Desenvolvimento e sustentabilidade nos projetos de transposição e revitalização do Rio São Francisco: a institucionalização da questão ambiental via modernização ecológica


José Irivaldo Silva
Professor do Centro de Desenvolvimento Sustentável do Semiárido (CDSA) da Universidade Federal de Campina Grande

Luis Hermínio Cunha
Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPGCS) da UFCG

1     Introdução
A problemática ambiental tem sido incorporada diferencialmente em diversas políticas públicas no Brasil, indo de ações diretas de proteção da natureza (criação de unidades de conservação, combate à desertificação, dentre outras) até iniciativas que buscam promover/induzir o desenvolvimento. A pesquisa sociológica vem interessando-se crescentemente pelas formas discursivas e práticas que produzem arranjos destinados à institucionalizar as preocupações ambientais do Estado, cujos resultados são escolhas políticas tomadas a partir de um referencial “ecologizado”. 
A problemática ambiental ganha relevância como questão social num quadro marcado por: 
a)     crescimento da importância institucional do meio ambiente entre os anos de 1970 e o final do século XX; 
b)     recrudescimento dos conflitos referentes ao acesso e uso de recursos naturais e de seus efeitos na adoção de novas práticas de gestão ambiental; e 
c)     centralidade da questão ambiental como nova frente de legitimidade e de argumentação nos conflitos sociais (LOPES, 2006). Nesse contexto, a proteção da natureza emerge como um dos principais norteadores de códigos de conduta individual e coletiva, associados à defesa crescente da necessidade de participação da sociedade civil na formulação de políticas públicas e em ações de monitoramento da ação do poder público (FERREIRA, 2000).
A partir da década de 1970, no mundo e também no Brasil, começam a ser traçadas as linhas do debate ambiental contemporâneo, com forte questionamente da compreensão do desenvolvimento como crescimento econômico (DUPUY, 1980). Depois, na década de 1990, passa-se a um movimento de conciliação entre desenvolvimento econômico e preservação ambiental (LEIS, 1999). No Brasil, a instituicionalização da questão ambiental recebe destaque no final da década de 1980, com a promulgação da Constituição de 1988 e os preparativos para a realização, no Rio de Janeiro, da Conferência da ONU sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Eco-92). O avanço desse processo de institucionalização é impulsionado pela crescente atuação dos movimentos ambientalistas na esfera local (FERREIRA, 2003). 
Tem-se, assim, um processo de “ecologização de projetos estatais”, com a criação de arranjos que orientam a institucionalização da questão ambiental no Brasil, como a incorporação de preocupações ambientais em megaprojetos de infraestrutura. Um quadro normativo complexo é então constituído, envolvendo normas jurídicas e políticas ambientais com vistas ao estabelecimento de uma estratégia racional de gestão ambiental, a qual tem como implicação a organização de modelos de reordenamento espacial e de novas formas de regulação do uso e acesso aos recursos naturais. 
Este artigo discute as orientações gerais da institucionalização da questão ambiental em megaprojetos de infraestrutura no Brasil, considerando o intenso debate público relativo aos potenciais impactos ambientais e sociais dessas grandes obras, marcado pelas denúncias dos movimentos sociais das contradições entre desenvolvimento, conservação da natureza e modos de vida tradicionais. São tomados como objetos empíricos de investigação o Projeto de Integração do Rio São Francisco com Bacias do Nordeste Setentrional (PISF) e o Programa de Revitalização da Bacia Hidrográfica do São Francisco (PRSF). 
As obras de transposição do Rio São Francisco encontram-se entre os principais megaprojetos em curso no país, sendo o maior projeto de infraestrutura proposto pelo poder público para o semiárido brasileiro, comparando-se ao da hidrelétrica de Belo Monte em termos de controvérsias e mobilização contrária à sua execução, principalmente em torno da temática ambiental. A transposição é também defendida no quadro do debate sobre os incentivos ao desenvolvimento regional. 
O trabalho tem como foco a análise de documentos oficiais que revelam a institucionalização da questão ambiental no PISF e no PRSF, dentre os quais: o Relatório de Impacto Ambiental (RIMA), uma vez que se trata de uma peça que fundamenta a autorização da obra pelo órgão ambiental e de um estudo sobre a viabilidade e compensações necessárias quando da execução do PISF; os documentos relativos ao Programa de Revitalização do Rio São Francisco1 e os programas que compõem o Projeto Básico Ambiental (PBA); o Relatório Final de Acompanhamento do Projeto de Revitalização do São Francisco, do Senado Federal, em que a preocupação com a dimensão política do processo de recuperação ambiental do manancial é ressaltada; o documento legal que institui a Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH); o Plano Regional de Desenvolvimento do Nordeste; o Plano Decenal da Bacia do São Francisco; documento que institui o Programa de Desenvolvimento Integrado Sustentável do Semiárido – CONVIVER; e a Licença Ambiental e o Parecer do IBAMA sobre a análise do Estudo de Impacto Ambiental/RIMA do Projeto de Integração. 
A partir da análise de tal material empírico, conclui-se que a incorporação de preocupações ambientais em megraprojetos de infraestrutura no Brasil segue as diretrizes da modernização ecológica. Com origem na Alemanha e em outros países do norte da Europa, na década de 1980, a abordagem da modernização ecológica influencia diretamente políticas ambientais em países como Holanda, Alemanha, tendo como ideiais centrais: planejamento, racionalização e gerenciamento das questões ambientais. 
Não se trata de defender a tese de que a modernização ecológica influencia, diretamente, a institucionalização da questão ambiental no Brasil. O que se defende aqui é que a incorporação de preocupações ambientais em projetos e ações do poder público no país devem ser lidas como esforços de modernização ecológica, operando, ao mesmo tempo, uma crítica tanto dessa abordagem teórico-normativa quanto das escolhas políticas feitas por diferentes instâncias governamentais nas últimas décadas em resposta às pressões dos movimentos ambientalistas e da sociedade civil. Dizer que a institucionalização da problemática ambiental no Brasil se aproxima das premissas da modernização ecológica significa apreender um modo específico de pensar a ação do Estado quanto às questões ambientais e à formulação de modelos de desenvolvimento sustentável. 

2     O projeto de transposição 
Propostas de transposição do Rio São Francisco2 já haviam sido debatidas ainda no final do século XIX, em virtude das grandes secas vivenciadas na região. Segundo Andrade (2002), duas outras tentativas de transposição aconteceram nos períodos de 1982-1985 e 1993-1994, abortadas pela Companhia Hidroelétrica do São Francisco (CHESF), uma vez que, como um dos empecilhos para a realização da obra, haveria a retirada excessiva de água do rio (algo entre 300 m3 e 500 m3 por segundo).
Em 1996, formou-se um grupo de trabalho (ANDRADE, 2002) na Câmara dos Deputados para retomar os estudos acerca da transposição, liderado pelo Deputado Federal paraibano Marcondes Gadelha, que, originalmente, propunha a imediata transposição, juntamente da transferência de águas do rio do Sono, em Tocantins, caso a transposição incluísse também o Piauí, como compensação, bem como previa-se a venda da CHESF como forma de sustentar financeiramente o empreendimento. À época, a defesa fervorosa do parlamentar paraibano era no sentido de que o gasto com a transposição se justificava pelo alto volume de recursos federais gastos para amenizar os efeitos da seca (ANDRADE, 2002). Podemos dizer que uma forte marca desse projeto foi seu “caráter salvacionista”.
O projeto foi retomado na década de 1990, reiniciando-se no âmbito do poder executivo no governo de Fernando Henrique Cardoso, no contexto da promulgação da Política Nacional de Recursos Hídricos. Foram estruturados órgãos responsáveis pela gestão dessa política, baseados na lógica de compartilhamento decisório entre governos e sociedade civil (LIMA, 2009). Segundo Lima (2009), o processo de transposição estava previsto nos programas de governo dos três principais candidatos nas eleições de 2002 (Luís Inácio Lula da Silva, José Serra e Ciro Gomes). No campo do discurso político, parecia uma medida consensual. Os opositores ao projeto lançaram argumentos fundados principalmente na questão ambiental como chave para a compreensão dos supostos danos e conflitos (ACSELRAD, 2004) que esse megaprojeto pode trazer ao meio ambiente, prejudicando o rio e aqueles que dele necessitam para viver e reproduzir seu modo de vida. Na verdade, os defensores da transposição também incorporaram elementos ambientalizados em seus discursos, na medida em que defendiam a possibilidade de conciliar desenvolvimento econômico e proteção da natureza.
Em junho de 2003, foi constituído um Grupo de Trabalho Interministerial, coordenado pela Vice-Presidência da República, o qual deu origem ao Plano São Francisco, composto pelos seguintes programas, projetos e ações: Programa de Revitalização da Bacia do Rio São Francisco – PRSF; Projetos de Integração de Bacias Hidrográficas – PIBH; Projetos de Armazenamento e Distribuição de Águas – PROAD; ações localizadas de infraestrutura hídrica; ações na área de gestão dos recursos hídricos. A revitalização não estava prevista no projeto original de transposição; ela foi instituída em 2001, via um decreto assinado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso3. 
A execução do projeto de transposição encontra-se na área do Polígono das Secas, sendo que o Nordeste Setentrional (parte do Semiárido ao norte do Rio São Francisco) é a área que, conforme o projeto, mais sofre os efeitos das secas prolongadas – estas atingem, parcialmente, os Estados de Pernambuco, Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte. 
No Relatório de Impacto Ambiental (RIMA) de 2004, o projeto é intitulado “Projeto de Integração do Rio São Francisco com Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional” e considerado oficialmente como projeto de infraestrutura hídrica. As obras incluem dois sistemas independentes, compostos por dois eixos, norte e leste, que captarão água no Rio São Francisco entre as barragens de Sobradinho e Itaparica, em Pernambuco. O projeto também prevê canais, estações de bombeamento de água, pequenos reservatórios e usinas hidrelétricas para auto-suprimento. Esses sistemas atenderão às necessidades de abastecimento de municípios do semiárido, do agreste pernambucano e da região metropolitana de Fortaleza. O RIMA descreve a finalidade da obra e alguns de seus detalhes técnicos da seguinte forma:

Para beneficiar a região mais seca do País, a captação de água do São Francisco será de cerca de 3,5% da vazão disponível. Em outras palavras, dos 1.850 m3/s de água do rio São Francisco, 63,5% m3/s serão retirados. Desse volume, 42,4 m3/s serão destinados às bacias do Jaguaribe, Apodi, Piranhas-Açu e Paraíba, e 21,1 m3/s, ao Estado de Pernambuco, que compartilha a bacia do São Francisco (BRASIL, 2004, p. 2).

De acordo com o discurso oficial, os objetivos do projeto de transposição do Rio São Francisco são os seguintes: “aumentar a oferta de água” (para quem e para quê?)4, “garanti[r] [...] atendimento ao semiárido”; “fornecer água de forma complementar para açudes da região” (quem são os donos? quem controlará a gestão?), viabilizando, assim, a melhor gestão da água (para quem?); e “reduzir as diferenças regionais causadas pela oferta desigual da água entre bacias e populações”. Compromete-se a resolver o problema de 12 milhões de pessoas (RIMA, 2004). A tônica do RIMA (incorporada pelos agentes públicos, principalmente o executor da obra, o Ministério da Integração Nacional – MIN) foi a de apresentar uma lógica do “benefício que suplanta os danos e conflitos” causados pela transposição. Nesse entendimento, os impactos, é certo, existem, porém é possível mitigar seus efeitos por meio de soluções modernas. 
Quando se analisa o RIMA isoladamente, pode-se incorrer no equívoco de simplificar a abrangência dos efeitos da obra. É preciso ter um olhar mais holístico e, ao mesmo tempo, analítico para perceber que existe uma distância entre o que o governo apresenta como sendo a finalidade do PISF e o que verdadeiramente é proposto. Por exemplo, ao se verificar o que está exposto no Plano Estratégico de Desenvolvimento Sustentável do Semiárido (PDSA) (BRASIL, 2005), no Programa de Desenvolvimento Integrado e Sustentável do Semiárido (BRASIL, 2009) e/ou no Plano Regional de Desenvolvimento do Nordeste (BRASIL, 2011), chega-se à conclusão de que o PISF, em conjunto com o PRSF, é uma estratégia de “uso racional dos recursos”, inserida numa perspectiva modernizante (GIDDENS, 1991; BECK, 2010), com vistas a alimentar a expansão da lógica de desenvolvimento econômico vigente baseada na expansão dos mercados emergentes.

3     Plano Básico Ambiental e ações de revitalização: dinâmicas de
     incorporação da questão ambiental em megaprojetos hídricos
A dinâmica de incorporação da questão ambiental nas obras de transposição do São Francisco pode ser dividida em dois conjuntos de ações: o Plano Básico Ambiental do PISF e o Programa de Revitalização do São Francisco.
    
3.1     Plano Básico Ambiental

Inicialmente, a questão ambiental foi inserida, conforme Andrade (2002), com graves omissões no processo de transposição. O consórcio Jaakko Poyry-Tahal foi responsável pelo primeiro estudo governamental acerca dos impactos socioambientais da obra de transposição do São Francisco na década de 1990. Entretanto, a consultoria realizou um estudo incompleto que, no fim, ocultou seus impactos socioambientais, considerando, como exemplo para o caso brasileiro, a experiência acumulada em obras similiares realizadas em outros países. 
No PISF, as ações ambientais – a serem realizadas paralelamente às obras civis – conformam 38 programas que fazem parte do Plano (ou projeto) Básico Ambiental (PBA) e medidas mitigadoras dos impactos sociais e ambientais oriundos da execução da obra de transposição. Para subsidiar a etapa de LI (Licença de Instalação), o empreendedor elabora o Plano Básico Ambiental (PBA) que detalha as ações necessárias para a minimização dos impactos negativos e maximização dos impactos positivos, identificados durante a elaboração do EIA (Estudo de Impacto Ambiental)5. O PBA faz parte do processo administrativo de licenciamento de obras que tenham impacto no meio ambiente. 
Dessa forma, os PBAs são agrupados segundo sua finalidade. O PROGRAMA DE APOIO À OBRA concede a estrutura necessária para desenvolvimento das atividades da obra, disseminando entre os trabalhadores instrumentos que visam a torná-la ambientalmente correta. Esse conjunto de ações deve cuidar para que a construção transcorra respeitando a natureza, de modo que o próprio fazer da obra seja ambientalmente correto. O PROGRAMA COMPENSATÓRIO é formado por projetos que têm como escopo a recomposição dos prejuízos, realizando atividades de reconstituição da fauna e da flora e beneficiando as comunidades impactadas. O PROGRAMA DE CONTROLE E MONITORAMENTO é formado por um conjunto de projetos que possui em sua essência a necessidade de acompanhar mais detalhadamente os resultados dos trabalhos em execução e de exercer a regulação de fatores diversos a eles relacionados (RIMA, 2009; BRASIL, 2009).
No RIMA, as bases para o plano básico ambiental e para a revitalização foram estabelecidas de forma genérica, sem apontar especificamente o que será realizado (BRASIL, 2004, p. 19). Mesmo assim, segundo esse documento, a revitalização deve ser considerada de modo amplo: recuperação ambiental de áreas degradadas, ao longo da bacia do São Francisco (vide nota 6); preservação de ecossistemas relevantes e pouco degradados da bacia; promoção do desenvolvimento sociocultural das populações que aí vivem, baseada essencialmente em ações de conscientização, na linha da educação ambiental; indenização de desapropriações e incentivos diversos, no âmbito dos programas governamentais, às comunidades atingidas pela obra, o que parece funcionar como desmobilizador de resistências ao projeto. 

3.2     Revitalização

Revitalização assume um sentido de renovação, recuperação, higienização, com um porém: ela implica a expulsão (às vezes, violenta) de uma parcela das pessoas que vivem nas áreas que serão revitalizadas, no chamado processo de “gentrificação”, o qual é traduzido como uma resposta específica a uma conjuntura histórica de desindustrialização, degradação e consequente desinvestimento urbano (TURRADO, 2012; HIRATA, 2010). Segundo Ferreira (2012, p. 24), esse significado de revitalização [...] liga-se a um processo de indução de grande transformação das áreas históricas centrais em que a recuperação econômica é o objetivo principal. Ao que parece, a revitalização associa-se à ideia de “melhoria das condições de vida” e “retorno à vida”; tudo se passa como se, anteriormente, as ações fossem realizadas em um contexto em que não houvesse vida ou, pelo menos, em que não tivesse a vida necessária ao desenvolvimento econômico (HIRATA, 2012). Com isso, procura-se produzir um significado positivo para o processo de mudança e recuperação. 
No caso do São Francisco, a revitalização foi uma das formas de incorporação da questão ambiental às obras de transposição e seu significado remete àqueles adotados em obras de planejamento urbano. Por exemplo, a concepção de revitalização institucionalizada no PRSF, sob responsabilidade do Ministério do Meio Ambiente, relaciona-se com os temas da despoluição, da conservação dos solos, da convivência com a seca, do reflorestamento e da recomposição de matas ciliares, da gestão e monitoramento, da gestão integrada dos resíduos sólidos, da educação ambiental e criação e, por fim, da gestão de unidades de conservação e preservação da biodiversidade (BRASIL, 2001). 
É importante frisar que a revitalização, apesar de uma conceituação generalizante, é encarada de forma diferenciada pelos agentes envolvidos na questão do São Francisco, o que pode ser visto nos discursos de lideranças, como Dom Cappio6 (BATISTA JÚNIOR, 2006), e dos planos, planejamentos e ações do governo (BRASIL, 2004, 2006, 2009; COELHO, 2005). Dom Cappio põe em evidência, por um lado, as diferenças e os conflitos existentes nas proximidades do rio, como a destruição do manancial, dos seus peixes e a miséria dos ribeirinhos. Por outro, o governo apresenta a solução, isto é, a possibilidade de recuperar, recompor e renovar, sem abrir mão, no entanto, de um projeto que supostamente trará desenvolvimento econômico e modernização para a região semiárida nordestina: esta, por meio da irrigação, do agronegócio, da navegação, do abastecimento de cidades de médio e grande porte, com o qual não faltará água para o processo de industrialização, estará livre do atraso. 
Veem-se, a partir dos elementos supracitados, duas noções de revitalização: uma “revitalização ecológica”, voltada para a recuperação do rio e manutenção da dinâmica de subsistência, e uma “revitalização econômica”, em que estão implicados um conjunto de ações de renovação do rio, pelo qual se pode efetuar um manejo e uso racional de seus recursos. 
A visão oficial do governo está ligada às contradições da política ambiental brasileira. Alguns atores enxergam o meio ambiente como obstáculo ao desenvolvimento, mas, ao mesmo tempo, buscam incorporar um discurso ambiental modernizador, o qual se aproxima do modelo de modernização ecológica (SILVA, 2014). Na perspectiva deste, são enfatizadas as mudanças institucionais necessárias nos países industrializados do Ocidente para superar a crise ecológica (SPAARGAREN; MOL, 1995), defendendo uma reconfiguração da economia capitalista, com vistas a tornar compatível desenvolvimento econômico e proteção ambiental (DRYZEK, 1997). Isso pode ser visualizado na pressão crescente pela construção de grandes represas para geração de energia, como Belo Monte, e de plantas industriais para extração de minérios na Amazônia (LEROY et al., 2011).
Quando se analisa os números da execução orçamentária do programa de revitalização, verifica-se que 65,4% dos recursos aplicados entre 2005 e 2013 foram alocados em rubricas relacionadas ao saneamento7, seguido de ações que visam à recuperação das margens do rio (com 15,33% dos recursos aplicados8). Ações como mudanças nas atividades econômicas, reestruturação da pesca para torná-la mais sustentável, democratização do acesso aos recursos hídricos ou resolução de conflitos ambientais não aparecem elencadas nos gastos presentes no Portal da Transparência. Por esses dados, observa-se a ênfase nas estratégias de modernização ecológica em detrimento daquelas que se enquadrariam como ações de desenvolvimento sustentável ou socioambientalista. 
O debate que se trava entre governo, empresários, produtores rurais, agricultores familiares, empresas hidrelétricas, Ministério Público, Judiciários, Igreja, associações e organizações não-governamentais sintetiza uma espécie de dicotomização entre a mudança da região, que passaria a ser uma espécie de “oásis”, com diversas plantações irrigadas, e a possibilidade de aumento das injustiças, porquanto apenas uma pequena parcela da população seria beneficiada. 
Outra contradição encontra-se entre a transposição e a revitalização. No debate institucional do governo, verifica-se a presença muito forte da transposição como responsável pela salvação da população da região dos efeitos da estiagem prolongada, chegando a quantificar os beneficiados em torno de 12 milhões de pessoas (RIMA, 2004; BRASIL, 2009), o que atesta a visão de que a transposição pode ser uma alternativa ao desenvolvimento econômico – ela, aliás, é referida como uma das “apostas” para o desenvolvimento da região (BRASIL, 2005). A população ribeirinha, por exemplo, afirma que o rio está morrendo (ANDRADE, 2002; BATISTA JÚNIOR, 2006). Contudo, esse argumento é invisibilizado diante dos outros interesses que ressignificam o sentido de natureza (SARMENTO, 2006; GERHARDT et al., 2005). Nesse contexto, sobressaem dois significados para a “questão ambiental” (entendida como a natureza encarada como recurso natural ou outro elemento relacionado): (1) aquele que compreende a natureza (isto é, o espaço verde com seus vegetais e animais) como tendo um valor em si mesma e (2) aquele que, fundado em uma perspectiva capitalista, enxerga como central o “uso racional dos recursos” da natureza (GERHARDT et al., 2005).
Como resposta à pressão de grupos ambientalistas, da Igreja, dos ribeirinhos, dos Estados doadores da água (Sergipe, Alagoas, Minas e Bahia) e de outros setores da sociedade, o programa de revitalização foi uma das formas de incorporar argumentos ambientalizados ao PISF. A transposição não começou tendo a problemática ambiental como condicionante central e não estava baseada numa ampla discussão acerca dos impactos ambientais. Posteriormente, essa questão transformou-se numa arena política na qual atuaram (e atuam) diversos grupos de pressão da região semiárida e atores sociais que incorporam a problemática ambiental – fato que nos possibilita abordá-la como uma questão ambiental construída por visões e sentidos (SILVA, 2014). 

3.3     Outras considerações acerca da inserção do meio ambiente no projeto de transposição
 
O meio ambiente é inserido posteriormente mais como elemento de legitimação que condicionante dos projetos de transposição e revitalização. Segundo Rocha (2011, p. 15), o processo de reconhecimento do meio ambiente como questão relevante em si passa pela disputa entre diversas compreensões acerca da sustentabilidade, dentre as quais podemos destacar: uma compreensão ecológica, com tendência protecionista ou conservacionista, mais ortodoxa, que confere à natureza valor em si mesma (FERRY, 2010) e outra social, em que o problema da sustentabilidade não é exposto apenas em termos ecológicos, pois, de acordo com essa ótica, a natureza não possui valor em si, dado que este se origina da própria existência dos seres humanos e dos usos que estes fazem dela (GERHARDT, 2008).
Ao que tudo indica, o objetivo do processo de revitalização é devolver ao ecossistema formado pelo rio um formato semelhante ao que se possuía anteriormente, sendo estruturado com base em um conjunto de ações técnicas e soluções que podem garantir e reforçar as condições para a transposição e, em consequência, minimizar ainda mais seus impactos. Entretanto, esse processo, ao menos em termos de planos, foi ampliado e ganhou uma dimensão socioambiental9, o que significa, a priori, a existência de uma articulação entre uma dimensão técnica e uma dimensão que envolva a população atingida por essa obra de intervenção planejada. Em certo sentido, pode-se afirmar que há um entendimento ampliado de meio ambiente, no qual estão inseridos os atores sociais envolvidos na sua construção ou destruição.
Diante do que foi visto, a questão ambiental acaba sendo uma condição obrigatória no fechamento de um projeto de infraestrutura hídrica que conduza ao desenvolvimento. 

4     Considerações Finais
A questão ambiental é incorporada pelos PISF e PRSF de modo diferenciado, assumindo diversos sentidos, dentre os quais elencamos os seguintes:
1)     Legitimação: a questão ambiental é mobilizada como parte constitutiva de projetos. Ela aparece como elemento legitimador das pretensões de determinados grupos sociais ou mesmo do próprio governo, parecendo um “terreno” fértil para discursos “apaixonados” pela natureza. Na falta de algo novo, a sustentabilidade acaba sendo a novidade;
2)     Condicionante do desenvolvimento: a sustentabilidade ambiental é inserida nos projetos de infraestrutura hídrica como condição expressa e inegociável para implementação deles. Esses projetos têm como finalidade, por exemplo, viabilizar o desenvolvimento das regiões beneficiadas;
3)     Paradoxal: trata-se de uma visão de desenvolvimento ambiental focada, fortemente, na cisão entre o meio ambiente humano e o meio ambiente da natureza, parecendo, por isso, contraditória. 
Algumas categorias de regulação são empregadas nas estratégias ambientais do PISF, como gestão, controle ambiental, controle social, proteção, manejo e recuperação. 
Expliquemos cada uma dessas estratégias. A gestão refere-se à possibilidade de instituir instrumentos de gerenciamento eficazes que aliem preservação ambiental e continuidade do desenvolvimento econômico. O controle ambiental volta-se à necessidade de exercer certa regulação dos processos bióticos, danosos ou não; o controle social diz respeito a uma perspectiva de regulação no contexto de preservação ambiental. A proteção visa a buscar, semelhante à gestão, instrumentos de conservação ambiental. O manejo se concerne ao entendimento de que é preciso usar os recursos de modo racional, empregando técnicas que tenham foco na eficiência de seu uso e conjugue, concomitantemente, preservação ambiental e desenvolvimento econômico.
A recuperação põe em perspectiva a minimização dos prejuízos – há a consciência de que estes ocorrem, daí a necessidade de a tecnologia recuperar o que foi danificado. Sabe-se, porém, que não se pode recuperar tudo, estando nisso incluído tanto os bens tangíveis, como o desaparecimento de peixes e o fato de o rio não chegar mais à beira das casas das pessoas, quanto os intangíveis/subjetivos, como a amizade que se desfaz por conta da migração de companheiros que viviam da pesca, o apego à terra, as recordações e lembranças daqueles que, nas regiões irrigadas, foram expulsos pela especulação imobiliária e pela grilagem, o fato de não poder contemplar mais a beleza do Velho Chico de sua casa.
Considerando a conceituação de cada uma das estratégias levantadas, nota-se que a questão ambiental configura-se como uma nova fonte de legitimação e de argumentação dos conflitos (LOPES, 2006). Ela cruza o campo jurídico, educacional e empresarial. 
Tal processo de ambientalização traz consigo uma sorte de diferenciações. Os movimentos ambientais acabam agindo de acordo com interesses aparentemente paradoxais, conciliando, por exemplo, os ideários de preservação com aqueles que são tipicamente capitalistas. Isso permite que o projeto seja compreendido dentro da perspectiva de Modernização Ecológica (LENZI, 2006), a qual prega a possibilidade de reagir à crise ecológica ou superá-la sem deixar de usar as instituições da modernidade e sem abandonar seus padrões.
Cabe investigar o lugar institucional do meio ambiente nos ditos projetos de desenvolvimento, considerando que o espaço institucional envolve, inevitavelmente, práticas e saberes que se associam a aspectos fundamentalmente políticos, nos quais estão em jogo as estratégias de luta entre grupos e classes sociais constitutivos do conjunto de relações institucionais que se deseja investigar. Disso, surge outra questão: de que forma o saber ambiental instala-se na construção de projetos de políticas públicas?
Não se pode desconsiderar, ao que parece, a formação do campo ambiental como um espaço em constante movimento, marcado por uma dinâmica de (re)configuração de novos espaços – subcampos que constituem campos mais amplos. As diversas representações do meio ambiente apontam para uma institucionalização diferenciada. Elas mostram que o meio ambiente é uma construção social historicamente datada e portadora de representações inseridas, frequentemente, num campo de força em que interagem diferentes grupos sociais. 
Pelo exposto, pode-se dizer que o discurso ambientalizante é forjado num processo de institucionalização de estratégias de perpetuação do capitalismo. Entretanto, trata-se de um discurso mutante, pois evoca representações diferenciadas, visões de mundo diferentes. Tal fato demonstra que a questão ambiental relaciona-se diretamente com a representação de lutas entre diferentes práticas e formas sociais de apropriação, uso e controle do território. 
O projeto de transposição do Rio São Francisco aparece no debate político como sendo a redenção de um povo, a obra fundamental para que o “atraso” nordestino seja superado. Há uma nítida divisão entre o “atraso” e o “progresso”, uma tentativa de inaugurar “novos tempos” no semiárido. Oficialmente, ele é considerado como um plano audacioso, articulado a partir de projetos que objetivam entrecortar múltiplos saberes num processo de reeducação, classificado como sustentabilidade socioambiental, que pode ser entendida como um desenvolvimento fundado em bases que limitam o excesso e que consideram as relações sociais como parte de um diálogo mais amplo (RIMA, 2004; BRASIL, 2005)10. Essa é a posição oficial. Há dúvidas, contudo, se o projeto significa, com efeito, uma mudança de concepção e de percepção do semiárido.
Por fim, o meio ambiente surge como elemento de referência para o planejamento das políticas públicas. É interessante perceber como ele é posto a serviço da necessidade e dos interesses específicos, expressando os conflitos e as disputas nos quais está envolto. 
Propomos um quadro analítico para caracterizar a dinâmica existente entre transposição e revitalização e incorporação da questão ambiental, aqui classificada como “ecologização”:
1)     Houve um processo de “ambientalização” dos discursos acerca da integração do São Francisco por parte do governo e de seus atores envolvidos na transposição, bem como pela sociedade, movimentos sociais, ambientalistas e lideranças. O governo incorporou a questão ambiental como elemento da transposição e, por conseguinte, adotou um discurso ambientalizado, na medida em que considerou revitalização como uma ação prioritária. Apesar disso, para o governo, a revitalização não se restringe apenas à recuperação ou conservação do rio e seus afluentes, mas também como um conjunto de ações estruturantes para um projeto de desenvolvimento do semiárido e/ou, ainda, como um elemento pacificador e de legitimação. A estratégia do governo foi não se opor à revitalização, mas desenhar um modelo que parece não ser aquele que fora proposto pelas organizações não governamentais ou pelo bispo Cappio e seus seguidores: enquanto estes últimos clamam por uma revitalização para “salvar o rio”, num discurso mais ecológico e socioambiental, entendendo, por exemplo, que a revitalização deve anteceder o processo de integração de bacias, o projeto do governo é uma revitalização para a transposição. As evidências apresentadas levam a crer que há uma “revitalização econômica” e uma “revitalização ecológica”;

2)     Outra questão presente no programa de revitalização diz respeito ao modo pelo qual ele tem sido encarado pelo governo, a saber, como “gestão racional de recursos”, como processo instrumentalizador da integração. É possível afirmar que o discurso ambientalizado é um elemento de modernização. E isso fica claro no uso da gestão como caminho para a recuperação e preservação do São Francisco, isto é, como meio de solucionar os problemas am­bientais existentes. Parece que está sendo deixada de lado a complexidade presente na questão ambiental, que, atualmente, conforme expomos, não é vista apenas do ângulo estritamente ecológico, mas socioambiental, da sustentabilidade, da convivência, da justiça ambiental e da modernização ecológica. O governo não apresenta nenhuma evidência de que esteja encarando com veracidade essa complexidade. Já no texto dos projetos, do RIMA, do licenciamento, do parecer do IBAMA, das AÇÕES DO PROGRAMA DE REVITALIZAÇÃO DA BACIA HIDROGRÁFICA DO SÃO FRANCISCO, há uma profusão de detalhes das necessidades da população do entorno da obra e do ecossistema. Os dados orçamentários apontam que há uma baixa execução dos recursos públicos disponibilizados para a revitalização. Além disso, a dotação orçamentária existente não é destinada, em sua maior parte, para ações que resultem na recuperação e conservação do rio. 
    
    Para se ter uma ideia, foi verificado que são destinados pouquíssimos recursos para contenção do processo de erosão nas margens do rio, em comparação com o volume de recursos que foram destinados ao saneamento, por exemplo (SILVA, 2014);

3)     A revitalização auxilia na compreensão de como o Estado tem incorporado os múltiplos sentidos ambientais. O discurso gravita entre a modernização ecológica e o desenvolvimento sustentável. Há também uma outra leitura ambientalizada, a “convivência”, apresentada como uma forma diferenciada de enxergar as agruras do sertão e, ao mesmo tempo, de propor ações adaptadas à realidade local. Claro que a pressão dos movimentos sociais “ambientalizados” e “ambientalistas” conseguiram inserir nesses projetos a relação da natureza com a sociedade, adotando-se uma linha socioambiental. 

No Projeto de Integração do Rio São Francisco com Bacias do Nordeste Setentrional a questão ambiental assume um papel de “mudança institucional”, dando uma “roupagem nova” ao “discurso antigo” de promoção do desenvolvimento. O detalhe é que agora ele é regionalizado e globalizado, com possibilidade de aliar desenvolvimento e proteção ambiental. Há um processo de “ecologização dos projetos estatais”. Este incorpora elementos que provocam o “engajamento institucional”, a motivação psicológica para reforçar certa “mudança”, sem abrir mão da modernidade, porém.

Notas
1.    A revitalização é apresentada pelo governo federal como um conjunto de projetos e ações para promover o desenvolvimento sustentável, recuperar a fauna e a flora, bem como diminuir os potenciais prejuízos que o projeto de integração venha acarretar ao rio e às populações ribeirinhas. 
2.    O Rio São Francisco é um manancial que passa pelos Estados de Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe, possuindo 2.863 km, representando 2/3 da água doce do nordeste.Cruza 22 terras indígenas e 5 comunidades remanescentes de quilombolas, com 33 unidades de conservação em seu entorno (15 de uso sustentável e 18 de proteção integral) (BRASIL, 2009). 
3.    Decreto nº 3.833 publicado em 05 de junho de 2001. Ver: http://www.codevasf.gov.br/principal/legislacao/decretos/decreto-de-05-de-junho-de-2001-1 
4.    Essas perguntas são feitas, mas não temos respostas para elas; são mais de efeito provocativo e reflexivo. Também  nos ajudam a pensar a respeito dos paradoxos dessa obra. 
5.    http://www.ibama.gov.br/licenciamento-ambiental/processo-de-licenciamento 
6.    Bispo da Diocese de Barra, no Estado da Bahia, que se insurgiu contra a transposição e a revitalização da forma como foram postas pelo governo federal. 
7.    Implantação, Ampliação ou Melhoria de Sistemas Públicos de Coleta, Tratamento e Destinação Final de Resíduos Sólidos em Municípios das Bacias do São Francisco e Parnaíba; Implantação do Sistema de Esgotamento Sanitário de Campo Formoso, no Estado da Bahia; Implantação, Ampliação ou Melhoria de Sistemas Públicos de Esgotamento Sanitário em Municípios das Bacias do São Francisco e Parnaíba.
8.    Monitoramento da Qualidade da Água na Bacia do Rio São Francisco; Disseminação de Boas Práticas de Conservação, Uso e Manejo Sustentáveis da Água; Reflorestamento de Nascentes, Margens e Áreas Degradadas do São Francisco; Apoio a Projetos de Controle da Poluição por Resíduos em Bacias Hidrográficas com Vulnerabilidade Ambiental; Disseminação de Boas Práticas de Conservação, Uso e Manejo Sustentáveis da Água; Recuperação e Controle de Processos Erosivos na Bacia do Rio São Francisco; Obras de Revitalização e Recuperação do Rio São Francisco; Recuperação e Preservação da Bacia do Rio São Francisco; Recuperação e Controle de Processos Erosivos em Municípios das Bacias do São Francisco e do Parnaíba; Recuperação e Preservação da Bacia do Rio São Francisco.
9.    Essa dimensão plural da questão ambiental, cunhada como socioambientalismo, é uma vertente ligada a seu processo de institucionalização. Ela põe em evidência a necessidade pós-moderna de se incorporar a dimensão social numa questão que parecia ser estritamente técnica, direcionada para a abordagem das ciências naturais e jamais para as ciências humanas. No Brasil, surge na segunda metade da década de 1980, tendo como ponto de partida a articulação entre movimentos ambientalistas (crescentes internacionalmente) e movimentos sociais (SANTILLI, 2005). 
10.    Posição repetida em diversos PABs. 

 

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