Desenvolvimento local de comunidades rurais e suas Implicações para as políticas públicas: arranjos institucionais e diversificação da produção rural de pequena escala


Fausto Makishi
Professor no Instituto de Ciências Agrárias da Universidade Federal de Minas Gerais

João Paulo Cândia Veiga
Professor de Ciência Política e Relações Internacionais da Universidade de São Paulo

1. Introdução

A necessidade de construir alternativas mais robustas para o desenvolvimento social, econômico e ambiental tem trazido novos contornos à formulação e operacionalização das políticas públicas em diferentes níveis de governança. Incluem-se nesta discussão questões relacionadas ao desenvolvimento local, inclusão da produção rural de pequena escala e preservação da biodiversidade. Grande parte dessas agendas parece convergir para a necessidade de diálogo intersetorial envolvendo diferentes atores, estatais e não estatais, e busca de sinergia entre perspectivas e interesses distintos. Contudo, conforme observa Hoddinott (2012), a operacionalização destas arquiteturas ou redes institucionais e organizacionais tem-se mostrado bastante difícil e pouco comum em meio às políticas públicas internacionais e territoriais. Da mesma forma, parece imperativo participar o olhar científico destas construções institucionais, fomentando reflexões e, se possível, contribuindo para a sistematização analítica e funcional de programas e ações de impacto junto à sociedade. 

Muls (2008) destaca que a formação dessas redes de relações sociais, econômicas e políticas no espeço local, emerge de modelos de governança “intermediários” entre a intervenção centralizadora do Estado e o caráter autorregulador do mercado. Nestas novas formas de coordenação, comandos diretivos e autoritários antes utilizados pelo poder público vão dando lugar a novas ferramentas e mecanismos econômicos indutores do mercado, onde a busca por cooperação e solução de conflitos tornam-se objetos de planejamento (GOMIDE; PIRES, 2014). Em outras palavras, cabe ao poder público, não só a regulação e monitoramento, mas também a provisão de informações e mediação entre os interesses sociais e diferentes agendas privadas.

O presente artigo pretende contribuir com discussão envolvendo a função do Estado nessas novas formas de governança, aqui tratadas como arranjos institucionais das políticas de desenvolvimento local e procura fomentar reflexões sobre a inserção sustentável da produção rural de pequena escala em cadeias de valor como mecanismos de crescimento econômico e de atenuação das desigualdades sociais. Para isso, lança-se mão de uma abordagem institucionalista sobre o tema, com foco nas relações econômicas e sociais que determinam a geração de renda junto à produção rural. A principal contribuição do artigo é destacar a importância de considerar a diversificação de atividades junto à produção rural de pequena escala, definindo-a como nexo de atividades produtivas e geradoras de renda, um aspecto ainda pouco explorado no contexto das políticas de desenvolvimento local.

A perspectiva econômica institucionalista, mais especificamente o referencial de arranjos institucionais (BORYS; JEMISON, 1989; FIANI, 2014), ajuda a entender a firma rural dentro de um puzzle de incentivos decorrentes de um arcabouço institucional e organizacional que circunscreve as relações econômicas, sociais e políticas voltadas ao desenvolvimento no espaço local. Neste quebra-cabeças de governança, permeado por relações de cooperação e conflito, o Estado assume o papel de centro estratégico, atuando como mediador e provedor de informações.

O artigo chama a atenção para o carácter plural da produção rural de pequena escala e base familiar e visa dar relevo a aspectos qualitativos relacionados à origem da renda junto ao agregado familiar.

A ideia de pluralidade ou diversificação das atividades produtivas como alternativa de subsistência e estabilização do fluxo de renda para produção rural de pequena escala é relativamente recente. Nos últimos 20 anos, um número crescente de trabalhos vem contribuindo com evidências empíricas de como a manutenção da produção de pequena escala em países em desenvolvimento dependem da existência de múltiplas fontes de renda, na manutenção da riqueza na forma de diversos ativos e dedicação não exclusiva de um ativo (REARDON, 1997; CHAPLIN et al., 2004; REARDON et al., 2008; SHNEIDER, 2004; LIN, 2011). Tais estudos corroboram para a ideia de que a diversificação das atividades geradoras de renda e subsistência possa representar uma importante estratégia de resiliência em um ambiente dinâmico repleto de instabilidade e incertezas, no qual a produção rural se insere.

Embora se reconheça importância da propriedade rural multitarefas como estratégia de resiliência junto a segmentos da população mais vulnerável (FOLKE, 2006; BUSCHBACHER, 2014) pouco se avançou na construção de um referencial analítico e conceitual que possa servir de base para o delineamento de políticas públicas e privadas de desenvolvimento local que levem em conta esse importante aspecto da produção de pequena escala (BERDEGUÉ; ESCOBAR, 2002). Mesmo em termos práticos, dificilmente se percebe uma abordagem mais holística e intersetorial nas políticas, programas e ações voltados ao desenvolvimento sustentável. Resgatando a contribuição de Montgomery (1994), a ‘conveniente’ abstração nos estudos organizacionais e institucionais, onde empresas tornam-se homogêneas e produtoras de um único produto, traz algumas limitações aos modelos teóricos, que, em alguns casos, acaba distanciando-se da realidade.

Essa forma de olhar a produção rural de pequena escala está presente nas iniciativas de Sustainable livelihoods (CHAMBERS, 1987; ASHLEY; CARNEY, 1999; SCOONES, 1998), que procuram destacar a necessidade de considerar aspectos de auto abastecimento e geração de renda dentro de um mesmo escopo analítico (CHUNG, 2012). A Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) tem dado grande destaque para essa abordagem nos últimos anos.  

A questão que inspira o presente artigo é: quais as implicações da produção rural diversificada no planejamento de políticas de desenvolvimento local? O trabalho está estruturado em quatro partes, além desta introdução. A segunda seção recupera a discussão teórica conceitual de arranjos institucionais. Na terceira seção, o ferramental metodológico utilizado para buscar evidências empíricas da discussão apresentada é exposto e, na quarta seção, quatro casos de comunidades extrativistas da Amazônia e cerrado brasileiros são apresentados. A quinta e última seção traz as considerações finais.

2. Referencial teórico

A ideia de arranjo institucional tem origem no clássico trabalho de Davis e North (1971) e pode ser entendido como “conjunto de regras que governam a forma pela qual agentes econômicos podem cooperar e/ou competir”.

Vale diferenciar ambiente institucional de arranjo institucional, visto que, enquanto o primeiro privilegia a análise em um nível de macroinstituições, o segundo centra seu foco sobre microinstituições (FARINA, et al., 1997). North (1991) define como instituições as “regras do jogo”, restrições (normas) construídas pelos seres humanos, que estruturam a interação social, econômica e política, compostas das restrições informais (sanções, tabus, costumes, tradições e códigos de conduta) e regras formais (constituições, leis e direito de propriedade). Dito de outra forma, o ambiente institucional é constituído por um conjunto de regras políticas, sociais e legais mais básicas e gerais que estabelecem o fundamento para o funcionamento do sistema econômico, já os arranjos institucionais compreendem as regras específicas que os agentes estabelecem para si nas suas transações econômicas ou nas suas relações políticas e sociais particulares (GOMIDE; PIRES, 2014). 

Fiani (2014) observa que, dentro da literatura de políticas públicas, a abordagem institucionalista costuma concentrar-se muito mais na análise feita em nível macro que ao nível das microinstituições (arranjos institucionais), contudo tal perspectiva tem se mostrado bastante útil quando se discute a operacionalização de políticas de desenvolvimento em nível regional ou local. De forma semelhante, Muls (2008) descreve a importância de redes de cooperação (instituições e organizações) na realização de políticas de desenvolvimento local.

Na literatura econômica, muito se avançou na discussão envolvendo tais níveis de relacionamento. Dentre as contribuições de maior importância, destacam-se os trabalhos de Oliver Williamson (1985; 1991), que procura estabelecer a relação entre o ambiente institucional, os arranjos institucionais, os quais chamou de estrutura de governança, e o comportamento dos indivíduos (oportunismo e racionalidade limitada). Grande parte dessa discussão tem se concentrado nas relações entre atores privados, sendo a participação do Estado muitas vezes restrita à regulação macro e ao provimento de bens públicos estratégicos (FARINA et al., 1997). Incluem-se nesses arranjos entre atores privados as redes de empresas, joint ventures, franquias, cadeias de fornecedores e arranjos produtivos locais. 

Diversos autores, dentre os quais Borys e Jemison (1989), Vilpoux (2011) e Fiani (2014) têm destacado a importância da participação mais específica do Estado nos arranjos institucionais como forma de implementar políticas públicas mais robustas no espaço local. Tais autores chamaram tais arranjos de híbridos, e têm como exemplo mais expressivo as parcerias público-privadas (PPPs).

O insight para considerar a existência desses arranjos tem origem no trabalho do próprio Williamson, que procurou definir modelos conceituais (genéricos) de estruturas de governança com base em três dimensões: especificidade dos ativos, frequência e incerteza. Grosso modo, Williamson (1985) descreve como mercado, a estrutura de governança em que não existe um vínculo entre comprador e vendedor, as partes podem substituir a qualquer momento suas contrapartes pois não existe dependência, ou seja, os ativos transacionados são pouco específicos. Em uma situação contrária, quando os ativos são muito específicos, mecanismos de salvaguarda deverão ser adotados como forma de garantir que a transação econômica ocorra, evitando comportamento oportunista. Em casos extremos, dado a incompletude dos contratos (incapacidade de prever todas as situações possíveis) somente a hierarquia (integração vertical) seria capaz de oferecer essa garantia, contudo esta pode ser mais onerosa.

Williamson (1996) deixa claro que as estruturas de governança não se limitam ao mercado ou hierarquia. Para o autor, em muitos casos, modelos híbridos de governança poderiam combinar incentivos e controles presentes nas hierarquias e na estrutura de mercado. Fiani (2014) destaca que contratos estabelecidos entre as partes, além de incompletos, podem representar medidas expost de coordenação nem sempre eficientes, o não cumprimento do acordo implica em recorrer a mecanismos judiciários, muitas vezes custosos, sem que haja garantia de concretização da transação. Em outras palavras, o fornecedor que não cumpre o contrato é penalizado, mas o comprador também é, pois não recebe o pedido. 

No caso dos híbridos, os agentes são submetidos a controles definidos previamente na estrutura institucional, mas preservam a sua independência (FIANI, 2014). Contudo, como o próprio autor adverte, os arranjos híbridos não devem ser vistos como alternativas de governança a serem escolhidas dentro de um espectro imposto entre o mercado e a hierarquia de Williamson, tratando-se de um arranjo diferente em termos de incentivos e mecanismos de controle. 

Dentre os autores que mais evoluíram neste tema, destaca-se Ménard (2005) que argumenta que o híbrido não envolve apenas um “grau menor” de “centralização” e “compartilhamento de recursos” que a hierarquia, ou um “grau maior” das mesmas características que o mercado. Para este autor, o híbrido envolve agentes privados independentes e, em alguns casos, também públicos na consecução de objetivos comuns impõe problemas de cooperação e adaptação entre os agentes que são, por sua própria natureza, distintos daqueles enfrentados por uma hierarquia ou um mercado (Ménard, 2005, apud FIANI, 2014).

Sustentado em uma discussão sobre autoridade e poder, Ménard (2010) sugere a distinção entre centro estratégico, responsável pela tomada de decisão, o conjunto de ativos ou recursos, distintos, a serem combinados na produção de um bem ou serviço. Na perspectiva de Ménard, a transação econômica ocorreria entre empresas possuidoras de um conjunto complementar de ativos, enquanto a decisão seria tomada pelos centros estratégicos, responsáveis em prover, quando necessário, os devidos incentivos e o monitoramento. No mercado, este centro estratégico estaria ausente, já que não existe a necessidade de coordenação. Neste caso, os ativos são próprios, os direitos decisórios próprios e a recompensa individual. Na hierarquia, as empresas são vistas como divisões de uma mesma firma, ou seja, o centro estratégico e os ativos estão dentro da mesma empresa. O centro estratégico integrador tem posse dos ativos e controle dos direitos de decisão. No arranjo institucional hibrido, o centro estratégico assume a função de mediador, os ativos são compartilhados, assim como os direitos e recompensas são coletivos (MÉNARD, 2010).

Com base no trabalho de Ménard (op. cit.), Fiani (2014) sugere que parcerias público-privadas poderiam ser vistas como arranjos institucionais híbridos, onde o Estado assume a posição de centro estratégico. Neste caso, cabe ao Estado a função de: (a) corrigir falhas de coordenação; (b) empreender sobre novas possibilidades de transformação do sistema econômico; (c) administrar conflitos. 

A existência de falhas de coordenação é dada pelos pressupostos comportamentais da teoria williamsoniana de assimetria de informação e comportamento oportunista. Os agentes, dado sua racionalidade limitada ou comportamento oportunista poderão deliberar em benefício próprio e por isso a necessidade de um centro conciliador, empresa privada ou mesmo o Estado. O problema é ilustrado por Fiani (2013) ao resgatar a parábola da “caça ao cervo” de Jean-Jacques Rousseau. Rousseau utiliza a caça ao cervo como exemplo de ação cooperativa onde dois caçadores podem obter diferentes combinações entre agirem conjuntamente para caçar um animal maior, obtendo maiores resultados (um cervo), ou agirem independentemente, obtendo resultados de menor importância, por exemplo caçando uma lebre. Sabendo que o resultado ótimo (cervo) não pode ser obtido individualmente, haveria a necessidade de criar incentivos para que os dois caçadores buscassem a melhor opção. Aplicando tal exemplo às relações econômicas voltadas ao desenvolvimento local, Fiani (2013) argumenta que este papel poderia ser realizado pelo poder púbico.

Faz-se necessário um agente que garanta um movimento coordenado de todos os agentes, oferecendo um “big push” para que investimentos em ativos específicos, e com ele o desenvolvimento, sejam realizados (ROSENSTEIN-RODAN, 1943; FIANI, 2013).  

Adicionalmente cabe ao Estado, segundo a lógica de incerteza e complexidade das atividades produtivas, encetar novas possibilidades de transformação do sistema econômico. Em sua função empreendedora, o Estado deve oferecer uma “visão de futuro” tendo como objetivo superar que vá além dos equilíbrios superiores, ou seja, encontrar uma solução melhor que o cervo.

No caso das políticas de desenvolvimento rural, alternativas podem surgir da diversificação da produção por meio de programas de capacitação e transferência tecnológica e incentivos a novas atividades de negócio.

Evidentemente a ilustração da caça ao cervo representa uma metáfora bastante simplificada do problema envolvendo a coordenação de atores independentes, que traz naturalmente em seu bojo relações de colaboração e conflito (FARINA, 1999). Sabe-se, por exemplo, que a partição da quase-renda quase nunca se dá de forma igualitária (SAES, 2009). Em outras palavras, utilizando a expressão cunhada por Zylberstajn,1 ao final de tudo tem-se o clássico problema de a quem cabe o pernil do cervo. Como dividir os resultados de uma ação cooperativa? Possivelmente a autorregulação do mercado não seja a forma mais eficiente para solucionar esse dilema, tampouco uma ação autoritária com vista a “repartir” igualitariamente os frutos da caçada. 

Uma vez que a coordenação se torna indispensável ao desenvolvimento (FARINA, 1999), a necessidade pode levar o Estado a assumir algumas funções de agentes privados, para garantir que os investimentos específicos fossem realizados nas atividades excessivamente arriscadas nas sociedades em questão, pelo elevado grau de complexidade e incerteza dessas atividades (FIANI, 2013). A administração de conflitos representa outra função a ser desempenhada pelo poder público.

Em resumo, promover coordenação e buscar novas oportunidades estão diretamente ligadas à capacidade técnica e administrativa do Estado, enquanto a solução de conflitos remete ao exercício da capacidade política de mediação, conforme descrito por Gomide e Pires (2014).

Os casos retratados na seção empírica do presente artigo procuram ilustrar essa discussão sobre a participação (ou não) do Estado em arranjos institucionais híbridos e desenvolvimento sustentável local. A transação tomada como objeto de estudo, comum aos quatro casos apresentados, é o fornecimento de sementes e frutas oleaginosas para indústria processadora, que utiliza estes como insumo da indústria de cosméticos. Antes de apresentar os resultados empíricos da pesquisa, faz-se necessário uma breve descrição dos procedimentos metodológicos utilizados na coleta de dados junto a comunidades da Amazônia e do Cerrado, mais especificamente nas localidades Furo do Gil (município de Breves), Salvaterra e Bragança, no estado do Pará, e Palmeira do Piauí, no sul do estado do Piauí.

3. Metodologia e procedimentos de pesquisa

O caminho escolhido é o de precisar o impacto social do aumento de renda familiar propiciado pela coleta de produtos florestais não madeireiros (PFNMs). No caso, são sementes oleaginosas e frutos, e a ideia é mensurar o resultado dessa atividade sobre a renda total das famílias para, em seguida, examinar se houve mobilidade social. A amostra utilizada alcança um número representativo de famílias coletoras de sementes oleaginosas, domiciliadas em áreas rurais de quatro municípios das regiões Norte e Nordeste do Brasil, três no estado do Pará – Salvaterra, Breves (Furo do Gil) e Bragança, e um no estado do Piauí – Palmeira do Piauí e Uruçuí.

Os experimentos se diferenciam dos estudos observacionais justamente pela possibilidade de manipular os dados através do controle e do tratamento, o que não é possível no caso da observação (MORTON; WILLIAMS, 2008; MORTON; WILLIAMS, 2010). A crescente utilização de experimentos para as áreas de Humanidades traz a vantagem de isolar efeitos de variáveis de forma clara e objetiva. No entanto, quando aplicado a estudos multidisciplinares em geral, os experimentos tornam-se mais difíceis de operacionalizar, sobretudo pela questão de seleção amostral randômica que é um dos postulados mais importantes da metodologia. Assim, versões mais ‘flexibilizadas’ ou heterodoxas da metodologia surgiram justamente para que a aplicação da metodologia experimental pudesse ser mais abrangente.

Como assinalado, a proposta aqui é a de aplicar um semiexperimento, metodologia que possui as mesmas características dos experimentos: grupos tratamento, controle e manipulação de variáveis. O diferencial está na seleção amostral. No caso das comunidades rurais da Amazônia legal brasileira, a aleatoriedade dos grupos não é possível de ser alcançada pelas limitações de custos e de tempo. O sorteio randômico para a entrevista das famílias em uma comunidade territorialmente extensa demandaria mais tempo e traria impacto no orçamento do projeto de pesquisa. Por esse motivo, a amostra é estratificada em um N (famílias) cuja amostra é representativa do conjunto de famílias daquela comunidade rural.

Estimativas das organizações coletivas locais sugerem que cerca de 200 famílias realizam atividade de coleta de sementes e frutos em Salvaterra, aproximadamente 600 em Bragança, 250 em Breves e outras 300 em Palmeira do Piauí e no município vizinho de Uruçuí.

Segundo o IBGE (2010) a população rural destes municípios é, respectivamente, de 1.900, 9.700, 8.950 e 2.050 famílias. A amostra (número de famílias) selecionada contempla as exigências metodológicas para populações finitas (RICHARDSON, 1985), considerando nível de confiança de 95%, precisão de 5% e uma taxa de crescimento da população de 1,5% (IBGE) de forma que para que se tenha a acuidade analítica requerida e que seja possível a generalização dos resultados obtidos para toda a comunidade rural dos municípios em tela. Ao todo foram entrevistadas 377 famílias nos três municípios.

Para fins de avaliação e mensuração de impacto propostas nas pesquisas de campo, o desenho de pesquisa é feito com a combinação de variáveis experimentais e observacionais a partir de uma questão de pesquisa definida, no caso, os impactos sociais relacionados à extração de um recurso natural da biodiversidade. Não é possível entender, mensurar e avaliar estes impactos sem a utilização de uma multiplicidade metodológica que combina o semiexperimento e a observação e que caracterizam um estudo de caso em profundidade (COX, 2015).

Nesse contexto, os semiexperimentos são fundamentais para verificar a correlação entre variáveis sociais. Uma das vantagens é a validade externa que os estudos semiexperimentais apresentam, ou seja, é possível estabelecer previsões de comportamento para o parâmetro populacional a partir de uma amostra mínima que atenda aos requisitos de semelhança (localização geográfica, composição étnica, tipo de atividade extrativista etc.). A validade externa permite que os pesquisadores possam replicar os achados de um determinado local para outros locais que possuam as mesmas características sem necessariamente realizar um novo semiexperimento (MORTON; WILLIAMS, 2008), o que seria muito custoso tanto do ponto devista de recursos, como do ponto de vista da execução da pesquisa de campo em si (MORTON; WILLIAMS, 2010).

A operacionalização dos semiexperimentos é igual a dos experimentos tradicionais (com exceção da seleção amostral tratada anteriormente). Estabelece-se um número amostral mínimo a partir de um universo populacional para o grupo controle e para o grupo tratamento. O grupo controle é composto por indivíduos que não estão submetidos ao fenômeno observado, ou seja, aquele que será usado como comparativo para o grupo tratamento, composto por indivíduos que são submetidos ao efeito de um determinado fenômeno. Para exemplificar os grupos, utiliza-se o grupo composto por famílias extrativistas como o tratamento e o grupo composto por famílias não extrativistas como o controle. Da amostra de 377 entrevistas válidas, aproximadamente 57% compunham o grupo controle. A variável independente é a renda obtida com a atividade extrativista e as variáveis dependentes são os impactos socioambientais verificados (tratamento) em relação aos grupos controle.

4. Pluralidade da produção rural de pequena escala

Característica marcante na produção rural destas comunidades é a pluralidade das fontes geradoras de renda e subsistência. Mais de 60 atividades diferentes foram listadas nas entrevistas, com destaque para cultivo de feijão, arroz, milho, pimenta do reino, hortaliças e frutas, produção de farinha de mandioca e cachaça, pecuária de corte, avicultura de corte, manejo do açaí, pesca, coleta de sementes oleaginosas, trabalho externo à propriedade e atividades de subsistência.

Grande parte das atividades é sazonal e depende de períodos específicos de colheita. No caso da Amazônia, a colheita da grande parte das frutas e sementes está condicionada aos meses de chuva, período chamado ‘inverno amazônico’. Em geral estes produtos não podem ser estocados e a renda marginal proveniente deles não é suficiente para manutenção familiar anual. A pluralidade de atividades acaba sendo uma característica tradicional dessas comunidades. 

Atividades como a produção de farinha, coleta de açaí, criação de animais e emprego fora da propriedade possuem forte incentivo por serem menos dependentes de safra, tanto na geração de renda quanto na subsistência da família. O açaí, por exemplo, pode ser colhido em pequenas quantidades o ano todo para manutenção da casa; nos meses de maior produção o excedente é vendido para geração de renda. 

As atividades podem ser agrupadas seguindo a lógica proposta por Barrett e Reardon (2000) e Barrett et al. (2005) conforme a sua natureza e local de execução, sendo elas extrativismo, agricultura, pecuária, serviços desenvolvidos fora da propriedade (emprego fixo ou temporário) e atividades de manufatura como artesanato e extração de óleos de forma rudimentar.

Chama a atenção a importância de programas governamentais de transferência de renda (bolsa família, bolsa verde e seguro pesca) na composição da renda das comunidades estudadas. Em Bragança, os programas do governo representam 26% de toda renda obtida, em Salvaterra a participação dos fundos públicos chega a 59%, no Furo do Gil 46% e em Palmeira do Piauí 36%. Municípios com menor renda (caso de Salvaterra e Breves) tendem a depender mais dos programas públicos de transferência monetária. Fomentar alternativas de geração de renda poderia diminuir gastos públicos com tais programas.

A diversificação da produção rural constitui uma característica predominante na maior parte das comunidades investigadas. Apenas 16% dos 377 agregados familiares entrevistados têm suas respectivas rendas provenientes de uma única atividade. Em geral, essas famílias também possuem rendas médias anuais inferiores que famílias que desenvolvem múltiplas atividades. 

Figura 1 – Perfil de diversificação das atividades geradoras de renda e de renda média familiar 


Fonte: Elaborado pelo autor. 

Destaca-se que atividades de subsistência (não geram renda) e rendimentos provenientes de programas sociais promovidos pelo governo brasileiro não foram incluídos na análise. Ou seja, os números de fontes de renda são, na maioria das vezes, muito maiores do que os demonstrados em tela.

Reardon (1997), Ellis (2000) e Reardon et al. (2008) enfatizam a necessidade de considerar as atividades de subsistência em estudos de diversificação no meio rural, contudo, esses mesmos autores reconhecem a dificuldade metodológica em mensurar os benefícios decorrentes das atividades de subsistência. Reardon et al. (2008), por exemplo, sugerem que a escolha em alocar recursos em uma atividade menos produtiva, ou de retornos comparativamente inferiores, podem estar relacionada à dificuldade (custos de transação) de adquirir itens que supram necessidades básicas da família no mercado corrente, contudo é difícil determinar com precisão tais custos.

É possível observar alguma relação entre a renda média da comunidade e a diversificação. Comunidades com renda média mais baixa tendem a buscar mais fontes de renda, como os casos do Furo do Gil e Salvaterra. Tal resultado vai ao encontro do descrito por Palich, Cardinal e Miller (2000), Khanna e Palepu (2000) e Moreira e Planellas (2003), que também encontraram uma função na forma de “U invertido” para renda média e número de atividades desenvolvidas. Para esses autores, a firma depara-se com um limite de diversificação que pode ser eficientemente gerenciado, a performance aumenta com a diversificação até certo ponto e depois começa a decrescer (GRZEBIELUCKAS et al., 2012).

A existência de um ponto ótimo de diversificação sugere haver uma intersecção no debate travado na literatura acadêmica entre aqueles que defendem a diversificação com fonte criadora de valor competitivo e aqueles que sustentam a necessidade de especialização (enfoque) nas ações empresariais. A solução parece estar “nem tão ao céu, nem tanto à terra”, sendo a estratégia condicionada às capacidades da firma, fatores contingenciais, posicionamento no mercado competitivo e na articulação inter organizacionais. Indústrias com grande capacidade produtiva e gerencial, onde o processo de tomada de decisão ocorre de forma decentralizada, poderiam ter níveis de diversificação muito superiores aos encontrados junto à produção rural familiar estudada, entre 4 e 5 atividades geradoras de renda.

5. O impacto da coleta de sementes sobre a renda das famílias

Salvaterra e Bragança do Pará 

Salvaterra é um município litorâneo que fica no lado oriental do arquipélago do Marajó. Já Bragança fica no continente, localizado na costa atlântica do Pará, outrora uma região de floresta, mas hoje um município voltado à agricultura familiar – o quinto maior produtor de farinha de mandioca do país. As duas regiões podem ser classificadas como uma das mais carentes do estado.

A pesquisa indica que a demanda por frutos e sementes oleaginosos oferece uma alternativa de geração de trabalho e renda às populações locais. Não bastasse o baixo desempenho econômico local, há que se atentar para uma realidade de baixíssimos índices de acesso à educação formal, o que cria um ciclo de pobreza que pode ser quebrado pelo incentivo de mercados, visto que as políticas públicas horizontais são insuficientes e trazem resultados somente no longo prazo.

A coleta de frutos e sementes oleaginosas em Salvaterra e Bragança representa uma fração da renda total familiar obtida pelas comunidades. A conclusão é a de que produtores rurais familiares das comunidades visitadas dificilmente obtêm sua renda a partir de uma única atividade. A produção agroextrativista ou extrativista na Amazônia se caracteriza pela diversificação de atividades. O produtor desenvolve atividades pensando na manutenção do fluxo de renda e, principalmente, na sua subsistência e de sua família. 

Ao todo foram listadas cerca de 60 diferentes fontes de renda, do extrativismo, passando pela agricultura e pecuária, até chegar ao emprego fora da propriedade em diferentes segmentos. Para a análise apresentada, foram consideradas somente as de maior importância (em termos de geração de renda e frequência). No caso de Salvaterra destacam-se entre as fontes de renda a pesca (cerca de 14% da renda), a coleta de oleaginosas (8%) e os programas de transferência de renda Bolsa Família, Aposentadoria Rural e Seguro Defeso (que chegam a somar 60% da renda familiar). Em Bragança, as fontes de renda características são: produção de farinha de mandioca (38%), criação de frango de corte (10%), outras atividades agrícolas (cerca de 5%) e coleta de oleaginosas (5%), além do Bolsa Família e da Aposentadoria rural (que somam 17%).2

Os resultados mostram que incentivos a determinadas atividades podem modificar a escolha do conjunto de atividades desenvolvidas, diminuindo a dependência, em termos de geração de renda, de uma única atividade. Em tese, o incentivo à coleta de frutos e sementes oleaginosas poderia diminuir a pressão sobre os recursos naturais envolvidos na atividade de pesca e produção de farinha, ou mesmo a dependência de programas de transferência de renda.

O quadro abaixo apresenta a renda média mensal para os quatro grupos investigados. Como pode ser observado, a renda média mensal dos produtores de Bragança é, em geral, maior do que a de Salvaterra. Com exceção do grupo de não coletores – não cooperados de Salvaterra, as rendas médias entre os grupos e entre as localidades não difere estatisticamente. Isso sugere que a coleta de frutos e sementes oleaginosas, por si só, não representa uma alternativa na obtenção de renda superior aos produtores.

Então, qual o efeito da coleta de frutos e sementes oleaginosas na renda das comunidades?

Para responder à questão é preciso examinar a renda de forma desagregada, entendendo como as diferentes atividades ajudam na composição da renda familiar.

Os resultados indicam que em Salvaterra o extrativismo de frutos e sementes oleaginosas compete com a pesca e dois programas governamentais: o Bolsa Família e o Seguro Defeso. Já em Bragança, a competição se dá com a agricultura familiar, a produção de farinha, a produção de frango (estimulados pelo Pronaf) e o programa Bolsa Família.

O maior nível de competição entre as fontes de rendas em Bragança dentro da cooperativa faz com que o extrativismo seja a opção menos atrativa para a cooperativa, consequentemente apresentando menores frações de renda marginal para essa atividade especifica. Em Salvaterra, a renda do extrativismo, apesar de complementar, é a segunda maior fonte relacionada às atividades geradoras de renda e se apresenta como uma opção atrativa para as famílias cooperadas e não cooperadas.

No que se refere aos recursos do Bolsa Família, as comunidades de Salvaterra são comparativamente mais dependentes do que as de Bragança. A diversificação de atividades realizadas pelas famílias neste município possui efeito positivo em relação à dependência dos programas governamentais assistencialistas, mesmo que haja relação direta nas atividades produtivas, como é o caso do Pronaf para a produção de frango e para a agricultura familiar em Bragança.

No caso de Salvaterra, as rendas da pesca, do Seguro Defeso e da Bolsa Família aumentam em relação aos membros cooperados, ou seja, há maior dependência dos programas de transferência de renda do governo. Esta comparação é possível por conta da condição de igualdade para cooperados e não cooperados no que se refere ao preço pago para os dois grupos nas duas cooperativas pelo quilo de oleaginosas coletado. 

No caso de Bragança, as famílias não cooperadas obtêm maior fração de renda através da produção de farinha, mas as frações de renda das atividades relacionadas à produção de frango e a outras atividades agrícolas são menores quando comparadas com as famílias cooperadas. Isto pode ser explicado pelo fato de que a cooperativa possui uma diversidade maior de atividades e concentra os membros que são beneficiados pelo programa Pronaf, responsável por estimular as duas últimas atividades.

O terceiro recorte traz o panorama das famílias que não desempenham atividades de coleta e não fazem parte de cooperativas. O retrato desses dois grupos de não coletores e não cooperados ajuda a entender como a dependência da pesca em Salvaterra, e da farinha em Bragança, aumenta quando a atividade de coleta de oleaginosas não é exercida pelas famílias. 

Figura 2 – Composição de renda por fonte de rendimento. Salvaterra – PA 

Figura 3 – Composição de renda por fonte de rendimento. Bragança – PA 

Em Salvaterra, o Bolsa Família possui a menor média para os não coletores e não cooperados quando comparada com os outros dois grupos. Já em Bragança, a dependência da Bolsa Família é extremamente baixa quando comparada com as outras duas fontes de renda. No caso deste último grupo, a concentração dos esforços em uma principal atividade (farinha) torna os custos de inserção de novas atividades mais altos, uma vez que a estrutura de governança está muito mais relacionada com a produção de farinha do que com o extrativismo.

De forma geral, pode-se dizer que a inserção de novas atividades em comunidades que possuem maior diversificação histórica de atividades é menos custosa do que em comunidades cuja estrutura de governança está voltada a um número menor de práticas, uma vez que as capacidades desenvolvidas em comunidades mais diversificadas fazem com que seja mais fácil introduzir outras opções, ou seja, transferir as capacidades para outras estruturas de governança. 

Breves (comunidade do Furo do Gil)

O município de Breves, no estado do Pará, tem cerca de 50% de sua população residindo em áreas rurais, de acordo com o Censo de 2010; o equivalente a 43.000 mil habitantes. Breves possui mais de 9.500 km² e o chamado Furo do Gil3 está localizado na porção norte do município, em uma região relativamente remota e isolada do centro urbano administrativo. A região investigada está mais próxima à capital do Amapá do que da zona urbana municipal, sendo assim será tratada doravante apenas como Furo do Gil.

Dois grupos de famílias foram alvo dessa etapa da pesquisa realizada em julho de 2014: coletores de frutos e sementes oleaginosas e não coletores. Isso porque a criação da Cooperativa dos Produtores e Extrativistas do Distrito de Curumum (COPEDIC) ocorreu durante o período de visita. Diferentemente das outras localidades, os não coletores de sementes são os que possuem maior renda no Furo do Gil. Entre os motivos para que isso aconteça encontra-se a exploração da madeira, uma atividade ligada à operação de serrarias clandestinas atuantes na região. Anualmente, cerca de 1/3 da renda obtida por este grupo é proveniente da madeira. Na situação oposta, os coletores praticamente não estão ligados às serrarias, uma demonstração inequívoca que o açaí, a pesca e a coleta de sementes compõem uma alternativa importante para substituir a exploração predatória da madeira.

Cabe notar que a atividade de coleta de frutos e sementes no Furo do Gil era ainda incipiente no período em que a pesquisa foi realizada. A fração de renda promovida por essa atividade era pouco expressiva perto de outras atividades como a extração de madeira, coleta de açaí e os programas de transferência de renda promovidos pelo governo.

Em termos percentuais, os programas do governo representam 44% da origem da renda entre famílias não coletoras e cerca de 49% da renda familiar dos coletores. Contudo, verifica-se que a coleta de sementes, somada a programas de transferência de renda, oferecem uma alternativa à atividade madeireira, inclusive se considerarmos que muitos dos empregos também ocorrem neste setor. 

Figura 4 – Composição de renda por fonte de rendimento. Furo do Gil (Breves) – PA 

Como existe uma interdependência entre a derrubada das árvores e as atividades de serrarias clandestinas, os não coletores conseguem obter mais de cem mil reais ao ano com a extração e o corte de madeira na região. A renda da madeira representa quase 1/3 da renda total obtida pelos não coletores ao final de um ano. Ademais, são famílias mais vinculadas às atividades de prestação de serviços (transporte, diarista, venda de combustível etc.). No caso dos coletores não cadastrados pela cooperativa, diminui bastante a extração de madeira e as atividades de serraria. No caso dos coletores cadastrados, praticamente nenhuma das famílias está envolvida na atividade das serrarias, um indicador claro de que o açaí, a pesca e a coleta de sementes promovem um efeito substituição importante, apesar da renda agregada ser menor.

Em volume de renda, o extrativismo é a estrutura de governança mais importante para coletores e coletores não cadastrados, perde apenas para os programas de transferência de renda. O extrativismo é o conjunto de atividades que demanda custos de transação mais baixos porque as famílias estão habituadas a desenvolvê-las concomitantemente. Retirar açaí, pescar camarão, coletar sementes, matar pequenos animais (paca, tatu, preguiça, macaco e guandu – uma espécie de porco espinho), colher frutos são atividades corriqueiras, realizadas a cada entrada na floresta ou nos rios. O problema é que a retirada da madeira também faz parte das habilidades desenvolvidas pelos ribeirinhos. Como incentivar algumas atividades e outras não, se os custos de transação de mudar de uma para outra são tão baixos?

Como já foi assinalado, a renda do não coletor é mais concentrada em determinadas atividades não extrativistas, e a madeira e o seu beneficiamento são as mais importante delas, só perde para os benefícios dos programas de transferência de renda. Metade deles extrai madeira da floresta e chega a cortar até 317 árvores/ano. Somando-se o total de metros cúbicos e árvores retiradas no ano, chega-se a 2.667 metros cúbicos, algo entre 533 (mínimo) e 667 (máximo) de toras/ano. O número é subestimado porque não foram consideradas as toras beneficiadas pelas serrarias de onde muitos familiares obtêm rendimentos expressivos, ou seja, esse número deve ser bem maior. Ademais, são apenas 66 famílias, há outros 43 mil habitantes que vivem em áreas rurais de Breves e que uma parte deles, ao menos, deve fazer uso da extração de madeira para aferir rendimentos.

Palmeira do Piauí e Uruçuí

O município possui 4.993 habitantes, sendo que 3.229 (64,68%) vivem na zona rural, enquanto que 1.764 (35,32%) vivem na zona urbana (CENSO, 2010). O Produto Interno Bruto (PIB) per capita é de R$ 5.815,61 (IBGE, 2012). De 1991 a 2010, o IDH-M do município passou de 0,279 (1991) para 0,557 (2010), enquanto o IDH do Piauí passou de 0,493 para 0,727. Isso implica em uma taxa de crescimento de 99,64% para o município e 47% para o estado do Piauí; e em uma taxa de redução do hiato de desenvolvimento humano de 61,44% para o município e 53,85% para o estado. O município está na faixa de Desenvolvimento Humano Baixo (entre 0,500 e 0,599). A dimensão que mais contribui para o IDH-M do município é Longevidade com índice de 0,704, seguida de Renda, com índice de 0,570, e de Educação, com índice de 0,431 (dados de 2010). No município, a dimensão cujo índice mais cresceu em termos absolutos foi Educação (com crescimento de 0,329), seguida por Renda e por Longevidade. No estado do Piauí, por sua vez, a dimensão cujo índice mais cresceu em termos absolutos foi Educação (com crescimento de 0,358), seguida por Longevidade e por Renda (ATLAS DO DESENVOLVIMENTO HUMANO, 2013).

A pesquisa também foi realizada no município de Uruçuí. No caso, os dois municípios encontram-se fora da região conhecida como Amazônia legal, mais especificamente no bioma cerrado. As famílias foram visitadas e divididas em dois grupos: coletores de sementes e não coletores. Em relação ao primeiro, mais uma vez optou-se pelo recorte associado à existência ou não de ligação com cooperativas. Neste último caso, estamos falando da Cooperativa dos Produtores de Óleo e Derivados do Buriti de Palmeira do Piauí (BURITICOOP), fundada em 2012.

A renda média mensal dos coletores de frutos e sementes oleaginosas é mais elevada do que a dos não coletores. Os frutos e sementes competem com a produção de cachaça, uma atividade que promove sinergias ambientais entre a plantação de cana e as áreas alagadas dos buritizais. São áreas complementares onde o plantio de cana-de-açúcar ajuda na preservação das áreas de várzea onde se localizam os buritizais. 

Figura 5 – Composição de renda por fonte de rendimento. Palmeira do Piauí e Uruçui – PI 

O grupo de coletores no Piauí segue a tendência observada em Salvaterra e Bragança, já que os coletores de sementes oleaginosas têm os rendimentos mais elevados em comparação aos não coletores. Em volume de renda, o extrativismo é a terceira atividade mais importante para os coletores cooperados e a renda da extração sustentável do buriti corresponde a 21,17% da renda total obtida anual­mente. A coleta de frutos e sementes oleaginosas aumenta a diversificação das atividades geradoras de renda, o que promove um aumento de bem-estar com a renda agregada das famílias coletoras. As atividades extrativistas juntamente com a produção de cachaça tornam as famílias menos dependentes dos programas governamentais.

6. Considerações finais

O incremento da renda familiar a partir de um incentivo de mercado para a coleta de frutos e sementes oleaginosas traz resultados que apontam em várias direções. Em primeiro lugar, deve-se considerar as especificidades sociais e dos ecossistemas de cada região. A regionalização socioambiental das comunidades rurais é uma variável interveniente na dinâmica do desenvolvimento local.

Os casos em tela indicam uma forte interdependência entre os incentivos de mercado e os programas de transferência de renda, o que remete ao arranjo institucional que circunscreve a produção rural. De maneira geral, a elevação da renda familiar diminui a dependência dos programas governamentais. Nesse caso, os ganhos de bem-estar são multifocais. Podem ajudar as crianças e adolescentes a permanecer mais tempo na escola, facilitar o acesso aos serviços de saúde na área urbana do município, e aumentar a mobilidade das famílias em direção à cidade. 

Ao mesmo tempo, dois programas dizem respeito à conservação ambiental: Seguro Defeso e Bolsa Verde. Os resultados apontam que nem sempre o incremento de renda familiar produz uma externalidade ambiental. Nos casos do Piauí e em Breves (Furo do Gil), há convergência entre o incremento de renda e a redução do desmatamento e a preservação das áreas de várzea. Mas no caso de Bragança, a coleta de frutos e sementes oleaginosas compete com a produção de farinha. Essa atividade tem o apoio do Pronaf com crédito para o aumento da área de plantio, o que pode estar ocorrendo em áreas de floresta.

O incentivo de mercado à coleta de frutos e sementes traz impactos sociais significativos no aumento do bem-estar das famílias. No entanto, como os resultados apontam, os resultados positivos são de várias ordens de grandeza e não apresentam a mesma intensidade em todas as localidades. Como vimos, o aumento da renda familiar rural pode não vir acompanhado da preservação ambiental. Essa é uma importante questão que deve ser objeto de reflexão por parte das autoridades e órgãos responsáveis por implementar os programas de transferência de renda. Em resumo, o incentivo de mercado à coleta de frutos e sementes traz implicações microssociais para a formulação e implementação de políticas públicas que devem ser consideradas a partir de sua própria dinâmica regional.

Por fim, entender que produção rural de pequena escala tende a ser naturalmente diversificada e que essa pruralidadade de atividades deriva de um puzzle de incentivos que a circunscreve, incluindo mercado e também políticas públicas podem contribuir para discussão sobre o papel do Estado em arranjos institucionais híbridos e desenvolvimento sustentável local, como discutido na seção introdutória deste artigo. Neste caso, os custos de governança, ou a eficiência da alocação de recursos, públicos ou privados, estão diretamente relacionados à construção desses arranjos.

Notas

1 Ver DE MELO, F. B. H.; ZYLBERSZTAJN, D. AGRICULTURA E PERSPECTIVAS. Ciclo de debates 65 anos do IEA. Disponível em: ftp://ftp.sp.gov.br/ftpiea/publicacoes/65anos/65anos-3.pdf. Acesso em: 15 mar. 2016.

2 Os valores apresentados entre parênteses se referem à participação na renda média geral das comunidades analisadas, variando para cada grupo de tratamento.

3 Furo é uma denominação típica do vocabulário amazônico para a comunicação natural (canal) entre dois rios ou entre um rio e uma lagoa.

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