Planejamento regional e reforma agrária: antigos e novos entrelaçamentos entre as questões agrária e regional


Julianna Malerba
Doutoranda em Planejamento Urbano e Regional no IPPUR/UFRJ. Assessora da Federação de Órgaos para Assistência Social e Educaional (Fase)

1 Introdução

Em sentido inverso à incorporação de um conjunto de demandas populares na Constituição de 1988, a normatização das relações sociais de propriedade da terra no campo demonstra uma clara derrota do pleito histórico das forças progressistas de democratização da terra no país. A partir de uma análise sobre as possibilidades legais de desapropriação da terra por interesse social, Pacheco (1993) elenca uma série de mecanismos que foram incluídos na Constituição com o objetivo de não apenas limitar o processo de desapropriação, mas também de salvaguardar o direito de propriedade, subordinando o interesse social ao interesse dos proprietários de terra. 
Ela frisa, por exemplo, que “a lei estabelece que o preço pago ao imóvel que não esteja cumprindo sua função social deve permitir ao desapropriado a reposição em seu patrimônio do valor que perdeu por interesse social e os dados da avaliação das benfeitorias e do hectare de terra nua a serem indenizados são levantados através de pesquisa de mercado”, o que configura, portanto, uma “dupla premiação no lugar de uma sanção”. Também faz referência ao veto presidencial, quando da sanção da lei, e ao confisco do imóvel no caso de constatação inequívoca de trabalho escravo, a despeito de a Constituição estabelecer que a função social da propriedade só é cumprida quando, dentre outros requisitos, observa “as disposições que regulam as relações de trabalho” (p. 25).
Segundo Pacheco (1993), a Constituição ainda referenda a segmentação da questão agrária e agrícola, “contrapondo o conceito de função social da terra ao de empresa rural” (idem, p. 27). Isso demonstra, de certa maneira, a hegemonização de um modelo de organização social da agricultura baseado em argumentos produtivistas da eficiência das bases empresariais agrícolas, o qual não reconhece – ao contrário, estimula – as exclusões do modelo agrícola da Revolução Verde, implementado com apoio do Estado, sobretudo a partir da ditadura (MARTINE, 1991). 
Mesmo que o processo de hegemonização desse modelo agrícola tenha sido fruto de escolhas políticas e econômicas conformadas historicamente, 

[...] para diversos e renomados analistas da economia brasileira, [...] o crescimento em número, tamanho, importância, poder e integração dos Complexos Agroindustriais [...] passaram a presumir a inevitabilidade dessas transformações, como se fizessem parte de um darwinismo econômico (idem, p. 28, grifo nosso).

Tal fato explica a afirmação de Pacheco de que, no bojo do processo constituinte, desaparecem da linguagem as categorias fazendeiros, empresários, latifundiários, sem terra, estrutura fundiária e interesse social e, concomitantemente, constrói-se, por meio de um discurso que se organiza sob os termos da “racionalidade, eficiência, produtividade, competitividade, produção em escala e modernização”, a identidade de produtores rurais que hoje é comumente utilizada para nomear o setor que congrega a burguesia agroindustrial. Realmente, a explicação dessa derrota no processo constituinte, em grande medida, está ligada a transformações que alteraram substancialmente o perfil do grande proprietário rural no Brasil, as quais foram configuradas, historicamente, por um sistema político que permitiu a perpetuação dos interesses agrários através de sucessivos reajustes.
As grandes entidades patronais do setor agrário brasileiro hoje não congregam apenas os proprietários rurais e, menos ainda, os setores que tenham uma vivência rural e um modo de vida agrário peculiar, como quer o imaginário social brasileiro que identifica o tradicional latifundiário com os agroempresários que dominam a cena política nacional (MENDONÇA, 2009). O agronegócio expressa, atualmente, uma grande empresa capitalista-agrário-financeira que, como força política, constituiu em torno de si uma identidade associada à “modernização” e ao “desenvolvimento” por meio de um processo histórico de interpenetração no Estado, transformando suas demandas específicas em “interesses nacionais”. 
Tendo isso em vista, o objetivo deste artigo é discutir em que medida a ação do Estado sobre o espaço concorreu para a transformação dos interesses da burguesia agrária/agroindustrial e financeira em “interesses nacionais”. Fundamentados em uma análise histórica das políticas de planejamento regional, destacaremos aspectos que contribuíram para a atual configuração de poder dos setores ligados ao agronegócio na política nacional e seus impactos sobre a reforma agrária.

2     A emergência e configuração da questão agrária no Brasil até 1964
Camargo (1986) define como característica básica do modelo político brasileiro o fato de este “ter produzido uma classe política simultaneamente vinculada aos interesses agrários e ao desempenho das funções de Estado “[...] mantendo sob seu controle o alargamento e a complexificação da comunidade política” (p. 145). Essa “simbiose” garantiu, por um largo período, “a manutenção do monopólio da terra, acompanhada de um rígido enquadramento político das populações rurais” (idem). Em um país cuja formação histórica é marcada por uma economia agrária, latifundiária e escravocrata, o sistema político, desde a formação do Estado Nacional, esteve conformado em torno da manutenção de um “pacto agrário”. A própria consolidação do Estado, após a Independência, só foi possível graças às alianças estabelecidas entre o poder central e as elites agrárias, cuja primeira crise surge apenas no período Vargas, com a crítica à oligarquia formulada pelo movimento Tenentista e o progressivo impacto do processo de urbanização e industrialização. A partir do ciclo de governos populistas, a pauta da Reforma Agrária ganha visibilidade; ocorre aí, por um lado, um relativo enfraquecimento do bloco ruralista e, por outro, o crescimento da organização trabalhista.
Não por acaso, conforme demonstra Camargo, o Executivo, “mais sujeito às pressões diretas de amplas massas e mais ávido de realocar alianças a fim de ampliar suas bases, será o lócus privilegiado de onde partem iniciativas mais contundentes” no combate ao latifúndio e na defesa de reformas estruturais frente a um Congresso que, ao ser “a sede de representações regionais, torna inoperantes os numerosos projetos de reformulação da estrutura agrária, através de artifícios legais ou da recusa frontal” (p. 152). Essa dinâmica se enfraquece em favor do Executivo quando as representações trabalhistas crescem no Congresso e o campesinato passa a se organizar e a emergir como ator e força política (a partir da década de 1950, aproximadamente).
Sob pressão de um campesinato mobilizado, a organização sindical é aceita pelos setores ruralistas como um mal menor. Já a extensão de direitos trabalhistas para os camponeses e, sobretudo, a “desapropriação por interesse social” são objetos de intensos ataques. O artigo 141, da Constituição de 1946, que reconhece a desapropriação por interesse social, mas estabelece uma indenização justa e em dinheiro, inviabilizando, economicamente, as ações de desapropriação, representa o cerne das controvérsias. Enquanto setores progressistas propõem uma emenda constitucional que reveja esse artigo e determine que os pagamentos sejam feitos por títulos da dívida pública, as associações rurais, sempre representadas por uma ampla base no Congresso (com maior ou menor força política, dependendo do momento), acusam-na de inconstitucional e mostram-se dispostas a discutir uma Reforma Agrária, desde que ela signifique “incremento da produtividade, facilidade de créditos, acesso a insumos e à mecanização agrícola (em suma, a ênfase na capitalização da grande propriedade)”, e que ela ocorra “de preferência, confinada às terras devolutas” (idem, p. 271).
Com o golpe de 1964, cujo estopim foi justamente um decreto da Superintendência de Política Agrária (SUPRA), que considerava desapropriáveis os imóveis com mais de 500 hectares situados nos 10 km à margem das rodovias, açudes e ferrovias, assinado pelo presidente João Goulart no histórico Comício das Reformas, a Reforma Agrária é congelada. O Estatuto da Terra, que já tramitava há anos no Congresso, acaba sendo aprovado no governo Castelo Branco, com vistas a conter a pressão do movimento camponês e neutralizar conflitos e tensões agrárias e, em certa medida, modernizar as relações econômico-sociais no campo1 (MENDONÇA, 2009). Com ele, também é aprovada a emenda constitucional que altera o parágrafo 16 do artigo 141 que previa a indenização em dinheiro (substituindo-o por títulos da dívida pública). 
Todavia, as mesmas pressões do período anterior, as quais buscaram esvaziar os órgãos e leis criados com finalidades reformistas, vis a vis à progressiva desmobilização autoritária dos sindicatos camponeses, fazem com que dos dois objetivos que orientam o Estatuto da Terra – a execução da Reforma Agrária e a promoção da Política Agrícola (art. 1°) – somente o segundo deles avance com apoio ativo do Estado.

3     Políticas de Planejamento Regional e Reforma Agrária
Ao estudar a questão agrária como campo de análise da dinâmica do sistema político brasileiro, Camargo (1986) demonstra que, apesar de certa sensibilidade à causa reformista, Kubitschek obteve dos setores mais conservadores de seu próprio partido uma posição de neutralidade frente ao Programa de Metas em troca da conservação das relações sociais no campo. Segundo a autora, leva o presidente a buscar caminhos “mais conciliadores e politicamente mais seguros” via medidas indiretas, como a Operação Nordeste (transformada em 31ª Meta), que pretendia “enfrentar a questão agrária através da integração regional” (p. 187).
Com efeito, a “politização da questão agrária” é progressivamente apresentada no debate político como indissociável da recuperação das regiões marginalizadas, isto é, como instrumento de integração de uma economia nacional condenada pelos desequilíbrios regionais. Essa formulação discursiva, condizente com o crescimento de uma ideologia nacionalista e desenvolvimentista entre setores tanto da esquerda quanto da direita, tem a força de construir uma “composição política” em que se inclui, ao mesmo tempo, as classes marginalizadas e as camadas emergentes do empresariado, chamados a promover um “esforço comum” em prol de uma estratégia nacional de desenvolvimento (idem, p. 194).
É, então, por meio da defesa da ampliação do mercado interno, cuja viabilidade depende da inserção econômica de amplos setores da população que ainda vivem imersos em relações de trabalho e produção “arcaicas”, que as disposições reformistas, sob uma orientação “tecnocrática-modernizante”, são reforçadas e, com isso, constitui-se uma convergência política que viabiliza a implementação da Operação Nordeste, inaugurando uma das experiências mais paradigmáticas da “política regional”.
Sem atacar diretamente a má distribuição da terra, a Operação Nordeste, que, posteriormente, origina a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), enfatiza uma estratégia de racionalização da produção agrícola combinada com a implantação industrial e com a expansão da fronteira agrícola. Um de seus objetivos é evitar a expansão dos conflitos agrários para além da Zona da Mata nordestina, onde a ação do Estado (através da SUDENE) pretende estimular a produtividade e liberar terras para o cultivo familiar de alimentos (idem, p. 199).
A “política regional”, elaborada com a intenção de diluir medidas redistributivas mais radicais e conflituosas, busca promover um programa que atenda muitos interesses e conforme a análise de Camargo, acaba obtendo êxito ao deslocar as disparidades de classe para o plano das disparidades regionais, diante das quais o Estado passa a cumprir o papel de mediador:
Com a SUDENE, tornam-se mais visíveis os focos de miséria até então mascarados pela miopia coletiva e pelo tradicionalismo ideológico que reduzem o inconformismo camponês nascente à mera ‘questão de polícia’ [...]. A nova conjuntura reorienta a percepção social, e a sociedade modernizante do Centro-Sul assume a parcela de responsabilidade que lhe cabe na convivência com as desigualdades que comprometem uma auto-imagem otimista, contagiada pela crença na afirmação nacional. O Nordeste e, dentro dele, o campesinato passam a compor uma ‘situação de emergência’ que pode e deve ser corrigida pelos Governos e pelos homens, sob a pena de pôr em risco a ordem democrática, a estabilidade política arduamente conquistada e até mesmo, como o sugere Celso Furtado, a integridade física do território nacional (CAMARGO, 1986, p. 202). 

A leitura de Oliveira (1977), conquanto de um ponto de vista mais crítico, converge para a de Camargo, especialmente no que se refere a uma ação orientada da Superintendência com vistas a neutralizar o conflito de classes. Por meio de uma análise cuidadosa dos seus mecanismos e ações, ele demonstra que, desde sua origem, a SUDENE buscou intervir no conflito de classe intrarregião e expandir para o Nordeste, “pelo poder de coerção do Estado”, o capitalismo do Centro-Sul. Isso significou que os incentivos fiscais e os demais mecanismos que a SUDENE era capaz de mobilizar para fortalecer um processo de industrialização local – um dos objetivos centrais que deveria nortear a ação do Estado na correção das desigualdades regionais (FURTADO, 2009) – acabaram por beneficiar a burguesia industrial do Centro-Sul, atraída para o Nordeste pelos incentivos fiscais, pelo acesso ao mercado nordestino e pelo custo mais baixo de reprodução da mão de obra. 
Segundo Oliveira (1977), isso ocorre em um momento em que se inicia um processo de associação entre a burguesia internacional e a burguesia industrial do Centro-Sul2. E, igualmente, num quadro em que a relação de forças do proletariado urbano e rural nordestino com outras classes dominantes está modificando-se. Há uma perda progressiva de poder da burguesia industrial nordestina (graças à penetração de mercadorias – industriais e agrícolas – do Centro-Sul e à própria penetração de grupos econômicos dessa região, fato que, inclusive, precede à própria SUDENE, mas que é reforçado em um contexto de crescimento do capital monopolista no país) e, ao lado disso, a emergência de novos sujeitos políticos, os quais passam a disputar a política a ponto de chegarem a comandar a coligação de forças estabelecida com a oligarquia algodoeira pecuária em Pernambuco, subordinando-a (por exemplo, no governo de Miguel Arraes). 
A perda de poder da burguesia industrial nordestina e a dissolução da “pax agrária”, com o crescimento do poder de forças populares (cuja expressão nacional está demarcada nas Ligas Camponesas), começam a ser percebidas pela grande burguesia nacional como uma ameaça contra sua própria hegemonia. Como argumenta Oliveira (1977),

[...] [c]rescendo a ação política das massas camponesas, crescendo a presença política das massas trabalhadoras urbanas, suas reivindicações vão chocar-se contra a essência do processo de crescimento oligopolístico a partir do Centro-Sul, do núcleo da própria estrutura do processo de concentração e centralização do capital (p. 97). 

E qual era a essência desse processo de oligopolização? A possibilidade, então já em curso, de a burguesia do Centro-Sul obter uma acumulação extraordinária no Nordeste:

A penetração das mercadorias produzidas no Centro-Sul, e posteriormente a própria penetração de grupos econômicos do Centro-Sul, destruía as bases da economia “regional”, tanto agrícola quanto industrial. Essa destruição propiciava uma acumulação diferencial extraordinária ou uma super­acumulação, em outras palavras, cuja base residia seja no mercado nordestino capturado, seja na implantação de empresas com capitais do Centro­Sul, que, repousando numa composição técnica de capital superior, passavam a realizar uma composição orgânica de capital mais favorável, devido exatamente ao diferencial de custos de reprodução de força de trabalho nordestina. Ora, as reivindicações das forças populares no Nordeste, tanto rurais quanto urbanas, centravam­-se agora exatamente na aplicação rigorosa das leis de propriedade, por um lado, e das leis de regulamentação trabalhista, por outro, entre estas a estrita obediência ao pagamento do salário-mínimo. Se no Centro­Sul, na origem da expansão industrial dos anos trinta, a aplicação dessas regulamentações funcionou de certo modo como alavanca do processo de acumulação, no movimento de expansão oligopolística elas funcionam noutra direção, roubando à burguesia industrial do Centro­Sul uma oportunidade de acumulação diferencial (OLIVEIRA, 1977, p. 97).

A perda de hegemonia das classes dominantes locais aparece como contraditória ao movimento de expansão do capitalismo monopolista do Centro-Sul, ainda que, em grande medida, tenha sido produzida exatamente por essa expansão. Oliveira cita, como exemplo, os movimentos de educação de base inspirados na pedagogia freiriana que as forças populares conseguem institucionalizar, “impondo sua hegemonia cultural ao nível das superestruturas” (p. 98). A resposta encontrada diante da exacerbação dos conflitos de classe, surgidos sob o viés de “conflitos regionais” ou de “desequilíbrios regionais”, é a ação planejada do Estado no Nordeste: a SUDENE.

A burguesia industrial do Centro­Sul, caminhando rapidamente para a hegemonia, não tem escolha: é preciso submeter as classes populares do Nordeste ao seu tacão, mas numa situação em que suas próprias bases, seu “populismo”, começam a entrar em declínio, ela não atacará diretamente as classes populares do Nordeste, num movimento que visava evitar a confluência das forças populares em escala nacional: submeterá primeiramente sua irmã gêmea no Nordeste, a própria burguesia industrial regional.
[...]
A SUDENE passou a deter, entre seus poderes, a capacidade de dar “câmbio de custo” para a importação de equipamentos industriais e agrícolas; [...] podia recomendar isenção alfandegária para a importação de equipamentos [...], isentavam-se totalmente do imposto de renda as novas empresas que se instalassem para aproveitamento das matérias-primas regionais e parcialmente as empresas que já transformassem as referidas matérias-primas. Uma imensa bateria de favores, que compunha na verdade um elenco de mecanismos cujo objetivo era o de transformar parte da mais­ valia captada pelo Estado, sob as formas de impostos e de taxas, em capital. Tratava-se, na verdade, em termos mais teóricos, de converter toda a riqueza nacional, especialmente a parte que era captada pelo Estado, em pressupostos da nova produção: um mecanismo típico do capitalismo monopolista e de seu correlato, o Estado monopolista. Abstratamente, esses mecanismos não desfavoreciam necessariamente a burguesia industrial regional; mas, concretamente, em presença de composições orgânicas de capital diferenciadas, e, portanto, de taxas de lucro e de massas de valores diferenciados, a grande burguesia internacional associada do Centro­Sul era quem, inevitavelmente, poderia retirar essas “castanhas do fogo” (p. 99, 102-103, grifos no original).

Oliveira ainda demonstra que o capitalismo industrial que se expande e consolida durante o período populista submete a economia agroexportadora (e a oligarquia agrária), alterando sua forma de reprodução de modo a contribuir para o processo que se consolida nas décadas seguintes, quando a economia agro-exportadora transforma-se paulatinamente em capitalista:

[...] Havia surgido, se consolidando pela expansão, uma burguesia industrial cujos interesses de reprodução do seu capital, de forma geral, não podiam mais ser confundidos com a forma de reprodução do capital controlado pelas oligarquias, e que, por isso mesmo, havia capturado o Estado, levando­-o a implementar sistematicamente políticas econômicas cujos objetivos eram o reforço da acumulação industrial e cujos resultados, em grau surpreendente, corresponderam àqueles objetivos. Uma política cambial que sistematicamente subestimava a taxa de câmbio para facilitar as importações e que em certas ocasiões chegou a proibir certas importações, uma política alfandegária que elevou a níveis nunca dantes alcançados as barreiras alfandegárias para proteção da indústria “nascente”, uma política de confisco cambial que capturava parte do excedente produzido pelas exportações justamente para financiar o câmbio favorecido para as importações industriais, uma política de crédito consubstanciada em instituições como o Banco do Brasil e o Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico, para só citar essas três variantes de uma única política econômica global. [...] A política econômica ditada pelos interesses da reprodução do capital industrial reduziu as formas de reprodução da economia agroexportadora até o limite necessário para que estas não continuassem a impor sua própria forma de reprodução ao conjunto da economia nacional, mas foi suficientemente elástica para permitir a sobrevivência dessa forma de reprodução, até mesmo porque as divisas necessárias para a importação dos bens para a indústria continuavam a ser, sobretudo, advindas da realização externa do produto da economia agroexportadora. Seria ingênuo, porém, não perceber que nessa convivência o capitalismo industrial começará a redefinir o próprio caráter da reprodução da economia agroexportadora, transformando-a gradualmente em capitalista (OLIVEIRA, 1977, p. 71-72 – grifos do original).

Esse processo, vis a vis à forte mobilização da oligarquia agrária contra as propostas progressistas de reordenação da estrutura fundiária do país, oferece as bases para o processo de modernização conservadora da agricultura consolidado durante a ditadura. Alguns autores têm demonstrado que o golpe de 1964 representou uma “dupla reordenação”: alijou e reprimiu os movimentos populares e afirmou a hegemonia do capital monopolista sobre os demais segmentos do capital.
Progressivamente, a agricultura se torna um mercado não apenas para bens de consumo, mas, cada vez mais, para bens de produção. A estrutura agrária, ainda que se mantenha concentrada, sofre mudanças substanciais, 

[...] nela coexistindo: a) o aumento da oferta de matérias primas e alimentos para o mercado interno, sem que fosse comprometido o papel do setor exportador como gerador de divisas para a industrialização; b) a crescente integração entre a agricultura e o conjunto da economia, não só como compradora de bens de consumo industriais, mas também pela aquisição, como resultado da própria industrialização da agricultura, de insumos e máquinas, gerados pelo setor industrial (MENDONÇA, 2009, p. 43). 

O Estatuto da Terra, aprovado com inúmeras alterações por pressão dos grandes proprietários, havia sido concebido, consonante as argumentações de Mendonça, não como uma ameaça ao latifúndio, mas, sobretudo, como meio de forçar sua modernização, “prevendo sua imbricação ao conceito de empresa que, segundo o estatuto, estava isenta de desapropriações” (idem, p. 44).

No lugar da crítica à estrutura fundiária, colocou-se, como “nova” alternativa, a ocupação de terras públicas em regiões de fronteira, sendo a reforma agrária resignificada como uma espécie de “colonização”. [...] Essa orientação liberou as propostas de desenvolvimento econômico da obrigação de contemplarem a questão social dos trabalhadores sem terra, priorizando interesse e propostas emanados de empresas privadas. 
[...]     
Além de colonizar as fronteiras em favor do grande capital, nacional e estrangeiro, a política de “modernização” da agricultura perpetrada pelos governos militares a partir de 1960 pautou-se por outro aspecto essencial: a farta concessão de créditos e subsídios estatais, seletivamente direcionados para a agricultura patronal de modo a disseminar tecnologia e privilegiar produtos destinados à exportação ou vinculados a programas energéticos – como o Proálcool, por exemplo. [...] As facilidades oferecidas pelo Estado atraíram para o setor agrário capitais de origens diversas, e a forma de articulação entre Estado e negócios privados gerou uma aliança entre classes, envolvendo uma extensa gama de beneficiários dos incentivos públicos. [...] Basta mencionar que 70% das grandes propriedades situadas no Norte do país pertenciam a empresas do Sudeste, com destaque para as paulistas, sendo que apenas uma delas, a Manasa, detinha área equivalente a 90% do estado do Rio de Janeiro (idem, p. 50).

Inscreve-se, nessa lógica, a política de criação dos “polos de crescimento” num contexto de política de integração nacional que marca a política regional dos governos militares. A Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM), inspirada no modelo da SUDENE, e o Banco do Nordeste (BASA) passam, a partir de 1960, a coordenar uma política de incentivos fiscais a fim de atrair capital privado e de oferta de crédito subsidiados concedido para aquisição de terras em escala substancial. Recursos de ajuda multilaterais são disponibilizados para o desenvolvimento agropecuário, por meio do Banco Interamericano de Desenvolvimento/BID, e, conjuntamente, são retomadas a abertura de estradas (a exemplo da Belém-Brasília) e iniciadas a construção de novas rodovias, sob a coordenação de Planos de Integração Nacional (HALL, 1991). 
Muitos analistas afirmam que esse conjunto de políticas foi concebido 

[...] para reservar terras à exploração por interesses comerciais às expensas da massa de agricultores famintos por terra, que começavam a chegar a região em grandes levas durante a década de 1960 [...] como um ativo e oficial bloqueio, supressão ou controle da colonização espontânea, isto é, da reforma agrária de fato (IANNI apud HALL, p. 28).
 
Diante do aprofundamento da concentração de terras, a atualização da bandeira da reforma agrária impõe ao Estado, então sob regime militar, outras formas de tratamento da questão, o que explica a criação de programas e iniciativas potencialmente “neutralizadoras” dos conflitos rurais. 
Mendonça (2009) cita o Programa de Redistribuição de Terras e de estímulo à Agroindústria do Norte e Nordeste (PROTERRA), os programas de desenvolvimento rural integrado ou de apoio à produção de “baixa renda” (ambos com assistência técnica baseada no paradigma da Revolução Verde, a partir do qual se desenvolverá a grande agroindústria) e também as ações sociais perpetradas pelo Exército em áreas de grande violência, como na região do Araguaia. 
O enfrentamento da questão agrária pela emergência de uma questão regional sob a coordenação do Estado (ou, em outras palavras, o planejamento regional a partir da experiência do Nordeste) amplia, por um lado, a legitimidade das demandas por Reforma Agrária, ao apresentá-la como produtora das disparidades regionais e ameaçadora da unidade nacional (ainda que essa unidade fosse pensada nos marcos da expansão capitalista protagonizada pelo centro-sul “modernizante”), por outro, também a enquadra como um projeto de modernização conservadora. 
Além da autoritária desmobilização dos sujeitos políticos emergentes produzida pelo golpe de 1964, a expansão das relações capitalistas do centro (Sul) para a periferia (nordestina e, depois, amazônica) e a reorganização da economia regional sob a dinâmica do capitalismo monopolista produzem o efeito de submeter as demandas populares às reordenações do espaço e da economia ditadas pela hegemonia das forças produtivas que se expandem do Sul para a região Nordeste e, posteriormente, Centro-Oeste e Norte do país. A hegemonia – consolidada com amplo apoio do Estado – de um modelo agrícola, baseado em técnicas e tecnologias que beneficiam interesses de grandes grupos empresariais (produtores de máquinas e insumos) e na manutenção da estrutura fundiária concentrada, esvazia progressivamente o debate sobre o modelo agrícola e sobre o projeto político alternativo de produção no campo que se gesta com base na bandeira da reforma agrária.
Feita essa apreciação política e histórica, cabem algumas perguntas: para além dos permanentes bloqueios políticos impetrados pelos interesses do grande latifúndio, com a consolidação de um modelo agrário fundamentado na agroindústria e preconizado como a única via para o desenvolvimento brasileiro, quais seriam, de fato, as margens para uma ampla distribuição de terras e, sobretudo, para a emergência de uma produção e uso da terra alternativo (isto é, não subordinado à produção agroindustrial exportadora)? Como seria possível garantir que não fossem dissolvidos, como nos sugere Oliveira (1977), regionalismos capazes de produzir dinâmicas socioprodutivas e econômicas mais autônomas e, ao mesmo tempo, de pautar o planejamento estatal na disputa por um projeto contra-hegemônico de desenvolvimento para o país?

4     O tratamento da questão agrária quando se complexificam 
    as diferenças regionais
Nos anos 1980, ocorre um processo de esvaziamento da questão regional na agenda política. As políticas neoliberais desmontam a capacidade financeira e institucional do Estado e deslegitimam o debate sobre desenvolvimento e planejamento regional. O predomínio nas análises de uma visão biescalar, relacionando o global e o local, tirou a centralidade de análises macro e meso escalar, norteadoras de uma visão de conjunto sobre o desenvolvimento capitalista e mais capazes de apreender os processos transescalares que se reproduzem, cada vez com mais intensidade, nos diversos espaços urbanos e regionais (SIQUEIRA, 2014; BRANDÃO, 2004). 
No entanto, mudanças econômicas, sociais, políticas e espaciais, relacionadas a um contexto macroeconômico decorrente do novo modelo de acumulação capitalista, concorrem para um processo de intensa e complexa diferenciação regional. São determinantes dessas mudanças: a crise da dívida externa nos anos 1980; a abertura comercial e financeira nos anos 1990 e suas implicações para maior exposição da economia à ação dos agentes externos; a perda da capacidade e de instrumentos do Estado pelo ajuste neoliberal; as mudanças macroeconômicas dos anos 2000, ligadas ao crescimento da China e ao contexto internacional favorável a exportação de commodities; as políticas nacionais voltadas para o mercado interno e a retomada de grandes projetos de investimento em infraestrutura econômica e construção habitacional. Tais processos não são contraditórios com o movimento anterior de expansão do capital monopolista; pelo contrário, são, em grande parte, decorrentes da dinâmica que ele estabelece. 
Diferente do prognóstico de Oliveira (1977) sobre a dissolução das regiões, essas transformações resultaram no aprofundamento das desigualdades regionais. A “reprimarização” da pauta exportadora estimulada pelo boom das commodities e o “desadensamento” das cadeias produtivas decorrente da reorganização internacional do trabalho e de reajustes produtivos vêm atuando, segundo alguns autores, em direção da especialização regressiva das estruturas produtivas regionais e estaduais e da formação de enclaves (SIQUEIRA, 2014). 
A análise do PIB das unidades federativas realizada por Siqueira (2014) aponta um aumento da participação do setor agropecuário nas regiões Norte, Centro Oeste e Nordeste, com destaque para Rondônia, Mato Grosso e Maranhão, refletindo justamente o avanço progressivo da ocupação da fronteira agrícola nessas regiões. Análise semelhante é feita pela autora com relação ao extrativismo mineral que apresenta um aumento significativo de sua participação no PIB nacional, com concentração das atividades nos estados do Pará, Minas Gerais e Espírito Santo. Tais setores, voltados prioritariamente à exportação, apresentam uma tendência a gerar economias de enclave que se caracterizam pela fragilidade de encadeamentos produtivos territoriais, bem como à reorientação e concentração dos recursos e atividades econômicas em torno de si (SANTOS; MILANEZ, 2013). As consequências regionais e nacionais são a redução da diversidade produtiva e o aumento da dependência econômica de setores intensivos de recursos naturais, com rebatimentos para a divisão espacial do trabalho e para a fragmentação territorial, subordinada “às formas contemporâneas de globalização, com suas escalas e dinâmicas espaciais adequadas à criação de espaços mercantis” (VAINER, 2007). 
Isso indica que o desenvolvimento do capitalismo monopolista altera os arranjos locais, implicando um novo tratamento do espaço e exigindo novas formas de intervenção. Entretanto, a redução das desigualdades, combinada à valorização das diversidades regionais, não tem sido considerada como questão prioritária na agenda do Estado. Pelo contrário, a reconfiguração das forças hegemônicas ligadas ao capital agrário-industrial-financeiro, que adquire mais coesão e influência sobre o Estado (MENDONÇA, 2009), junto da opção por um modelo focado na manutenção da estabilidade macroeconômica e na busca do equilíbrio fiscal (responsável por garantir equilíbrio no balanço de pagamentos nas contas públicas), tem resultado, na prática, em forte investimento do Estado nos setores de exportação primária, para os quais destina as prioridades de financiamento, subsídios e infraestrutura logística (transporte, energia)3.
A luta pela reforma agrária, na contramão do processo do modelo agrário hegemônico supracitado, toma novos estímulos apenas nos últimos 20 anos, experimentando o que alguns autores têm chamado de um “giro territorial”. De fato, apesar da diversidade fundiária, semelhante à diversidade sociocultural brasileira, é somente após a redemocratização que o Estado começa a reconhecer que a questão fundiária no Brasil não se limita à redistribuição de terras, na verdade, se relaciona a uma problemática centrada nos processos de ocupação e afirmação territorial, que se remetem, nos marcos legais, às políticas de reordenamento e reconhecimento territorial (LITTLE, 2002). Essa mudança decorre da emergência de mobilizações de grupos sociais denominados ou autodenominados “povos ou comunidades tradicionais”. Eles ganham força e objetivação na forma de movimentos sociais a partir da década de 1980, frente a um processo de expansão das fronteiras, operado pelo Estado desde a colônia e intensificado no século XX com políticas sistemáticas de ocupação da Amazônia e de expansão da fronteira de acumulação.
O agronegócio consegue obstruir o avanço da reforma agrária durante o processo constituinte, mas, ao mesmo tempo, povos e comunidades tradicionais, em aliança com outros setores4, conseguem incorporar novos direitos e formalizar distintas modalidades territoriais na Constituição do país; com isso, propiciam a criação de um arcabouço legislativo e institucional que reconhece direitos territoriais de povos e comunidades tradicionais. Assim, é-se reafirmado o reconhecimento dos “direitos originários [dos povos indígenas] sobre as terras que tradicionalmente ocupam” (Artigo 231), isto é, as terras indígenas passam a ser consideradas, constitucionalmente, como instrumento de garantia de direitos sociais específicos (FERREIRA, 2011). Igualmente, a Constituição, no artigo 68 das Disposições Transitórias, afirma que “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo ao Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. Em 1987, são estabelecidos Projetos de Assentamento Extrativista dentro da política de reforma agrária, junto ao Instituto Nacional de Reforma Agrária/INCRA. E, em 1989, são criadas Reservas Extrativistas dentro da política ambiental, no âmbito do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente/IBAMA – modalidade definitivamente incorporada, nos anos 2000, ao Sistema Nacional de Unidades de Conservação. Em comum, essas terras não preveem parcelamento de lotes e estão protegidas da alienação, conformando-se como terras públicas sob usufruto permanente das comunidades tradicionais. A partir de então, as demarcações de terras indígenas e, mais timidamente, a titulação de comunidades quilombolas, bem como a criação de Reservas Extrativistas, Reservas de Desenvolvimento Sustentável e de Assentamentos Diferenciados5 recebem um impulso que retira em torno de 158 milhões de hectares do mercado de terras (VIANNA JUNIOR, 2013).
Esse processo produziu uma série de efeitos sociais, alguns dos quais objetos de uma relevante agenda de pesquisa que vem aprofundando as análises sobre o papel da emergência da questão étnica e ambiental na conformação e reconfiguração identitária desses novos sujeitos e/ou na redefinição da ação do Estado (através, por exemplo, da reorientação das políticas de reordenamento territorial) e de agentes privados que atuam ou têm interesse em determinados territórios (CRUZ, 2012; FERREIRA, 2011; ESTERCI, 2010; VIANNA JUNIOR, 2010; LITTLE, 2002). Tais estudos também têm analisado as implicações da ambientalização e etnização para a agenda das lutas pela reforma agrária. Eles assinalam o surgimento de uma “nova gramática” das lutas sociais por meio da ampliação das pautas de reivindicação e da constituição de agendas políticas que articulam as lutas por redistribuição das terras, fundadas na ideia de igualdade e redistribuição, às lutas por reconhecimento identitário, alicerçadas na valorização do direito à diferença, ou seja, no reconhecimento do outro (CRUZ, 2012; ACSELRAD, 2012; FRASER, 2012).
Ao questionarem os discursos e representações hegemônicos sobre suas identidades, esses sujeitos emergentes politizam espaços vividos e práticas rotineiras e consuetudinárias de uso da terra, negando a visão que marcou o processo de modernização conservadora do país, em que seus modos de vida eram (des)qualificados como atrasados, improdutivos e considerados obstáculos ao projeto de desenvolvimento modernizador que orientou a ação do Estado até quase a última década do século XX. 
A politização de modos de vida e de formas específicas de apropriação da natureza resignifica e valoriza um conjunto de práticas alternativas de produção e reprodução social. Muitas dessas práticas são distintas da (por vezes, antagônicas) lógica homogeneizante de apropriação simbólica e material dos recursos naturais, própria do pensamento desenvolvimentista hegemônico e do projeto “moderno” que este preconiza. 
A isso se soma o ressurgimento, após sua desarticulação no período da ditadura, dos movimentos camponeses que, além da defesa da reforma agrária, reivindicam o reconhecimento de organizações de produção agrícola diferentes do padrão de desenvolvimento e comercialização da agricultura. São exemplos: a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA6), o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e também o Movimento dos Sem Terra (MST).
Se, por um lado, a afirmação de territorialidades específicas opera mudanças na política fundiária, quebrando com o monopólio histórico dos planejadores oficiais do Estado sobre a definição legítima do território (ESTERCI et al., 2010) e, portanto, abrindo espaço para a ratificação de projetos socioculturais e produtivos de sujeitos que constroem identidades emergentes; por outro, em um contexto de retomada das políticas desenvolvimentistas, a garantia dos direitos territoriais passa também a representar “entraves” à expansão do crescimento e desenvolvimento do país – noções que marcam o governo brasileiro desde a chegada do PT ao poder.
Com relação às terras comunitárias (terras indígenas, quilombos, reservas extrativistas, Projetos de Desenvolvimento Sustentável e Projetos de Assentamento diferenciados), destaque-se que a retirada delas do mercado de terras, conforme vem sendo assinalado por alguns autores, não significa que foram eliminadas de outros mercados (aí incluídos o mercado de produtos florestais, energéticos e/ou minerais7). Tal fato faz com que, no atual momento de retomada desenvolvimentista, se acirrem as disputas pelos recursos naturais que se encontram nesses territórios. (VIANNA JUNIOR, 2013). 
Em fevereiro de 2013, o jornal Valor Econômico, em matéria intitulada “As prioridades dos ruralistas”8, apresenta um dos eixos sobre o qual a Frente Parlamentar Agropecuária planeja concentrar sua atuação no Congresso: a oposição à demarcação de terras indígenas. Um dos projetos da bancada ruralista referia-se à Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215/2000, pela qual se visava a retirar do Executivo a demarcação das terras indígenas e incluí-la como competência exclusiva do Congresso, conferindo-lhe também o poder de revisar as demarcações já homologadas. 
Essa notícia aponta o acirramento da disputa por terra e território e as novas formas que ela vem assumindo no processo de reordenamento normativo9 operado, tanto pelo Executivo quanto pelo Legislativo, com o intuito de ampliar o acesso das atividades intensivas em recursos naturais (como mineração e agronegócio) nos territórios que, em função do reconhecimento da Constituição Federal dos direitos comunitários à terra e aos recursos naturais, estão fora do mercado de terras e sob uso distinto daquele que a razão utilitária e a “vocação” desenvolvimentista do Estado brasileiro reconhece como necessário ao desenvolvimento do país. 
Contudo, diferente do período anterior, a ação desenvolvimentista e modernizadora do Estado não pode prescindir do processo histórico de reconhecimento de “territorialidades específicas” (ALMEIDA, 2008). Por ele, foram produzidas mudanças objetivas, simbólicas e políticas (estas últimas relacionadas à resignificação da questão agrária e dos modos e sentidos da apropriação dos recursos naturais) no padrão de relação do Estado com os grupos emergentes.
Diante do acirramento das desigualdades regionais ocasionadas pelo modelo de acumulação que organiza a economia nacional, uma ação do Estado no sentido de corrigi-las deve passar por um tratamento da “questão regional” distinto das experiências anteriores. Referente à agenda da reforma agrária, trata-se de reconhecer a luta dos trabalhadores rurais como parte de um projeto em disputa e não simplesmente como reivindicações por uma “inclusão” no processo produtivo hegemônico, como a tradição desenvolvimentista da epistemologia do planejamento brasileiro tende a fazer. Nesse sentido, a nova abordagem do planejamento regional necessita reconhecer que os sujeitos políticos podem ser portadores de “regionalidades” próprias, bem como que certos projetos territoriais apontam outras possibilidades de integração na divisão social do trabalho. 
Brasil afora é possível conhecer, na diversidade de práticas produtivas e de formas de apropriação dos recursos naturais, tecnologias que garantem, por exemplo, o manejo conservacionista e sustentado dos ecossistemas, com forte potencial para organizar as economias e mercados locais e regionais a partir de uma ótica que favoreça alternativas de fortalecimento econômico dos sujeitos emergentes frente à devastação de seus modos de vida e dos seus territórios pelo avanço da fronteira de acumulação (OLIVEIRA JUNIOR apud PACHECO, 1993). São exemplos dessas ações: as iniciativas de convivência com o semiárido nordestino, elaborada pela Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA10) ou a reivindicação dos movimentos da região Norte ligados ao Fórum Nacional de Reforma Urbana, pelo qual se propõe a adoção de critérios de desenvolvimento que contemplem as especificidades dos municípios amazônicos concernentes à política de regularização fundiária, de uso do solo urbano e de mobilidade11. 
O desafio está, portanto, menos no desenvolvimento de uma operação institucional que devolva ao planejamento regional seu lugar na construção de um projeto nacional que na alteração da correlação de forças que concorre para esvaziar a disputa entre projetos e o próprio sentido do planejamento no país.

 

Notas 
1.    A reforma agrária castelista – democrática e cristã – visava a promover o aumento da produção e da produtividade, bem como a consolidar a propriedade privada no campo, sob a égide da técnica, da racionalidade e da ideologia do planejamento (IANNI, 1984 apud MENDONÇA, 2009).
2.    Desde meados da década de 1950, estava em curso a consolidação de um novo modelo de acumulação capitalista no país. Para viabilizar a implantação da indústria de bens de consumo duráveis (cujo ícone era a indústria automobilística), o Estado incentiva o investimento direto de capitais estrangeiros no setor, financiando, com recursos públicos, outros setores necessários ao desenvolvimento dessa indústria: energia, siderurgia e transporte. Isso é viabilizado, em grande medida, por meio do endividamento externo e da emissão monetária, ações que levaram o país a um processo inflacionário sem precedentes. Uma acumulação baseada substancialmente no investimento externo levou também a uma concentração de capitais no país, uma vez que a introdução de tecnologias sofisticadas da indústria de bens duráveis impunha barreiras aos capitais de menor porte e exigia elevado fluxo de importações de equipamentos (MENDONÇA, 2009, p. 31-32). Ao mesmo tempo, é importante destacar o papel ativo que o Estado desempenhou nesse processo como produtor direto de mais valia, graças ao controle (monopolista) de ramos e setores industriais dinâmicos – como indústria siderúrgica e petrolífera, investidas na reprodução (com financiamento, direto ou indireto, via desenvolvimento de infraestrutura e bens) de setores controlados pelo capital privado (OLIVEIRA, 1977).    
3.    A progressiva ampliação do financiamento e investimento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) em setores produtores de insumos básicos na última década aponta justamente para essa tendência: se em 2002, 54% da carteira de investimentos do BNDESPar voltava-se para os segmentos de petróleo e gás, mineração e energia, em 2012, esse percentual passa para 75%  (89%, se for incluído os setores de papel, celulose e de alimentos frigoríficos) (BNDES apud MILANEZ, 2012).
4.    Além da aliança com ONGs, pesquisadores/setores da universidade e de outros movimentos sociais, teve também importância no processo de incorporação de novas categorias fundiárias na Constituição brasileira a emergência do movimento socioambientalista que reconhece, nas territorialidades e modos de vidas das comunidades “tradicionais”, práticas e manejo dos recursos naturais ecologicamente sustentáveis (SANTILLI, 2005).
5.    Os assentamentos diferenciados (projeto de assentamento agroextrativista, projetos de desenvolvimento sustentável e projeto de assentamento florestal), modalidades hoje presentes na política de regularização e ordenamento fundiário do INCRA, não preveem parcelamento de lotes e reconhecem os direitos territoriais de comunidades tradicionais, não permitindo a alienação das terras (VIANNA JUNIOR, 2013).
6.    A Articulação Nacional de Agroecologia reúne movimentos, redes e organizações engajadas em experiências concretas de promoção da agroecologia, fortalecimento da produção familiar e construção de alternativas sustentáveis de desenvolvimento rural.
7.    A Constituição Federal de 1988, nos artigos 20 e 176, estabelece que as jazidas e demais recursos minerais constituem, para efeito de exploração ou aproveitamento, propriedade distinta do solo, e pertencem à União. A Constituição ainda estabelece que o aproveitamento dos recursos minerais é de interesse nacional, o que justifica a obrigação de o proprietário do solo admitir as atividades de mineração realizadas em sua propriedade e estabelecer as servidões necessárias.
8.    Cf. Jornal Valor Econômico. As prioridades dos ruralistas. 22/02/2013.
9.    À investida sobre os direitos territoriais, acrescentam-se outras no âmbito do Legislativo, como a Ação de Inconstitucionalidade (ADI) 3239/2004, que contesta o Decreto nº 4.887/03 cujo texto regulamenta o procedimento de titulação das terras ocupadas por populações quilombolas. A ação sustenta a inconstitucionalidade do critério de autoatribuição fixado no decreto como meio de identificar e caracterizar as terras a serem reconhecidas a essas comunidades. No âmbito do Executivo, a Portaria 303, ao pôr em vigor as condicionantes definidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) durante o julgamento que homologou a demarcação da Terra Indígena (TI) Raposa Serra do Sol em área contínua, confirma o entendimento do STF de que os direitos dos índios sobre as terras não se sobrepõem ao interesse público da União, de forma que seu usufruto fica condicionado à política de defesa nacional, garantindo, assim, a entrada e instalação de bases, unidades e postos militares no interior das reservas. De acordo com as regras, a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas e de “riquezas de cunho estratégico para o país” também não dependem de consentimento das comunidades que vivem nas TIs afetadas. Temporariamente suspensa por pressão dos movimentos sociais, essa Portaria guarda relação não apenas com processos de questionamento dos direitos territoriais em curso no Legislativo, mas também com um processo permanente de enfraquecimento dos dispositivos de regulação ambiental no âmbito do Executivo. São exemplos as Portarias n. 204, 205 e 206, de 17 de julho de 2008, do Ministério do Meio Ambiente, que visam a acelerar o licenciamento ambiental, reduzindo pela metade os prazos para a concessão das licenças, e a Portaria Interministerial 419/2011, que regulamenta a atuação da FUNAI, da Fundação Cultural Palmares, do IPHAN e do Ministério da Saúde na elaboração de parecer em processo de licenciamento ambiental de competência federal, limitando os prazos para a manifestação desses órgãos.
10.    “A Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) é uma rede formada por mil organizações da sociedade civil que atuam na gestão e no desenvolvimento de políticas de convivência com a região semiárida. Sua missão é fortalecer a sociedade civil na construção de processos participativos para o desenvolvimento de iniciativas de convivência com o Semiárido”. Cf.: www.asabrasil.org.br 
11.    A partir da criação do conceito de municípios periurbanos, esses movimentos, em diálogo com certos setores das universidades da região Norte e Nordeste, explicitam a existência de uma diversidade de práticas urbanas nos municípios brasileiros que concentram menos de 50 mil habitantes, correspondentes a 90% dos municípios brasileiros. Dentre elas, destacam-se a grande utilização dos rios como via de transporte nas cidades amazônicas e o uso múltiplo das moradias, cujos quintais são utilizados como área de produção de alimentos e pequenos comércios. Tais práticas exigem políticas especificas, como regulação e controle do transporte fluvial e ampliação do limite do tamanho dos lotes para regularização fundiária (FASE, 2011). 

 

Referências
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