Consensos e dissensos sobre a cidade-dormitório: São Gonçalo (RJ), permanências e avanços na condição periférica


Daniel Pereira Rosa
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana da Universidade de São Paulo (USP).

1. Introdução

Uma análise crítica da realidade urbana dos tempos atuais instiga a tarefa de revisitar a formulação de conceitos quando estes são apropriados por agentes produtores do espaço rotulando determinados recortes espaciais. A urbanização enquanto processo nos fornece elementos comuns aos diferentes recortes, subsidiando uma base conceitual que nos permite enxergar as especificidades de cada fenômeno.

Como exemplo, pode-se utilizar o termo “metrópole” como ponto de partida ao analisar um espaço determinado, sabendo a priori, que o emprego deste termo denota um espaço concentrado, nucleado e que exerce influência econômica, política e administrativa sobre as cidades do seu entorno. 

É a partir deste consenso sobre o termo que as particularidades começam a surgir entre as diferentes “metrópoles”. Sua função, a extensão de sua área de influência, a natureza das relações com seu entorno e sua organização espacial.

Quando este conceito, que é a base comum de um fato urbano, apresenta mudanças, consequentemente as especificidades de cada fenômeno urbano também serão alteradas. É neste sentido que chamaremos atenção neste artigo para um dos grandes temas da metropolização do século XXI, que é a identificação de cidades conhecidas como “dormitório”, termo utilizado por Geiger (1960), Soares (1962) e Ojima (2008) para definir o predomínio de uma função residencial sobre as demais funções urbanas (administrativa, comercial, industrial) de uma cidade.

Tidas como bolsões de mão de obra abundante e pouco qualificada para o núcleo metropolitano, e analisadas à luz da primazia metropolitana, apesar de haver certa clareza do significado do termo “cidade-dormitório”, há hoje mais elementos que flexibilizam, senão o seu significado, ao menos o diagnóstico do que seriam estas cidades. Cidades demograficamente diferentes, com funções diversas e tipologias por vezes antagônicas, são classificadas como cidades-dormitório. 

Utilizando o caso da cidade de São Gonçalo, no estado do Rio de Janeiro, apresentaremos aqui alguns elementos que permeiam este debate, elencando os critérios de classificação e apontando as limitações e avanços no entendimento da periferia metropolitana fluminense, buscando entender a transição de cidade-dormitório para periferia consolidada na Região Metropolitana do Rio de Janeiro.1

2. Os consensos

A noção de cidade-dormitório é entendida na literatura urbana como uma consequência do fenômeno de metropolização, que diz respeito à “hierarquização do espaço a partir da dominação de centros que exercem sua função administrativa, jurídica, fiscal, policial e de gestão” (CARLOS, 2007, p. 35). A concentração espacial de empresas, sedes administrativas, renda e postos de trabalho define a metrópole na medida em que para ela convergem majoritariamente fluxos de mercadorias e pessoas. Esta concentração espacial gera vantagens e diferencia estes espaços daqueles no seu entorno. 

Enquanto a metrópole avança como spot de uma rede de fluxos globalizada, a periferia, em geral, aparece como sua antítese, relegada às limitações da localidade, dependente do centro e de baixa relevância econômica, o que não é um fato novo nas ciências que estudam a cidade. 

No Brasil, a formação metropolitana é simultânea à constituição de áreas periféricas, mostrando que a “periferização” pode ser vista não como antítese, mas como fenômeno complementar à constituição de espaços metropolitanos, um tipo de “efeito colateral” da organização espacial calcada em economias de aglomeração, conforme explicara Correa (2000), ao mostrar que a organização espacial ocorre ou via planejamento territorial ou pela aliança das demandas de grandes corporações capitalistas. Esse consenso tornou aceitável a ideia de que a metropolização viria acompanhada de periferização, que por sua vez seria resultante do descompasso entre o crescimento demográfico e a instalação de infraestrutura urbana básica, como saneamento, calçamento, iluminação e coleta de lixo, por exemplo. Surgiriam então, as “semicolônias da metrópole” (LEFEBVRE, 2004, p. 17), que embora possuam alguma semelhança teórica com os subúrbios analisados pela Escola de Chicago, aqui não tiveram como vetor de expansão as classes médias e o automóvel, conforme explicara Barat (1975) ao analisar o papel do transporte público na conformação da divisão do trabalho da área metropolitana fluminense.

As cidades periféricas assim se formaram a partir do conjunto de carências em relação à economia de aglomeração do núcleo metropolitano. Periferia nesta visão passa a ser sinônimo de pobreza, dados os baixos indicadores socioeconômicos das cidades limítrofes ao núcleo metropolitano. Indicadores estes que eram condicionados pela baixa oferta de empregos qualificados, ausências de saneamento básico e infraestrutura urbana, grande número de moradias inadequadas e um conjunto de equipamentos que reforçam o contraste entre o núcleo e sua periferia.

Chega-se então a outra premissa: bolsões de emprego industrial e na construção civil concentrados na metrópole a partir de iniciativas via planejamento ou via decisão de corporações capitalistas (CORREA, 2000) atraíam um contingente populacional que não conseguia se fixar no núcleo metropolitano, mas não poderia prescindir de estar próximo a ele para ter oportunidades de ser alocado no mercado de trabalho. Disto decorre outro consenso, que é o de classificar partes das periferias da metrópole, como cidades-dormitório considerando como critério o movimento pendular, como fizeram por exemplo Costa (2009), Araújo e Melo (2014) e PMSG (2006).

Temos então a última premissa que é consensual: a ideia de “subúrbio-dormitório” nem sempre se aplica na totalidade espacial do recorte, mas toda cidade classificada como dormitório seria a priori, uma área periférica. 

3. De Manchester Fluminense à cidade-dormitório

Emancipada politicamente da cidade de Niterói em 22 de setembro de 1890, São Gonçalo assemelha-se a outras cidades da metrópole fluminense no que tange à sua ocupação e crescimento. Ocupando a margem oriental da Baía da Guanabara, este município-limítrofe à antiga capital do estado do Rio de Janeiro, tinha na agricultura e, sobretudo na citricultura uma das mais importantes atividades econômicas. 

Com a chegada do desenvolvimento industrial desde os anos 1920, instalam-se indústrias de cerâmicas, metalúrgicas, transformação de pescado e de produtos químicos. Segundo Araújo e Melo (2014), São Gonçalo chega ao início dos anos 1940 “possuindo o 2º maior produto industrial do estado” (p. 70) e alcançando destacada posição no produto e emprego industrial no antigo estado do Rio de Janeiro, tendo em 1940 a terceira maior participação no produto industrial e obtendo o sexto maior percentual de emprego industrial de uma unidade da federação (ARAÚJO; MELO, 2014, pp. 71-72).

Embora com menos estabelecimentos, na década de 1950, a produção industrial de São Gonçalo ultrapassara o valor da capital do estado, como visto na Tabela 1.

Tabela 1 – Dados da produção industrial em 1953

Este período de expansão industrial tem fenômeno correlato na ocupação da cidade, trazendo mão de obra que se expandiu espacialmente de forma horizontal. O crescimento de sua população está ligado a esta fase industrial, mas possui também outras explicações.

O que se vê nas décadas seguintes é um aumento da ocupação horizontal da cidade, identificada pelo parcelamento do solo, criando moradias para os operários fabris e transformação de áreas agrícolas em loteamentos residenciais. 

Estes loteamentos ocorrem com maior intensidade nos anos 1940, 1950 e 1960, fase correspondente à “Manchester Fluminense”, termo cunhado para designar o destaque que a cidade de São Gonçalo obteve em relação ao seu desempenho industrial, conforme relatara Palmier (1940) no cinquentenário da cidade:

O parque industrial de São Gonçalo, considerado o mais importante do Estado do Rio e dos mais notáveis de todo o Brasil, coloca o Município em posição de grande destaque entre as demais regiões industriais do país. Bem merecida é a denominação “Manchester Fluminense” dada à cidade (p. 121).

Seguiu-se então o processo de loteamentos da cidade, paralelo ao período de industrialização, mas não inteiramente explicado por ele, como vemos na Figura 1, que mostra a correspondência entre as manchas de loteamento e o período de maior pujança industrial da cidade nos anos 1940 (bairros Brasilândia, Camarão, Zé Garoto, Parada 40, Porto da Pedra) formando quatro manchas dispersas. Entre os anos 1950 e 1960, vemos cinco manchas de loteamentos, porém de forma contígua (Jardim Catarina, Laranjal, Trindade, Nova Cidade, Mutuá, Recanto das Acácias, Boaçu). A partir daí, segue-se nas duas décadas seguintes novos loteamentos, que declinaram nos anos 1970 (bairros Ipiíba, Jockey, Arrastão, Vila Candoza), chegando a uma marca única de pouca expressão já nos anos 1980 (Maria Paula, Tribobó).

Figura 1 – Loteamentos em São Gonçalo no século XX 

Figura 1 – Loteamentos em São Gonçalo no século XX

Fonte: Technum Consultoria (2008). 

No primeiro ciclo de loteamentos, a população residente era de 89.528, o que mostra a importância da atividade industrial para a cidade, que alcançará no início dos anos 1980 a marca de 614.688 habitantes (IBGE, 1940;1980). 

Quadro 1 – Lotes aprovados por município e década de aprovação

Atentemos para o fato de que o processo de loteamentos é mais intenso em São Gonçalo entre os anos 1940 e 1960 (Quadro 1), período onde, não por acaso, as taxas médias geométricas de crescimento da população residente foram maiores, com 4,06 % de 1940 para 1950, 6,89% de 1950 para 1960, 5,87% de 1960 para 1970, 3,64% de 1970 para 1980, 2,18% de 1980 para 1991 e 1,48% de 1991 para 2000, permitindo-nos afirmar que, ao contrário do senso comum entre os moradores da cidade, o maior período de crescimento não corresponde à institucionalização da região metropolitana e sua ligação rodoviária com o núcleo metropolitano,2 mas sim aos períodos onde a função industrial possui proeminência no âmbito estadual.

O maior crescimento proporcional de residentes em São Gonçalo está entre os anos 1950 e 1960, o que desmistifica, por exemplo, a ideia de que foram a fusão do estado da Guanabara ao estado do Rio de Janeiro, a inauguração da ligação rodoviária entre as cidades do Rio de Janeiro e Niterói e a própria expansão da metrópole os únicos responsáveis pela conformação de uma cidade-dormitório.

Outra observação é de que a taxa declinante indica o maior adensamento urbano da cidade, que se consolida como uma grande cidade periférica para residentes que buscam viver fora do núcleo, por pressão dos preços ou por opção.

A relação entre loteamentos e crescimento populacional mostra a importância da fase “Manchester Fluminense” para a ocupação da cidade, mas não explica o contínuo fluxo de migrantes para esta cidade.

Simões (2006) discorre sobre “uma cidade externa emergente com seu próprio centro comercial, circundado por uma área residencial de elite e que teria na sua periferia um distrito industrial cercado por uma área residencial de trabalhadores” (p. 191) usando o eixo Niterói-São Gonçalo para exemplificar este modelo.

No bojo de uma relação centro-periferia dicotomizada, são de fato, o declínio da atividade industrial e questões ligadas ao planejamento territorial que conformam a noção de cidade-dormitório tomada pelo imaginário da cidade a partir dos anos 1970.

Os estudos urbanos no Rio de Janeiro tratavam da evolução e caracterização de áreas, mas é só na esteira da geografia crítica que a economia política passa a ser incorporada, trazendo as contradições do fenômeno metropolitano para o centro do debate urbano.

A noção de periferia enquanto distância, influenciada pelos estudos da Escola de Chicago, identifica um efeito declinante da distância do central business district em relação ao desenvolvimento socioeconômico, conforme mostrara Correa (2000); mas a cidade-dormitório existe de forma simultânea, como teoria e como materialidade. Lago (2010) afirma que

[…] a noção de “periferia” construída nos anos 70 nos marcos da sociologia urbana marxista e incorporada em seguida ao senso comum, qualifica um determinado território na metrópole pelo conjunto de carências ali observadas e não encontrado em outro lugar (p. 175).

Embora a periferia seja, de fato, um espaço identificado a partir de uma distância do centro/núcleo, no caso de a cidade periférica entender que a periferia para além da hierarquia é uma condição, pressupõe um avanço no entendimento da cidade-dormitório (ROSA, 2010). No caso de São Gonçalo, a condição periférica se funde à noção de cidade-dormitório, quando o emprego industrial declina a partir dos anos 1970. 

Assim, a cidade-dormitório “surgiu como síntese dessas carências e das enormes distâncias a serem percorridas diariamente, entre o lugar da moradia e o do trabalho” (LAGO, 2010, p. 175).

Há uma conformidade entre o declínio industrial e a afirmação de Correa (2000), que se referindo à seletividade dos fatores de aglomeração, mostra que 

[...] isto acontece quer através da ação coordenadora e repressora do Estado via planejamento territorial, quer através da aliança de interesses das grandes corporações capitalistas, que são capazes de organizar o espaço, ao menos parcialmente, segundo seus interesses (p. 34).

Este parece ter sido o caso de São Gonçalo. Infere-se então que a cidade-dormitório é o período onde 

Em um contexto de ação deliberada do Estado brasileiro para promover a industrialização, a escolha dos municípios que abrigariam as plantas industriais resultantes dos esforços estatais foi determinante para traçar o novo vetor de desenvolvimento industrial fluminense. São Gonçalo ficou fora desta escolha (ARAUJO; MELO, 2014, p. 75).

De fato, há uma mudança na leitura do espaço urbano, que compele a perceber as contradições da cidade. Neste contexto, o espaço periférico passa a ser concebido a partir de seus problemas socioespaciais, como explicara Abreu (2012), identificando que é a partir dos anos 1970 que emergem “novas proposições teó­ricas sobre as cidades” (p. 51), que parcialmente influenciadas pelo pensamento marxista, contribuem para que o espaço seja analisado como um ente que, tanto condiciona as relações de reprodução, como também reage a elas.

Surge então um conceito de periferia que para além da distância é mais pautado na relação de pobreza e de carências de infraestrutura urbana. Neste sentido, mesmo considerando que a pobreza é mais do que o poder de consumo (SANTOS, 1978) e que indicadores de pobreza devem levar também em consideração aspectos regionais (MONTENEGRO, 2014), as noções de pobreza e periferia passaram a figurar uma espécie de campo semântico da urbanização.

A convergência de baixos indicadores sociais, carências de infraestrutura urbana, imobilidade social e queda no emprego industrial se enquadram no processo de periferização, mas neste caso em particular, foram tomadas também para identificar a cidade-dormitório.

É assim que Mendonça (2007) identifica um esvaziamento econômico, a predominância do setor de serviços, além da ausência de investimento por partes de indústrias multinacionais como fatores que tornam São Gonçalo uma cidade-dormitório, o que podemos ver também em fala da consultoria contratada para fazer o estudo diagnóstico da cidade, cujo relatório concluíra que “com uma grande população de baixa renda, São Gonçalo parece uma cidade inacabada. Em decorrência do alto grau de pobreza, o processo de ‘autoconstrução’ das moradias é o mais utilizado” (TECHNUM, 2008, p. 36).

Para Ojima (2010), seria possível, portanto, identificar as “cidades que poderiam ser consideradas como ‘dormitório’ a partir de um critério elementar que caracterizaria uma situação típica: uma elevada proporção de pessoas que não trabalham no município onde residem” (p. 400), o que se aplicara à São Gonçalo do último quartel do século XX, uma vez que, em 1980, 49,6% de sua população ocupada trabalhava no próprio município de residência. 

Reconstruindo este quadro, mostramos a convergência de elementos que deram a São Gonçalo o título de cidade-dormitório: o grande movimento pendular, uma suposta homogeneidade da pobreza, o fato de sua centralidade (CHRISTALLER, 1966) não subordinar outras cidades (IBGE, 1993), a transição da função majoritariamente industrial para uma função mista com predomínio das funções residenciais e de serviços e as carências de infraestrutura urbana.

4. Transições e aspectos atuais da periferia metropolitana

Temos visto que a cidade-dormitório é uma sobreposição entre a periferia metropolitana e os indicadores que reforçam o predomínio da função residencial, separando estas áreas da oferta de emprego, sobretudo os de maior qualificação. É neste sentido que São Gonçalo tem sido marcada como exemplo de cidade-dormitório, utilizando como referência a quantidade de pessoas que estudam e/ou trabalham fora do município de residência.

Apesar da Região Metropolitana do Rio de Janeiro ser a de maior concentração populacional e de Produto Interno Bruto (PIB) entre as regiões metropolitanas brasileiras, é possível fazer outras inferências para além do modelo dicotômico de núcleo rico/periferia pobre. A ideia de uma periferia integrada, em oposição a uma periferia “au service du centre” é debatida por Reinaud (1981, p. 64), cujo esforço foi demonstrar que, apesar da manutenção da concentração populacional e das economias de aglomeração no núcleo metropolitano, a periferia tenderia a ser mais heterogênea, com parte dela tendendo a uma relação mais de complementaridade do que essencialmente de dependência.

Abreu (1987) incorporou esta visão, sem negar a concentração metropolitana, mas admitindo simultaneamente a existência de uma “periferia intermediária”, exemplificando as cidades de São Gonçalo, Niterói, Nova Iguaçu e Duque de Caxias como exemplos dessa periferia. Este recorte sobrepõe-se também à noção de periferia consolidada, utilizada por Lago (2010) e Silva (2010), para identificar diferenças entre os municípios periféricos na região metropolitana fluminense.

Elencando as três grandes cidades periféricas (Nova Iguaçu, Duque de Caxias e São Gonçalo), notamos que apenas esta última mantém o tratamento como cidade-dormitório. Nossa investigação entende que isto ocorre não pela ausência de moradores de classes médias na cidade (embora estas, também migrem para os bairros da zona sul de Niterói), mas pelo fato de São Gonçalo não possuir um bairro que concentre classes médias, à exemplo do bairro K11 de Nova Iguaçu (SIMÕES, 2006) e do bairro Vinte e cinco de Agosto em Duque de Caxias, bairros de cidades periféricas que se encaixam nesse segmento.

No caso de São Gonçalo, pode-se observar uma diferenciação interna que acompanha as tendências para o conjunto da periferia metropolitana e as grandes periferias que lhe são semelhantes, como mostra o gráfico abaixo, referente ao ano de 1980.

Gráfico 1 – Residentes por intervalos de salários mínimos em São Gonçalo (1980)

O percentual de indivíduos com ¼ de salário mínimo3 é de 2,36%. A tese de que a cidade seria majoritariamente abrigo de trabalhadores pobres é suplantada quando confrontada com os dados que mostram a diferenciação interna. Os menores percentuais ficam, a exemplo do conjunto metropolitano, com os extremos. A maior massa de residentes encontra-se na faixa entre 1 a 1,5 salários mínimos (SM).

Apesar do percentual reduzido, esperado em um contexto de concentração da renda dada a reprodução capitalista do espaço urbano, nas faixas de maior renda não se pode ocultar o fato de que a periferia também abrigara residentes dos três maiores extratos. 

Nestes três últimos estratos, 7,14% dos ocupados que tiveram renda aferida situam-se entre 5 e 10 SM. Acima de 10 a 20 SM a cidade tinha 1,35% de residentes e, ao contrário do que diz o senso comum, a cidade possuía residentes na faixa acima dos 20 SM.

É de sumária importância notar que, em relação aos dois últimos estratos de renda, São Gonçalo apresentava um percentual ligeiramente maior do que as outras duas grandes periferias. Na faixa entre 10 e 20 salários mínimos, em 1980, Nova Iguaçu e Duque de Caxias apresentavam respectivamente, 0,94% e 1,02% de residentes. 

Em relação aos residentes com renda a partir de 20 SM, os percentuais também são bem próximos, com 0,20% para Duque de Caxias, 0,25% para Nova Iguaçu e 0,23% para São Gonçalo.

Estes dados vão de encontro ao levantamento feito por Furlanetto et al. (1987), que identificaram nos anos 1980 o “surgimento de uma classe média oriunda da própria população moradora da periferia, que alcançou maiores rendimentos em função do crescimento das atividades industriais, comerciais e de serviços” (p. 27). O que compeliu os autores a dedicar um trabalho voltado para a análise da existência de residências de classe média nas grandes cidades da periferia metropolitana.4

Outra observação é que entre os municípios periféricos, São Gonçalo aparece atualmente ranqueado na terceira colocação, considerando-se a participação do setor de serviços no valor adicionado ao PIB, apresentando a mesma colocação, considerando-se o peso da atividade industrial. Este desempenho mostra que no ano de 2013 São Gonçalo aparece no ranking das 50 cidades que mais geraram postos de trabalho (4.556), sendo superado na sua unidade da Federação, respectivamente por Rio de Janeiro (48.974), Niterói (5.025) e Nova Iguaçu (4.839) no âmbito metropolitano.

Freire e Freire (2003) citavam, já no início dos anos 2000, uma recuperação econômica de São Gonçalo, com criação de 89.000 postos de trabalho no mesmo ano. Neste trabalho, as autoras relacionam que as atividades industriais que mais empregam no município são de “confecção de alimentos, químico-farmacêutica, de artigos de plástico, de minerais não metálicos (brido e olaria), de metalurgia, de papel e de instrumentos médicos e de precisão” (p. 352), destacando a “consolidação de um importante polo de confecção, revitalização de antigas indústrias em setores tradicionais, polo químico-farmacêutico e de equipamentos médicos” (idem).

Isto corrobora a questão levantada por Lago (2010) sobre uma mudança na divisão territorial do trabalho na metrópole fluminense. Segundo a autora, “houve uma redução da mobilidade casa-trabalho de longa distância para os moradores da periferia levando a crer que o mercado de trabalho não só se expandiu nessas áreas, mas absorveu parte da mão de obra local” (p. 175). 

A ideia de periferia integrada nos parece mais coerente com a mudança na estrutura do emprego na região metropolitana, o que tem refletido nos deslocamentos pendulares da periferia de urbanização mais consolidada. Lago (2010) já mostrara que “em grande parte dos municípios mais de 25% dos trabalhadores que, em 2000, saíam de seu município para trabalhar tinham como destino outros municípios periféricos, principalmente Nova Iguaçu, Caxias e São Gonçalo” (p. 188). Esta ideia é ratificada por Silva (2013) em sua assertiva de que 

[...] há uma diversificação (social, econômica, espacial) especialmente nessas áreas mais consolidadas da periferia que se tornam também lugar de trabalho, pois passam por maior inserção da população no mercado de trabalho local, especialmente em ocupações do terciário especializado e não especializado juntos somam 44% dos que residem e trabalham no município (p. 369).

 A novidade neste caso, seria a redução nos deslocamentos núcleo-periferia e o aumento dos deslocamentos periferia-periferia, mostrando um maior poder de retenção de mão de obra local e a expansão das centralidades periféricas.

A redução dos deslocamentos periferia-núcleo, também apontada por Mello (2013), mostra que existem centralidades fora da metrópole que anulam a leitura de que algumas cidades, a exemplo de São Gonçalo, seriam cidades-dormitório por possuírem predominantemente a função residencial.

5. Considerações finais

A priori, há outros indicadores para relativizar o consenso de que a periferia metropolitana é essencialmente um espaço dependente da economia urbana do núcleo metropolitano. Flexibilizar a estrutura da metrópole não significa inverter a primazia do núcleo metropolitano, mas admitir que a periferia não é um espaço de pobreza homogênea. A passagem de uma cidade-dormitório para uma posição de maior integração com a economia metropolitana pode ser um processo em curso.

Há elementos além dos listados neste artigo que podemos considerar em investigações futuras. Silveira (2009) já alertara para a expansão do crédito também para as periferias, incluindo estes espaços de forma mais dinâmica na economia urbana, aumentando o consumo e o trabalho seja pelas atividades do circuito inferior e pela chegada de atividades do terciário superior (TOMELIN, 1988) nas cidades periféricas, ou pelo aumento da importância das centralidades.

São Gonçalo obteve um Índice de Desenvolvimento Humano5 acima da média nacional e acompanha o crescimento em sua unidade da federação. O dado precisa ser mais bem analisado em trabalhos posteriores, mas, em princípio, desmistifica a ideia de que há uma homogeneização da pobreza na cidade.

O mesmo acontece com a relação entre cidade e movimento pendular. Apesar de São Gonçalo ser uma das cidades com maior índice de deslocamento pendular, o dado deve ser lido com razão de proporcionalidade. Entre as cidades que não são capitais, São Gonçalo figura como a 16a mais populosa, tendo atual­mente, 1.031.903 habitantes. Com 215.446 pessoas trabalhando e estudando fora do próprio município (IBGE, 2010), o número absoluto é alto apenas sem levar em conta a população da segunda cidade mais populosa de sua unidade da Federação.

A questão dos Arranjos Populacionais (IBGE, 2015), a priori também reforça a hipótese de que a periferia metropolitana diminui os fluxos do sentido periferia-núcleo. O maior deslocamento absoluto no estado do Rio de Janeiro é entre São Gonçalo e Niterói, mas o dado parece subanalisado se não consideramos, por exemplo, que parte do deslocamento São Gonçalo-Rio de Janeiro passa obrigatoriamente pela cidade de Niterói, a antiga capital do estado do Rio de Janeiro cujos equipamentos urbanos ainda concentram a distribuição das linhas de ônibus do seu entorno.

Por fim, estas considerações mostram que durante um período de sua história, São Gonçalo constituiu-se como cidade-dormitório ao ser preterida na distribuição territorial das atividades industriais. Mas seu desempenho nos indicadores econômicos e sociais nos instigam a investigar mais detalhadamente o peso que o nome cidade-dormitório tem para essa cidade, visto que em princípio, ao compor a periferia integrada, com os quatro municípios periféricos que se destacam na região metropolitana fluminense, classificá-la ainda no século XXI, como cidade-dormitório é deveras questionável. Nossa tarefa continuará sendo a de reunir mais indicadores para entender a composição atual da periferia metropolitana de modo a redefinir a posição desta cidade na periferia metropolitana e mostrar empiricamente por quê o conceito de cidade-dormitório nos parece inadequado em relação à cidade de São Gonçalo, na medida que a cidade atual caminha para maior heterogeneidade e a própria periferização não é um fenômeno urbano antitético à metrópole, mas sim, complementar a esta.

Notas

1 A Região Metropolitana do Rio de Janeiro foi instituída pela Lei Complementar nº 20, de 1º de julho de 1974. Atualmente, é composta pelos municípios de Rio de Janeiro, Belford Roxo, Duque de Caxias, Guapimirim, Itaboraí, Japeri, Magé, Maricá, Mesquita, Nilópolis, Niterói, Nova Iguaçu, Paracambi, São Gonçalo, São João de Meriti, Seropédica, Tanguá, Itaguaí, Rio Bonito e Cachoeiras de Macacu.

2 Ponte Presidente Costa e Silva, que passou a ligar as cidades de Niterói e Rio de Janeiro a partir de 1974.

3 Considera-se o salário mínimo de agosto de 1980, que era de CR$ 4.149,60.

4 O estudo citado identifica o fenômeno urbano em São Gonçalo, Duque de Caxias e Nova Iguaçu.

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