Dando mais força a esse quadro, as intervenções do PAC nas periferias nacionais (macrorregiões Norte e Nordeste) concentraram-se em grandes projetos de infraestrutura logística e energética, de modo a viabilizar a integração competitiva internacional dos grandes projetos agropecuários e de mineração – a articulação direta entre o global e o local, discutida por Brandão (2003).

Pacheco (1996) afirma que, de acordo comas suas dimensões continentais e características da estrutura produtiva, a dinâmica da economia brasileira é determinada pelo investimento público e privado. Isso não desabona alternativas voltadas para o aquecimento da demanda doméstica ou para o atendimento ao mercado exterior. O resultado global é, todavia, restrito, ainda que desempenhe funções relevantes na sustentação da renda e do emprego, sobretudo no âmbito sub-regional.

Para além das questões macroeconômicas elencadas, o Estado brasileiro perdeu boa parte da sua capacidade de intervenção desde os anos 1980. Isso é evidente ao se observar o ritmo do andamento dos programas de investimento associados ao PAC4. Era fundamental recriar, em todos os níveis de governo, a capacidade administrativa e de planejamento do setor público e romper com a lógica restrita do ajuste fiscal. Entretanto, essa ação envolveria um desafio político não empreendido pelo governo Lula. O Estado continuou a se eximir da tarefa de construção de um projeto nacional de desenvolvimento. Como discutido, tal projeto é fundamental para a formulação e operação de uma política regional. Ironicamente, os bons resultados econômicos do governo – refletidos na ampliação do emprego formal, na retomada do crescimento e na diminuição da pobreza (pessoal e regional) – parecem ter levado esse projeto ao descrédito. As elites continuaram mais ocupadas em seus planos particulares – empresariais ou político-partidários –, não se aliando em prol do esforço coletivo de criação de um projeto nacional de desenvolvimento.

Carneiro (2008) salienta a necessidade de diversificação da estrutura produtiva para o desenvolvimento da economia nacional. Segundo seus apontamentos, em um país continental como o Brasil, não se pode esperar crescimento robusto e sustentado com base em exportações de produtos primários e semimanufaturados; tampouco o consumo pode ser o eixo dinâmico da economia. Contudo, na lógica da articulação direta entre o local e o global, o Brasil apresentou um quadro de projetos pontuais, intensivos em recursos naturais e com baixo encadeamento interno. Esse quadro reforçou a disputa entre as unidades da Federação, manifesta na agressividade crescente das políticas de atração de investimento.

Nesse sentido, persiste o diagnóstico de Pacheco (1996), que identificou esse panorama como uma “fragmentação” da economia nacional, uma vez que os segmentos mais dinâmicos, atrelados à demanda externa e incapazes de sustentar o crescimento do conjunto do país, ganharam autonomia em relação ao desempenho econômico agregado, sustentando trajetórias de melhor desempenho para sub-regiões específicas. Conforme Brandão et al. (2006), a ação pública subsidiou os custos de implantação e operação dos grandes empreendimentos, produzindo verdadeiros “torneios locacionais” para atração de investimentos. Essa tendência reforça a necessidade de uma consistente política de desenvolvimento regional no Brasil.

4.  A Política Nacional de Desenvolvimento – PNDR (2003-2010)

No campo da política regional, a situação parecia promissora no início do governo Lula. O programa de governo se comprometia em formular e implementar uma Política Nacional de Desenvolvimento Regional, inclusive com a recriação das extintas superintendências de desenvolvimento – Sudam e Sudene.

A proposta do Plano Plurianual (PPA) 2004-2007 (Brasil de Todos) tinha entre seus objetivos a redução das desigualdades regionais do país. Além disso, uma preocupação especial com o Nordeste semiárido e com a Amazônia esteve sempre presente nos discursos do presidente eleito.

A escolha de Ciro Gomes (PSB-CE), presidenciável nas eleições de 2002 e figura pública de alcance nacional, para assumir a direção do Ministério da Integração Nacional sugeria que a pasta teria posição privilegiada na agenda governamental. A pernambucana Tânia Bacelar de Araújo, um dos maiores nomes da economia regional brasileira, foi convidada para assumir a direção da Secretaria de Políticas de Desenvolvimento Regional e para coordenar o processo de formulação da Política Nacional de Desenvolvimento Regional (PNDR). Parecia que tinha “chegado a vez” da política regional no Brasil.

A proposta da PNDR procurava enfrentar a tendência geral de concentração do capital e contribuir para a “redução das desigualdades regionais” e “ativação das potencialidades de desenvolvimento das regiões brasileiras”. O ponto central da estratégia era valorizar a diversidade regional do país em suas múltiplas dimensões – ambiental, socioeconômica e cultural –, tratando-a como um ativo fundamental para a promoção do desenvolvimento socioeconômico.

A PNDR tinha dois objetivos principais: (i) reverter a trajetória das desigualdades regionais; (ii) explorar os potenciais endógenos da diversa base regional brasileira. De fato, essa política fundamentou-se na equidade, traduzida na redução das desigualdades regionais de níveis de renda, das oportunidades e das condições de trabalho, e também na competitividade, a partir da estruturação de uma base econômica regional capaz de competir no mercado nacional e internacional.

Uma das premissas dessa política é que ela deveria ser uma política de governo, não estando, portanto, restrita a um único ministério, conquanto fosse admitido certo protagonismo do MI na sua coordenação. As iniciativas locais e regionais se articulariam e encontrariam nexo na política nacional, que envolveria iniciativas do Congresso Nacional, dos estados e municípios, das entidades do setor produtivo e da sociedade civil organizada.

Embora a PNDR requeresse uma abordagem em múltiplas escalas, dada a complexidade regional brasileira, a ênfase em uma política nacional foi reafirmada, porque essa era a escala compatível com a perspectiva de identificação e regulação do fenômeno das desigualdades inter e intrarregionais. Em um país continental e heterogêneo como o Brasil, a ênfase em soluções localistas isoladas poderia ampliar os riscos de fragmentação. Essa atuação em múltiplas escalas buscou romper com a visão tradicional que tende a circunscrever o problema regional brasileiro ao Nordeste e ao Norte. Assim, o mapa do Brasil deveria ser dissecado em múltiplas escalas, para fins de política regional.

Adotou-se a escala microrregional para a formatação da tipologia territorial da PNDR. A base de dados adotada compreendeu categorias e informações extraídas dos censos demográficos do IBGE (1991; 2000) e das estimativas do PIB municipal, realizadas pelo Ipea para os anos 1990 e 1998. As principais categorias de análise foram: (1) densidade demográfica; (2) crescimento populacional; (3) escolaridade; (4) grau de urbanização; (5) rendimento domiciliar; (6) variação do PIB (BRASIL, 2003).

Os resultados destacaram o forte contraste entre o litoral e o interior e uma marcada clivagem norte/sul, na qual se ressaltavam profundas diferenças entre os níveis de renda, de urbanização e de acesso a serviços básicos. Segue uma síntese da avaliação da realidade nacional, em nível microrregional:

a)     Identificação de sub-regiões dinâmicas, competitivas e com elevados rendimentos médios, e de sub-regiões com precárias condições de vida e de traços de estagnação em todas as macrorregiões do país;

b)    Observação da persistência de um expressivo padrão macrorregional de diferenciação das principais variáveis socioeconômicas entre o Norte-Nordeste e o Sul-Sudeste, com o Centro-Oeste aproximando-se destas últimas;

c)     Registro de extrema vulnerabilidade dos indicadores socioeconômicos do Nordeste semiárido e da Região Amazônica.

Esses dados corroboram a necessidade de regular as ações de desenvolvimento regional desde a escala nacional e de pensar estrategicamente as iniciativas no plano macrorregional e em algumas escalas especiais. Ao mesmo tempo, eles demonstram que é preciso tratar de modo específico a grande diversidade sub-regional.

O Nordeste semiárido e a região da Faixa de Fronteira são destacados como sub-regiões estrategicamente importantes para o desenvolvimento e para a integração nacional. A primeira, por possuir precárias condições de vida e baixa atividade econômica (40% da população do Nordeste respondia por apenas 20% do PIB regional). A segunda, por ser uma área estratégica da perspectiva ambiental e também da integração sul-americana, sendo esta alvo de especial atenção do governo federal.

Com o intuito de delimitar os espaços prioritários de ação da PNDR no território nacional, foi proposta a seleção de duas variáveis: rendimento domiciliar médio e variação do PIB. De acordo com o documento da política, o rendimento domiciliar médio por habitante é uma variável estática que busca mensurar o poder de compra médio em um determinado território. Já a variação anual média do PIB é uma variável dinâmica que mostra a evolução da produção de um determinado espaço geográfico.

A superposição dos cartogramas definidos pelas duas variáveis resultou, na escala microrregional, em quatro conjuntos territoriais distintos. Esses conjuntos constituiriam a tipologia sub-regional que definiria as sub-regiões prioritárias da PNDR: (a) dinâmicas de baixa renda, (b) estagnadas de renda média com baixo dinamismo e (c) de baixa renda com médio ou baixo dinamismo (Figura 1). Resumidamente, eles representariam o espaço preferencial de atuação da PNDR no que diz respeito ao financiamento dos programas de desenvolvimento regional. As áreas brancas, isto é, de alta renda, não seriam priorizadas.

Nos termos da PNDR, a instância nacional compreenderia a definição dos critérios gerais de atuação, a identificação das sub-regiões prioritárias de intervenção e os espaços preferenciais de convergência com as demais políticas setoriais. Para alcançar tais metas, o Decreto nº 4.793 de 23 de julho de 2003 criou a Câmara de Políticas Regionais (CPDR), sob coordenação da Casa Civil da Presidência da República. De acordo com o ato de criação, esse órgão ficou responsável por “coor­denar e articular as políticas setoriais com impacto regional, com vistas a reduzir as desigualdades inter e intrarregionais”.

No nível macrorregional, estariam as atividades de elaboração dos planos estratégicos de desenvolvimento e a articulação de ações. A instância macrorregional foi considerada especialmente relevante no Norte e Nordeste – em certo grau, também no Centro-Oeste –, onde o desafio do desenvolvimento regional envolvia parte substancial dos seus territórios. No documento, defendia-se a proposta de recriação das Superintendências de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), da Amazônia (Sudam) e do Centro-Oeste (Sudeco), dada a necessária presença de órgãos públicos capazes de agir como braços mais próximos da PNDR.

Nas instâncias sub-regionais estariam as ações operacionais. Os Programas Mesorregionais constituiriam a unidade de articulação das ações federais nas sub-regiões prioritárias em todo o território nacional, a partir de espaços institucionais de concertação, como fóruns e agências de desenvolvimento.

A proposta de consolidação dos Programas Mesorregionais fundamentou-se em uma agenda de ações, que incluía: (i) apoio à infraestrutura; (ii) promoção da inovação; (iii) capacitação de mão de obra; (iv) oferta de crédito; (v) apoio à ampliação dos ativos relacionais; (vi) estruturação dos APLs. Segundo o documento da política (BRASIL, 2003, p. 35), “o apoio ao Programa Mesorregional part[ia] do consenso construído pelos atores locais em torno de um plano de desenvolvimento, que dev[ia] sinalizar ao Ministério da Integração Nacional e demais unidades do governo o mix particular de ações a serem apoiadas”. Uma vez mais, a fórmula mágica do “consenso local” foi resgatada.

O Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional (FNDR) foi assinalado como o principal instrumento da política. Diferentemente dos atuais fundos disponíveis, o FNDR disponibilizaria uma linha de financiamento não reembolsável para a promoção de ações estruturantes de desenvolvimento regional5. Esse dispositivo estava previsto na proposta de emenda constitucional da reforma tributária (PEC 41/2003), enviada ao Congresso Nacional em 2003. Sua base de cálculo seria a participação em 2% da arrecadação do IPI e do IRPJ, o que representaria uma receita anual estimada em R$ 3,6 bilhões com base na arrecadação prevista em 2003. Sem dúvida, um valor modesto, próximo a 0,2% do PIB nacional, mas um grande avanço no financiamento da política regional brasileira.O FNDR também representaria uma retribuição para os estados que eventualmente perdessem recursos com a reforma tributária e uma “compensação” pela perda do uso da renúncia fiscal como estratégia de atração de empresas, o cerne da guerra fiscal.

Após uma série de emendas e recortes (Dall’acqua, 2005), a proposta original da reforma foi comprometida e o resultado final do embate legislativo trouxe apenas mudanças pontuais no sistema tributário brasileiro. A proposta de criação do FNDR foi retirada da pauta final de discussão, enquanto os dispositivos de diferenciação interestadual do ICMS que permitiam a guerra fiscal foram mantidos. Como afirma Pereira (2009, p. 172):

Como resultado da PEC n°. 41/2003, que trazia a proposta de criação de um Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional, originou-se três emendas constitucionais, aprovadas sob a tutela de interesses específicos e pontuais. A EC n°. 42/2003 (prorrogação da CPMF e DRU até 2007) atendeu explicitamente aos interesses da União. A EC n°. 44/2004 (ampliação da CIDE-Combustíveis) beneficiou estados e municípios. Por fim, a EC n°. 55/2007 (ampliação do repasse de tributos da União aos municípios, por meio do FPM), trouxe vantagens significativas para estes últimos.

Os estados, inclusive aqueles das regiões mais pobres do país, entenderam que havia uma série de riscos envolvidos na proposta de reforma tributária e insistiram na guerra fiscal como instrumento de atração de investimentos. Além disso, a reforma desacomodava interesses já assentados sobre o atual sistema de tributação e partilha federativa, sobretudo nos estados mais industrializados.

A vinculação do FNDR à reforma tributária tendeu a desvirtuar o debate em torno de qual seria a política regional mais desejável para o país. No decorrer dos debates em torno da PEC, o FNDR já era proposto como um fundo de compensação a ser partilhado entre os estados, desatrelado de uma proposta mais consistente de desenvolvimento regional.

A atomização de interesses, a desconfiança em um novo modelo tributário e a ausência de um propósito federativo comum inviabilizaram a reforma tributária e a criação do FNDR. Como consequência, garantiu-se atendimento a agendas pon­tuais da União, dos estados e dos municípios. Na ausência de um projeto nacional de desenvolvimento, prevaleceu a defesa dos interesses particulares dos entes federados.

Dessa forma, a PNDR perdeu seu principal instrumento, o funding para intervenções estruturantes. A operacionalização da política, condicionada ao escasso orçamento da pasta de Desenvolvimento Regional do MI, foi condenada à manutenção de ações pontuais, vinculadas à estruturação de fóruns mesorregionais e ao apoio fortuito a projetos de APL.

5.  Considerações sobre a PNDR

Deve-se reconhecer que a proposta da PNDR apresentada em 2003 recolocou a questão do desenvolvimento regional na pauta de discussão do governo federal. O debate sobre a territorialidade das políticas públicas só veio a crescer nos anos seguintes, disseminando-se também entre os demais entes federativos.

Em seu documento original, a PNDR vinculou o enfrentamento da questão regional a um projeto nacional de desenvolvimento. A proposta da política inovou ao trazer uma perspectiva nacional sobre as desigualdades socioespaciais brasileiras, ao conceder centralidade ao papel do Estado diante da hegemonia neoliberal e ao propor uma atuação em múltiplas escalas. De todo modo, pode-se dizer que, durante o governo Lula, a PNDR não conseguiu se afirmar como política pública seja pela efetiva execução orçamentária, seja pela visibilidade política. Embora tenha sido uma política formulada adequadamente e com proposições consistentes, a PNDR não pôde se estabelecer no governo Lula devido a características estruturais do Estado brasileiro.

É possível apontar um vício de origem da PNDR: esse projeto nacional de desenvolvimento, que orientaria a política regional, nunca foi explicitado ao país. Ora, na ausência de um projeto nacional, dificilmente uma política nacional de desenvolvimento regional poderia avançar. A PNDR deveria extrair sua estratégia e seus meios de ação a partir do projeto nacional de desenvolvimento.

Assim, sem um projeto nacional de desenvolvimento e sem um instrumento substancial de financiamento – dado o fracasso na criação do FNDR –, a PNDR voltou-se a uma operação que pouco avançou em relação às políticas regionais minimalistas que a antecederam. Os programas de desenvolvimento regional a cargo do MI mantiveram um escopo eminentemente local, trabalhando em iniciativas pontuais de promoção de APL e em arenas de representação sub-regional. A atuação do MI, pontualmente localizada no território, privilegiou estímulos cujos impactos também tenderam a ser localizados (Pereira, 2009).

Cano (2010) assinala que, após os sucessivos planos de estabilização dos anos 1980, o abandono do planejamento para o desenvolvimento, a eclosão da guerra fiscal e a panaceia do desenvolvimento local nos anos 1990, a maior parte dos economistas deixou de lado as preocupações de longo prazo e tornaram-se “curto prazistas”, voltando a atenção para o micro gerenciamento do câmbio, dos juros e da inflação. Todo o poder foi oferecido, portanto, aos “APL”, à região e à cidade competitiva.

Apesar desse quadro, é preciso destacar o esforço de planejamento regional realizado pelo MI, sob inspiração da PNDR. Conforme Guimarães Neto (2006), o Plano Estratégico para o Desenvolvimento do Centro-Oeste (PED-CO), o Plano Estratégico de Desenvolvimento Sustentável do Nordeste (PDNE) e o Plano Amazônia Sustentável (PAS) enquadraram-se nessa iniciativa. Além deles, estavam presentes também o Plano Estratégico de Desenvolvimento Sustentável do Semiárido (PDSA) e o Plano de Desenvolvimento Sustentável da BR-163: Eixo Estratégico de Integração para a Amazônia. Um aspecto comum a todos esses planos era a preocupação com a sustentabilidade econômica e ambiental e com a participação social, demarcada desde os diagnósticos gerais até a concepção dos programas e projetos. Havia, igualmente, a preocupação em explorar a riqueza intrarregional das áreas tratadas, buscando-se intervenções específicas e operadas em múltiplas escalas, a partir das particularidades de cada região, algo que ia ao encontro da linha de trabalho preconizada pela PNDR.

Entretanto, Guimarães Neto (2006) indica a enorme distância entre o conteúdo das ações propostas (“o que fazer”) e as formas de implantação (“como fazer”) como uma das “lacunas” da agenda dos planos. De modo geral, não foram apresentados modelos de gestão que institucionalizassem as responsabilidades dos entes federados e integrassem o processo de decisão nos níveis nacional, regional e sub-regional. Em sua análise, o autor manifesta uma preocupação a respeito da falta de clareza em torno do financiamento e dos instrumentos de política econômica ao alcance dos planos. Ele também aponta a necessidade de alinhar esses planos regionais a um plano nacional de desenvolvimento que permitisse a integração e a convergência das propostas regionais (Guimarães Neto, 2006). Como já discutido, não foi exposto esse plano nacional de desenvolvimento, e os planos publicados, na ausência de instrumentos adequados de financiamento e gestão, tornaram-se, quando muito, documentos de referência da área de planejamento para regiões selecionadas.

A PNDR foi apresentada à sociedade brasileira em 2003, mas somente em fevereiro de 2007 foi formalmente instituída como política de governo, por meio do Decreto n° 6047/2007. Entre 2003 e 2006, pode-se dizer que não houve qualquer avanço significativo na proposta original. De fato, o texto do decreto que institucionalizou a política representou uma síntese do documento discutido em 2003 e ratificou a tipologia da política, tratando as mesorregiões como espaço preferencial de atuação da PNDR. É sintomático que uma “política nacional” tenha sido formalizada por um mero decreto presidencial, sem uma discussão mais aprofundada no Congresso Nacional, o que seria ensejado por meio de um projeto de lei.

Em 2007, foram recriadas a Sudam e a Sudene. No início do segundo governo Lula, recuperou-se o debate em torno da reforma tributária e da criação do FNDR, no âmbito da PEC 31/07. Na verdade, a segunda gestão reservou “mais do mesmo” para a política regional. A Sudam e a Sudene arrastaram-se em vida, sem quadros técnicos, orçamento, infraestrutura ou clareza acerca de seu papel institucional. A discussão da proposta de reforma tributária estendeu-se pelos quatro anos, sem avanços concretos em relação ao fim da guerra fiscal ou à criação do FNDR.

Ao longo do segundo governo Lula, a pasta regional do MI continuou sofrendo de carência crônica de recursos, o que a obrigou a manter sua terapêutica “homeopática” nas intervenções de política regional, concentrando-se no fortalecimento institucional das mesorregiões e no apoio pontual a APLs selecionados (Coêlho, 2014).

Parece desnecessário insistir no fato de que a política regional permaneceu em segundo plano durante o governo Lula. Em síntese, entre 2003 e 2010, a PNDR seguiu como uma política sem instrumentos, restringindo-se às parcas dotações do Orçamento Geral da União. Pereira (2009) identifica uma incongruência entre o discurso proferido pelo governo – pautado por um compromisso com a redução das desigualdades regionais – e as reais possibilidades de intervenção da PNDR.

Nesse cenário, é natural pensar que as desigualdades regionais brasileiras foram ampliadas no período. Entretanto, assistiu-se mesmo a uma discreta convergência de renda entre as tradicionais regiões periféricas – Norte, Nordeste e, em menor medida, Centro-Oeste – e as regiões tipicamente mais desenvolvidas, Sul e Sudeste. Com efeito, se houve um esforço na redução das desigualdades regionais do país, esse esforço não foi viabilizado pela PNDR.

Para entender melhor essa questão, é preciso retomar parte do argumento de Guimarães Neto (2011), que diferencia políticas e ações explicitamente voltadas para o desenvolvimento regional e políticas e ações implicitamente regionais. De acordo com o autor, essa concepção ajuda a distinguir políticas centradas em regiões que exigem tratamento específico e extraordinário (políticas regionais explícitas) das políticas macroeconômicas, sociais e setoriais, as quais não têm referencial regional claro, mas exibem capacidade de repercutir diferenciadamente nas diversas regiões de um país (políticas regionais implícitas).

Guimarães Neto demonstra que, durante o governo Lula, as regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste apresentaram um crescimento econômico mais intenso que a média nacional, o que resultou em uma ligeira convergência inter-regional da renda. Da mesma forma, os indicadores de crescimento do emprego formal foram expressivamente maiores nas regiões Norte e Nordeste. Além disso, a redução da pobreza foi mais intensa nas tradicionais periferias do país, com impacto significativo sobre outros indicadores sociais, traduzidos em maior crescimento relativo do IDH dessas regiões em relação ao restante do país.

Essa melhoria nos indicadores regionais de produção e emprego decorreu predominantemente de políticas macroeconômicas (aumento do salário mínimo e expansão do crédito para investimento e consumo) e de políticas setoriais (Programa de Aceleração do Crescimento) e sociais (Programa Bolsa Família, Previdência Rural), que beneficiaram assimetricamente as regiões mais atrasadas. Em outras palavras, essas políticas regionais implícitas responderam pelo desempenho superior das regiões mais pobres do país durante o governo Lula, pelo menos no que concerne à geração de emprego e renda.

Em um cenário de crescimento mais acelerado das periferias nacionais, não causa surpresa o enfraquecimento do apelo político da questão regional. Diferentemente da situação que deu origem à Sudene, em 1958, quando o flagelo das secas comoveu o país e demandou o enfrentamento da questão regional nordestina (Oliveira, 1977), ao final do governo Lula, certas regiões do Nordeste cresceram a “taxas chinesas” (Karam, 2012).

Segundo Coêlho (2014), o aparente sucesso das políticas regionais implícitas fez com que o governo federal entendesse que uma política regional explícita, tal qual a PNDR, era desnecessária. Isso ajuda a explicar a continuidade da fragmentação e do minimalismo das políticas de desenvolvimento regional durante a Era Lula. No limite, pode-se afirmar que não havia mais espaço para uma PNDR, já que os programas setoriais e temáticos em curso “solucionaram” a questão regional do país. Porém, a questão é ainda mais complexa.

Rocha Neto (2012) argumenta que as políticas de desenvolvimento regional são, por natureza, intersetoriais, pois envolvem decisões e intervenções das mais diversas naturezas. Essas decisões e ações devem ser trabalhadas de forma convergente e necessitam obedecer a um timing específico, sem o qual não é possível desenvolver sistemas econômicos complexos de produção e inovação.

O desenvolvimento de tais sistemas complexos exige uma interação precisa de decisões e esforços públicos e privados, como se verificou nos países que lograram superar seu atraso e constituir economias desenvolvidas, como a Alemanha e o Japão do século XIX ou os países do sudeste asiático no século XX. Assim, é proibitivo empreender iniciativas de desenvolvimento regional sem ações concomitantes de provimento de infraestrutura física (energia, transportes e telecomunicações), de pesquisa e desenvolvimento, de qualificação de mão de obra, de assistência técnica e de estratégias de comercialização, sem falar em variáveis como o tratamento das dimensões ambiental, cultural e étnica.

Essas intervenções integradas, essenciais à mobilização de processos de desenvolvimento regional, ultrapassam as competências do MI, órgão responsável pela PNDR. Elas poderiam ser mobilizadas a partir de acordos de cooperação horizontais – no âmbito do governo federal – e verticais – em acordo com os entes federados –, de modo a desenvolver adensamentos da atividade produtiva nos espaços priorizados pela PNDR, como a Amazônia Legal ou o Nordeste semiárido. Contudo, como demonstra Coêlho (2014), há uma paralisia crônica na coordenação vertical e horizontal das políticas públicas que domina o aparato governamental brasileiro. Nesse cenário, torna-se inviável a implementação de uma PNDR. Embora existam diretrizes gerais emanadas da Presidência da República, os ministros são representantes dos interesses de seus partidos no âmbito da estrutura do Estado.

Conforme Rocha Neto (2012), negociações interministeriais que se iniciam com dispositivos legais e compromissos assumidos evoluem para uma operacionalização fragmentária, sem coordenação ou resultados efetivos. Com a leniência da Presidência da República, subsiste uma política de não interferência nas pastas ocupadas pelos partidos da coalizão, cujas agendas voltam-se para projetos políticos pessoais, regionalistas e setoriais. A gestão da complexa e heterogênea coalizão partidária em nome da governabilidade compromete a coordenação de políticas públicas intersetoriais, tais como a PNDR.

6.  Considerações finais

Pelo exposto, uma PNDR é necessária para integrar e coordenar os diversos esforços de desenvolvimento promovidos no país, bem como para conter a tendência desagregadora das “ilhas de prosperidade” desconectadas do tecido produtivo nacional. A história da formação do Estado nacional brasileiro é também a história da formação do seu mercado interno. A reedição do “arquipélago” primário-exportador pode efetivamente levar à “fragmentação da nação”, como sugere Pacheco (1996).

Apesar das melhorias recentes, as desigualdades regionais brasileiras permanecem agudas sob os mais diversos vieses, como aqueles relacionados ao acesso a serviços públicos, às alternativas de inclusão produtiva e/ou aos indicadores socioeconômicos de renda, educação e saúde. Ainda é requerida a intervenção pública para enfrentar essas profundas desigualdades, para produzir condições materiais minimamente dignas para todos os cidadãos brasileiros e, por fim, para apresentar alternativas de desenvolvimento às regiões segregadas dos fluxos nacionais e internacionais de investimento.

O atual apelo político da questão regional não passa somente pela convergência de renda, mas também pela provisão de oportunidades mais equitativas para o desenvolvimento humano em todo o território nacional. A questão regional involucra a construção da autonomia de uma massa de pessoas que venceu a fome e a extrema pobreza e que agora precisa construir o espaço para o desenvolvimento de sua criatividade e de sua potencialidade. A construção da equidade de oportunidades para a civilização brasileira também representa a valorização de sua diversidade. Trata-se de um país cuja diversidade física, ambiental, cultural ou humana destaca-se em todo o planeta. O potencial de aproveitamento produtivo dessa diversidade é virtualmente incalculável, e este deve ser o grande projeto nacional de desenvolvimento.

Em 2013, uma nova versão da PNDR foi editada, com base nas contribuições da I Conferência Nacional de Desenvolvimento Regional (I CNDR), promovida pelo Ministério da Integração Nacional. A Nova PNDR, ou PNDR II, parte do entendimento de que a proposta original da política não conseguiu alcançar o status de política de Estado. Registre-se a necessidade de construir o consenso político e federativo que o encaminhamento da questão regional exige (Alves; Rocha Neto, 2014).

A PNDR II possui quatro objetivos principais: (i) Convergência de renda inter-regional; (ii) Competitividade regional e geração de emprego e renda; (iii) Agregação de Valor e Diversificação Econômica; (iv) Construção de uma Rede de Cidades Policêntrica. A proposta reafirma a necessidade de criação de um Sistema Nacional de Desenvolvimento Regional (SNDR), fundado em colegiados estabelecidos nos três níveis da federação e na viabilização de um Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional (FNDR) para o custeio de ações de estímulo à estruturação produtiva das economias regionais.

As novidades da atual PNDR são a melhor elaboração da proposta de desenvolvimento socioeconômico e a maior aproximação das universidades e dos centros de pesquisa, como a Embrapa. A reformulação da PNDR foi chefiada pelo economista Sérgio Castro, doutor em Economia pela Unicamp e pesquisador associado à Redesist-UFRJ. Em sua gestão, estruturou-se oprograma de Rotas de Integração Nacional, articulando redes de APL em setores estratégicos, inseridos em políticas mais sistêmicas de desenvolvimento regional. Hoje, as Rotas de Integração são a estratégia de desenvolvimento regional e a inclusão produtiva do MI; elas foram incorporadas ao PPA 2016-2019.

A associação entre as ações de desenvolvimento regional e a política social de inclusão produtiva do Plano Brasil sem Miséria (PBSM) permitiu um novo horizonte orçamentário para a pasta. Além disso, um novo programa de segurança hídrica de pequena escala, familiar ou coletiva – Programa Água para Todos –, foi subordinado à Secretaria de Desenvolvimento Regional do MI, o que elevou substancialmente o patamar de gastos da área regional no ministério. Assim, tem-se hoje um cenário mais positivo para a evolução da política regional.

Em sua fase madura, Furtado passou a acreditar mais na força política transformadora das sociedades civis. Com as recentes conquistas no campo das políticas sociais e dos direitos civis, é possível pensar em uma nova geração de cidadãos brasileiros resgatados da pobreza e habilitados pela educação e pelo desenvolvimento de suas capacidades criativas. Essas novas gerações podem, efetivamente, romper laços de dominação e constituir elites transformadoras, indo na contramão das tradicionais elites nacionais, interessadas tão somente na reprodução privilegiada do seu fausto secular. Nesse sentido, a invenção do desenvolvimento brasileiro pode ser retomada. Lembrando Furtado (1992, p. 9), “como a História ainda não terminou, ninguém pode estar seguro de quem será o último a rir ou a chorar”.

Notas

1     Arranjos produtivos locais (APL) são aglomerações territoriais de agentes econômicos, políticos e sociais, com foco em atividades econômicas que apresentam vínculos entre si, mesmo que incipientes (Lastres; Cassiolato, 2003).

2     Entre 2012 e 2013, o Nordeste enfrentou uma das maiores secas de sua história, com aproximadamente 800 municípios em estado de emergência e mais de 12 milhões de famílias afetadas. A cobertura do PBF tornou menos brutal o quadro típico da seca, evitando migrações em massa e saques (Valor Econômico, 24/05/2012, Brasil, p. A4).

3     A valorização real do salário mínimo e a expansão dos benefícios assistenciais e previdenciários tiveram maior impacto econômico nas macrorregiões mais pobres do país (Norte e Nordeste), em função do baixo nível de renda nelas prevalecente.

4     Conforme matéria publicada no jornal O Globo, em 1 de abril de 2012, as maiores obras de infraestrutura do país, associadas ao PAC, como a Ferrovia Transnordestina e o Projeto de Transposição do Rio São Francisco, têm um atraso de até 54 meses em relação ao cronograma original.

5     Apesar de mencionados como “instrumentos da PNDR”, os Fundos Constitucionais (FCO, FNE e FNO) e os Fundos Fiscais de Desenvolvimento (FDA, FDNE), além do conjunto de incentivos fiscais federais, tiveram origem antes da PNDR, e pouco se avançou no estabelecimento de uma aderência entre eles e a política.

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