Política regional para além do Fundo Constitucional do Norte (FNO): os 5% de Roraima
Rodrigo Portugal da Costa
Doutorando em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ) e economista da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM).
1. Introdução
Os Fundos Constitucionais de Financiamento do Norte (FNO), Nordeste (FNE) e Centro-oeste (FCO) são instrumentos da Política Nacional de Desenvolvimento Regional (PNDR), uma política pública que visa diminuir as desigualdades regionais brasileiras em múltiplas dimensões e escalas. Para tanto, na região Norte o FNO é gerido pelo Banco da Amazônia S.A. e planejado em conjunto com a Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM) e o Ministério da Integração Nacional (MI).
O FNO é constitucional por ter sido criado na Constituição de 1988, que destinou 0,6% da arrecadação dos impostos sobre renda e proventos de qualquer natureza (IR) e sobre produtos industrializados (IPI) (Lei n° 7.827/89) para a execução de programas de financiamento aos setores produtivos da região Norte por meio de crédito subsidiado.
O planejamento das aplicações é feito anualmente pelos órgãos gestores, que o consolidam no Plano de Aplicação do FNO. Há alguns anos, os documentos estipulam que 5% dos recursos totais do FNO serão destinados para Roraima, como forma de alavancar a economia local em atividades vistas como estratégicas para o desenvolvimento do estado. Os setores escolhidos, em sua maioria, são rurais, uma tendência que é verificada para os demais estados da região, tanto pela expansão da fronteira agrícola na Amazônia quanto pela ação do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF).
O plano de aplicação de 2015, como em outros anos, divide os setores em Arranjos Produtivos Locais (APLs) e projetos sustentáveis prioritários. Os APLs são: Apicultura, Fruticultura, Mandiocultura, Piscicultura, Pecuária de corte, de leite, Grãos, Madeira e móveis e Turismo. Os projetos sustentáveis são: Apicultura, Fruticultura, Mandiocultura, Piscicultura, Pecuária de corte e leite, Grãos, Madeira e Móveis, Turismo, comércio e serviços e saúde e educação. Ou seja, APLs e projetos sustentáveis são praticamente os mesmos, à exceção de um tímido comércio, serviços, saúde e educação, que foram incorporados naquele ano.
O problema se coloca quando não se alcança em nenhum dos quatro anos estudados (2011-2015) a meta de 5% de aplicação do FNO. Planeja-se esse percentual, mas o realizado é bem inferior, como pode ser visto através do Índice de Consecução, um indicador utilizado pelo banco para medir quanto dos recursos programados foram efetivamente realizados.
Portanto, o objetivo do artigo é analisar as causas do não alcance da meta de 5% do FNO para o estado de Roraima. Com isso, debate-se como o principal instrumento utilizado pelos órgãos envolvidos com a PNDR – principal, pois movimenta mais recursos e tem uma maior capilaridade nos setores produtivos, em comparação aos incentivos fiscais e fundos de desenvolvimento regional1 – se ajusta à dinâmica territorial de um estado e quais os principais problemas que vão além da politica de crédito instrumentalizada pelo FNO.
A hipótese principal é que o planejamento do instrumento não está vinculado às características do território e ainda não consegue abranger os princípios multidimensionais e multiescalares da PNDR. A hipótese é testada pela metodologia piloto de avaliação qualitativa dos fundos constitucionais utilizada em Monteiro Neto et al. (2017) e Magalhães et al. (2017).
O texto inicia nesta introdução, seguido na seção 2 pela revisão da literatura sobre políticas de desenvolvimento regional na Amazônia e na 3 pela metodologia. A seção 4 mostra as características de Roraima, a 5 apresenta os resultados e a 6 interconecta e discute o estado de Roraima e a aplicação da política de desenvolvimento regional atual. Depois são expostas as considerações finais e as referências bibliográficas usadas no texto.
2. Revisão da literatura
As ações estatais para a Amazônia são realizadas desde os anos 1940 (TRINDADE, 2014), atingindo seu ápice nas décadas de 1960 e 1970 durante os governos militares, quando sofreu influência da teoria dos Polos de Desenvolvimento de Perroux, que dava ênfase à implantação de grandes indústrias com o poder de polarizar o crescimento econômico. Essa época foi marcada por uma intensa industrialização com o apoio do Estado, inclusive nas regiões periféricas como a Amazônia, e é conhecida como uma fase desenvolvimentista na história brasileira.
O período desenvolvimentista teve como consequências a implantação de projetos minerais, metalúrgicos, agropecuários e de energia, financiados por incentivos fiscais e financeiros e colocados em prática principalmente no II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND) e pela SUDAM.
Outras teorias também influenciaram esse período como o Desenvolvimento desequilibrado de Hirschman e Causação Circular Cumulativa de Myrdal, além das ideias de Centro-periferia de Celso Furtado e Raul Prebisch, no âmbito da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL).2
No entanto, a partir da década de 1980, o Estado brasileiro sofreu uma severa crise fiscal e financeira que inviabilizou a manutenção no mesmo patamar das Políticas de Desenvolvimento Regional (PDR) e para Vieira (2014) essa crise redundou no retraimento das ações de planejamento federal e desenvolvimento regional nos anos 1990. Isso desestruturou órgãos de desenvolvimento, como a SUDAM e o Banco da Amazônia S.A., embora este último, apoiado pela Constituição de 1988, tenha ficado responsável por gerir o FNO, um fundo criado naquele ano para financiar atividades econômicas com juros subsidiados.
Do período constituinte, observa-se que o advento do FNO não significou uma volta aos períodos áureos do “desenvolvimento regional”, com ação coordenada pelo Estado, mas sim uma tentativa – e pressões políticas – para reavivar financiamentos nas regiões antes atendidas pelas PDRs.
A partir da década de 2000, houve uma tentativa de retorno às PDRs sob a coordenação do Governo Federal através da PNDR, que se constituiria em uma reformulação do planejamento regional. Sob forte inspiração das politicas realizadas na União Europeia (DINIZ, 2007) ela visou articular uma série de ações e atividades dispersas pelos entes governamentais atuando em múltiplas escalas e dimensões.
Segundo Alves e Rocha Neto (2014) a PNDR entrou em funcionamento em 2007 sem a devida maturação o que culminou em diversas conferências posteriores com o objetivo de reformulá-la e solucionar problemas, como a coordenação federativa e o financiamento do desenvolvimento.
A PNDR original buscou sair do que Silva (2015) citou como os modelos tradicionais de planejamento regional. Esses modelos eram marcados por estruturas top-down, calcada nos grandes projetos de investimento, gerenciados pelas superintendências para recortes macrorregionais e apoiados pelos incentivos fiscais.
Para a autora, a principal mudança teórica da PNDR sobre a fase desenvolvimentista seria sobre desigualdade e desenvolvimento, “[...] passando a considerar a desigualdade no âmbito sub-regional e também entre as pessoas, e não apenas na escala macrorregional e entre os lugares, como se concebia até então” (SILVA, 2015, p. 14). Ela destacou que o Decreto n° 6.047/2007, que institui a PNDR, elencou que as estratégias deveriam ser convergentes, com objetivos de inclusão social, produtividade, sustentabilidade ambiental e competitividade econômica.
Neste contexto, alguns planos foram criados para a Amazônia para servir como diretrizes para a ação no território. O principal deles foi o Plano Amazônia Sustentável (PAS), cuja estratégia se baseava na regionalização das políticas, devido ao mosaico variado de territórios urbanos e rurais. A ideia foi inserir a transversalidade e a multidimensionalidade. Gerar emprego e renda não seria unicamente um fim, mas estaria conectado à sustentabilidade e à inclusão social, com aumento do nível de vida em geral.
Derivado do PAS foram criados quatro planos: Plano de Desenvolvimento Regional Sustentável para a Área de Influência da Rodovia BR-163 (Cuiabá-Santarém); Plano de Desenvolvimento Territorial Sustentável para o Arquipélago do Marajó; Plano de Desenvolvimento Regional Sustentável do Xingu; e Plano de Desenvolvimento Regional Sustentável do Lago de Tucuruí. Eles seguem as diretrizes de investimento do PAS, porém mais focados sobre problemas específicos e alternativas para as sub-regiões.
Os planos tiveram influência dos trabalhos de Bertha Becker, que ao longo dos anos percebeu a Amazônia enquanto um espaço geopolítico, onde as estratégias de ocupação do território eram mais influenciadas pela política do que pela economia (BECKER, 2009). Entretanto para ela, nas décadas recentes a Amazônia não é mais uma fronteira de ocupação, mas sim de capital natural, com conexões urbanas, financeiras e informacionais, que são influenciadas por vetores tecnológicos em escalas internacionais, nacionais e regionais. Enxergar potencialidades na biodiversidade da região configura uma nova geopolítica de uso do território (BECKER, 2009) e é suscetível a novas propostas de futuro para a região (BECKER; STENNER, 2008).
As questões levantadas por Becker focam consideravelmente o conhecimento do espaço amazônico e como o mosaico multifacetado pode ser articulado em uma proposta de planejamento para o desenvolvimento regional. Ao lado dos setores e propostas aparecem regiões específicas e potencialidades. Ao lado da localidade, se olha o aspecto nacional e as conexões internacionais. Com isso, ela insere uma perspectiva multiescalar no debate.
A questão da escala foi importante na construção da PNDR, assim como a multidimensionalidade e a transversalidade. Alves e Rocha Neto (2014, p. 319) destacam que esses princípios foram incorporados de uma terceira geração de políticas regionais, mais condizentes com a globalização, que impunha uma competição entre sistemas regionais, em contraponto ao empreendedorismo e ao “localismo”3 da segunda geração, muito em voga nos anos 1990. Portanto, prescindia de uma ação não apenas local, mas coordenada em diversos níveis de ação. Em outras palavras, a PNDR deveria ter uma coordenação transversal guiada pelo nível federal, atenta ao local, ao mesmo tempo em que combateria várias dimensões de desigualdades.
O principio da multidimensionalidade dialoga com o desenvolvimento como liberdade de Amartya Sen. Mesmo que a PNDR não tenha se inspirado nessa teoria, Sen (1999) afirma que o processo de desenvolvimento é uma questão de liberdade, que requer que os cidadãos tenham capacidades elementares, como ler, fazer cálculos e ter acesso ao trabalho. Estas capacidades se tornam liberdades substantivas, ou seja, o mínimo necessário para vida humana, constituindo-se num fim primordial para qualquer estratégia de desenvolvimento.
Outros tipos de liberdade são meios para atingir os fins primordiais, mas também podem ser vistos como fins em si mesmos. Ter liberdade de voto, produção, consumo e participação social são meios se pensados no desenvolvimento da capacidade humana, mas são fins se vistos individualmente. Ele chama de liberdades instrumentais aquelas necessárias para o enriquecimento da vida humana, entre elas as facilidades econômicas que envolvem o crédito (SEN, 1999, p. 59).4
O grande cerne dessa visão de desenvolvimento é que tanto as liberdades substantivas quanto as instrumentais devem ser inter-relacionadas e complementares, como a economia, o meio ambiente e a sociedade (DREZE; SEN, 2015).
Portanto, pensar na PNDR é pensar numa política que se propõe a ser multidimensional, multiescalar e transversal, atenta a particularidades do território, desigualdade entre pessoas, mas sem esquecer o crescimento econômico.
Para alcance destes objetivos, foi proposta a criação do Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional (FNDR), que ainda não foi aprovado pelo Congresso. Em consequência e para dar prosseguimento à PNDR, foram incorporados instrumentos que já existiam antes da criação da política (Fundos Constitucionais, Fundos de Desenvolvimento Regional e Incentivos Fiscais),5 chamados nesse artigo de instrumentos “explícitos”, do qual o principal deles na região Norte é o FNO, por ter maior capilaridade e recursos em comparação aos outros dois.
3. Metodologia
O método aplicado no trabalho foi desenvolvido por Monteiro Neto et al (2017) e Magalhães et al. (2017) no livro “Avaliação de políticas públicas no Brasil: Uma análise da Política Nacional de Desenvolvimento Regional (PNDR)”. Ele consiste em uma avaliação qualitativa cuja natureza é, como disse Magalhães et al. (2017, p. 192) “[...] rever e/ou resgatar a credibilidade ameaçada ou perdida da política pública”.
Para tanto, optou-se pela análise qualitativa por ela ir além da quantitativa, ao contribuir sobre fundamentos, inserção de variáveis, normas, valores, interesses e poderes, que se encontram instalados na política e que são revelados pelos entrevistados.
Quanto ao procedimento, a pesquisa se caracterizou pela análise de questionários semiestruturados aplicados em cinco ou seis pessoas, em 18 cidades, seis em cada região onde se aplicam os Fundos Constitucionais: Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Os questionários foram desenvolvidos para uma duração aproximada de 120 minutos, não admitindo respostas binárias e entrevistando três tipos de agentes: demandantes de crédito, ofertantes de crédito e atores locais relevantes para o desenvolvimento.
A metodologia do livro visou perceber questões mais abrangentes, como: a) o conhecimento de cidades chaves para a redução das desigualdades inter e intrarregionais; b) a percepção de atores relevantes para o desenvolvimento das cidades; c) as tendências do desenvolvimento e das políticas regionais; d) avaliar a capacidade da PNDR em articular as políticas setoriais federais, políticas estaduais e municipais de forma prática e que possam ser percebidas pelos atores locais; e) encontrar potenciais de desenvolvimento local ainda não explorados ou mal explorados pelas políticas públicas para sugerir o aperfeiçoamento das mesmas; e f) encontrar fraquezas institucionais dos Fundos Constitucionais.
O presente artigo é parte integrante desta avaliação, porém propõe uma menor abrangência geográfica: o estudo de caso de Roraima. Neste estado foram entrevistados dois atores locais, um atuante na prefeitura e outro na Universidade Federal de Roraima (UFRR), quatro tomadores de crédito de diversos setores produtivos e o gerente da agência do Banco da Amazônia S.A. em Boa Vista.
O texto busca respeitar a análise em múltiplas dimensões, conforme Dreze e Sen (2015) realizaram para a Índia, mas sob a ótica das facilidades econômicas possibilitadas pelo crédito subsidiado do FNO. O escopo é captar essa liberdade instrumental e sua interrelação com outras possibilidades e liberdades para o desenvolvimento. Ademais, o princípio transversal e a natureza multiescalar, nos termos de Becker (2009), é um enfoque do artigo ao longo dos resultados possibilitados pela pesquisa qualitativa.
4. A demografia, a economia, a sociedade e o meio ambiente para pensamento da PNDR em Roraima
Antes de entrar nas percepções dos envolvidos com o FNO e com a PNDR, é necessário descrever sucintamente o estado de Roraima e atentar para suas peculiaridades. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) obtidos pelo Sistema IBGE de Recuperação Automática (SIDRA), em 2014 a população de Roraima equivalia a 500 mil habitantes, dos quais 416 mil estavam em áreas urbanas e 84 mil em rurais. A população de Boa Vista correspondia a 64% destes 500 mil (320mil), e da população total, 273 mil eram roraimenses, 84 mil maranhenses, 41 mil paraenses e 26 mil amazonenses, o que destaca uma forte migração intrarregional. No tocante aos indígenas, sua área equivalia a 46% (104.018,00 km²) do território estadual para uma população de 24 mil índios,6 na maioria da etnia yanomâmi.
A Figura 1 mostra a geografia do estado e seus intensos recortes territoriais. As áreas em marrom são os territórios indígenas, bem presentes ao norte de Boa Vista. Lá, o ecossistema é composto por savanas até as fronteiras com a Venezuela (cidades gêmeas de Santa Elena de Uairén e Pacaraíma) e com a Guiana (cidades de Lethem e Bonfim). À oeste é possível visualizar uma grande reserva indígena onde vivem os yanomâmis, além de áreas em verde (parques ambientais e unidades de conservação). A BR 174 que liga Manaus a Boa Vista pode ser visualizada entre as reservas no sudeste do estado. A partir do município de Mucajaí, o ecossistema amazônico é predominante e existem municípios erguidos por assentados do INCRA ainda na década de 1970, com destaque para Rorainópolis. É fácil ver as “espinhas de peixe” abertas no meio da floresta onde estão localizados esses municípios. O adensamento populacional e a expansão territorial, logo, pode representar o avanço do desmatamento.
Figura 1 – Mapa do Estado de Roraima em 2017
Fonte: Red Amazonica de información Socioambiental Georeferenciada.Nas Contas Regionais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), o estado em 2014 possuía um PIB de R$ 9,744 bilhões e um PIB per capita de R$ 19,6 mil. O valor adicionado pela administração pública correspondeu a 45%, serviços 38%, indústria 11,2% e agropecuária 4,3% do valor adicionado total. A balança comercial computou em 2014 US$19 milhões em exportações e US$10 milhões em importações, nos quais 80% do valor exportado foram referentes a apenas uma empresa que vende soja para o exterior, de acordo com o sistema Aliceweb. Por essas características, o estado tem uma receita própria baixa. A dependência da União é flagrante, pois em 2014, 42% da receita total (R$4,145 bilhões) eram provenientes da União, enquanto no Pará este número chega a 26%, segundo dados da Execução Orçamentária dos Estados da Secretaria do Tesouro Nacional (STN).
No acesso ao crédito, o saldo das operações para pessoa jurídica foi de R$1,9 bilhão,7 mas caiu comparado a 2013, quando era R$2,6 bilhões. O número de clientes vem aumentando a uma taxa média de 18,5% – a maior da região Norte – e chegou a 6.372 em 2014. A inadimplência foi 1,6%, só perdendo para o Acre, Distrito Federal e Rio de Janeiro e já foi de 0,8% – a menor do Brasil – de acordo com o Relatório de Economia Bancária e Monetária de 2014 do Banco Central do Brasil.
Com relação à ocupação da população com mais de 10 anos, segundo a PNAD, em 2014, 245 mil estavam ocupados no estado, nos quais 202 mil em setores não agrícolas e apenas 43 mil em setores agrícolas. Os rendimentos destes trabalhadores eram mais desiguais em relação ao Norte em geral. A população que recebeu mais de três salários mínimos equivaleu a 16% dos ocupados, enquanto no Norte este valor chega a 11,6%, por outro lado 35% da população ganhou até um salário mínimo, uma das taxas mais altas da região.
Os níveis de anos de estudo são mais elevados que os da região Norte e do Brasil. 40% das pessoas acima de 10 anos de idade têm 11 anos ou mais de estudo, enquanto no Norte isso correspondeu a 33% em 2014 e, do Brasil, 38%. No Atlas do Desenvolvimento Humano de 2014, o IDH-M é elevado em 0,707, assim como a expectativa de vida ao nascer (73,51 anos), no entanto, o Índice de Gini é estável desde 1991 por volta de 0,63, apesar do percentual de pobres ser decrescente, saindo de 36% em 1991 para 26% em 2010. Os valores ainda estão aquém dos níveis brasileiros (IDH: 0,72; Gini: 0,56), mas melhor que estados do Norte, como o Pará (IDH: 0,64; Gini: 0,62) e Amazonas (IDH: 0,67; Gini: 0,65).
A taxa de desmatamento vem se expandindo desde 2012, e em 2014 atingiu 219 km²/ano, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), embora já tenha sido de 574 em 2008, possivelmente puxado pela área plantada para soja, que passou de 5 mil em 2012 para 16 mil em 2014, de acordo com a PNAD. A tendência vai de encontro à Amazônia Legal que reduziu suas taxas de 2013 a 2014 (SUDAM, 2015). Produtos como banana e laranja também apresentaram expansão na área destinada à colheita no período. No entanto, a agricultura e a pecuária são tradicionais nas regiões de savana para onde a soja também se expande (SANTOS, 2013).
Outro possível fator de desmatamento é a extração de madeira, entretanto os dados do SIDRA mostram que a quantidade produzida de lenha não se elevou acentuadamente (104.400 m³ em 2012 para 107.250 em 2014), assim como a madeira em toras (109.340 m³ em 2012 para 125.200 em 2014). A principal hipótese para o desmatamento são os garimpos ilegais nas áreas de fronteira, no entanto, esta afirmação é somente uma ilação dado as parcas informações sobre essa atividade na região.
Diante do exposto, o estado de Roraima possui um território recortado por reservas indígenas e ambientais, uma população urbana concentrada em Boa Vista, formada por funcionários públicos, com alta escolaridade, porém com alta desigualdade de rendimentos. As finanças públicas são dependentes das transferências da União, pois sua economia é baseada na renda gerada pelos servidores públicos urbanos, que estimulam o comércio e serviços, embora algumas atividades agrícolas venham se desenvolvendo, como a soja, que impulsionou a demanda por crédito na região.
5. As entrevistas e as percepções
Nesta seção são apresentadas as percepções captadas pelas entrevistas realizadas sobre o crédito subsidiado do FNO e a discussão sobre os problemas em amplas dimensões para o não atingimento das metas de aplicação estipuladas.
5.1 O crédito subsidiado – FNO
Os 5% de aplicação do FNO não são atingidos em Roraima há alguns anos, mesmo sendo destacado nas entrevistas um aumento recente no número de clientes recorrentes ao fundo, seja por uma maior facilidade no crédito ou pelo aumento na demanda gerada pelas transferências de renda.
No entanto, outro fator bem peculiar ao estado colaborou para esta elevação. Os entrevistados, tanto ofertantes quanto demandantes de crédito, perceberam que antes os recursos se concentravam em poucos clientes, com reconhecida fortuna na praça, derivada principalmente da atividade garimpeira, enquanto que atualmente, muito em função dos desdobramentos do Acordo de Basileia II, que unificou as regras bancárias e tornou padrão a mensuração de riscos e garantias, o crédito é visto como “possível” e mais acessível.
Apesar de ainda não conseguir cumprir as metas de empréstimos estipuladas pelo banco, o crédito é tido como vital para viabilidade do negócio em qualquer ramo da economia local. Um empresário do setor agropecuário confirmou o enunciado ao dizer que o último recurso obtido através do FNO foi utilizado na compra de garrotes, aumentando a produção em aproximadamente 25%.
As taxas de juros subsidiadas e a carência elevada tornaram a decisão pelo FNO mais atrativa em comparação a outras fontes, porém os benefícios do crédito subsidiado vão além. Se tais recursos não estivessem disponíveis, a possibilidade de modernização e ampliação dos negócios seria mais difícil, pois os recursos disponibilizados incentivam planos de investimentos mais ousados, como um novo frigorífico financiado com aporte do fundo em torno de R$15 milhões.
Outro ponto percebido foi a importância do capital de giro em função das distâncias dos centros fornecedores. Os relatos mostraram que enquanto a mercadoria está em trânsito, o negócio se mantém pelos empréstimos fornecidos pelos bancos. A própria inadimplência foi influenciada pelo alto tempo de fluxo de caixa e instabilidade para grandes negócios. O transporte é longo e sem uma garantia de entrega no prazo. Quando as mercadorias atrasam, comprometem a venda, logo os comerciantes atrasam o pagamento. Na região, é necessário manter um estoque alto de produtos, que durem em média de quatro a seis meses, dependendo da atividade.
Além do problema da distância, que encarece custos, foi percebido que para implantação, o maior motivo de inadimplência foram os atrasos burocráticos, que prejudicam o início das operações de uma planta produtiva e consequentemente afetam os pagamentos. Foi citado que os produtores de soja que se instalaram no estado recentemente tinham problemas na importação de calcário e fósforo na Venezuela para fertilização da terra, o que aumentava os custos e o tempo de entrada em atividade.
Quanto à qualificação da demanda, os projetos em Roraima têm valores menores em comparação aos outros estados. No estado, um projeto grande gira em torno de R$1 milhão na capital e não passa de R$100 mil no interior, enquanto nos outros estados, um projeto só é considerado grande se for acima de R$ 10 milhões. Todavia, existem aqueles mais expressivos nos quais é necessário um plano de negócios. Nesse quesito, os maiores problemas apontados foram: a escassez de firmas particulares que elaboram projetos de captação de recursos e a morosidade na emissão de certidões pelos órgãos governamentais, o que atrasa o processo concessório. As licenças ambientais e a entrega de garantias foram destacadas como os maiores problemas na tomada de recursos.
Nos últimos anos, houve um aumento nos pedidos de crédito para micro e pequenos empreendedores tanto rurais quanto urbanos, em especial para a agricultura familiar. Em consonância com o Plano de Aplicação do Banco – o documento que planeja as aplicações do FNO para o ano seguinte –, 1/3 dos empréstimos do último ano foram fornecidos para essa modalidade e a percepção local é de que essa elevação foi fruto de um aumento na renda nas classes D e E, ocasionados pelas transferências de renda do Governo Federal.
A visão unânime no estado é a alta burocracia do fundo. Não só em Roraima esse problema foi detectado, mas em outros estados também, como ressaltado por Monteiro Neto et al. (2017). A noção é que os trâmites são morosos, não só os internos ao banco, mas do processo como um todo, do conhecimento dos recursos, ao acesso, documentação, análise e concessão. Os canais de assessoria externa aos empresários locais também são vistos como um problema, pois são desconhecidos pelos tomadores, o que mostra a insuficiência de assistência técnica especializada no estado.
Internamente, o Banco da Amazônia já sinalizou mudanças para melhorar o tempo de análise. Uma das citadas foi a mudança de alçada de aprovação de crédito. Antes, a maioria deveria ser mandada para superintendências regionais para análise via processo físico. Agora, apenas pleitos acima de R$2 milhões devem ser enviados, o que aumentou a celeridade no processo de concessão.
Para amenizar os problemas burocráticos e melhorar a assistência técnica deficiente, as parcerias institucionais são colocadas como possibilidades de sucesso. O parceiro mais citado foi o SEBRAE para orientar o empresariado local na abertura, gestão e acesso ao crédito. Depois dele, a Junta Comercial e os órgãos licenciadores são vistos como agentes efetivos para redução dos trâmites de abertura de novos negócios. Além desses, as três esferas da administração públicas e ONGs são importantes para o processo de desenvolvimento, mas no aspecto mais macro e não diretamente em relação ao crédito subsidiado. Um exemplo das parcerias são as ações do FNO itinerante. O SEBRAE, o Instituto de Terras e Colonização de Roraima (ITERAIMA) e a câmara de vereadores acompanham as visitas e servem como ponto de apoio do FNO nos municípios.
O FNO itinerante foi um exemplo marcante sobre a situação do crédito no interior do estado. O número de duas agências no estado (Caracaraí atende a parte sul e Boa Vista a parte norte) foi visto como suficiente para atender à demanda por crédito na região, pois os empréstimos nos municípios são de baixo valor e com casos de alta inadimplência, como um município localizado em uma reserva indígena. Ademais, a demanda por crédito se concentra na agência de Boa Vista, seja para atividades urbanas ou rurais.
5.2 As atividades econômicas e seus embaraços
O problema em Roraima não é especificamente sobre o instrumento de crédito FNO, mas sobre outros fatores. Os financiamentos em Roraima variam segundo a atividade em evidência na região. Na data da pesquisa, a atividade vista como em expansão era a plantação de soja, mas setores como a rizicultura, comércio, serviços e agropecuária já haviam tido sua época de maior visibilidade (SANTOS, 2013, p. 173). O destaque recaiu também sobre dois shoppings centers recém-inaugurados em Boa Vista que aumentaram a demanda por crédito, no qual o principal demandante eram funcionários públicos locais que obtinham a representação de lojas nacionais e compartilhavam com familiares a gestão e administração do negócio.
A visão sobre a economia local mostra que apesar da expansão de outros setores, ela se encontra localizada no comércio e serviços em Boa Vista, atraindo trabalhadores do entorno. Além da demanda por crédito vindas dos shoppings centers, outros itens movimentaram a economia nos últimos anos, como asfaltamento e recapeamento de ruas, melhorias na infraestrutura física do Hospital da Criança Santo Antônio, venda de peixes e o aumento da pecuária bovina. As potencialidades vistas para expansão foram: a ampliação do turismo ecológico com foco nos turistas estrangeiros, que foram a grande maioria nos últimos anos; e as frutas para exportação, como as mangas sem caroço, que são exportadas para os cruzeiros que passam pelo Caribe e Nordeste do Brasil.
Estas percepções mostram a não predominância de uma atividade produtiva para concessão de empréstimos e evidenciam uma instabilidade produtiva no Estado. O ciclo das atividades não é duradouro. A precariedade de energia elétrica, o isolamento da região em relação ao restante do país e a questão fundiária são apontados como os principais embaraços para iniciativas de desenvolvimento que busquem interromper este ciclo de fragilidade produtiva.
Atualmente, a energia elétrica é transmitida pelo linhão de Guri vindo da Venezuela, que é instável, tanto em fornecimento, com picos de luz ao longo do dia, quanto na situação política do país vizinho. A entrada em funcionamento da Hidrelétrica do Bem Querer no Rio Branco substituirá a dependência do linhão, no entanto encontrava sérias limitações jurídicas por passar no meio de uma reserva indígena. Além disso, foi citado que a Empresa de Pesquisa Energética (EPE) considerava outras três hidrelétricas no Rio Mucajaí como viáveis, e o Governo do Estado sugeriu um projeto no Rio Cotingo como de maior eficiência energética e menor impacto, porém o grande problema é a localização na reserva indígena Raposa Serra do Sol.8
Outro embaraço apontado foi o isolamento. Na época em que o estado era território federal, era comum os comerciantes comprarem mercadorias mais baratas nas fronteiras e abastecerem o comércio de Boa Vista, vista a dificuldade de acesso ao restante do Brasil. O problema é que em Boa Vista sempre houve uma ligação fluvial com Manaus, que não é continua, pois o Rio Branco não é perene. A BR 174 que liga Roraima ao Amazonas não está em perfeito estado e ao entardecer é fechada por tribos indígenas e reaberta apenas ao amanhecer. As estradas na região de Savana são mais bem asfaltadas e em maior quantidade, mas ainda apresentam problemas no tráfego de mercadorias e pessoas. Os voos são escassos. Somente três são realizados diariamente, ligando a capital roraimense a Manaus, o que é uma dificuldade para a comercialização de produtos e o abastecimento local, o que eleva os preços internos.
Os problemas de energia e transporte se somam aos problemas fundiários. Tradicionalmente, o território do estado é dividido por índios, garimpeiros e arrozeiros. Existem grandes reservas indígenas que cobrem mais de 40% do estado. Nas regiões de fronteira com a Guiana e Venezuela predominam atividades garimpeiras clandestinas e a produção de arroz trazida nos anos 1970 (SANTOS, 2013) que se instalaram próximas, quando não dentro de terras indígenas, gerando conflitos como o ocorrido na reserva Raposa Serra do Sol. Nos anos 2000 ocorreram várias demarcações de áreas indígenas que acentuaram as hostilidades. O restante não está claramente demarcado quanto ao título de posse e à propriedade, uma dificuldade na hora da entrega de garantias para concessão do crédito.
No âmbito das soluções, o planejamento regional foi considerado fraco, muito dependente do Governo Federal e não foi vista uma PDR consistente. As ações para solucionar os entraves ainda são incipientes, apesar do Governo Federal na última década ter se mostrado mais presente, com a ampliação da UFRR e criação de pontes e aduanas nas regiões de fronteiras, além das demarcações das terras indígenas. Para eles, foi um marco a visita do Presidente da República em 2009, como forma de diminuir o isolamento político.
A instabilidade politica também não contribui para resolução dos problemas apontados. Desde que o território federal se tornou estado em 1990, apenas um governador conseguiu completar o mandato de quatro anos, os outros ou foram caçados, presos ou perderam seus mandatos de outras maneiras.
5.3 A Venezuela, a Guiana e o mercado
A natureza multiescalar da PNDR em Roraima aparece de forma mais clara nas relações com a Venezuela e Guiana. Foram mencionados outros mercados estrangeiros, mas na dimensão econômica, a integração latino-americana aparece quando os dois países são apontados como os principais parceiros comerciais do estado. A Venezuela vive uma forte crise econômica e social, o que abala a confiança do empresariado roraimense. Uma das empresas apontou que inicialmente possuía um alcance local/regional e pretendia ampliar sua abrangência, porém sua maior preocupação estava na questão da confiança e reciprocidade para com os empreendedores e governo venezuelano, que segundo experiências anteriores dificilmente cumpriam os acordos firmados nos contratos. Outros empreendedores mostraram a mesma percepção. Uma das sugestões foi que os contratos fossem cobrados no âmbito do Mercosul de forma a garantir uma maior segurança.
A Venezuela é vista como um problema presente, mas uma alternativa futura de expansão. Os comerciantes locais comercializavam bastante com o país vizinho, importando bens não duráveis, insumos para produção e com bom trânsito de turistas entre os dois países. No entanto, a instabilidade venezuelana diminuiu os fluxos comerciais, o que deixou cada vez mais dependente o estado de outros parceiros, mais distantes, o que prejudica ainda mais o fluxo de caixa e os custos. Os brasileiros alegam que têm dificuldade de receber pagamentos e de desembaraçar mercadorias na Aduana, levando a uma diminuição do comércio. Antes, os comerciantes de Boa Vista compravam mercadorias na Venezuela e abasteciam a cidade, prática semelhante aos tempos do contrabando no território, mas que depois de 1990 tornou-se legalizada. Com a quebra do parceiro venezuelano, se tornou mais difícil o fluxo de negócios na região, aumentando demanda por capital de giro, principalmente para atividades com menor lucratividade (micro e pequenas), o que explica o aumento da demanda por crédito por parte dessas nos últimos dois anos.
A Guiana é uma situação diversa. O comércio chega até a fronteira na cidade de Lethem. Lá os consumidores brasileiros se abastecem de bens de consumo mais baratos, tanto para consumo próprio quanto para revenda nas cidades roraimenses e aproveitam para vender mercadorias mais especializadas aos guianeses, como materiais de construção. A diferença entre Venezuela e Guiana é que os brasileiros não chegam a comprar outros tipos de mercadorias como o calcário para fertilização da terra e nem têm uma atividade turística desenvolvida.
A China, como no restante da economia globalizada, está presente no fornecimento de equipamentos maiores (maquinários) e porcelanato. Com a China existem duas relações interessantes e contraditórias. A primeira é a presença maciça de cidadãos daquele país no comércio da cidade de Lethem, o que vai de encontro à ideia do isolamento. A segunda mostra a dificuldade de comercialização, favorecendo o isolamento. As compras feitas da China desembarcam no Brasil pelo porto de Santos e seguem de navio para Manaus. Dependendo da estação do ano podem ir pelo Rio Branco ou pela BR-174 até Boa Vista. Nesse trajeto, as dificuldades são imensas e as melhorias no porto de Manaus para desembarque da mercadoria são tidas como uma das obras principais para o desenvolvimento produtivo de Roraima.
Descendo à escala nacional, a mesma dificuldade de deslocamento encontrada no comércio com a China também é encontrada no fornecimento do Sudeste. As distâncias são enormes e os prazos de entrega são grandes, o que reforça a demanda por capital de giro nas agências bancárias.
Um dos entrevistados citou que parte de sua produção bovina é enviada para Manaus, única capital brasileira com ligação terrestre a Roraima, mas devido a várias dificuldades, sua produção mantém-se prioritariamente voltada ao mercado local, no qual a compra de insumos e maquinários é feita em regiões como Centro-Oeste e Sudeste, uma vez que a Zona Franca de Manaus, anteriormente importante polo de produção da região, teve diminuído seu mercado, em razão da concorrência de produtos chineses, o que gerou uma redução na capacidade de fornecimento aos estados vizinhos.
Dada a fragilidade da produção local e dos parceiros comerciais, o mercado atendido se mostra essencialmente local, com potencialidade de venda dos produtos para regiões localizadas no interior do estado, que, de acordo com os entrevistados foi ocasionado pela percepção de que os programas sociais do governo aumentaram o poder aquisitivo dos cidadãos de áreas mais afastadas da capital, o que gerou novas oportunidades de negócios.
5.4 Iniciativa empreendedora e mão de obra
A mão de obra qualificada é apontada como uma das questões críticas ao desenvolvimento por parte das empresas locais, pois os trabalhadores existentes e qualificados são escassos para a iniciativa privada. O estado ainda sente o efeito da grande população empregada no funcionalismo público, o que causa duas consequências. Em uma, mantém-se boa parte da população empregada, com o mesmo certo nível de renda, mas, em outra, essa população não se atreve a investir em novos empreendimentos. Mesmo que houvesse facilidades para investimentos privados – além do FNO – não haveria mão de obra suficiente disponível, pois ela está empregada em atividades relacionadas ao serviço público, seja de forma direta através de concurso, ou indireta via terceirização. Este fenômeno não torna toda a mão de obra cara e escassa, mas sim aquela parcela que é direcionada ao setor privado, devido aos maiores salários e vantagens do setor público.
Nesse contexto, foi apontado que trabalhadores para a construção civil são difíceis de contratar, cabendo ao exército o fornecimento de trabalhadores para algumas obras.9 Quanto à origem da mão de obra, a maioria é formada por nascidos ali, porém com muitos originários de estados vizinhos, como o Pará, o Amazonas e o Maranhão. Nota-se que ao contrário da mão de obra geral, a maioria dos empreendedores é proveniente do sul do Brasil, atraídos à época dos grandes projetos para a Amazônia nos anos 1970.
As entrevistas mostram também uma distinção entre os setores da economia local. O setor de comércio e serviços na área urbana geralmente seleciona trabalhadores com maior escolaridade em atividades de atendimento ao público e de escritório, com ligeira vantagem em encontrar mão de obra, diferente de setores como construção civil ou agropecuária, em que o nível de escolaridade exigido não é elevado, mas necessita de uma mínima especialização na área, como pintor, marceneiro, capataz, o que foi dito ter um custo alto na região.
A mobilidade dos trabalhadores na cidade foi um dos problemas mais críticos apontados. O deslocamento da população economicamente ativa de mais baixa renda das periferias para o centro urbano é feita especialmente por bicicleta ou moto, pois o sistema de transporte público é deficitário. As bicicletas circulam em grande quantidade, porém não há ciclovias que garantam o fluxo de pessoas entre o local de partida e o destino.
6. Roraima e a aplicação da política
As entrevistas, percepções e os dados mostraram claramente que o problema para o não alcance dos 5% do FNO não está na oferta de dinheiro, mas em diversos fatores. Existem várias privações de liberdade nas oportunidades de produção, consumo e troca com objetivos econômicos que dificultam as facilidades provenientes do crédito subsidiado.
A primeira restrição é a fragilidade econômica, política e de infraestrutura existente na região. O setor que mais adiciona valor é a administração pública e problemas como o fornecimento de energia elétrica, isolamento e a regulação fundiária dificultam o crescimento econômico motivado pela iniciativa privada. Aliado a isso, o clima é de instabilidade política e predomínio do Governo Federal em ações que resolvam os gargalos, mas sem visão de uma PDR.
A segunda restrição está na dificuldade de atingir diversas escalas na economia. Os problemas políticos da Venezuela, a fragilidade de relações com a Guiana e a distância de comunicação com Manaus e consequentemente com o restante do país, tornam a economia local e isolada.
A terceira restrição, salientada principalmente pelos tomadores de crédito, é a oferta de mão de obra, concentrada em atividades ligadas ao setor público, o que torna alto o custo dos trabalhadores locais para iniciativas privadas. No entanto, quando se cruza com os dados da PNAD percebe-se uma desigualdade na distribuição dos rendimentos quando 16% ganham mais de três salários mínimos e 35% ganham menos de um salário, taxas mais elevadas que as da região Norte.
O FNO sozinho não é capaz de atacar essas múltiplas privações de liberdade. A PNDR ainda não é percebida enquanto politica pública e quando assim é lembrada a identificam como uma simbiose do FNO. Logo, FNO é PNDR e PNDR é FNO. Dessa forma, os objetivos multidimensionais da PNDR ficam camuflados na dimensão econômica de uma forma geral, e o FNO não consegue aplicar todos seus recursos, porque não consegue atingir a peculiaridade econômica do Estado. A dinâmica territorial e o perfil do estado não estão conectados aos setores prioritários definidos pelo Banco (plano de aplicação), logo se distanciam ainda mais da redução das desigualdades,10 nesse caso intrarregionais, que é um dos objetivos da política regional.
O estado possui uma economia e uma demografia concentradas em Boa Vista, com valor adicionado principalmente pela administração pública, que depende das transferências do governo federal. O mapa do estado exibido na seção 2 mostrou que a concentração deriva de várias reservas indígenas, parques florestais e pela densidade da floresta amazônica, que personificam algumas das disputas políticas e territoriais no estado, como a Raposa Serra do Sol ao norte, cuja estrada passa no meio de uma reserva e que foi motivo de conflitos recentes.
Uma política voltada para a expansão espacial no território não é o mais recomendável nesse caso, seja pelo desmatamento da floresta – que vem aumentando − ou pelas reservas indígenas. Inclusive um dos municípios com 100% de inadimplência no FNO possuía uma população quase na totalidade indígena, com uma cultura diferente do homo economicus racional. Ou seja, nesse caso particular, os índios podem não ser os principais demandantes do crédito, possuindo outras necessidades mais imediatas.
Portanto, a questão regional em Roraima não é a desconcentração espacial para o interior, mas sim a desconcentração dos rendimentos, desigual e concentrada no funcionalismo público. Iniciativas urbanas podem ser apoiadas, o que se diferencia dos principais estados contratantes do FNO (Pará e Rondônia) e da principal atividade econômica apoiada em geral (agropecuária).
Atualmente, os direcionamentos do crédito são para projetos sustentáveis localizados majoritariamente na área rural, conforme estipulado no Plano de Aplicação do FNO para 2015. A análise dos planos de aplicação dos anos anteriores e as próprias entrevistas mostram que os projetos prioritários são mantidos há dez anos, os problemas destacados continuam os mesmos e não se atinge as metas de aplicação do fundo. Ademais, há um enorme mercado de crédito a ser explorado no estado, (R$1,9 bilhões em 2014), com uma das taxas mais baixas de inadimplência do Brasil e no qual o FNO participou com apenas R$ 42 milhões em 2014.
O setor rural tem um baixo número de pessoas ocupadas e é prejudicado pelas peculiaridades já destacadas do estado, o que o faz, assim como o restante da região Norte, comprar alimentos de outras regiões brasileiras. A desconcentração rural já foi tentada nos anos 1970, nos velhos planos agropecuários da Sudam e se mostrou limitada. Assim mudar o pensamento é preciso.
A adaptação do instrumento à dinâmica econômica local é o primeiro passo para ajustar a PNDR ao território. Os financiamentos são instáveis porque os setores produtivos são instáveis. A avaliação qualitativa e os dados mostram que Roraima tem uma classe média urbana formada em função dos salários do funcionalismo público, o que garante uma estabilidade na renda, no entanto o FNO é direcionado para setores com sérias restrições de liberdade e dificuldades de adaptação ao quadro local, como o rural.
No curto prazo, sugere-se focar o crédito sobre atividades urbanas atingindo a renda gerada pelo funcionalismo público com intuito de alcançar a meta de 5%, no entanto se esta iniciativa for seguida por um longo tempo pode gerar mais concentração de renda em pequenos grupos, o que não é o objetivo de uma política de redução de desigualdades, além de que um processo de crescimento urbano acelerado causa impactos migratórios e ambientais, como o aumento de resíduos gerados.
No longo prazo, a estratégia pertinente é fomentar a iniciativa privada por meio do estreitamento das relações com a Venezuela e Guiana no âmbito da integração regional para abrir mercados aos produtos que forem incentivados. O principal destino para o setor de turismo está na Venezuela, que possui a entrada para o Monte Roraima e acesso ao Caribe. Os insumos para produção da soja como calcário e as mercadorias para revenda na capital eram provenientes daquele país. Com a derrocada da economia venezuelana, houve um boom de produtos comprados na Guiana. Entender os mercados fronteiriços é vital para uma politica de longo prazo e de desenvolvimento, que contemple as múltiplas dimensões.
Entender não apenas os mercados, mas a sociedade. A título de exemplo, serviços públicos de saúde e educação foram vistos como melhor fornecidos no território brasileiro, o que causa um fluxo de estrangeiros na capital. Em sua maioria são indígenas que vivem nas bordas fronteiriças e que pressionam os atendimentos de saúde na região. Isso gera uma necessidade de assistência social bilíngue para amparar demandas diárias. O mesmo ocorre na educação. A UFRR inaugurou novos cursos de graduação e pós-graduação sobre diversas temáticas expandindo o acesso ao ensino superior público e gratuito, no entanto, os ensinos básico e fundamental não tiveram a mesma impulsão, como visto também no restante do Brasil.
Os instrumentos da PNDR, como o FNO ainda não conseguem atingir e incentivar práticas nessas dimensões além da economia. O FNO é econômico. Ainda não há conexão entre dinâmicas específicas do território e os instrumentos explícitos. Os instrumentos foram concebidos antes do planejamento regional idealizado pelo Governo Federal em 2007 e atingem as facilidades econômicas, que no estado enfrentam diversas barreiras.
Atentar para outras dimensões requer contemplar outros instrumentos. Políticas de transferências de renda podem ser usadas para eliminação da pobreza e redução das desigualdades sociais e regionais. Expansão de faculdades de medicina nas cidades médias pode ser usada como aumento da oferta de saúde e redução das desigualdades sociais e regionais. Incentivo a pesquisas sobre melhoramentos genéticos no rebanho bovino e na soja pode ser usada como politica agrária e redução das desigualdades econômicas e regionais. Mapeamento e monitoramento das fronteiras podem ser usados como politica de segurança nacional, combate ao narcotráfico e instrumento de preservação ambiental e combate ao trabalho escravo.
As várias facetas do território, neste estudo de caso de Roraima são latentes, o que sugere uma politica regional além do instrumento econômico para aquele estado, como está previsto nos planos de desenvolvimento, porém o cruzamento entre território e política mostra que na prática isto ainda não se confirma.
7. Considerações finais
O artigo conclui que o não alcance da meta de 5% do FNO se deve a diversas dimensões que concorrem para a privação de liberdades econômicas para além do FNO. A infraestrutura, a mão de obra, o isolamento e as relações fronteiriças colaboram para que o FNO não seja aplicado na íntegra, apesar de haver um grande espaço para expansão.
O problema identificado não é na oferta de crédito, que assim como em outros estados se mostrou importante para implantação e modernização dos empreendimentos, apesar da burocracia e assistência técnica deficiente serem apontados ainda como um problema na concessão. O problema é mais profundo. É de desenvolvimento regional, que não se restringe ao financeiro-creditício, ainda que esta dimensão seja muito relevante para o desenvolvimento.
A economia se mostra frágil, dominada por rendas provenientes do serviço público, que teoricamente não seria um problema, pois altos níveis de renda nesse setor poderiam estimular a economia urbana, porém o que ainda se mostra insuficiente são os estímulos aos encadeamentos da renda do setor público com outros. Algumas atividades têm alguma relevância por algum tempo, mas não se mostram dinâmicas o suficiente para impulsionar o setor privado. A infraestrutura, o isolamento e a regularização fundiária são apontados como principais motivos para o não desenvolvimento econômico.
O custo dos trabalhadores é visto como “caro e escasso” para o setor privado e está localizado na capital Boa Vista, porém o que se notou foi uma grande desigualdade de rendimentos no estado. Muitos ganham acima de três salários mínimos, porém muitos também ganham abaixo de um salário. Portanto, a questão regional em Roraima não é tanto desconcentração espacial para o interior, limitado pelo recorte territorial do estado, com várias reservas indígenas, unidades de conservação, desmatamento e problemas fundiários, mas sim a desconcentração dos rendimentos, desigual e concentrada.
Com relação ao mercado, a Venezuela e a Guiana são importantes parceiros, mas a instabilidade politica do primeiro dificulta maiores aproximações. O isolamento ao restante do país e a estes mercados torna a economia local dependente de Manaus, o que constrange o princípio multiescalar da PNDR.
Estas características mostram que o direcionamento do crédito não está vinculado ao território, pois as prioridades são predominantemente rurais e as características do estado são urbanas. As restrições para a iniciativa privada tornam as facilidades econômicas do crédito subsidiado paliativas e não espraiam efeitos para outras dimensões.
A PNDR é vista como FNO na região, ou seja, a politica tem um instrumento econômico para atender o setor privado. No entanto, o setor privado tem muito mais barreiras que benefícios. Nesta visão econômica, a possível proposta no curto prazo é direcionar as prioridades para atividades urbanas, de forma a captar a renda da classe média formada por funcionários públicos. E no longo prazo, estreitar relações com a Venezuela e fomentar setores específicos que concorram com o serviço público. Entretanto, as dimensões politicas, ambientais, sociais e legais também devem ser compreendidas pelos instrumentos da politica.
Notas
1 Ver Coelho (2017) e Portugal e Silva (2017) que separam os instrumentos explícitos (Fundos Constitucionais de Financiamento, Fundos de Desenvolvimento Regional e Incentivos Fiscais) dos implícitos (recursos de outros bancos e ministérios). Do mesmo modo, Araújo (2013) separa a política de desenvolvimento regional explicita (PNDR) da implícita (Programa Bolsa Família, de Aceleração do Crescimento, Mais Médicos, entre outros).
2 Para melhor visualização desse período, conferir Diniz (2007).
3 Ver o debate das três gerações de políticas de desenvolvimento regional em Diniz (2007).
4 As outras liberdades instrumentais são: liberdades políticas; oportunidades sociais; garantia de transparência; e segurança protetora.
5 Os fundos constitucionais são de 1989, os Fundos de Desenvolvimento Regional de 2001 e os Incentivos Fiscais de 1963.
6 Este dado possui grande discrepância entre as fontes. A PNAD fala em 24 mil, sendo que 20 mil em áreas urbanas, enquanto o Censo de 2010 divulga 55 mil habitantes, onde 46 mil estão em terras indígenas.
7 A participação do FNO em 2014 foi de R$42 milhões.
8 Em 2007, o STF ordenou a desocupação da Reserva Indígena Raposa Serra do Sol pelos não indígenas (fazendeiros e arrozeiros), o que gerou uma série de conflitos pela ocupação do território.
9 Por ser uma área de fronteira, a presença do exercito é marcante naquele estado.
10 Mesmo que esse conceito seja visto apenas pela ótica da renda.
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