Territórios em Disputa: resistência e luta no processo de implantação do Complexo Industrial Superporto do Açu


Fellipe Prado
Doutorando do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ

Betty Nogueira Rocha
Professora Adjunta 2 na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFFRJ), cedida para o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) – Coordenadora Geral de Gestão do Conhecimento

 1 Introdução

Os grandes investimentos públicos e/ou privados aportados no Estado do Rio de Janeiro, principalmente a partir dos anos 2000, resultaram em significativas mudanças na forma de apropriação e funcionalidade dos espaços, fenômeno observável em todas as regiões administrativas com destaque para a Região Metropolitana, seguida do Norte Fluminense. O foco da retomada dos investimentos destina-se a setores estratégicos ligado às atividades industriais, logísticas e de infraestrutura. Investimentos voltados a obras de cunho logístico como portos, ferrovias, mineroduto, novas rodovias e ampliação das já existentes estão sendo responsáveis pela configuração dos denominados “corredores logísticos”, especialmente no Norte Fluminense.

Dentre as grandes obras de engenharia alocadas nessa fração do território fluminense, destaca-se como empreendimento exponencial o Complexo Logístico Industrial do Superporto Açu no município de São João da BarraRJ. O complexo estava em fase de implantação desde 2007 pelo Grupo EBX responsável por firmar parcerias com o Governo do Estado através da Companhia de Desenvolvimento Industrial do Rio de Janeiro (CODIN) e adquirir financiamentos junto ao BNDES e outras instituições financeiras privadas.

Desde a sua implantação o projeto gerou impasses e divergências quanto à sua magnitude uma vez que o licenciamento ambiental foi realizado de maneira fracionada e sua responsabilidade foi dividida entre as indústrias e/ou projetos terceirizados sem envolvimento das instâncias representativas da comunidade local. Pesquisadores e lideranças vinculadas a diversos movimentos sociais estimaram que cerca de 40% da área do município englobaria as ações de infraestrutura do empreendimento. Na figura 01 é possível observar o traçado e delimitação do empreendimento, bem como os principais núcleos de agricultura familiar de São João da Barra (p. 502).

O complexo atende a uma recente concepção mundial de portos, conceito denominado “porto indústria”, donde no mesmo espaço coabitam as atividades portuárias e diferentes funções logísticas e industriais. No caso específico, as indústrias em construção, em funcionamento ou previstas no projeto atenderiam ao beneficiamento de produtos primários, principalmente minérios oriundos do estado de Minas Gerais a serem comercializados com o mercado asiático, preferencialmente, o chinês. Além disso, está em curso a construção um estaleiro e, em planos de construção, siderúrgicas e minerodutos a fim de consolidar na região um considerável corredor logístico.

Vale destacar que a região se caracteriza por históricos e intensos conflitos agrários, entre assentados da reforma agrária, agricultores familiares, pescadores artesanais, ceramistas, e grandes latifundiários, principalmente do setor canavieiro em pleno declínio desde o final da década de 1980. Tendo em vista a magnitude do empreendimento e de suas demandas eminentemente territorializadas, inúmeras implicações negativas foram evidenciadas por parcela representativa da população do município em entrevistas realizadas com pescadores, agricultores e reassentados, entre 2008 a 2015. Tais implicações são relacionadas especialmente ao aumento da especulação imobiliária e déficit habitacional, à incapacidade das empresas e indústrias instaladas absorverem a mão de obra local, à desapropriação de áreas e, talvez, a mais drástica dessas implicações foi a remoção de pessoas (em alguns casos comunidades inteiras) de suas terras, de seus imóveis, de seus “espaços vividos”.

A população diretamente atingida pela remoção é em maioria proveniente do 5º distrito de São João da Barra (Pipeiras) constituída, essencialmente, por agricultores familiares pluriativos que exerciam também atividades relacionadas à sua reprodução social, tais como: a pesca, criação de animais (suínos, aves, bovinos) e administração de pequenos estabelecimentos comerciais.

As ações de desapropriação desconsideraram o sentimento de pertença e de afetividade partilhada por estas famílias em relação ao território em que viviam. Na realidade, a população local foi excluída de todo o processo decisório relativo à cessão territorial aos investidores culminando na desapropriação impetuosa das terras e desencadeando conflitos de outra tonalidade, cujo referencial foi a aniquilação do patrimônio (i)material de inúmeras dessas famílias.

Em 2012, em documentos da EBX, até então gestora do projeto, estimavam a remoção de cinquenta famílias. Entretanto, dados levantados em pesquisa de campo, realizadas no mesmo período, apontam para a remoção de aproximadamente mil e quinhentas famílias. Movimentos sociais ouvidos, dentre eles a Associação dos Proprietários Rurais e de Imóveis do Município de São João da Barra – ASPRIM, apontavam para um número ainda maior de famílias, já que como as ações não estavam totalmente reveladas não sabiam quais eram as áreas de novas desapropriações. O que enfatizavam era que a cada momento novas áreas eram anexadas ao projeto do complexo, instaurando no município um estado de tensão e incertezas.

Além disto, os deslocamentos foram realizados alheios à vontade dos moradores, que estavam estabelecidos há muito tempo em suas localidades anteriores. Essas pessoas, necessariamente, terão que passar por um processo de adaptação à nova realidade colocada de maneira involuntária. Muitos ouvidos nas entrevistas realizadas relataram que a presença da força policial ou de pressões dos representantes os fizeram aceitar, quase que em totalidade estavam insatisfeitos ou com problemas de saúde.

Uma ínfima parte dos agricultores deslocados aceitou a negociar com a empresa, cerca de trinta e três famílias, sendo reassentados na chamada Vila da Terra. Evidentemente, a maior parte dos removidos não teve opções de enfrentamento, nem muito menos suas indenizações pagas, além do fato de que a relação histórica (i)material não foi se quer mencionada por parte dos responsáveis. Em regresso a Vila da Terra no ano de 2016 o número de reassentados aumentou e novas demandas foram postas por eles: como descaso da empresa, dificuldade de plantio e a não regularização dos lotes (com fornecimento de escritura). Por outro lado, parte dos reassentados se posicionaram evidenciando que estavam no esforço de se estabelecerem no lote, o que fortalece a premissa da necessidade de constantes (re)territorializações.

Nesse sentido, pretende-se entender como a alocação de um extenso complexo industrial portuário acirrou conflitos preexistentes e desencadeou novos centros de tensão entre os agricultores familiares, o Estado e as corporações em processo de instalação. O sentimento de impotência e de necessidade de enfrentamento ao quadro institucional vivenciado pelas famílias removidas culminou na criação da ASPRIM como um movimento de resistência.

O objetivo primaz é de apresentar parte do que foi levantado no curso da pesquisa destacando os aspectos do processo de instalação do empreendimento e seus desdobramentos na ótica dos agricultores familiares de São João da Barra no intuito de apresentar o papel da ASPRIM como movimento de resistência e estratégia de reação. Para fins deste artigo, estabeleceu-se como recorte temporal o período de 2009 a 2013, ou seja, desde o ano em que se consolida o desenho institucional da holding EBX como gestora englobando o período em que se realizou pesquisa de campo semestrais na região (entre 2010 e 2013).

É pertinente destacar o que diz respeito aos recentes acontecimentos envolvendo o Grupo EBX, a queda das ações, a venda de alguns empreendimentos do grupo e os processos judiciais decorrentes deflagraram um conjunto ainda maior de incertezas. Não se sabe exatamente se as desapropriações continuarão, quando o porto iniciará suas atividades e muito menos se os prazos preestabelecidos serão cumpridos. O que se observa é o interesse do governo estadual, de corporações nacionais e estrangeiras em investir e prosseguir com significativo conjunto de metas previstas no projeto. Por tratarmos de um processo ainda em curso, é provável que novas ações alterem a dinâmica analisada e apontem para novos caminhos analíticos.

2.  Um breve histórico de São João da Barra

Resultante de um incipiente vilarejo de migrantes pescadores procedentes de Cabo Frio, a atividade socioeconômica do município de São João da Barra esteve, durante décadas, relacionada ao desenvolvimento de atividades de pesca artesanal, agricultura de subsistência e criação de gado. No início do século XVIII, a expressiva queda da produção açucareira no Nordeste aliada à descoberta do ouro nas Minas Gerais resultou na migração de um contingente substancial de trabalhadores e contribuiu para a construção da ideia de “vocação histórica” da lavoura de cana no Norte Fluminense.

Este processo teve seu auge no século XIX com a fusão de recursos públicos e privados que possibilitaram a instalação dos primeiros engenhos centrais na região e determinou, nas palavras de Oscar (1985), um novo formato da organização da produção influenciando a estrutura orgânica da sociedade norte-fluminense que, até os dias de hoje, mesmo com o declínio desta atividade, abriga relações sociais e de trabalho fortemente associada a uma herança ligada aos antigos engenhos.

Não restam dúvidas que o cultivo da cana-de-açúcar modificou a paisagem norte fluminense devido à implantação de um número significativo de engenhos centrais e usinas que passaram a deter o monopólio da produção açucareira favorecendo uma maior concentração de terras e capitais. É neste contexto que em 1878 foi instalado em São João de Barra o Engenho Central de Barcelos, de propriedade de Domingos Alves de Barcelos Cordeiro, considerado o primeiro fator de atração populacional de relevância e responsável pela dinamização das atividades canavieiras que perduraram por mais de um século na região.

Devido à baixa de preços e diminuição da concessão de subsídios estatais, no inicio do século passado a economia açucareira entrou em declínio e o município de SJB passou por um período de certa estagnação econômica, redução dos postos de trabalho e consequente evasão populacional, principalmente nas áreas rurais.

Atualmente, São João da Barra é um importante fornecedor de produtos agrícolas e pesqueiros, principalmente, maxixe, quiabos, abacaxi, coco e camarão do tipo cinza e rosa. Até 2007 vários fomentos foram direcionados ao fortalecimento da fruticultura e industrialização da pesca, no entanto, com a implantação do complexo industrial associado ao porto, os moradores começaram a ver sua rotina alterada. Contudo, nos alerta Martins (2013), apesar da economia municipal girar em torno da agricultura de base familiar e pluriativa, do turismo de veraneio, pesca e pequenas indústrias de bebidas, a maior parcela de arrecadação está vinculada ao repasse dos royalties da produção de petróleo na Bacia de Campos (Martins, 2013).

Um dos aspectos centrais para compreensão do processo em curso é a análise, mesmo que breve, da evolução populacional de SJB. Os dados da tabela 1 permitem algumas inferências.

A população total do Norte Fluminense registrou em 2010 um incremento de 7,42% em relação a 2000. Ao analisarmos os dados dos municípios São João da Barra e Campos dos Goytacazes observamos que este aumento é ainda mais significativo, 19,07% e 14,08% respectivamente. Vale destacar a importância e de dependência política, econômica e cultural de SJB em relação a Campos, daí a relevância da análise conjunta dos dados.

No entanto, o dado que merece destaque é a significativa redução da população rural em São João da Barra na ordem de 12,39%. Ao passo que Campos acompanhou a tendência regional ao registrar uma redução da população em área rural na ordem de 3%. A redução da população em área rural é uma das consequências da implantação do Superporto do Açu no município e os dados tomam ainda mais relevância quando observamos que em 2000 cerca de 29,27% da população de SJB era residente em áreas rurais e, em contrapartida, em 2010 apenas 21,54%. Obviamente, os dados captados merecem uma análise mais detalhada e criteriosa, já que o zoneamento é de atribuição do próprio município, com intencionalidades de arrecadação essa distinção nem sempre é fidedigna. Por isso, grandes discrepâncias estatísticas podem ser registradas.

3.  O complexo processo de implantação do Superporto do Açu

Inicialmente, dois aspectos merecem destaques. O primeiro refere-se aos impactos que o Complexo Portuário do Açu causará ao espaço agrário fluminense, sobretudo, por se localizar numa região fortemente agrícola e, historicamente, marcada por conflitos agrários. O segundo ponto a destacar é o fato de o empreendimento representar a maior obra industrial portuária das Américas com a previsão de articular um conjunto de atividades através da instalação/construção de: dois terminais portuários (um onshore e outro offshore); um mineroduto de 524 km, um terminal para contêineres; uma unidade de processamento de petróleo com capacidade de um milhão de barris/dia; uma termoelétrica para geração de 5400 MW (2100 MW a carvão e 3300 MW a gás); um estaleiro para construção de plataformas e apoio à exploração de petróleo offshore; duas siderúrgicas com capacidade de cinco milhões de toneladas/ano cada; duas fábricas de cimento; um polo metal mecânico no intuito de atrair montadoras de automóveis, além de um cluster para processamento de rochas ornamentais e outros empreendimentos (ASSOCIAÇÃO DOS GEÓGRAFOS BRASILEIROS, 2011). Trata-se então de um grande terminal privado de uso misto no conceito porto indústria onde no mesmo espaço coabitariam: atividades portuárias clássicas de transporte de minérios, incrementadas pela concentração industrial no entorno imediato, ainda acrescidos da criação de estruturas de escoamento como linhas férreas, estradas de rodagem, hidrovia, minerodutos, além da produção de energia própria.

A construção do discurso em torno de um Complexo Industrial como saída para uma diversificação produtiva, geração de emprego e renda para o fomento ao desenvolvimento local foi massivamente difundido pelos empresários, gestores públicos (estaduais e municipais) e a mídia. A implantação do Porto e todo o conglomerado a ele associado representavam a ‘alavanca’ para as aspirações desenvolvimentistas no município e, para tanto, difundiu-se a ideia do atraso econômico e social associado ao perfil agrícola da região como uma ferramenta de convencimento da comunidade em geral. É válido destacar que no período de análise a figura do empresário Eike Batista representava possibilidades de ascensão econômica do município e que o “interesse” do empresário era como uma espécie de dádiva6, exemplos midiáticos o colocavam como exemplo de sucesso, recebendo a adjetivação de “Midas Brasileiro”.

Uma ideia chave no bojo da ideia de ‘desenvolvimento local e vocação industrial’ evocada e posteriormente acionada foi a associação evidente do Estado (na representação do governo estadual e federal) à corporação. Este dado é corroborado quando o governo do Estado do Rio de Janeiro reconhece a implantação do porto e do distrito industrial como ação de interesse público.

De forma a viabilizar todo esse empreendimento, foi publicado o Decreto Estadual nº 42.834, de 03 de fevereiro de 2011, que declarou como interesse público 7.036 hectares do 5º Distrito de São João da Barra para a construção do Distrito Industrial do Porto do Açu. Outro decreto foi publicado posteriormente ampliando a área (Martins, 2013, p. 37).

A associação do Estado e de corporações envolve uma conjunção de forças. Não se trata apenas do caso estudado, outros projetos de mesma natureza só se materializaram a partir dos financiamentos diretos junto ao BNDES e ao Governo do Estado do Rio de Janeiro. Além disso, na disputa entre os municípios em receber tais empreendimentos incentivos fiscais e isenção de impostos são negociados e ainda contam com o apoio na criação de estruturas de favorecimento as corporações por parte do Estado (ampliação da malha viária, cabeamento de transmissão de energia, dentre outros). Existe então, a partir do cenário descrito, um esforço para a concretização de um empreendimento que não seria viável sem a parceria, mesmo que exclusiva para esse fim e temporária entre: o Estado, os municípios, as corporações e dos gestores do poder (municipais e estaduais) que entram em uma espécie de disputa em alocar um empreendimento dessa magnitude.

Um importante argumento que favorecia a construção de um ideário de benesse com a instalação do empreendimento estudado, foi a ideia difundida de que o município tinha sido escolhido como sede de um projeto de interesse nacional e, a partir disso, seria incluído no cenário de competição no mercado global. Assim São João da Barra passaria de um município “periférico, atrasado e pobre”7, para ser incluso nos novos arranjos econômicos da América Latina.

 Nesta direção, olhemos a análise de Cruz (2009) sobre o que denomina “Grandes Projetos de Investimentos (GPIs)” no Norte Fluminense, incluindo o Porto do Açu. Segundo o autor, um dos primeiros problemas a serem considerados é que tais investimentos não produzem significativas mudanças nas históricas disparidades intra e inter-regionais que perpetuam estruturas produtivas e de relações sociais associadas à cultura local e não trazem promoção social à região. Em concordância com o autor e contribuindo pode-se dizer a partir do caso estudado que as disparidades intra e inter-regionais foram ampliadas já que novos atores entram na disputa por territórios de pretéritas disputas. Evidentemente, estamos apresentando forças desiguais em todo o processo de construção do porto.

Adiante temos um agravante a ser considerado, para compreensão do ‘rastro’ do projeto é necessário compreender que “nesses projetos predominam o capital privado internacionalizado, o que significa que os centros de decisões estão fora da região e são orientadas pela competitividade internacional e pelos interesses de corporações que se referenciam no espaço mundial e não no território local, ou regional” (CRUZ, 2009, p. 08). Dessa forma cabe a São João da Barra apenas o papel de receptáculo do empreendimento, os poderes de decisão são orientados pelo capital mundial, as possibilidades de enfrentamento são reduzidas. Assim, em quaisquer mudanças ou vantagens comparativas em outras frações do globo as empresas ali instaladas podem migrar para onde a acumulação se expresse em maior volume.

Em se tratando de ações corporativas, planejamentos em gestão empresarial e parcerias público-privadas, de curto, médio e longo prazo, podemos presumir, especificamente no caso do Superporto, que tal mudança na configuração, extensão e funcionalidade do empreendimento possivelmente era prevista no plano de ação dos gestores do grupo desde sua gênese. Fatores diversos fortalecem essa suposição, como, por exemplo, a expressiva quantidade de terras adquirida por diferentes empresas antes mesmo do início das obras e mudança de projeto.

Evidentemente, os que mais se surpreenderam com a ampliação do projeto foram a sociedade civil em geral, e principalmente, aqueles que, de certo modo, teriam suas vidas (entende-se tanto aspectos imateriais, subjetivos simbólicos, quanto aspectos materiais) alteradas. Aliás, os mesmos que estão, até hoje, à margem dos processos decisórios e sem muitas informações a respeito de seus próprios futuros, caracterizando um cenário de incertezas e especulações.

A intenção inicial de construção de um porto cede espaço para um grande projeto logístico privado e legitimado pelo Estado na medida em que cria estruturas facilitadoras, com inúmeras implicações de cunho, social, político, ambiental e econômico. Na figura a seguir, produzida pela LLX, é possível observar a espacialidade e magnitude do empreendimento, assim como as diversas funções em cada quadrante da obra.

Em visita guiada à sede do empreendimento em 2010, única oportunidade de visitação e diálogo com os gestores, os representantes da LLX apresentaram o projeto como sendo o segundo maior porto do mundo, estando apenas atrás do Porto de Roterdã na Holanda. Além disso, o porto teria o maior calado8 da América Latina sendo passível a atracação dos navios tipo Chinamax9, considerado um dos maiores do mundo com capacidade de transporte de 400 mil toneladas, inclusive maiores do que os do tipo Panamax, que foi por décadas exemplo de modernidade e capacidade de carga.

Configurando a noção de complexo industrial, o projeto passou a contar com uma grande retroárea industrial contígua, sendo proposta a alocação dos seguintes investimentos: plantas de pelotização, indústrias cimenteiras, um polo metal-mecânico, unidades petroquímicas, siderúrgicas, montadora de automóveis, pátios de armazenagem, usinas termoelétricas e um grande mineroduto (figura 03) em construção.

O mineroduto denominado Sistema Minas-Rio é um dos grandes empreendimentos associados ao Porto do Açu com extensão de aproximadamente 524 Km, passando por 32 municípios. Trata-se de uma enorme obra de engenharia de mais de 500 quilômetros ligando o município de Conceição de Mato Dentro – MG até SJB. A primeira parte visa o transporte do minério das minas até o município de Alvorada de Minas-MG para ser beneficiado, num segundo trecho, o minério será transportado, se a obra for conclusa, e será despejado diretamente nos navios atracados no Açu.

Assim como a estrutura do Porto do Açu, a construção do mineroduto resultou na remoção de inúmeras famílias de agricultores em SJB e nos municípios por onde passa o traçado. Outro importante destaque é que, desde a fase inicial das obras, o projeto do mineroduto tem desencadeado conflitos em diferentes âmbitos: social, ambiental e econômico. No entanto, a degradação ambiental decorrente do processo e a remoção de agricultores familiares foram as principais pautas nas audiências públicas realizadas até o momento.

Ao serem questionados a respeito dos inúmeros problemas na instalação de um empreendimento de tal magnitude, os gestores alegaram desconhecer qualquer tipo de conflito entre a população residente e a corporação. Inclusive, abruptamente, não aceitaram tais questionamentos, alegando que mesmo antes da construção atingir o ápice mais de três mil empregos diretos haviam sido gerados no complexo. Todavia, vários relatos destacaram que parte significativa dos empregos gerados exigia mão-de-obra altamente qualificada o que, na maioria das vezes, resultou na contratação de profissionais de diversas áreas de formação que residiam em Campos dos Goytacazes fomentando, assim, um processo de migração pendular. Para a população de SJB os empregos ofertados eram temporários e raramente ultrapassavam três meses de atividades.

Fomentando o contexto de incertezas, ao contrário do que era previsto pela população em geral, a retroárea do empreendimento não está delimitada por completo, podendo ainda aumentar consideravelmente. Até o ano de 2012, o tamanho do empreendimento era estimado em 7.200 hectares e já tinham sido gastos US$ 40 bilhões com capital público (através do Programa de Aceleração do Crescimento – PAC e financiamentos junto ao BNDES) e capital privado. Segundo informações dos próprios representantes do Grupo EBX, a maior parte dos investimentos privados era de origem asiática, sendo dada uma ênfase especial aos investimentos oriundos de empresas chinesas.

Dentre as obras iniciadas em 2007, os píeres de atração eram os projetos mais adiantados e as obras, em 2013, estavam praticamente finalizadas, totalizam 17 km de píeres e quarenta berços de atracação, visando alcançar a movimentação de 350 milhões de toneladas de minérios por ano. No caso das demais indústrias, a situação é bem mais complexa.

A derrocada do Grupo EBX, em especial do seu acionista majoritário, Eike Batista, culminaram na queda das ações do conglomerado e seus ativos, investimentos e vencimentos de empréstimos estão atualmente sub judice. Com isto, a construção de parte da infraestrutura prevista foi praticamente paralisada, o projeto do polo metal-mecânico, especificamente, foi abandonado antes mesmo de iniciar as obras. As empresas chinesas e espanholas que já estavam instaladas em São João da Barra encerraram as atividades, nesse contexto de crise, deflagrada em julho de 2013.

Muitos dos trabalhadores envolvidos na construção das empresas estrangeiras ou diretamente do Superporto foram demitidos. Nesse período boa parte da força de trabalho já tinha realizado a migração de retorno, muitos trabalhadores, oriundos do nordeste brasileiro, da cidade do Rio de Janeiro, poucos chineses e espanhóis retornaram a suas áreas de origem, deixando para trás o ‘rastro’ de sua estada, com pousadas, pensionatos, restaurantes e transportadoras de trabalhadores, a maior parte, em vias de falência.

O cenário sanjoanense entre o ano de 2007 até o início do ano de 2013, caracterizado pela ideia de desenvolvimento local, de pujança econômica e lócus de oportunidades diversas, desde a derrocada das ações da corporação gestora, apresenta-nos um nítido rastro de desemprego, de investidores de diversas partes do país que perderam seus investimentos, pequenos empresários que adquiriram dívidas para ampliar os negócios e não conseguiram prosseguir, desde a redução dos postos de trabalho em junho de 2013.

Ainda em julho de 2013 foram ouvidos mais de dez pequenos empresários em SJB, especialmente no distrito de Pipeiras, que construíram pousadas para mensalistas, pequenos restaurantes, bares, empresas de transporte de material e pessoas, que com a evasão dos funcionários não veem um futuro promissor. Podemos afirmar que, para esses, a falácia do desenvolvimento do local já se revelou. Um dos entrevistados, cabeleireiro, nascido no 5º distrito, com 47 anos de idade e dono de um pequeno estabelecimento, afirmou que todos os pequenos empresários da localidade de Mato Escuro, incluindo ele mesmo, ampliaram seus negócios, contrataram funcionários, e não sabem como pagarão as dívidas.

Contiguamente ao Complexo do Superporto do Açu, está sendo construído o distrito industrial de SJB, formalmente de responsabilidade da CODIN, o distrito foi criado pelo Estado no intuito de atrair mais indústrias para a região. De acordo com Martins (2013, p. 38):

Ainda que a CODIN seja formalmente responsável pelo distrito, foi estabelecido um termo de cooperação técnica com a LLX, delegando à empresa atribuições específicas para a sua atuação no processo de licenciamento. Também cabe à LLX implantar as infraestruturas de uso comum do Distrito Industrial, como abastecimento de água, rede de esgoto, sistema de drenagem, ruas, linhas ferroviárias, emissários e rede elétrica. Nesse sentido, o Porto do Açu e o Distrito irão compor o chamado Complexo Logístico e Industrial Portuário do Açu.

A partir de julho de 2013, assim como já apresentado referente ao Superporto do Açu, o projeto do distrito industrial careceu também de revisões, imediatamente após a possível ‘derrocada’ do grupo gestor majoritário, novos usos e novas empresas a serem atraídas foram repensados. A CODIN passou a oferecer espaços intradistrito industrial a inúmeras empresas, que passaram, de certa forma, a vislumbrar a implantação de seus negócios no complexo. Outro ponto importante, na configuração do presente, é a mudança de nome da empresa responsável pela construção do Superporto do Açu, deixando de ser LLX para se chamar Prumo, controlada por um novo grupo, denominado Grupo EIG10.

O grupo assumiu o controle, detendo 53% do capital da companhia e, nessa nova organização, coube ao Sr. Eike Batista cerca de 21%. Segundo informações oficiais o EIG é um grupo consolidado de origem norte americana, possui um passado focado em investimentos de grande porte, com operação em dezenas de países.

Mais recentemente, o novo projeto do complexo foi apresentado em divulgação oficial com maiores detalhamentos através do esquema de alocação dos investimentos. Algumas empresas já iniciaram suas construções, outras estão em vias de iniciarem, o que ainda persiste e que marca o presente é a continuidade das desapropriações de terras no entorno imediato e a afirmação de que o porto entraria em operação ainda no ano de 2014. O atraso na conclusão de parte das obras se deu por conta dos problemas enfrentados pelo Grupo EBX, podemos ainda questionar se esse novo prazo será respeitado, já que ainda em tempo presente, não se nota o mesmo ritmo na construção como no ano de 2013.

No dia oito de julho de 2013, o então Secretário de Desenvolvimento Industrial – SEDEIS do Rio de Janeiro, Sr. Julio Bueno, em coletiva de imprensa11, apresentou a insatisfação com os recentes acontecimentos ao Grupo EBX, mas afirmou que o projeto do complexo industrial se concretizaria. Para o secretário existem três empresas implantando-se no local com investimentos de US$ 1 bilhão. Além disso, outras empresas, que não as citou, já manifestaram interesse na localização e buscam espaço no empreendimento junto a CODIN. Em dezoito de fevereiro de 2014 o mesmo secretário faz visita técnica ao porto e reafirma o funcionamento e a continuação das obras, já que o porto iniciara suas atividades em março12.

A continuação das obras sem a transparência necessária e sem a clareza de qual será o futuro do complexo no que tange a magnitude total, previsão de operações, a alocação de novas empresas, associadas à maneira como estão sendo conduzidas as desapropriações e demais impactos, perpetua o cenário de especulação, violência, conflitos territoriais e fomenta a emergência de novas territorialidades. Partindo dessa explanação, o próximo subitem dedica-se a apresentar quem são os atores sociais negligenciados no processo da instalação do empreendimento para que, a partir disso, compreender o contexto de criação da associação de resistência e luta. Três principais grupos são os mais prejudicados, a saber: agricultores familiares, pescadores artesanais, reassentados na chamada Vila da Terra (que estão inseridos nas duas categorias anteriores).

4.  ASPRIM como forma de resistência?

Assim como em outras obras de engenharia modernas de grande porte, desde o inicio do processo em 2007 muitos conflitos têm se engendrado, tendo como ápice o ano de 2010. Monié e Leite (2013, p. 8) afirmam que

[...] a análise das rivalidades provocadas pela instalação de um complexo industrial portuário deve também levar em consideração grupos de variáveis relacionadas à natureza do projeto, aos atores envolvidos e às formas de mobilização dos grupos em conflito”.

Diante do cenário de vulnerabilidade, envolvendo especialmente a população do quinto distrito de SJB, foi criada em agosto de 2010 a Associação dos Proprietários Rurais e de Imóveis do 5º Distrito de São João da Barra (ASPRIM). Grande parte dos associados foram (ou estão sendo) diretamente atingidos pelas desapropriações para liberação de áreas para a construção do Superporto do Açu.

Analisando sumariamente a conjuntura, é possível afirmar que a criação da ASPRIM é uma das consequências de uma disputa acirrada e assimétrica por território e territorialidades, numa tentativa dos agricultores familiares em perpetuar seus modos de vida e lutarem pela garantia do direito à propriedade, ou seja, configurou-se num movimento de luta e resistência.

Os agricultores associados na ASPRIM têm criado estratégias específicas de enfrentamento e luta, perpassando por questões territoriais, como a valorização das identidades e da relação histórica com a terra, assim como recorrem aos impactos ambientais deflagrados como objeto de luta, tais como a salinização das áreas de agricultura familiar e dos sistemas lagunares, os impactos de vizinhança e a destruição da maior restinga preservada do Estado.

De acordo com dados produzidos em 2008 pela Associação dos Geógrafos do Brasil, o Açu ou praia do Açu, é uma localidade praiana pertencente ao 5º Distrito de SJB e é formada por propriedades e lotes rurais divididos em 350 pequenas casas e 1.408 loteamentos, com mais de dois mil moradores que residiram no local há mais de 10 anos, porém, boa parte não possuía escrituras. Foi um decreto municipal, aprovado na Câmara dos Vereadores de SJB em 2008, que permitiu a formação de um condomínio industrial na região através da doação das terras para o Grupo EBX.

Através dos decretos estaduais nº 41.584/08 e nº 41.915/09, cerca de 7 mil hectares foram desapropriados pela CODIN e declaradas como sendo de “utilidade pública”. Entretanto, a ASPRIM denunciou os órgãos competentes quanto a problemas de ordens diversas, seja na notificação dos agricultores, na negociação dos preços praticados e até mesmo o uso da violência no processo de desapropriação.

Diferentemente do discurso dos representantes da EBX, o vice-presidente da ASPRIM, Sr. Rodrigo Santos, descreveu negativamente a relação entre a corporação e os residentes destacando que a luta do movimento não se expressava no embargo das obras, e sim no respeito ao agricultor familiar e sua histórica relação com a terra. Relatos de campo corroboram o fato de inúmeras famílias terem sido intimadas ou sofrido assédio moral por parte de agentes de segurança privada ou pela Polícia Militar do 8º Batalhão de Campos (p. 516).

Um exemplo emblemático desse processo truculento e violento é a história do Sr. Antônio Toledo, agricultor, chefe de família e dono de um pequeno lote na localidade de Areia Branca. Por mais de sessenta anos Sr. Antônio produziu quiabos, mandioca e frutas para seu autoconsumo e comercialização do excedente em feiras locais. Tinha ainda alguns bois, porcos e galinhas. Fazia questão de enfatizar que tirava o alimento de sua família todos os dias da terra e que nunca tinha precisado da ajuda da “prefeitura e de governo”.

Emocionalmente abalado, alternando momentos de indignação e pranto, Seu Antônio narrou a experiência da expulsão da sua terra por parte da polícia militar. Segundo o seu relato13, em abril de 2011, acordou como de costume antes das seis horas da manhã e no caminho para o seu lote foi violentamente abordado por policiais armados que o impediram de entrar em sua propriedade. Já tinham soltado o gado, destruído parte das plantações e colocavam no ato de sua chegada placas informando tratar-se de propriedade do “Complexo Industrial Superporto do Açu”:

DIAS, Maria S. L. São Paulo, 21 maio 2010. Entrevista concedida a José Santos.

Tô esperando essa justiça nossa, como ela vai ser comigo de agora para frente, eu hoje, tudo o que eu fiz no final foi tudo destruído enterrado na terra, como enterrou minhas coisas, enterrou eu. Eu queria ser enterrado junto, porque eu perdi mamãe esses dias, por causa disso também, eles estão matando nós aos poucos, matando sem jeito! [...] tudo o que eu comprei, minhas coisas, foram enterrados no chão [...]. Eu perdi tudo o que eu tinha, perdi a vida completa, porque tudo o que eu tinha tava lá naquela terra, invadiram minha terra com muita polícia [...]. Nada me paga a minha vida que tava lá [choro], o que eu plantei era o que eu queria, não é dinheiro não, porque eu nunca trabalhei por dinheiro, toda vida eu fui pobre eu nunca quero ser rico, eu queria ter a minha vida que eu tinha. Eu faço o dinheiro não é dinheiro que me faz não, desde aquele dia, eu não sei mais o que vai ser da minha vida (TOLEDO, 2010).

A perda material e imaterial a que foi sujeitado Seu Antônio nos coloca diante de um cenário onde o sentimento comum, por parte dos agricultores atingidos pela instalação do Superporto do Açu, é uma espécie de luto generalizado. Isto porque estas pessoas perderam a sua referência de vida, de territorialização, de vínculo afetivo e produtivo. A terra não é apenas o referencial material e concreto de subsistência familiar, é ela em si a referência identitária e de vida.

Dos apontamentos até aqui desenvolvidos e inspirados em Haesbaert (1999) e Pollice (2010) realçamos a emergência de uma relação interdependente entre duas categorias conceituais: território e identidade. Trata-se de uma relação cumulativa que orienta e confere significado aos processos de territorialização.

O território aqui é entendido como um espaço delimitado por e a partir de relações de poder, como atesta Souza (2007), contem em sua essência uma materialidade expressa no conteúdo que ali se produz, assim como uma imaterialidade corporificada no seu aspecto simbólico que, no caso aqui estudado, refere-se ao espaço de pertença de um grupo social e, portanto, torna-se um produto afetivo e de identificação.

A relação entre as duas categorias, conforme explica Pollice (2010), não é de dependência, mas de reciprocidade. Em outras palavras, a identidade (re)cria espaços de referência produzidos concreta e simbolicamente numa relação de alteridade, seja pela apropriação material (formas de uso, de produção e organização do espaço), seja pelas representações (significados, símbolos, invenção, modos de vida, etc.). O sentimento de pertencimento dos agricultores do Quinto Distrito foi fundamental para a o fortalecimento de uma territorialidade que reivindica a valorização do modo de vida no campo e o direito à produção de subsistência.

Vale destacar que a construção da associação se deu pela forma com que a CODIN e o Grupo EBX estavam conduzindo o processo de desapropriação. Uma comissão foi formada pleiteando uma reunião com os representantes regionais da CODIN, tendo como pauta principal as desapropriações de terra no quinto distrito. O desdobramento desta ação foi a criação da Associação como forma de resistência, fiscalização e controle das ações conduzidas pela CODIN e Grupo EBX sobre os agricultores familiares do 5º Distrito.

Uma das primeiras ações da ASPRIM foi o levantamento das famílias desapropriadas ou atingidas pelo processo, já que as estatísticas oficiais não contabilizavam boa parte dessas famílias. Em seus primeiros levantamentos a ASPRIM estimou que cinco mil pessoas pudessem ser afetadas diretamente pela construção do complexo, cerca de 1500 famílias poderiam ser removidas e centenas seriam obrigadas a sair por conta dos impactos indiretos, tais como, poluição sonora, de suspensões particuladas, visual, além do tráfego de navios e veículos pesados. Ainda nesse primeiro momento a reunião desses possíveis desapropriados e das famílias já desapropriadas se deu de modo fundamental para a criação de uma agenda de ações, reuniões e pautas comum ao grupo.

Evidentemente, como todo movimento representativo, heterogeneidades em sua formação são evidenciadas, assim como divergências de opinião, intencionalidades e interesses das mais diversas ordens. Um exemplo disto é a vinculação à ASPRIM de membros que não são agricultores familiares. No entanto, isto não descaracteriza a importância do movimento já que tais integrantes exercem funções estratégicas na articulação política da associação.

As ações e a forma da representação de luta do movimento demonstram que estamos diante de um grupo de enfrentamento, que busca estratégias de legitimação da sua luta buscando apoio jurídico, técnico e científico junto a advogados, pesquisadores e técnicos ambientais. Um dos resultados mais efetivos das ações da ASPRIM foi a visibilidade na mídia dos fatos envolvendo as desapropriações no 5º Distrito fortalecendo o elo com representantes da Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro que começaram a pautar o tema em suas sessões.

Além disto, as manifestações organizadas pela Associação e o fechamento de estradas forçou a abertura de investigações pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. As grandes mídias, que até então negligenciavam a luta, se viram obrigadas a divulgar a causa. Através dos laudos técnicos, dentre eles o produzido pela Associação Geógrafos Brasileiros/Agrária (2011), conseguiram comprovar a luta frente aos órgãos competentes e paralisar as obras, consequentemente freando as desapropriações. Como é o caso da Ação Civil Pública 0000149-98.2012.4.02.5103 (2012.51.03.000149-3), de 2012, movida pela ASPRIM cobrando do Estado e das empresas envolvidas uma série de questões de cunho ambiental, social, administrativo da máquina pública.

5.  Apontamentos reflexivos

Em primeiro ponto destaca-se o papel da associação como um nítido movimento de resistência organizado e legitimado por seus integrantes. Ou seja, estamos diante de um grupo organizado internamente, que buscou auxílios de indivíduos que pudessem apoiá-los juridicamente, cientificamente e nas questões técnicas, o que legitimou a luta frente ao poder público, e aos centros difusores de informação.

Os ganhos enquanto movimento de resistência são consideráveis, mesmo ainda com processos de desapropriação em curso, de uso truculento de força policial, de coação dos agricultores por terceiros, de perdas (i)materiais dos possíveis removidos. Apenas a visibilidade e o enfrentamento com a utilização dos recursos jurídicos disponíveis apontam-nos a um caminho de possibilidades maior do que no inicio da luta. Um aspecto de relevância é o respeito e o esforço coletivo de auxílio dos integrantes da associação mediante a chegada de notificação de desapropriação a um dos companheiros. Os laços de vizinhança, parentesco e os desenvolvidos já nos espaços de enfrentamento foram evocados pelos integrantes como positivos.

As frentes de articulação engendradas pela associação são múltiplas, uma delas é a troca de experiências com demais famílias removidas pelo mesmo grupo corporativo em Conceição de Mato Dentro/MG. O intercâmbio entre os “atingidos” permite a troca de experiências e vivencias na luta que trazem resultados positivos para ambas as partes. Outra frente de articulação são as falas nas audiências públicas, nas mídias e o pronto atendimento aos diversos pesquisadores que lhes procuram. Essa aproximação permite também trocas de experiências que tem favorecido as partes, como é o caso do Relatório da AGB/Agrária, que quando anexado aos processos jurídicos, legitimam de certa forma a resistência.

Um ponto positivo da articulação interna do grupo, de certa maneira, podemos falar em coesão entre seus integrantes, é a possibilidade real de resguardar seus membros das ações e estratégias das corporações. Com os informes, o apoio jurídico e com o conjunto de ensinamentos passados nos momentos de reunião, parte desses agricultores tiveram maiores possibilidades articulação quando procurados por representantes do grupo ou por funcionários da CODIN. Muitos casos foram vistos, nas ocasiões de visita, de agricultores que assinaram contratos de negociação sem que tivessem a compreensão real do que faziam.

Mediante aos ‘novos acontecimentos’ em SJB questões ainda carecem de maiores esforços analíticos e de enfrentamentos: de que forma a ASPRIM poderá acionar os dispositivos legais e quais são as demais formas de enfrentamento mediante a possível derrocada do grupo empresarial? De que maneira o processo de desapropriação engendrará novos conflitos e quais são as efetivas capacidades de articulação do movimento com demais atores da sociedade civil? Estaríamos diante de um processo de possível reintegração de posse aos já desalojados, já que parte das obras está paralisada? Quais novas pautas precisam ser enfrentadas pela associação em questão a fim de mitigar os reflexos negativos de tal obra de engenharia?

Evidentemente, estas são questões que merecem esforço investigativo, o que reforça o caráter processual desta pesquisa, com inúmeras possibilidades de olhares e instrumentais teóricos analítico.

Notas

1     O Relatório de Impacto Ambiental (RIMA) do Distrito Industrial de São João da Barra, elaborado pela Ecologus Engenharia Consultiva em parceria com a LLX, destaca que no momento do licenciamento ambiental do complexo portuário, o grupo EBX era composto pelas seguintes empresas: LLX (logística); MMX (mineração); OGX (exploração de petróleo e gás); MPX (energia); OSX (equipamentos e serviços para a indústria offshore de óleo e gás); além de empresas menores, tais como: REX (setor imobiliário); MDX (Barra Medical Center); Pink Fleet; Glória Palace Hotel; Restaurante Mr. Lan; e Rio Marina Glória (Ecologus, 2011). Trata-se de uma holding que tinha como sócio majoritário o empresário Eike Fuhrken Batista da Silva, filho do engenheiro Eliezer Batista que presidiu a Companhia Vale do Rio Doce por duas vezes e esteve como Ministro de Minas e Energia durante o governo João Goulart (1961-1964).

2     O corredor logístico proposto pelo Grupo EBX tinha o traçado ainda não apresentado à população. De acordo com informações oficiais no site da EBX em 2012, teria extensão total de aproximadamente 45 quilômetros, contando com rodovias, ferrovia (Ferrovia Centro Atlântica na porção territorial referente a Campos dos Goytacazes – RJ), oleodutos, mineroduto e redes de transmissão de energia, ligando São João da Barra a Campos dos Goytacazes – RJ.

3     Ouvidos nos anos de 2011, 2012, 2013 e 2014.

4     Para maiores informações ver Vieira e Prado (2014).

5     A pluriatividade refere-se à combinação permanente de atividades agrícolas e não agrícolas em uma mesma família, a fim de garantir a reprodução social do grupo ou do coletivo que lhe corresponde. Grosso modo, as unidades familiares não desempenham exclusivamente atividades agrícolas, incrementando o orçamento doméstico por meio de atividades realizadas fora do âmbito da propriedade rural. Para aprofundamento teórico sobre o conceito ver Carneiro (2002) e Schneider (2001).

6     A título de exemplo do argumento ver as seguintes entrevistas disponíveis em:
http://www.sjb.rj.gov.br/por-que-investir
http://www.grussaisjbimoveis.com.br/noticia.php?id=65

7     Fala de um empresário do setor de transporte em pesquisa de campo em 2011.

8     Calado é uma medida náutica que se refere à profundidade total entre o assoalho oceânico e a superfície.

9     Melhores informações a respeito da diferenciação dos tipos de embarcação, capacidade de carga e demais assuntos relacionados em http://transportemaritimoglobal.files.wordpress.com/2013/11/tipologia-de-navios_antonio-costa.pdf.

10   Informações oficiais extraídas no sítio virtual em 24 de dezembro de 2013. Para maiores detalhamentos da mudança e dos novos projetos ver: http://www.prumologistica.com.br/pt/imprensa/Paginas/LLX-agora-%C3%A9-Prumo.aspx.

11   Disponível em http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2013/07/superporto-do-acu-vai-dar-certo-afirma-secretario-do-rj.html

12   Disponível em http://www.agerio.com.br/index.php/portal-pld/217-comitiva-faz-visita-tecnica-ao-porto-do-acu

13   Além da entrevista concedida por ele aos autores, a história de vida do Sr. Antônio Toleto foi difundida no documentário produzido por pesquisadores da Universidade Federal Fluminense e intitulado “Narradores do Açu”.

Referências

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