Expansão da fronteira minerária: estratégias de negociação de terras para implantação de mineroduto no município de Ferros, Minas Gerais
Gabriel Costa Ribeiro
Mestrando em Planejamento Urbano e Regional, Programa de Pós-graduação em Sociedade, Ambiente e Território (UFMG/Unimontes).
1. Introdução
Em Minas Gerais, o acompanhamento dos conflitos ambientais minerários e suas consequências distributivas, espaciais e territoriais (ZHOURI; LASCHEFSKI, 2010) ganhou fôlego em determinados núcleos de pesquisa nos últimos anos, motivando atividades de assessoria a grupos atingidos por projetos geradores de injustiças ambientais (LEROY, 2010, p. 1). É importante sublinhar a ligação em comum entre esses grupos: a busca por diálogos construtivos com seus interlocutores de pesquisa, onde temáticas como licenciamento ambiental e participação popular podem ser empiricamente debatidas, por onde torna-se possível a criação coletiva de estratégias de atuação.1 Neste sentido, redes formais e informais de resistência vêm estimulando novas experiências acadêmicas por meio das quais investigação e ação na perspectiva da pesquisa e da extensão qualificam o processo de aprendizagem nas instituições de ensino superior brasileiras (OLIVEIRA; GARCIA, 2013, p. 157).
Cientes de que toda produção de conhecimento é delineada por um emaranhado de relações sociais na perspectiva de poucos atores, ou seja, possui posicionamento específico, esses pesquisadores se dedicam a aguçar o senso crítico e a objetividade nas suas pesquisas acadêmicas, em prol de uma construção social da realidade (FOUCAULT, 1996). Compreender a prática científica sob o prisma dos fenômenos sociais e políticos é tocar de forma profunda o debate sobre temas em voga na sociedade, como a pobreza, as desigualdades sociais, questões de gênero, trabalho e renda, a degradação ambiental e as injustiças sociais como efeitos do desenvolvimento do capitalismo, e é nessa ambiência que esta pesquisa se insere e se justifica.
Foi por intermédio da minha atuação como bolsista de extensão pelo GESTA-UFMG2 que tive a possibilidade de assistir a “verdadeiras batalhas” envolvendo Estado, empresas, pesquisadores, movimentos sociais e rede de atingidos. Desde o meu ingresso no núcleo de pesquisa – cuja expertise adquirida em casos de barragens hidrelétricas motivou as atividades de assessoria e acompanhamento do complexo minerário Minas-Rio, a partir do ano de 2012 e, dois anos depois, do complexo Manabi – pude enxergar em inúmeras ocasiões “a corda falhando para o lado mais fraco”.
Quem acompanhou os desdobramentos do projeto Minas-Rio pôde presenciar in loco as principais vicissitudes relativas ao estatuto do licenciamento ambiental nos níveis estadual e federal, refletidas na flexibilização de legislações e na utilização de brechas legais para a obtenção das licenças, formando um perigoso precedente para projetos futuros. Desta forma, quando se anunciou a chegada de outro projeto com dimensões semelhantes aos impostos pelo Minas-Rio, em município vizinho a Conceição do Mato Dentro, uma campanha em defesa da Bacia Hidrográfica do Rio Santo Antônio foi iniciada por residentes e principais interessados na manutenção dos regimes ecológicos, ambientais e fluviais locais. Em tempos de crise hídrica, licenciar um novo empreendimento com magnitude semelhante seria decretar a extinção do principal afluente do Rio Doce.
Neste sentido, o presente artigo tem como objetivo central problematizar e discutir as estratégias de negociação utilizadas pelos representantes da companhia brasileira Manabi S.A. para a viabilização deste novo complexo minerário, composto por lavra a céu aberto, com potencial de produção de 25 milhões de toneladas por ano (Mtpa), em Morro do Pilar (MG); mineroduto com 511,77 quilômetros de comprimento, que se estende por 23 municípios; e porto particular para estocagem e exportação, em Linhares (ES). O estudo de caso permite trazer à tona os principais impasses que atualmente circundam o licenciamento de empreendimentos transfronteiriços, cujos impactos acabam por ficar subdimensionados devido à divisão instrumental da avaliação das estruturas estabelecida pelo sistema ambiental vigente. Sustenta-se a hipótese de que, como consequência, o arranjo corporativo da empresa é idealizado de forma a melhor satisfazer as demandas solicitadas pelos órgãos licenciadores, facilitando igualmente as investidas nos territórios de interesse, configurando modelo de gestão empresarial semelhante ao utilizado pela MMX Mineração e Metálicos S.A. quando ainda operacionalizava o projeto Minas-Rio. Aliás, os resultados da pesquisa revelam laços ainda mais estreitos entre as duas corporações.
2. A expansão da fronteira minerária brasileira
No contexto brasileiro, a exportação de minérios sem valor agregado se tornou uma alternativa satisfatória para a obtenção de lucro pela via de uma pauta primário-exportadora, determinando a intensificação da produção de commodities. Neste sentido, os últimos doze anos foram marcados por uma nova guinada do setor mineral, inaugurando uma frente neo-extrativista3 em busca não só dos já escassos minérios hematíticos, mas também dos itabiritos, dotados de baixos teores de ferro (SOUZA, 2010, p. 1). Novos arranjos político-institucionais idealizados e dirigidos por atores nacionais e internacionais objetivaram a liberalização do mercado de metais, facilitando e incentivando a intervenção estrangeira no setor (BEBBINGTON, 2012, p. 314).
As grandes taxas de juros advindas de empréstimos consignados com o Fundo Monetário Internacional (FMI) entre as décadas de 1970 e 1990 resultaram no aumento da dívida pública brasileira e, de certa forma, a obtenção de superávit primário possibilitou uma fonte instantânea de recursos financeiros com vistas a equilibrar as balanças de pagamento da dívida externa (MALERBA, 2012). Do mesmo modo, a reprimarização da economia brasileira alia a implantação de grandes complexos minerários a um discurso governamental apoiado em diretrizes neodesenvolvimentistas,4 em uma dinâmica que favorece a participação efetiva de players internacionais e grandes potências mercadológicas na dinâmica econômica nacional.
A ascensão da China como grande importadora de minério de ferro, durante o início do século XXI, intensificou a busca por jazidas em determinadas regiões do território nacional. Grandes interessadas neste movimento, transnacionais de nome ou recém-formadas intensificaram sua busca por direitos minerários, e concessões de lavra passaram a ser deferidas em regiões como a Serra do Espinhaço em Minas Gerais. Por sinal, os direitos minerários se tornaram o mais fidedigno protocolo de intenções das corporações, revelando novos alvos estratégicos.
No âmbito das relações mercadológicas do ramo minerário, a clientela é quem conduz o aquecimento ou o declínio dos rendimentos destinados ao Estado e às empresas. Em 1997, por exemplo, a produção mineral correspondeu a 1,6% do Produto Interno Bruto brasileiro e se elevou nos anos posteriores apoiado na demanda chinesa, alcançando valores como 4,6% no ano de 2012, um crescimento de 3% em quinze anos cujos dividendos gerados somam US$67 bilhões (BARBIERI, 2013). No período, 45% das exportações brasileiras foram destinadas à China, o que revela uma dependência por demandas externas muitas vezes condicionadas a movimentos de expansão e contração do mercado.
Atualmente imerso no risco inexorável de grandes crises globais – a crise de 2008, por exemplo, retraiu em 30% a exportação de minério no país (BARBIERI, 2013) – o governo se agarra em superávits cada vez menores, ocasionados pela recente diminuição do crescimento chinês presenciada entre 2013 e 2014. Com efeito, a redução da demanda externa tem resultado na queda do preço médio da commodity e também da rentabilidade do negócio para o setor empresarial, resultando em inseguranças cujos efeitos condicionam a busca, pelos empreendedores, por modernas tecnologias de extração e beneficiamento, com o objetivo de obtenção de maiores rendimentos.
Logo, estados como Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro e Bahia têm autorizado a implantação de labirínticas infraestruturas de extração de minério de ferro, constituídas de lavras a céu aberto, sistema de dutos para escoamento e terminal portuário para estocagem e exportação, multiplicando a quantidade de instalações particulares de alto impacto local e translocal. Enquanto cada cava projetada deve garantir uma produção média entre 20 e 25 Mtpa, valores muito acima da média histórica por empreendimento, os minerodutos se tornaram alternativas mais rentáveis em relação ao antigo transporte ferroviário que ligava o interior ao litoral e novos portos alargam a zona portuária da costa litorânea brasileira. Por se tratarem de estruturas particulares, os impactos são inevitáveis nos meios físico, biótico e socioeconômico, com alteração da paisagem, retirada de vegetação, supressão de cursos d’água e propriedades rurais, caracterizando uma maior dimensionalidade dos efeitos de sua instalação e operação.
Conforme a Figura 1 ilustra, a abertura de procedimento administrativo para licenciamento de cinco empreendimentos desta natureza sinaliza o surgimento de uma nova fronteira minerária nas regiões Sudeste e sul do Nordeste.
Figura 1 – Complexos minerários em operação ou em licenciamento nos estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro, Espírito Santo e Bahia
Fonte: autoria própria.Em termos logísticos, a opção por mecanismos de transporte com capacidade de otimizar distâncias por baixos custos operacionais é fator decisivo para a plena lucratividade dos projetos, intentando “colocar o produto certo, no lugar certo, no tempo certo, e na condição desejada, criando a maior contribuição possível para a firma” (BALLOU, 2001). Isto posto, a opção pelos minerodutos5 em detrimento das alternativas rodoviárias ou ferroviárias está diretamente relacionada à possibilidade de multiplicação dos rendimentos financeiros,6 fornecendo aos clientes internacionais um produto com diferencial de mercado, os finos de minério concentrado, o chamado pellet feed.
Ora, grandes tubulações encarregadas pelo transporte de minério diluído em água poderiam ser facilmente questionadas sob o argumento da insegurança hídrica, ocorrência reincidentemente desconsiderada nos processos citados, tendo o Instituto Mineiro de Gestão de Águas (IGAM) outorgado o direito ao uso da água aos projetos sem quaisquer dificuldades, valores que podem alcançar vazões da ordem de 820 litros por segundo. Para Ferreira (2013), o princípio da precaução raramente é utilizado no licenciamento das grandes cavas de ferro de Minas Gerais, “pois se aplicado quando a exploração de minério de ferro colocar em risco o abastecimento humano, o empreendimento minerário não poderia entrar em operação” (p. 72). Estes fatores, ao serem desconsiderados dentro do procedimento administrativo, possibilitam a chegada de novos projetos com magnitude de impacto semelhante aos já operantes.
Todavia, aos players internacionais, cabem definitivamente mais derrotas que vitórias. No momento presente, apenas um complexo minerário está em funcionamento na região sudeste do país. O empreendimento em operação é propagandeado como “o dono do maior mineroduto do mundo”: o complexo Minas-Rio, da corporação Anglo American, detentora de uma cava a céu aberto de 12 km de extensão na Serra da Ferrugem, nos limites de Conceição do Mato Dentro e Alvorada de Minas, Médio-Espinhaço mineiro, sub-bacias do Alto Santo Antônio e Rio do Peixe. Adquirida por uma operação financeira envolvendo a empresa MMX, é composta por um mineroduto de 525 km distribuídos em 32 municípios, mineiros e cariocas, até o Porto de Açu em São João da Barra, Rio de Janeiro.
Os outros quatro empreendimentos da série ainda são meras incertezas.
Em 1975, a Samarco Mineração entra para a história da construção civil brasileira ao inaugurar o primeiro mineroduto do país, interligando as minas de Germano, em Mariana, até a Ponta de Ubú na cidade portuária de Anchieta, sul do Espírito Santo. Trinta anos depois, o aquecimento do mercado de commodities após a virada do século impulsionou a reestruturação de todo complexo minerário. Houve ampliação da cava, da barragem de rejeitos e do sistema dutoviário, e o desfecho final foi a emergência de um dos maiores desastres ambientais do mundo, o rompimento da barragem de Fundão em 2015. Com todas as licenças ambientais cassadas, a empresa está judicialmente impedida de operar.
Com custo avaliado em 3 bilhões de reais, o Projeto Vale do Rio Pardo (PVRP), da Sulamericana de Metais (SAM) – do grupo Votorantim – pretende ligar a região montanhosa de Grão Mogol (MG), Alto Espinhaço, até os mares de Ilhéus, utilizando-se do estoque hídrico armazenado nas comportas da Usina Hidrelétrica (UHE) de Irapé, outro controverso projeto situado no Vale do Jequitinhonha. Um mineroduto de 482 km secccionaria o Norte de Minas e o Centro Sul Baiano em 21 municipalidades e, caso seja licenciado, despejará no mar um dos poucos reservatórios de água de toda a região.
Localizada na região do Alto Paraopeba, Região Metropolitana de Belo Horizonte, Congonhas tem na mineração de ferro a sua principal atividade. Mesmo o município contando com uma extensa malha ferroviária controlada pela MRS Logística, empresas como a Ferrous Resources do Brasil têm se negado a pagar aluguel para transporte de carga e pleiteiam a construção de um duto de 400 km até Presidente Kennedy (ES). Contudo, a administração de Paula Cândido (MG) e Viçosa (MG) vêm incentivando os outros 20 municípios atingidos a iniciarem um movimento de resistência ao empreendimento, buscando maiores adesões à “Campanha Pelas Águas e Contra o Mineroduto da Ferrus”. Ao menos por enquanto, a opção pelo modal dutoviário está em suspenso pela companhia.
O último complexo minerário foi proposto pela Manabi, com previsão de funcionamento em área já afetada pelo projeto Minas-Rio: a sub-bacia do Rio Santo Antônio, palco de outros empreendimentos minerários e hidrelétricos. Estende-se ao longo da Bacia Hidrográfica do Rio Doce, atravessando áreas de reivindicação da etnia indígena Krenak, além de comunidades pomeranas. Conflitos fundiários entre pequenos proprietários e a empresa se repetem em grande parte do traçado entre Morro do Pilar (MG) e Linhares (ES).
Caso os projetos mencionados consigam obter as licenças ambientais necessárias para a operação, serão 2.315 km de estruturas percorrendo 114 municípios, gerando um incremento produtivo de 132 milhões de toneladas/ano em Minas Gerais, estado já responsável por 50% das exportações de minério de ferro no Brasil (IBRAM, 2014). Estes valores representam um aumento de 82,8% sobre a atual média mineira de 160 milhões de toneladas/ano (IBRAM, 2014). Diante dos números e interesses em questão, governantes, legisladores e operadores do direito se dedicam à obtenção do “flat de poder político” (SOUZA, 1985, p. 13) necessário para a manutenção do capital transnacional no território brasileiro, através de uma histórica aliança entre poder público e privado.
3. O Grupo X e a criação da Manabi S.A.
Desde a década de 1970, um novo paradigma tecnológico e organizacional orienta os grandes polos de expansão econômica rumo a mudanças nas formas de organização produtiva, reconfigurando a estrutura gerencial das empresas. A era do capitalismo financeiro, além de estimular a disseminação de uma visão liberal de desenvolvimento, multiplicou as possibilidades de participação acionária por distintos investidores. Na prática, fundos de investimento e corporações transnacionais consolidaram seu espaço de hegemonia no seio de uma agenda macroeconômica de cunho neoliberal, tornando-se “ao mesmo tempo, causa e consequência do processo de concentração e centralização do capital, com origem nos países capitalistas avançados” (GONÇALVES, 1994, p. 47).
Diante de mudanças tão significativas, grandes grupos empresariais encontraram atmosfera favorável no mercado interno brasileiro, reconhecido por possuir relações prontamente estreitas com o núcleo do sistema econômico internacional (GONÇALVES, 1994, p. 123). Novos fluxos financeiros foram estabelecidos, carregando “a marca cada vez mais nítida de um capitalismo predominantemente rentista e parasitário” (CHESNAIS, 1995, p. 2), onde fundos mútuos de investimento e fundos de pensão viabilizam companhias “compostas por um certo número de subsidiárias com uma ou mais sedes, constituídas em diversos países, de acordo com a legislação local que lhes dá personalidade jurídica e, sob certo aspecto, a nacionalidade” (BAPTISTA, 1987, p. 17).
Segundo Reinaldo Gonçalves (1994), “o crescimento, a inovação tecnológica e a rivalidade intercapitalista geram decisões estratégicas que implicam a ruptura organizacional da empresa”, e neste sentido as relações setoriais foram transformadas com o propósito de garantir a prevalência de uma lógica “grup – administrado – control – concertamento” (p. 29). A formação de redes transcorporativas aborta de forma definitiva a concepção clássica de concorrência e favorece a ascensão de novos players locais, membros natos das classes mais poderosas e ricas da sociedade responsáveis pela “mobilização de recursos para promover os interesses sistêmicos do grand capital” (GONÇALVES, 1994, p. 32). Habilidosos gestores de negócios, os altos executivos exercem protagonismo decisivo na economia brasileira.
O capital político, econômico e simbólico adquirido em vinte anos de atuação como gestor de oportunidades ao redor do mundo tornou o empresário Eike Batista apto a exercer influência categórica para a eficácia do paradigma neoextrativista em nível nacional. A escalada e queda de suas empresas nos últimos dez anos revelam, por um lado, o resultado de uma visão sistêmica e projetiva dos interesses de longo prazo dos grupos econômicos, e, por outro, o excesso de ambição e confiança “na lenda do X como multiplicador de riqueza: o sucesso de seus projetos, dizia, faria rico ele mesmo, seus funcionários, seus acionistas e, no limite, o próprio Brasil” (CAVALCANTI, 2014). O surgimento do Grupo EBX, conglomerado de empresas atuantes nos setores de energia, mineração, petróleo e logística direcionou os holofotes para as promessas sedutoras de Eike, capazes de tocar a todos ao seu redor, de investidores bem-sucedidos a emergentes, influenciando inclusive tramas políticas de chefes de Estado. Sua figura se encaixa perfeitamente à imagem do monetizador, ou indivíduo capaz de transformar ativos em moeda. Para os interesses do capital transnacional, uma aproximação que se torna elementar, representa o elo necessário para o crescimento patrimonial-financeiro num mercado afeito a imperativos externos.
Como é amplamente conhecido, as pretensões megalomaníacas do ex-sétimo homem mais rico do mundo fizeram seu império ruir repentinamente após o fracasso dos empreendimentos petrolíferos, mas não antes de fazer enriquecer um seleto grupo de executivos. A busca por reputação no cenário corporativo o fez se aproximar de profissionais com vasta experiência em administração e dispostos a compartilhar os riscos e os êxitos dos seus projetos ainda embrionários, e em troca foram-lhes oferecidas ações. Para o grupo X – como ficaram conhecidos esses profissionais – e provavelmente tão só para eles, de fato as promessas de enriquecimento em curto prazo se concretizaram, sendo que “as maiores fortunas foram feitas nas duas principais empresas, a mineradora MMX e a OGX” (CAVALCANTI, 2014).
Muita gente teimava em não enxergar o que havia de valioso na MMX. No instante em que o dinheiro se misturou ao sonho, as pessoas se encantaram. É mais fácil acreditar na língua do dinheiro. Todos ficaram boquiabertos quando a Anglo American desembolsou US$ 7 bilhões em duas tranches quase sucessivas pelas participações da MMX nos sistemas Minas-Rio e Amapá. O valor da companhia alcançou cerca de US$ 10 bilhões. Em apenas um ano e meio, a MMX havia se valorizado mais de seis vezes (O X da Questão – Biografia oficial de Eike Batista, 2011, p. 61).
As cifras envolvidas na aquisição dos sistemas Minas-Rio e Amapá pela transnacional sul-africana Anglo American ocultam um conflito de agência, que ocorria nos corredores da MMX, entre corpo executivo e coordenação, ocasionado pelo desinteresse de alguns acionistas pelos rendimentos futuros de seus ativos, pois já não planejavam permanecer na companhia. Ao distribuir ações, Eike esperava conquistar seguidores. Entretanto, o jornalista Fernando Cavalcanti (2014) afirma que a prática “deu origem a interesses desalinhados, executivos infiéis, ricos e doidos para abandonar o barco”, e isso se deve à postura centralizadora e ao mesmo tempo complacente do manager, pouco comum em tempos de capitalismo financeiro.
De repente, diversos executivos da MMX se viram envoltos em rendimentos monetários inimagináveis ao longo de todo o percurso profissional percorrido até ali, um enriquecimento capaz de aguçar ambições empresariais e a busca de cargos mais influentes no ramo minerário. No decorrer de 2009, ano seguinte à transação bilionária, muitos deles pediram desligamento de seus cargos, comercializaram as cotas restantes e se viram livres para novas oportunidades. O ex-diretor de marketing e desenvolvimento de negócios Ricardo Antunes, por exemplo, obteve lucro de 80 milhões de reais com a operação e criou a Fábrica Holding, um fundo de investimento de pessoas físicas cujo objetivo principal seria angariar recursos para a viabilização de uma nova holding habilitada a negociar, desenvolver e operar ativos de minério de ferro por meio do mesmo modelo de remuneração utilizado pelo Grupo EBX: atração de stakeholders com pacotes de ações e abertura do capital na bolsa de valores. Deste modo, em 2011 surge a Manabi S.A.
Conquistar parceiros requer habilidade e olhar projetivo, e de fato Ricardo Antunes soube criar um negócio de oportunidade em sinergia com as conjunturas de mercado quando fundou a Manabi S.A. no ano de 2011. Segundo informações divulgadas pelo IBRAM (2015), entre 2010 e 2011 a produção mineral brasileira obteve superávit de U$14 bilhões, configurando um crescimento recorde de 68% em seus honorários, logo, não existiria melhor fator de convencimento perante os possíveis olhares cautelosos dos interessados na empreitada. Com o propósito de arrecadar o montante de R$6,25 bilhões estipulados para a viabilização do complexo minerário, o executivo partiu em busca de sócios, de grandes players internacionais a indivíduos compradores de pequenas ações na bolsa, alcançando em menos de três anos 40% do valor. Conforme planejado, o restante necessário poderia ser obtido graças a futuros financiamentos do BNDES ou até mesmo consórcios com megaempresas do ramo, como a Vale S.A.
Figura 2 – Estrutura societária da Manabi S.A.
Fonte: autoria própria.Cientes de que descentralizar atividades administrativas pode fazer a diferença para o cumprimento burocrático das exigências prescritas no licenciamento, os sócios da Manabi criaram “braços” em cidades-chave, pessoas jurídicas com mandatos operacionais específicos, responsáveis pela busca por soluções de curto prazo capazes de satisfazer as determinações das agências públicas para a emissão das licenças.
Como aponta o Diário do Comércio, no mesmo ano de fundação da Manabi S.A. foi adquirida, junto à Terrativa Minerais, uma série de direitos minerários, em Morro do Pilar, pela quantia de R$ 546,8 milhões, em localidade equivalente a 34% da extensão da área municipal, títulos posteriormente transferidos para a Morro do Pilar Minerais. Simultaneamente, a Manabi Logística barganhou uma área de 1.140 hectares nas imediações de Regência e Degredo, ambas localizadas no município de Linhares, norte capixaba. Por se tratar de um empreendimento transfronteiriço, os procedimentos administrativos foram simultaneamente iniciados no âmbito dos órgãos ambientais de nível estadual (COPAM)8 e federal (IBAMA).9
4. Faixas de servidão de passagem e negociações de terras: análise de relatos no município de Ferros, Minas Gerais
Para a construção e passagem de dutos, linhas de transmissão, adutoras, emissários e outras estruturas de escoamento similares, os empreendedores devem delimitar áreas de estudo, propondo limites imaginários de diferentes diâmetros planejados com base na relação entre a zona de abrangência dos impactos previstos e atributos físicos, biológicos e socioeconômicos. Dentro dessas categorias, as faixas de servidão de passagem fixam a largura da área diretamente afetada em função do destino, e para isso são mensuradas extensões para o embargo das intervenções necessárias, em uma modalidade de contrato que permita o uso controlado da terra pelos proprietários. A negociação do direito ao usufruto de parcelas de propriedades privadas mediante indenização monetária sobre possíveis prejuízos nas atividades produtivas, benfeitorias e residências é prática corriqueira quando as corporações minerárias optam pelos minerodutos, resultando em critérios e parâmetros particulares para a reparação dos danos.
No caso específico do projeto Manabi, a faixa compreende 15 metros para cada lado da diretriz principal do traçado e totaliza 30 metros de largura, sendo a tubulação de 24 polegadas enterrada em uma profundidade mínima de 1,50 metro abaixo do nível do terreno “com o intuito de minimizar as interferências à população atingida” (ECOLOGY BRASIL; ECONSERVATION, 2012, p. 2; p. 58; p. 145). Mesmo com todas as medidas utilizadas para reduzir os danos, Marcondes (2008) lista inconvenientes comuns, como “riscos, incômodos e restrições ao imóvel serviente, criação de áreas non aedificandi (zonas com proibição de qualquer tipo de edifício [acréscimos meus]), vedação do plantio de árvores, permissão da circulação e passagem de veículos e pessoas estranhas para manutenção da faixa, e a obrigação de monitorar a área, comunicando quaisquer situações causadoras de riscos à integridade das instalações” (p. 7).
Ainda assim, em certos casos, os principais prejuízos costumam ser financeiros e sociais e têm ocorrido em etapas anteriores à instalação e operação do empreendimento. Segundo o “Parecer Sobre o Mineroduto Morro do Pilar/MG a Linhares/ES”, organizado por Zhouri; Oliveira (2014), “as negociações fundiárias têm se antecipado em relação ao licenciamento ambiental do projeto, a despeito do desconhecimento acerca da disposição do traçado” (p. 73), favorecendo desigualdades nos valores propostos e vantagens unilaterais à empresa. Interpelada pelo IBAMA a respeito do procedimento, a empresa alegou estar propondo contratos de adesão cujos valores atendem a critérios legalmente estabelecidos, pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), em relação à avaliação de imóveis rurais, e com este argumento tenta rebater as acusações de falta de boa-fé quanto aos valores propostos aos outorgantes.
Inserido nesse contexto, o distrito de Sete Cachoeiras está situado a 35 km da sede de Ferros, à qual se liga por estrada não pavimentada, e é composto por uma pequena povoação de 138 domicílios urbanos, além de fazendas, comunidades e vilas distribuídas no percurso do Rio Santo Antônio que, somadas, contabilizam mais 168 residências (IBGE, 2010). As vias de acesso para o centro de Ferros são acidentadas, e, por isso, seus habitantes costumam recorrer aos serviços públicos de Joanésia, a 20 km, em ocorrências emergenciais como consultas médicas e idas a bancos. Grande parte dos seus 709 residentes são idosos, reflexo de um quadro pouco estimulante para os jovens com idade produtiva nos ramos do comércio e da pecuária bovina, tradicionais atividades econômicas na dimensão regional.
A fundação do distrito ocorreu em 1886, mesma época de emancipação do vilarejo de Santana de Ferros, atual sede municipal, em relação a Itabira. Pode-se justificar o predomínio de “terras de herança” pelo antigo ato de concessão de domínios não demarcados, prática na qual os antigos titulares doavam parcelas de suas propriedades para os demais entes familiares sem a devida documentação formal de partilha. Como reflexo, muitos imóveis não estão devidamente regularizados, tornando comum a falta de escrituras, impasses na justiça e a presença de espólios. De forma correlata, nas regiões mais ermas, nas beiras de estrada e encostas, a existência de regimes de parentela pró-indiviso revela espaços de autonomia e de diferenciação sociocultural, caracterizados pela presença da natureza como agente ativo na produção das normas de uso dos recursos. Tais disposições conferem singularidade às formas culturais das populações e seus sistemas produtivos adaptados ao meio, padrão observado na comunidade de Cachoeira do Tenente, a 5 km de Sete Cachoeiras.
A formulação de uma planta de engenharia capaz de abarcar as estruturas de escoamento de minério deve levar em conta a angulação dos dutos, não podendo ser ultrapassado o limite de 30° para o devido carreamento da mercadoria. Portanto, a declividade dos relevos guia a diretriz do traçado, e muitas vezes optou-se pela seleção de trechos situados à beira-rio, em planícies ou baixadas, ou seja, os métodos para a escolha dos pontos atendem prioritariamente a parâmetros físicos, em detrimento dos arranjos fundiários coexistentes no território. O mineroduto Manabi intercepta trechos dotados com este perfil topográfico na sequência dos 11 km planejados para o distrito de Sete Cachoeiras, alvejando margens do Rio Santo Antônio, fragmentos florestais de mata atlântica e de transição, pastagens e terras férteis utilizadas para agricultura.
Figura 3 – Traçado do mineroduto Manabi no distrito de Sete Cachoeiras
Fonte: autoria própria. Mapa elaborado com o auxílio de pontos de GPS e ferramentas do programa Google Earth.De acordo com levantamento feito pela empresa de consultoria Vaz de Mello, disponível no “Cadastro de Propriedades Faixas de Servidão Mineroduto” (ECOLOGY BRASIL; ECONSERVATION, 2012, p. 32; pp. 24-34), 27 estabelecimentos rurais foram englobados na linha de passagem dentro do perímetro distrital de Sete Cachoeiras. Além de identificar pontos de baixa declividade e georreferenciá-los, durante as visitas, a empresa terceirizada mapeou possíveis situações documentais que poderiam gerar impasses na celebração dos acordos, recomendando a esses indivíduos que fossem ao cartório da comarca de Ferros para tomar conhecimento do “passo-a-passo” necessário para a correção das pendências. É o que se vê nos depoimentos a seguir:
Quando eles conversaram comigo eu vi que eles “tavam” me perguntando as coisas pra ver a condição da propriedade. Eles pegaram os xerox, eles me pediram, aí eu dei, eu tirei os xerox e entreguei tudo! Tirou os dados tudo e agora tá com eles (Proprietário de fazenda próxima à Vila do Córrego Jacaré. Faixa etária: 60 anos. Relato obtido em: 18/01/15).
Eles tiveram ali tirando retrato, tirando foto do curral, tirando foto dessas grota tudo aí. Pra ver se a gente tinha a documentação legal né? Pra ver se tava legal, se tava desimpedido, porque se não fosse legal, se fosse um trem de posse, que não tivesse escritura registrada, daí o proprietário tinha que arrumar tudo, ir lá em Ferros, arrumar todos os papéis e legalizar o documento da terra (Proprietário de fazenda na zona rural de Sete Cachoeiras. Faixa etária: 70 anos. Relato obtido em: 19/01/15).
Passado o cadastramento inicial, a Dutovias do Brasil10 contratou a empresa NTZ Engenharia para caracterização dos solos, já projetando a construção de contenções na etapa de instalação. A cada furo foi oferecido o valor de R$ 750,00, a ser pago, em duas parcelas iguais, em até trinta dias após a assinatura de um termo para pesquisa geotécnica, sendo a quantidade de intervenções proporcionais à metragem afetada. No entanto, os relatos revelam omissões e atrasos no depósito ou pagamentos sem a realização do estudo, abrindo margem para questionamentos sobre as reais finalidades deste trâmite. Efetivar depósitos sem necessariamente fazer os trabalhos constantes no acordo não seria um “gesto de confiança” realizado pelo empreendedor para convencer os outorgantes a aceitarem os valores propostos na negociação da faixa de servidão? Veja-se os relatos:
Ia furar pra ver onde dava pra fazer. Antes do contrato do mineroduto. Nem furaram e me deram trezentos e setenta reais, e não deram o resto não (Filho de proprietário de fazenda na zona rural de Sete Cachoeiras. Faixa etária: 30 anos. Relato obtido em 18/01/15).
Logo em seguida, mais precisamente em 2013, funcionários identificados como analistas de negociação passaram a fazer visitas domiciliares, comunicando aos proprietários o início dos trâmites formais para as transações de terras. Ao invés de adotar um procedimento padrão nas abordagens, houve preocupação em modelar a postura apresentada em cada diálogo, de acordo com os cenários correntes: algumas vezes, optou-se pela rigidez na proposição de valores e alterações contratuais e, em outras, houve flexibilidade, dada relutância de várias pessoas no aceite das premissas apresentadas. A ordem dos superiores da Manabi S.A. foi pragmática: não medir esforços para fechar as conversações pela quantia-base de R$ 10.000,00 o hectare, mas, se porventura as tratativas não tomassem os contornos esperados, a oferta poderia ser aumentada em casos excepcionais. A falta de igualdade nas condições apresentadas gerou desequilíbrio nos montantes firmados, fato que muitas vezes passou despercebido em virtude das cláusulas de sigilo acordadas, como se vê nos trechos de entrevistas abaixo transcritos.
Na hora de fazer a oferta de dinheiro eles falam que é sigilo, é sigiloso, pra não contar pros outros o quanto tá recebendo, não. Não contam pra gente, não. Se eles pagam pra mim um tanto, lá no outro lado eles não contam. A gente fica sabendo meio escondido. Um vizinho não fica sabendo direito o que está acontecendo na negociação com o outro não. A negociação eles querem que seja em sigilo, eles não tão querendo que conta pro outro não. (Proprietário de fazenda na zona rural de Sete Cachoeiras. Faixa etária: 70 anos. Relato obtido em: 19/01/15).
Eles querem “tapear” o caboclo mais que puder! Uma vez o cara lá tem um pedacinho lá, vai receber, vamos supor, quarenta mil, ou trinta mil, aí eles chegam lá e “bláblábláblá” e falam que vai pagar o cara cinco e ele aceita! (Proprietário de fazenda próximo à Vila Córrego Jacaré. Faixa etária: 60 anos. Relato obtido em: 18/01/15).
Em se tratando de fazendas e povoados nos quais prevalecem perfis de indivíduos semiescolarizados com poder aquisitivo limitado, chama a atenção a atmosfera de desinformação e desconhecimento construída pelos negociantes nas primeiras investidas. Muitas assinaturas foram obtidas de forma célere, em conversas objetivas, graças à presença de negociantes conhecidos na esfera local, contratados para transmitir uma imagem de confiança e familiaridade.
Quando há questionamentos, a princípio as respostas são vagas e inflexíveis, alertando também para possíveis punições judiciais na hipótese de recusas no consentimento da faixa de servidão. Contudo, o uso de truques de chantagem deve ser percebido como conduta passível de ser enquadrada no rigor da lei como dano moral, por conta das possíveis incertezas e estresses emocionais derivados dessa postura.
As vezes que eles vieram aqui? Até que estou achando que foi só duas vezes, eles veio da primeira vez, conversou, e da segunda vez nós já combinamos e ele falou que a gente já podia ir em Ferros assinar. Na segunda vez chegou um funcionário que já era meu conhecido lá de Ipatinga. Então, eu já conhecia ele, aí que eu negociei com ele. Chegou aqui, falou comigo que o preço era aquele que ele ia me pagar e logo terminamos o papo (Proprietário de fazenda na comunidade de Cachoeira do Tenente. Faixa etária: 70 anos. Relato obtido em: 18/01/15).
Eles vieram aqui foi é muitas vezes, perdi a conta, já! Pra mim foi o fim da picada, abalou muito meu marido, mexeu muito com o psicológico dele, ficou nervoso e escondia desses homens, corria desses homens. Ele bebia pra ver se resolvia a situação, xingava eles, mandava eles embora. Mas foi muita pressão e ele assinou por muito pouco, só depois ele ficou sabendo. Eles pegaram ele em um momento que ele tava de ressaca! (Esposa de proprietário de fazenda próxima à comunidade de Cachoeira do Tenente. Faixa etária: 50 anos. Relato obtido em: 18/01/15).
Para mais, os relatos acerca da apresentação do “Instrumento particular de constituição de servidão de passagem” realçam outras inconstâncias no formato das interpelações. O contrato de adesão, bem como aponta o Parecer sobre o mineroduto Morro do Pilar/MG a Linhares/ES, “não é o instrumento jurídico adequado para negociar direitos reais e patrimoniais” (ZHOURI; OLIVEIRA, 2014, p. 82), pois suas disposições são concebidas por advogados da Dutovias do Brasil, em gabinetes de advocacia, sem a devida compreensão dos vínculos sociais circundantes, e também por impossibilitar modificações de conteúdo em comum acordo com os consumidores. Mesmo assim, no tocante aos exemplos coletados em Sete Cachoeiras, a pluralidade de situações em campo torna impossível afirmar categoricamente que se trata de um contrato fechado, já que muitas vezes houve troca de favores condicionada a alterações de cláusulas, como pagamentos extras ou persuasão de vizinhos:
No mês de novembro de 2013 eles chegaram aqui, abriram o computador e leram do jeito que eles quiseram. O funcionário leu por conta dele e nós passamos pra parente negociar porque nós não tinha condições, não. Porque muita coisa que eles falam pra gente é contra a gente e a gente não entendia e não sabia responder. E nesse dia eles não falaram nada se podia revisar o contrato, não, eles falaram: “o contrato é isso e pronto!” (Proprietário de fazenda na zona rural de Sete Cachoeiras. Faixa etária: 70 anos. Relato obtido em: 19/01/15).
Eles explicaram o contrato, e aí eu perguntei se era um contrato padrão ou se era um contrato pra cada negociação e eles falaram que era padrão. Mas depois eu até que vi que não era tão padrão assim, porque eles alteraram o meu. Eu pedi pra incluir a questão de alocação de terra pra minha propriedade pra tirar a erosão e eles aceitaram (Proprietário de fazenda próxima à comunidade de Cachoeira do Tenente. Faixa etária: 40 anos. Relato obtido em: 19/01/15).
5. Considerações finais
Os últimos doze anos foram marcados pelo surgimento de complexos minerários de larga escala produtiva, viabilizados com base na manutenção de práticas corporativistas de desenvolvimento. São corporações que transcendem as fronteiras nacionais, amparadas por fontes de capital privado fornecido por grandes players nacionais e internacionais responsáveis pela inserção destas no cenário brasileiro, no que tange aos recursos monetários necessários e à viabilidade prática. Sendo assim, não são apenas unidades empresariais isoladas, estão vinculadas e articuladas ao poder e são dotadas de certa autonomia frente ao governo, atuando conjuntamente com legisladores, operadores do direito, órgãos executores e políticos das mais variadas esferas executivas, por meio de antigas alianças repaginadas e contextualizadas vis-à-vis à conjuntura vigente.
Neste mesmo recorte temporal, a seção 2 ilustra a partir do histórico corporativo da Manabi S.A., o protagonismo de empresários locais no movimento de expansão da fronteira minerária brasileira. Ao comercializar seus ativos com corporações transnacionais, Eike Batista propiciou aos seus parceiros a aquisição do capital necessário para a criação de novas empresas. No entanto, sete anos se passaram e o quadro atual é de retração da economia e de redução da demanda chinesa por minério de ferro, quer dizer, é momento de contenção de gastos. Segundo notícia jornalística divulgada pelo Portal Valor Econômico, em outubro de 2015 a holding de Ricardo Antunes passou por uma “reestruturação que inclui mudança de nome, de controle acionário e o desenvolvimento de um novo plano de negócios”, incluindo também a venda dos ativos do diretor para a corporação Asgaard, especializada em logística. Batizada como MLog, a transação, ao injetar R$150 milhões aos cofres da empresa, reforça o papel de “monetizador” de Antunes, nos mesmos moldes utilizados por Eike na venda de seus ativos.
Os processos de negociação prévia são ferramentas amplamente utilizadas, pois mesmo se tratando de uma prática obscura, no que tange à responsabilidade e acesso a informações junto aos moradores atingidos, consistem em práticas legais dentro do ordenamento jurídico brasileiro. No caso das negociações estabelecidas na zona rural do distrito de Sete Cachoeiras, os relatos apontam a reincidência de queixas acerca do modo como são conduzidas pelos funcionários. Muitos moradores alegaram ter a sensação de que somente os interesses da empresa estão sendo protegidos. As tratativas são feitas mediante jogos discursivos nos quais os outorgantes acabam expostos a potenciais ameaças simbólicas com relação ao processo indenizatório. Neste ponto, ao realizar levantamentos socioeconômicos para a elaboração do EIA-Rima, a empresa toma conhecimento de informações como a condição financeira, quantidade de parentes e situação fundiária dos domicílios, e modula sua abordagem conforme são explicitadas as fraquezas e deficiências de cada família. Em se tratando de um ambiente com pessoas com baixa escolaridade e poder aquisitivo, torna-se reincidente a apresentação de contratos previamente produzidos. No caso estudado neste artigo, prevalece a estratégia de negociações unilaterais. Visitas a campo nas localidades evidenciaram a utilização recorrente de contratos tipicamente de adesão, i.e., não suportando discussão de cláusulas entre as partes, para negociar as áreas de interesse.
As ações empreendidas pelos prepostos da Manabi S.A. visando à obtenção de documentos e à assinatura dos contratos revela uma estratégia amplamente utilizada pelos empreendedores de grandes projetos de desenvolvimento: o obscurecimento de responsabilidades e a impossibilidade de acesso à informação pelos sujeitos ameaçados, afetados, atingidos e interessados. Os relatos apontam a prevalência de modelos previamente preenchidos, cabendo aos proprietários somente a assinatura na última lauda do documento. Por outro lado, alguns proprietários atuam no território como verdadeiros intermediadores dos interesses da mineradora, e em troca recebem indenizações mais robustas e a possibilidade de revisão de cláusulas. Há também outro perfil de proprietários: aqueles reticentes aos valores propostos pela empresa e aos possíveis danos ambientais. Por possuírem maior poder de barganha, receberam ofertas significativamente maiores em relação aos vizinhos. Neste sentido, há uma heterogeneidade na condução das negociações pelos prepostos, conforme as oportunidades de momento são identificadas.
Em paralelo, esse procedimento não se constitui em novidade para os pesquisadores envolvidos com o estudo do licenciamento ambiental de complexos minerários. Novamente, os métodos utilizados pela Manabi se assemelham ao procedimento utilizado pela MMX no caso das negociações de terras do complexo Minas-Rio, ainda em 2006. Segundo o relatório técnico “O Projeto Minas-Rio e seus impactos socioambientais: olhares desde a perspectiva dos atingidos”, organizado por Eduardo Barcelos (2013), “há indicações de processos diferenciados na negociação com grandes e pequenos proprietários, além do total desrespeito a posseiros, parceiros e arrendatários. Enquanto vultuosas indenizações teriam sido pagas aos grandes proprietários, nada seria garantido aos pequenos produtores” (p. 54). Ou seja, novamente é possível perceber estratégias em comum, mesmo em períodos diferentes, e essa repetitividade de modos e sujeitos envolvidos reforça a hipótese de que ambas compactuaram do mesmo conhecimento corporativo enquanto estiveram à frente dos empreendimentos mencionados.
Notas
1 Destacam-se as atividades de pesquisa e extensão realizadas por núcleos como o Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais (GESTA-UFMG), o Núcleo Interdisciplinar de Investigação Socioambiental (NIISA-Unimontes), o Núcleo Política, Economia, Mineração, Ambiente e Sociedade (PoEMAS-UFJF), o Núcleo de Investigações em Justiça Ambiental (NINJA-UFSJ), o Grupo de Estudos e Pesquisas Socioambientais (GEPSA-UFOP) e o Laboratório de Cenários Socioambientais em Municípios com Mineração (LabCen-PUCMinas). Projetos como o “Cidade e Alteridade” e “Polos de Cidadania” (Programa de Pós-Graduação em Direito da UFMG), bem como o “Projeto de Assessoria às Comunidades Atingidas por Barragens – PACAB” (Pró-Reitoria de Extensão e Cultura da UFV) são iniciativas que também executam importantes trabalhos dentro do campo dos conflitos ambientais minerários em Minas Gerais.
2 O GESTA-UFMG, vinculado ao Departamento de Antropologia e Arqueologia (DAA-FAFICH/UFMG) e cadastrado no Diretório de Grupos de Pesquisa da Plataforma Lattes/CNPq, desenvolve desde 2001 pesquisa, ensino e extensão dedicados à compreensão dos conflitos inerentes às diferentes racionalidades, lógicas e processos de apropriação do território vigentes em nossa sociedade.
3 Para Milanez e Santos (2013) o neo-extrativismo constitui “numa reconfiguração do extrativismo, conceito cunhado para definir um conjunto de estratégias de desenvolvimento ancoradas em um grupo de setores econômicos que removem um grande volume de recursos naturais para comercialização após nenhum ou quase nenhum processamento” (p. 121).
4 Fabio Erber (2010) afirma que o início dos anos 2000 marcou o estabelecimento de um “pacto neodesenvolvimentista” na política macroeconômica brasileira, configurada como uma diretriz estratégica capaz de “privilegiar as relações com outros países em desenvolvimento” (p. 29). Por esta via, foi estabelecido um modelo de governabilidade pautado no binômio crescimento econômico/bem-estar social.
5 Para Coelho e Morales (2012), “os minerodutos constituem-se como tubos subterrâneos ou aparentes, cuja infraestrutura construída serve como veículo para transportar produtos em seu interior, impulsionada por bombeamento ou por um jato de água contínuo, submetido à forte pressão” (p. 8).
6 “Segundo dados das próprias empresas, o custo para se transportar minério de ferro via ferrovia é, em média, de 18,00 US$/t, já por minerodutos, a média é de 2,00 US$/t” (SIQUEIRA, 2015).
7 O grupo X, assim denominado por Cavalcanti (2014), constitui-se de pelo menos dez ex-diretores do Grupo EBX que se tornaram multimilionários com a venda de suas ações entre 2008 e 2009, período de maior credibilidade do projeto de Eike Batista. Segundo levantamento feito, cada um recebeu entre 70 a 200 milhões de reais com ativos.
8 Processo COPAM nº 02402/2012/001/2012 (cava): aterro para resíduos não perigosos de origem industrial; barragem de contenção de rejeitos; correias transportadoras; diques de proteção de margens de curso d’água; lavra a céu aberto com tratamento a úmido; tratamento de água para abastecimento; pilhas de rejeito; postos revendedores; postos de abastecimento; subestação de energia elétrica; tratamento de esgoto sanitário; unidade de tratamento de minerais UTM.
9 Processo IBAMA nº 02001.001128/2012-58 (mineroduto e porto): canteiros centrais; canteiros auxiliares; frentes de obra móveis; área de estocagem e distribuição de tubos; estação de tratamento de efluentes; estruturas de apoio às obras; estações de bombeamento; quebramar; canal de acesso; plataforma continental; estação de filtragem; pátio de estocagem; emissário submarino de água; carregador de navios; correias transportadoras; sistema de amostragem e pesagem.
10 Sediada em Belo Horizonte, a Dutovias do Brasil é a subsidiária da Manabi S.A. responsável pela negociação das faixas de servidão de passagem junto aos moradores atingidos.
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Figura 2: RIBEIRO, Gabriel. Estrutura societária da Manabi S.A. 2015.
Figura 3: Traçado do mineroduto Manabi no distrito de Sete Cachoeiras. 2015.