Governança e desenvolvimento territorial: Limites e possibilidades dos novos arranjos político-institucionais no Setor Leste da Região Metropolitana do Rio de Janeiro


Paulo Pereira Gusmão
Professor Adjunto do Departamento de Geografia (DEGEO) e do Programa de Pós-Graduação em Geografia (PPGG) do Instituto de Geociências (IGEO) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Gabriel de Souza Barbosa
Doutorando e Mestre em Planejamento Urbano e Regional pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional. Pesquisador I no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) na Diretoria de Estudo e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia (DIEST).

1.  Introdução: Relevância da temática

Este artigo debate o tema da promoção da governança e do desenvolvimento territorial, que, em tese, deveria resultar de mecanismos descentralizados através dos quais agentes públicos, sociais e econômicos comporiam fóruns – processos dedicados à formulação e avaliação das políticas públicas em seus rebatimentos territoriais. Com esse propósito, ele apresenta uma análise exploratória de experiências com arranjos político-institucionais colegiados atuantes no setor leste da Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ). Tal análise trata da capacidade de resposta demonstrada por esses novos arranjos na condição de instrumentos de promoção do desenvolvimento territorial, aproximando-se, assim, de uma abordagem crítica sobre a natureza espacial dos processos econômicos.

Como objetos de análise, foram eleitas três experiências de respostas institucionais face ao protagonismo exercido por um grande complexo industrial ora em fase de instalação no setor leste da RMRJ, o Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro – COMPERJ, a saber: (i) o Conselho Consultivo da APA de Guapimirim e Estação Ecológica da Guanabara – CONAPAGUAPI/ESEC Guanabara; (ii) o Consórcio Intermunicipal de Desenvolvimento da Região Leste Metropolitana – CONLESTE ; e (iii) o Comitê das Agendas 21 da Região do Comperj – ComARC. Pelo que se vê, o objeto de investigação não é o referido complexo, mas sim as formas institucionais de governança territorial que envolvem os agentes (públicos/institucionais, sociais e econômicos) ali presentes e que têm a intenção de lidar com os múltiplos e complexos efeitos territoriais produzidos na área de influência imediata desse complexo.

Considerando os apontamentos metodológicos como parte inerente à teoria, cabe esclarecer brevemente as principais questões que orientam a análise dos arranjos institucionais de governança escolhidos. O encaminhamento adotado não esgota a temática, sendo certo que outras perspectivas poderiam agregar elementos aos resultados aqui apresentados. Da mesma forma, destaque-se o fato de que as questões orientadoras servem como referência, não como “roteiro metodológico”.

Face aos limites de espaço impostos a este trabalho, algumas “escolhas de Sofia” foram inevitáveis. Por sua vez, as questões levantadas apontaram para a necessidade de averiguar a veracidade das seguintes afirmativas:

1)    o grau de mobilização/comprometimento dos agentes envolvidos funciona como fator determinante para os resultados e eventuais sucessos do processo de governança territorial;

2)    o estilo de liderança e a delimitação/distribuição de responsabilidades entre os vários agentes opera como fator mitigador de situações indesejáveis de protagonismo;

3)    as assimetrias das “cotas de poder” (LITTLE, 2006) dos agentes limitam as possibilidades de diálogo, de confiança mútua e de cooperação;

4)    o fortalecimento de iniciativas autônomas deve ser entendido como fator de combate ao clientelismo e, portanto, de situações de tutela em relação a outras esferas de governo;

5)    a capacidade de resposta dos governos locais determina a capacidade de resposta dos arranjos de governança locais e/ou microrregionais; e

6)    a superposição de competências/recortes espaciais limita a possibilidade de cooperação entre diferentes fóruns de governança, sendo, pois, um fator gerador de conflitos ou um impeditivo de negociação entre tais fóruns.

2.  Apontamentos e questões acerca da descentralização política e dos novos arranjos institucionais no Brasil pós-1988

Até a promulgação da Constituição de 1988, a administração pública brasileira se notabilizou pela centralização de poderes, quase sempre atribuindo aos governos locais (e mesmo aos estaduais) um papel secundário como instância real de poder político. A fragilidade dos governos locais sempre serviu de argumento para “provar” que eles não estavam preparados para arcar com maiores responsabilidades. Contudo, em função de o município ser o lugar do exercício concreto da democracia e da construção da cidadania, é preciso admitir a superação desse quadro de deficiências, ainda que na condição de uma possibilidade a ser materializada num horizonte de tempo indefinido.

Enquanto isso, alguns municípios brasileiros receberam investimentos produtivos e infraestruturais que resultaram em novas “oportunidades” e, conjuntamente, em “pressões”, esbarrando na precária capacidade de resposta dos governos locais, materializada não somente na forma como os governos enfrentam as “pressões”, mas também como exploram as “oportunidades”. O desequilíbrio entre as pressões/oportunidades criadas pelos investimentos e a capacidade de resposta dos governos locais acabou frustrando expectativas e aprofundando os déficits de infraestrutura e de oferta de serviços coletivos, com reflexos negativos na qualidade do ambiente e nas perspectivas de um genuíno desenvolvimento territorial.

Esse desequilíbrio determinou o agravamento dos cenários de desigualdades e injustiças, não o contrário, como pretendem fazer crer os discursos de caráter desenvolvimentista. Alguns indicadores econômicos talvez reflitam ganhos em matéria de crescimento; isso, porém,não vem sendo acompanhado da promoção de ganhos equânimes e sustentáveis.

Para garantir um cenário diferente, seria necessário, embora não suficiente, que governos locais agissem de forma a combinar doses mais elevadas de autonomia e solidariedade. Por um lado, as iniciativas tomadas por cada unidade político-administrativa deveriam ser mais autônomas, isto é, mais ajustadas às necessidades e aos recursos mobilizáveis em cada caso. Por outro, elas deveriam ser mais solidárias, pois alguns de seus problemas (talvez os mais relevantes) demandam um tratamento em escalas de tempo e espaço que dependem de ações estratégicas de médio/longo prazo e em âmbito regional. Essa necessidade não se coaduna como fato, assinalado por Castro (2009), de o federalismo brasileiro ser “mais competitivo do que cooperativo”, o que não favorece a “disponibilidade de fóruns de discussão e coordenação federativa”. As experiências com consórcios intermunicipais são limitadas por uma cultura político-administrativa adversa a eles.

Em outra perspectiva, destaque-se o fato de que essa “solidariedade” (ou disposição a cooperar) não pode estar limitada aos agentes públicos. Agentes econômicos e sociais têm de estar envolvidos no processo de governança territorial, diferente das experiências de gestão puramente “estatais” ou das gestões em que se verifica o protagonismo dos agentes econômicos sobre os territórios. A efetivação de um modelo alternativo de governança (ou de gestão negociada de cenários futuros) demanda, assim, algo que não é trivial: a construção de um ambiente de confiança que viabilize processos contínuos de cooperação e coordenação entre agentes sociais, econômicos e públicos (vinculados a diferentes esferas e setores de governo) visando tanto à construção de um cenário de desenvolvimento territorial com o qual todos eles estejam identificados e comprometidos quanto à obtenção de resultados em que todos tenham a oportunidade de usufruir.

O debate a respeito da construção de um ambiente de descentralização e controle social das políticas públicas tem sobrevivido à crítica sobre as «dimensões excessivas do Estado», que destaca o papel do mercado e dos mecanismos de autorregulação. Ainda que sujeito a ameaças, percebe-se um ambiente no qual o espaço ocupado pelo Estado e pelas Políticas Públicas vem sendo resgatado, incluindo a retomada das práticas de planejamento estatal segundo recortes territoriais que escapam ao maniqueísmo global-local. Novas institucionalidades surgiram, o que aponta para a ampliação e diversificação dos fóruns colegiados dedicados à formulação ou avaliação das políticas públicas temáticas, setoriais ou transversais.

Essa perspectiva está plasmada em alguns dos novos marcos legais que remetem a processos colegiados, descentralizados e participativos, como a Lei da Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei 9433/1997), a Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (Lei 9985/2000), o Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001), a Lei dos Consórcios Públicos (Lei 11.107/2005) e o Estatuto da Metrópole (Lei 13.089/2015). Em todos esses diplomas, nota-se uma ênfase em relação à descentralização das políticas públicas, à promoção da cooperação interfederativa e à governança territorial.

Embora reconhecidos como avanços, deve-se sublinhar também que os novos arranjos institucionais necessitam passar, ainda, por ajustes em função, entre outros, das limitações impostas por aspectos retrógrados da estrutura federativa brasileira. Por sua vez, as pressões exercidas por agentes hegemônicos no interior desses arranjos (e dos espaços geográficos sob sua tutela) continuam representando um desafio para a incipiente construção das capacidades de resposta.

3.  Referências conceituais

No título deste artigo, o leitor observa uma referência a dois conceitos centrais: governança e desenvolvimento territorial. Ao longo do texto, esses conceitos são empregados de modo a formar um par, no qual o segundo pode ser entendido como um objetivo ou um resultado desejado, enquanto o primeiro corresponde ao processo-gênese ou à condição necessária para a consecução daquele. A seguir, eles são situados de forma a definir o referencial conceitual básico sobre o qual repousam as análises e os resultados aqui apresentados.

3.1 Desenvolvimento territorial

O conceito de desenvolvimento vem sendo empregado com diversas ênfases, dimensões e significados desde pelo menos a segunda metade do século XX. Rist (2002) chama a atenção para a elevação desse conceito à condição de uma crença fora do alcance de disputas, a qual não deve ser confundida com ideologia. Segundo o autor, símbolos e expressões como progresso, crescimento e desenvolvimento seriam capazes de induzir alguns indivíduos à certeza de que uma vida melhor estaria prestes a acontecer.

Autores como Veiga (2006) falam do desenvolvimento como um mito, já referido por Furtado, associado ao desejo de os países pobres (agrários, subdesenvolvidos etc.) alcançarem os mesmos padrões dos países ricos (desenvolvidos, industrializados etc.) a partir da reprodução, em alguma medida, do caminho percorrido por estes últimos. De forma próxima, Porto-Gonçalves(2006) se refere aos “ideais eurocêntricos de desenvolvimento”, que teriam levado à concepção de um modelo “universal” de desenvolvimento espelhado na industrialização-urbanização da Europa da primeira revolução industrial.

Em trabalho recente, Latouche (2012), ao discorrer sobre a noção de descrescimento, atenta para o aumento das desigualdades/injustiças e para a produção de um bem-estar ilusório, ambos resultantes do desenvolvimento entendido como sinônimo de crescimento. Com base na apreciação do protagonismo do pensamento econômico e das forças de mercado, o autor desenvolve sua argumentação sobre o pós-desenvolvimento, o qual será, possivelmente, plural: “cada sociedade e cada cultura deve sair, à sua maneira, do totalitarismo produtivista e contrapor ao homem unidimensional, o homo aeconomicus, uma identidade baseada na diversidade das raízes e tradições” (LATOUCHE, 2012, p. 46).

As discussões sobre o conceito de desenvolvimento no contexto da globalização se deparam com a ideia de que não há espaço para padrões de desenvolvimento que não estejam alinhados a uma inevitável e crescente internacionalização e deslocalização das economias nacionais, regionais e locais. Essa ideia está associada ao receituário que prescreve um Estado com dimensões reduzidas, menos intervenção na economia e mais liberdade para as forças de mercado.

Especulando sobre alternativas para o “desenvolvimento” típico de uma economia global sem fronteiras, Silveira (2008) reconhece que as dinâmicas geradoras de desigualdade e exclusão próprias da globalização não podem “ser desconstruídas pelo alto, ou por outros sistemas de fluxos apartados dos lugares”. Contudo, em oposição ao processo de globalização, o autor argumenta que o local deve ser visto como “um campo de produção de novos fluxos, isto é, articulações sociais de ‘dentro para fora’ ou de ‘baixo para cima’”, capazes de substituir formas de inserção subordinadas e socialmente excludentes por um desenvolvimento que parta do local e que conduza a uma “outra globalização”. Segundo Silveira, nesse “encontro entre lugares e fluxos”, residiria “o aspecto mais vigoroso e transformador das formulações contemporâneas sobre desenvolvimento local”.

Em outra perspectiva, França & Garibe (2008) assinalam que

... sendo os territórios diversos, assim como suas condições ambientais e histórico-institucionais, os caminhos do desenvolvimento também o são e, portanto, não devem ser aceitas as interpretações baseadas num modelo único de referência e em trajetórias e estados predeterminados de desenvolvimento (p. 323).

À diversidade dos territórios, pode-se agregar a flexibilidade de seus limites. A qualificação do desenvolvimento segundo recortes espaciais previamente definidos (local ou regional) significa, em certo sentido, o empobrecimento das possibilidades, pois território é um conceito espacialmente mais flexível e generoso para com o debate sobre as possibilidades de desenvolvimento. De acordo com Dallabrida (2014) “o conceito desenvolvimento territorial rompe com tradições mais antigas sobre desenvolvimento regional (e local), articulando duas noções: território e desenvolvimento” (p.19). Contudo, ele assinala que “a categoria conceitual desenvolvimento territorial ainda não tem alcançado um patamar de aceitação na academia, necessário para que se tenha uma compreensão diversa do que usualmente denominamos desenvolvimento local ou regional”.

Avançando na direção do esclarecimento dessa dicotomia entre desenvolvimento territorial e desenvolvimento local-regional, o autor lança mão dos argumentos de Coulmin (1984, apud Cazella, 2008, p. 20) de que “o desenvolvimento territorial depende da sinergia de vários microssistemas locais que se cruzam e efetuam trocas entre eles e com sistemas mais amplos”. Assim, o processo de desenvolvimento faz com que os recortes espaciais em que se dão as transformações se tornem flexíveis, dando-lhes uma forma localizada, ampla ou mesmo descontínua. Segundo Jean (2010), “o desenvolvimento territorial pressupõe [...] que cada território deva construir, por meio de uma dinâmica interna, seu próprio modelo específico de desenvolvimento”.

3.2 Governança territorial

As particularidades de cada território induzem à necessidade de (re)definir os modelos de organização sobre os quais se assentam o processo de formulação-negociação-avaliação das políticas voltadas para o desenvolvimento territorial. Dentro dessa (re)definição de preceitos, atenção deve ser dedicada ao papel que o Estado (e, portanto, as políticas públicas) desempenha no processo de promoção do desenvolvimento, pois “o livre jogo do mercado transforma as regiões em algo amorfo, mero receptáculo das decisões otimizadas dos agentes econômicos. A concentração é um requisito do capitalismo global, portanto cabe ao Estado contrapor-se a tal tendência, reconstruindo espaços de articulação entre a economia e o território” (FRANÇA& GARIBE, 2008, p. 332).

Refletindo sobre o que chama de “uma nova inteligência territorial”, Covas & Covas (2014) afirmam que é

surpreendente que tantos actores se tenham ignorado durante tanto tempo acerca de problemas e projectos que eles nunca anteciparam e conheceram como comuns, apesar de serem vizinhos geográficos e habitarem o mesmo chão comum territorial durante as última décadas. Pelo visto este chão comum foi pouco inspirador, pois tudo ou quase tudo foi entregue à hierarquia acolhedora do Estado e à anarquia madura do mercado e muito pouco à sociedade civil e à sua auto-organização na construção social dos mesmos territórios” (p. 98).

Por sua vez, na discussão sobre o conceito de desenvolvimento, Silveira (2008) assinala a necessidade de construir outros paradigmas para a gestão pública, envolvendo a criação de novos padrões de organização e de modos de regulação. O autor desenvolve o conceito de “novos modos de relacionamento que tornam possível a articulação entre agentes autônomos dos diferentes setores (governo, sociedade civil, mercado) na construção de processos de desenvolvimento” (COVAS E COVAS, 2014, p. 47).

Esse novo modo de relacionamento desloca o protagonismo e a coordenação política dos processos de desenvolvimento para “esferas públicas ampliadas cuja natureza é, essencialmente, local”. Essa é a condição para que os “ativos locais” sejam identificados e valorizados, assim como para que sejam ativados os “vínculos” que cada território articula ou pode articular. Tais “vínculos” permitem, de acordo com os autores supracitados, a passagem de uma perspectiva hierarquizada e verticalizada (piramidal) do processo de gestão pública para outra, cuja característica principal seriam as ligações não lineares entre locais, unidades, componentes e agentes. Ou seja, o desenvolvimento, nessa perspectiva, resulta da passagem de uma lógica da dependência para a da interdependência, da interação vertical para a interação multidirecional, enfim, de conexões que produzem conexões e novos pontos, que, conectados, incorporam ao sistema as conexões que carregam (SILVEIRA, 2008, p. 50).

A criação dessas novas ambiências ou modelos de gestão pública associam-se ao conceito de governança. Conforme Pires et al. (2010), em sua dimensão territorial, a governança “considera as articulações e interdependências entre atores sociais na definição de formas de coordenação horizontal e vertical da ação pública e regulação dos processos econômicos e sociais territoriais” (p. 36). Partindo dessa definição e do debate sobre desenvolvimento territorial realizado por Benko e Pecqueur (2001), pode-se tomar como referência o entendimento da governança territorial como um processo decisório que, coordenado por agentes públicos, envolve obrigatoriamente agentes econômicos (públicos e privados) e movimentos sociais presentes ou interessados no futuro de um determinado território e dos recursos/processos que ele compreende.

Nessa condição de processo colegiado e participativo, os diferentes agentes (institucionais, econômicos e sociais) atuam em redes e comparecem com suas distintas leituras (ou saberes específicos) sobre o território, contribuindo para a base de conhecimento e a manifestação de interesses a partir dos quais se projetam cenários alternativos, entre os quais se seleciona (ou se compõe) aquele que fora acordado como desejável e possível. A governança visando ao desenvolvimento de um território envolve, assim, um permanente aprendizado social e um processo continuado de negociação de interesses e conflitos (efetivos ou potenciais), constituindo-se num interminável processo de diálogo-aprendizagem realizado entre e pelos agentes envolvidos (THEODORO, 2005).

Implícito no processo de governança e desenho do projeto de desenvolvimento de um território, está o reconhecimento das desigualdades e diversidade que o caracterizam. O reconhecimento das desigualdades é condição para o tratamento diferenciado das situações, do contrário, a tendência é reproduzir/reforçar as condições desiguais (e injustas), e não eliminá-las. O reconhecimento da diversidade responde à necessidade de identificar os recursos específicos (ou oportunidades) presentes nos territórios e incorporá-los ao desenho do projeto e da estratégia de desenvolvimento.

Do processo colegiado de governança territorial, resultam o que pode ser entendido como políticas públicas negociadas. Contrariamente às políticas públicas clássicas, as definições geradas através desse processo de governança organizam a ação do Estado (nas suas diferentes esferas e setores) e a dos demais agentes (sociais e produtivos), de forma certamente mais eficaz e justa do ponto de vista social. É óbvio que a existência de um clima de confiança mútua entre os diferentes agentes é um requisito necessário para que se alcance a cooperação-coordenação dos esforços que possibilitam a definição-execução das políticas públicas negociadas, e, a partir destas últimas, do cenário acordado.

Esses argumentos estão próximos do que propõe Brandão (2011, p. 133), quando afirma que “é preciso construir mesas de diálogo e identificação de problemas e discussão da capacidade coletiva de encaminhamento, buscando a articulação das escalas espaciais, dos níveis de governo e das instâncias de poder”.

Sobre esse comentário há algumas dúvidas, sobretudo no que diz respeito à condição das estruturas do Estado capitalista e de suas instituições democráticas para favorecer ou tornar possível a construção e a operação de fóruns deliberativos e negociais. Seguindo a linha argumentativa de Claus Offe (apud RANDOLPH, 2015), é importante destacar o papel (e o peso) das determinações sistemáticas (e estruturais) invisíveis que moldam a ação política do Estado, que, supostamente, não deveria ser classista ou neutra. O problema estrutural do Estado capitalista é que ele precisa tornar invisível o seu caráter de classe, assumindo uma aparente neutralidade de modo a manter o exercício da dominação das classes hegemônicasprocesso que se estende à estrutura e às práticas de todas suas instituições.

Em resumo, o funcionamento das instituições de Estado, mesmo no contexto da governança territorial, está sujeito a processos de seletividade que tendem a manter à margem os interesses que não se identificam com aqueles das classes políticas dominantes. As instituições constituem a própria condição para o exercício concreto daqueles que as conquistaram por meio de seletividade. Nesse sentido, é importante que as análises e as avaliações dos arranjos institucionais de governança territorial se debrucem sobre as “demandas” que compõem suas agendas, a fim de distinguir quais delas serão acatadas e apoiadas e quais nem sequer entrarão nas agendas políticas (RANDOLPH, 2015).

4.  Apreciação sobre uma amostra de arranjos de governança territorial no leste da RMRJ1

Esclarecida a relevância da temática e o embasamento teórico do artigo, é-se apresentada a seguir a análise de alguns arranjos institucionais de governança em desenvolvimento no setor leste da RMRJ. Em essência, tais experiências correspondem a respostas político-institucionais face às pressões e oportunidades derivadas da implantação de um complexo industrial que, desde 2006, vem desempenhando um papel de protagonista nesse setor da RM, o COMPERJ.

Do conjunto de respostas às transformações territoriais determinadas por esse complexo, foram selecionadas três experiências para análise (Figura 1). O primeiro caso é o do Conselho Consultivo da Área de Proteção Ambiental de Guapimirim / Estação Ecológica da Guanabara (CONAPAGUAPI / ESEC Guanabara), fórum de governança integrado que cumpre a função de gestor das duas unidades de conservação. A segunda experiência é a do Consórcio Intermunicipal de Desenvolvimento da Região Leste Metropolitano (CONLESTE), um fórum de governança criado por iniciativa dos prefeitos dos municípios que integram a área de influência do complexo. A terceira corresponde ao Comitê das Agendas 21 da Região do Conleste – ComARC, que se propõe a articular as agendas 21 elaboradas individualmente pelos municípios que integram a área de influência do complexo.

4.1   Conselho Consultivo da APA de Guapimirim e Estação Ecológica da Guanabara – CONAPAGUAPI / ESEC Guanabara

Tanto a Área de Proteção Ambiental de Guapimirim como a Estação Ecológica da Guanabara, unidades de conservação sob tutela do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), estão situadas na área de influência direta do complexo industrial analisado.

O instrumento institucional de gestão dessas unidades tomou a forma de um Conselho Consultivo que abrange, integradamente, os dois espaços protegidos, que envolvem, respectivamente, uma parte continental da RMRJ e do espelho d’água da Baía de Guanabara, com o objetivo de lhes dar um tratamento coerente às questões ecológicas e de lhes garantir a agilidade administrativa e a economicidade necessárias à gestão dos recursos nelas contidos. Esse fórum integrado é conhecido como um dos mais ativos e combativos da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, com relevante histórico de participação da sociedade civil. A estrutura à disposição dos chefes dessas Unidades de Conservação (UC’s) inclui também um Gabinete Executivo e quatro Núcleos Técnicos especializados, que tratam de temas envolvendo espaços geográficos que lhes são adjacentes, o que favorece a ampliação da agenda da governança territorial desenvolvida no seu âmbito.

O caráter “consultivo” desse fórum tem representado um fator limitador das possibilidades de negociação-resolução dos conflitos identificados. Apesar do comprometimento da direção, da equipe técnica que lhe presta apoio e do ativismo dos representantes de outros agentes que compõem esse colegiado, o caráter não deliberativo do CONAPAGUAPI/ESEC Guanabara não lhe permite ir além do mero encaminhamento das demandas debatidas a fim de que outras instituições e instâncias (nem sempre tão comprometidas quanto o Conselho e seus membros) deliberem. Os resultados dos debates, que envolvem um bom volume de recursos dedicados à pesquisa, elaboração de relatórios/pareceres e debate, acabam reduzidos a “cobranças de posição” que, dirigidas a instituições governamentais, não alcançam necessariamente a resolução/mitigação dos conflitos.

O diferencial de combatividade do conselho parece ser explicado pelo peso da representação dos pescadores artesanais e outros segmentos sociais desse colegiado. Por sua vez, essa composição talvez demonstre o distanciamento da representação de alguns agentes econômicos e instituições/esferas do poder público que não se sentem “confortáveis” face às pressões a que se veem frequentemente submetidos durante as reuniões do conselho. Consultas feitas às atas de reuniões confirmam a recorrente ausência de membros de organizações governamentais e de representantes de agentes econômicos importantes. Ao que tudo indica, mesmo quando presentes, tais agentes não se mostram em condições de dar respostas ou esclarecimentos às perguntas levantadas. Segundo relatos, esses fatos tendem a tencionar ainda mais os debates, e não contribuem para o devido tratamento dos temas constantes das pautas das reuniões.

4.2   Consórcio Intermunicipal de Desenvolvimento da Região Leste Metropolitana – CONLESTE

A criação do CONLESTE, em 2007, esteve diretamente relacionada ao anúncio de implantação do complexo industrial, em 2006. Contudo, sua concepção inicial, anterior a essa data, estava vinculada à necessidade de encaminhar uma solução para um antigo problema de abastecimento de água na região. O anúncio da implantação do complexo deu origem a uma ampliação da pauta dos prefeitos da região e, portanto, a uma mudança de foco, que culminou na criação de um consórcio público estruturado nos moldes estabelecidos pela Lei 11.107/2005.

Apesar do que está estabelecido no Estatuto do CONLESTE, a prática desse pacto intermunicipal não logrou materializar o propósito de formular e executar políticas públicas de médio/longo prazo de caráter regional/integrado. Ao que parece, o alto custo político de negociação entre prefeitos de 15 diferentes municípios, assim como entre o consórcio e outros agentes (públicos e privados) presentes/atuantes na região não permite que se viabilize a declarada intenção de cooperação-coordenação das unidades federativas que o integram.

Esse quadro leva à manutenção do nível usual de dificuldade para obter acordos sobre questões e ações políticas de caráter intermunicipal. Embora envoltas em um “novo discurso”, as questões sistêmicas da região não chegam a mobilizar a cooperação interfederativa. Há toda uma “cultura político-administrativa” – certamente não limitada à região – que obstaculiza a concretização de declarações formais em favor da cooperação, prevalecendo, quase sempre, a competição, ainda que esta não pareça a melhor opção a médio ou a longo prazo para a região.

Na prática quando chega a operar resultados, o consórcio se limita ao exercício de pressões sobre outras esferas de governo e sobre o agente econômico protagonista na região. Na opinião de alguns interlocutores consultados, esta tem sido a forma de promover uma espécie de “compatibilização de agendas”: (i) por um lado, operam as agendas dos governos locais consorciados, voltadas para seus respectivos objetivos localizados, imediatos e setoriais; (ii) por outro lado, uma outra agenda aglutina objetivos/estratégias do agente econômico protagonista e dos agentes públicos vinculados a outras esferas não locais de governo – todos interessados em vencer os obstáculos à implantação do complexo. Pelo que se observa, a prática do consórcio está distante do objetivo que consta no Protocolo de Intenções e no Estatuto, qual seja: viabilizar políticas públicas direcionadas ao interesse do desenvolvimento regional. Referências foram registradas em relação à existência de práticas que teriam reduzido o consórcio a uma espécie de “balcão de negócios”, dada a importância que assumiu a obtenção, pelos governos locais, dos benefícios associados a compensações e a condicionantes impostos ao agente econômico através do processo de licenciamento ambiental.

O consórcio não foi capaz de desenvolver uma capacidade técnico-administrativa própria. Seus recursos restringiram-se à figura dos prefeitos. A capacidade instalada de formular, detalhar e negociar propostas é muito reduzida, havendo quem afirme que é nula. A ausência dessa retaguarda técnica contribui para a inexistência de uma interlocução suficiente com outros agentes, seja para cima (isto é, com os agentes econômicos e outras esferas governamentais), seja para baixo (isto é, com as associações civis e demais formas de organizações sociais). Essa constatação dá lugar a referências ao consórcio como sendo um clube dos prefeitos, que, isolados e com dificuldades para liderar (ou mesmo participar dos) os processos de negociação, acabam ficando a reboque” das possibilidades e dos interesses de outros agentes. Como estes atuam em escalas espaço-temporais distintas das municipalidades, perpetua-se a condição de agendas “que não fecham” entre si.

Na concepção original do consórcio, ele deveria dispor de capacidade técnica-administrativa própria e funcionar como uma agência de desenvolvimento. Cogitou-se, inclusive, a criação de uma universidade corporativa para ajudar a compor a massa crítica necessária à concepção de um projeto de desenvolvimento regional. Considerando-se que o complexo foi objeto de revisão e tende a ser reduzido a uma expressão menor (concentrando-se na atividade de refino de petróleo), é muito pouco provável que o CONLESTE venha a desenvolver a capacidade de formular, negociar e executar ações preventivas e corretivas que potencializem os efeitos positivos e neutralizem os efeitos negativos decorrentes da implantação do complexo. O sentimento geral parece ser de que não basta a criação do consórcio visando à cooperação intermunicipal, se a prática política não se pautar por uma visão estratégica que privilegie um horizonte temporal de médio/longo prazo e uma perspectiva espacial supralocal.

Em relação ao futuro próximo, há entre os agentes que atuam na região grande expectativa em relação à elaboração do Plano Diretor de Estruturação Territorial do Leste Fluminense (PET Leste). A expectativa é de que esse Plano promova a integração/viabilização de ações de interesse para a região, inclusive com o resgate de conteúdos das Agendas 21 Locais. Contudo, importa chamar a atenção para o fato de a elaboração do PET Leste ser uma iniciativa do Governo do Estado com, uma vez mais, o apoio financeiro do agente econômico que exerce o papel de protagonismo na região. Sendo assim, pairam dúvidas quanto às reais possibilidades de superação dos problemas assinalados, em especial no que diz respeito ao envolvimento dos governos e das comunidades locais na elaboração e implementação de mais esse plano.

4.3   Comitê das Agendas 21 da Região do Conleste – ComARC

As observações que acabam de ser feitas sobre a experiência do CONLESTE e as perspectivas relativas ao PET Leste encontram rebatimento na experiência das Agendas 21 locais e o ComARC.

O anúncio da implantação do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (COMPERJ) em Itaboraí, ocorrido em 2006, foi seguido de uma proposta feita pelo empreendedor – a Petrobras – no sentido de prestar apoio aos municípios da área de influência do complexo, visando a capacitá-los para lidar com as oportunidades e a gerar respostas às potenciais pressões decorrentes de seu estabelecimento na região. O apoio prestado aos 16 municípios que compunham originalmente a área de influência imediata envolveu o desenvolvimento das respectivas Agendas 21 Locais, posteriormente consolidadas sob a forma de Planos Locais de Desenvolvimento Sustentável (PLDS).

Apesar de ter inaugurado um processo de diálogo e governança – fato reforçado pela instalação dos Fóruns 21, estruturas colegiadas dedicadas à deliberação sobre projetos de interesse das diferentes municipalidades –, há sinais de que as práticas de planejamento participativo não foram realmente internalizadas pela maioria dos governos locais. A combinação entre, por um lado, os diversos conflitos de interesse e, por outro, os desequilíbrios em termos de “cotas de poder” de que são detentores os membros desses colegiados explica não somente o esvaziamento dos Fóruns das Agendas 21 Locais, mas também a não implementação das “deliberações” ali formuladas/negociadas. O problema não se resume à alegada falta de recursos das prefeituras que impediam de levar adiante tais decisões, ainda que contribua para explicar vários casos de insucesso. Isolado, esse aspecto, não justifica o caso dos municípios com mais recursos, que também não realizaram avanços significativos no que diz respeito à estruturação, funcionamento e operacionalização de tais fóruns e suas deliberações.

As barreiras a processos de governança territorial mostram-se mais determinantes quando o foco se volta para os compromissos no plano regional. Nesse quesito, nota-se, outra vez, uma inapetência para o diálogo e cooperação. A própria criação do ComArc (em 2013) resultou, igualmente, da iniciativa e do apoio prestado pelo agente empreendedor do complexo industrial, e não de um movimento “de baixo para cima” realizado pelas municipalidades.

Essa inapetência estava sendo trabalhada pelo ComARC por meio de uma estratégia que procurava aproximar/mobilizar os municípios com realização de “projetos mobilizadores” que resultassem na consolidação do comitê. É difícil avaliar em que medida esse arranjo pode contribuir para a promoção de uma visão estratégica-integradora-regional e, portanto, de ações que não se limitem ao “local”, “setorial” e ao “curto prazo”. A isso, acrescente-se que, segundo informações mais recentes, o aporte de recursos que moviam o ComARC foi desmobilizado, resultado da reformulação dos planos-orçamento-cronograma do complexo.

O contexto de ausência de práticas de cooperação-coordenação acaba por explicar a condição dos agentes econômicos como protagonistas, inclusive no que se refere à origem de iniciativas de governança territorial e seu “financiamento”. É difícil projetar cenários nos quais essa dependência deixe de alimentar situações de tutela e um certo clientelismo, mesmo que esse não seja o objetivo do agente protagonista. É difícil, igualmente, supor um cenário em que os municípios da região possam conceber, executar e dar continuidade a projetos que fujam de um padrão diferente do que é (ou poderia ser) determinado pelas atividades do complexo.

Apesar dos esforços para capacitação de gestores, construção de canais de diálogo e implantação de fóruns que tratassem de políticas públicas, parte significativa das iniciativas locais tende a reproduzir o modelo e a gerar novos pleitos que se manterão (ou manteriam) dentro dos limites da pauta dos agentes protagonistas.

5   Principais resultados e apontamentos

Até aqui os autores esperam ter organizado um certo número de observações que, longe de esgotar as temáticas abordadas, sirva de subsídio para futuros trabalhos dentro da mesma linha de pesquisa. É necessário agora sintetizá-las, com o objetivo de oferecer ao leitor uma agenda resultante.

Da análise das três experiências de governança, algumas linhas de argumentação que são listadas a seguir. Não foram identificados resultados convincentes de mobilização e coesão dos agentes envolvidos, assim como de cooperação e coordenação entre diferentes os fóruns, predominando situações que refletem situações de disputa e conflitos.

Quando consultadas, algumas fontes indicaram que certos agentes econômicos estavam “passando dos limites” aceitáveis, contribuindo, assim, para inibir a iniciativa de outros agentes e, por consequência, obstruindo o sentido colegiado-cooperativo da governança territorial. Essas falas sugeriram uma diferença entre, por um lado, um “protagonismo econômico-produtivo” – exercido por uma grande corporação através de seu empreendimento – e, por outro lado, um “protagonismo da governança territorial”, que, para ser legítimo, deveria ser exercido pelo conjunto de agentes presentes/interessados em um determinado território. A percepção de um empreendedor como protagonista da governança acaba transformando-se na percepção do mesmo como fator de “ameaça” ou de uma condição de “dependência extrema”, o que seria nocivo ao processo de governança territorial.

A possibilidade de diálogo e a confiança mútua entre os agentes envolvidos funcionam como questão estratégica em todos os casos analisados. Processos decisórios (ou de negociação) tendem a fracassar como consequência da falta de diálogo ou de um ambiente de confiança mútua entre os agentes envolvidos. Por sua vez, o verdadeiro diálogo não se constrói enquanto o conhecimento sobre os temas em debate não é difundido e acessível a todas as partes. As dificuldades nesse campo estão frequentemente ligadas a dois elementos principais. O primeiro diz respeito à disseminação e ao acesso à informação por parte dos vários agentes. O segundo se refere ao processo de decodificação de tal informação por parte dos agentes a fim de que formem sua opinião e desenvolvam um discurso próprio. A dificuldade de acesso à informação-conhecimento, somada à capacidade diferenciada de decodificá-la, contribui para a ampliação das diferenças em termos de “cotas de poder”, com prejuízos para o processo de diálogo e negociação. Um ambiente de desconfiança e insegurança (pela falta de conhecimento) conspira contra a possibilidade de acordos legítimos e duradouros.

A questão da disseminação da informação-conhecimento continua sendo um desafio – apesar de todos os avanços das redes de comunicação, inclusive das redes sociais. Por outro lado, a criação/fortalecimento de mecanismos do tipo câmaras técnicas, dedicadas ao debate e à preparação de posteriores deliberações por colegiados mais amplos, não é suficiente, caso a composição deles não seja representativa e se seus integrantes não tenham acesso à base de conhecimento necessária para a formação das várias expressões da opinião pública nem a dominem. Esse acesso-domínio não se refere a uma base de conhecimento única e comum, pois isso significaria supor a possibilidade (e conveniência) de abrirmos mão da diversidade de leituras do mundo (experiências, aprendizados, vivências etc.) com que os agentes (ou agrupamentos) enriquecem o processo decisório.

A possibilidade da situação de tutela exercida por agentes externos a um determinado território está sempre presente, sobretudo em tempos de globalização. As decisões e consequentes pressões exercidas por agentes exógenos, cujas lógicas obedecem a objetivos postos em escalas espaciais supralocais, podem se impor e subjugaras iniciativas desenvolvidas pelos agentes endógenos. A fragilidade que ainda caracteriza os espaços institucionais dedicados à governança territorial deriva, em certa medida, da complexidade da negociação em que entram em jogo (e conflito) as expectativas/desejos/necessidades de agentes que operam em escalas espaço-temporais muito distintas. A construção de acordos, confiáveis e duradouros2, que combinem de forma justa interesses nas diferentes escalas representa parte do dilema a ser resolvido: parece ainda cedo para definir se se trata de uma alternativa possível ou de uma utopia inalcançável.

A questão da capacidade de resposta dos governos locais representa um elemento crucial na discussão. Para instrumentar a autonomia e a autodeterminação dos agentes públicos locais, é necessário que estes últimos possam cumprir com dois requisitos principais. O primeiro diz respeito à capacidade de conceber, negociar, executar e avaliar ações locais (setoriais e transversais), e isso se coloca, embora não se esgote, no plano técnico-operativo. A capacidade de resposta está refletida na manutenção de quadros técnicos e outros recursos (materiais, financeiros, de conhecimento etc.) que tornam possível a realização de atividades gerenciais essenciais. Como se sabe, esse aspecto representa um sério problema ou obstáculo para a grande maioria dos municípios brasileiros. O segundo requisito relaciona-se à capacidade de conceber, negociar, executar e avaliar políticas públicas integradas-coordenadas, a qual se coloca, sem ser por ele limitada, no plano político-institucional. Da perspectiva deste trabalho e das experiências analisadas, tal capacidade se reflete na formação/manutenção de fóruns negociais e deliberativos nas esferas local e interfederativa, cujas limitações parecem bastante óbvias.

Um último ponto a destacar diz respeito às dificuldades verificadas no plano da coordenação de fóruns de governança com recortes espaciais e temáticos muito próximos, apresentando-se, por isso, superpostos ou sobrepostos. Não foi possível indicar a ocorrência de conflitos desse tipo; não obstante, a apreciação das experiências selecionadas não evidenciou articulações de cooperação ou coordenação entre os fóruns. Ou seja, se, por um lado, os conflitos não são aparentes, por outro, o ânimo na direção da cooperação-coordenação também não parece estar presente. Prevalece, sim, em muitos momentos, o sentimento de que faz falta um «fórum dos fóruns», um lugar de encontro de governança territorial que envolva os recortes espaciais e temáticos dos três fóruns considerados, os quais,por vezes,se superpõem e/ou se sobrepõem. A ausência desse espaço de coordenação e governança favorece a transformação dos fóruns em “trincheiras”, onde residem (e resistem) agentes que exercitam a defesa de seus interesses, em postura de permanente combate aos “agentes inimigos”, que buscam também alguma espécie de proteção em outros fóruns, transformados nas “trincheiras dos outros”. A ausência de um “fórum dos fóruns” da governança territorial parece se tornar, portanto, em mais um impedimento ao encontro de pautas e energias de interesse comum.

6 Considerações finais

São apresentadas a seguir outras questões, que, conquanto mantenham relações com os resultados e os apontamentos acima listados, se projetam mais longe, no sentido de outros níveis/escalas de consideração. As questões levantadas também apontam para linhas de trabalho que, se aprofundadas, permitirão o esclarecimento mais preciso do papel futuro dos fóruns de governança e do desenvolvimento territorial no país.

Como assinalado, algumas das inovações institucionais registradas nas quatro últimas décadas no campo da descentralização política e da formulação das políticas públicas constituem inegáveis avanços. Contudo, as práticas desenvolvidas a partir dessas “novas” institucionalidades muitas vezes frustram as expectativas nelas depositadas, fazendo com que sejam incluídas no rol das “leis que não colam” ou das “instituições que não funcionam”. Vários agentes, sobretudo aqueles que se ligam a organizações sociais, garantem que alguns dos “novos” direitos, deveres e mecanismos, instituídos desde a década de 1980, não passam de meras formalidades, e, por essa razão, não produzem os efeitos esperados.

Porque as “leis não colam” ou as “instituições não funcionam”? Parte da resposta parece estar ligada ao fato de que novas normas e institutos não se impõem pela simples existência de um diploma legal. Sua aplicação depende do amadurecimento das instituições e das práticas sociais. Não é somente com um texto legal que se constrói o direito; ele é formado também de elementos como os valores sobre os quais se assenta uma sociedade e a jurisprudência que se forma em torno de novos temas e práticas.

Salvo exceções, frequentemente concentradas na região sul do país, as novas institucionalidades resultam de regulações estabelecidas no âmbito nacional, tais como as leis que dispõem sobre unidades de conservação e gestão dos recursos hídricos. O ponto aqui levantado se refere ao fato de o diálogo e a cooperação entre agentes locais nem sempre terem representado o fator determinante da criação de novos arranjos institucionais. Em outras palavras, as raízes das novas institucionalidades não estão necessariamente assentadas na organização e na dinâmica próprias de suas bases sociais. Em várias delas, a composição de colegiados ilegítimos e o precário nível de participação obtido representam sintomas de uma gênese artificial (ou imposta por um modelo genérico), resultante de uma limitada capacidade de negociação sobre acordos legítimos que produzam desenvolvimento territorial.

São frequentes as referências feitas a requisitos para o sucesso das experiências de governança, como a mobilização dos agentes, a definição precisa do foco dos fóruns de governança e as realizações concretas (ditas mobilizadoras). É fato que várias experiências de consórcios intermunicipais indicam que seus resultados dependem não apenas de lideranças comprometidas e habilidosas, mas também da definição precisa de um determinado foco como prioridade de ampla aceitação. Também representou fator de sucesso a materialização de resultados concretos de prazo mais curto, aos quais se seguiram outras iniciativas de mais longa gestação. Todavia, essas constatações não podem ser vistas como “receitas” a seguir, pois tais resultados dependem de condições que não são necessariamente reprodutíveis em qualquer contexto. Lideranças competentes e habilidosas, acordos sobre focos prioritários (ou projetos mobilizadores), assim como a materialização de realizações concretas não são condições reprodutíveis, mesmo que se reproduzam aproximadamente nas mesmas condições.

No caso brasileiro, a elevação dos municípios à condição de ente federativo representa mais um fato a ser discutido, isto porque ela esteve associada a uma expectativa de autonomia financeira, política e administrativa que não se concretizou. As décadas posteriores à promulgação da Constituição de 1988 seguem, como as anteriores, marcadas pela centralização dos poderes e pela competição interfederativa, especialmente no plano dos municípios.

Sem constituir uma condição suficiente, é quase consensual a ideia de que o fortalecimento da capacidade de resposta dos governos (e outros agentes) locais é condição necessária para o amadurecimento das instituições e das práticas sociais a partir de suas bases. Adicione-se que esse fortalecimento não se faz sem a descentralização de poderes/recursos. A mera desconcentração administrativa (entendida como delegação de responsabilidades de “fazer” e não de “decidir”) não basta. A capacidade de formular e negociar políticas públicas fundantes está, no caso dos municípios brasileiros, concentrada em algumas poucas unidades, notadamente naquelas que ocupam as posições de comando das redes de cidades – aspecto que contribui para reforçar um modelo concentrador em todos os níveis e sentidos. Da combinação de baixa capacidade de resposta, baixa permeabilidade do processo decisório local e baixa disposição à cooperação interfederativa, resultam obstáculos à concretização de uma agenda de temas caros à governança territorial, como integração/revisão de planos diretores, leis de zoneamento e outros instrumentos regulatórios. Esses obstáculos acabam por criar outras condições adversas ao estabelecimento de acordos estratégicos em questões territoriais de interesse comum.

Notas

1     Os autores reconhecem e agradecem as contribuições feitas pela geógrafa Lívia Antunes na produção do material incorporado às análises de alguns dos casos de governança territorial aqui retratados.

2     “Acordos” não devem ser confundidos com “consensos”. Para alcançar consensos, seria preciso que alguns agentes fossem capazes de abrir mão, total e definitivamente, de suas crenças para abraçar as de outros.

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