A invisibilização das comunidades Guarani no Plano Diretor do município de Palhoça (SC): as implicações para o planejamento territorial


Fernanda Cerqueira
Mestranda em Planejamento Territorial no PPG em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Socioambiental da UDESC; Servidora da Fundação Nacional do Índio - Coordenação Regional Litoral Sul.

Douglas Ladik Antunes
Doutor em Design pela PUC-Rio; Professor do Departamento de Design da Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC e Professor do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Sócio Ambiental - PPGPLAN/FAED/UDESC

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1    Introdução

A partir da Constituição de 1988 e do Estatuto da Cidade, o planejamento urbano no Brasil sofre significativas alterações, dentre as quais destacamos a importância atribuída aos municípios no planejamento territorial, ao determinar sua competência para promover o ordenamento territorial do município, definindo o Plano Diretor como instrumento básico da política urbana. O Plano Diretor passa a ser central no planejamento territorial dos municípios, devendo incorporar os novos marcos democráticos do planejamento e servindo de instância de articulação entre as diferentes políticas públicas em âmbito municipal.

Relacionado a este tema, é importante registrar que as comunidades Guarani ao longo do litoral de Santa Catarina se encontram em um contexto territorial de intensa expansão urbana e instalação de grandes empreendimentos de infraestrutura. Somada a isso, a falta de regularização fundiária das Terras Indígenas aliada às recentes medidas governamentais[1], no sentido de inviabilizar o avanço no reconhecimento dos direitos territoriais originários dos povos indígenas no Brasil, implicam no aprofundamento do contexto de redução territorial e desequilíbrio ambiental do território Guarani.

Nesse cenário, as comunidades Guarani de Massiambu e Morro dos Cavalos vêm sofrendo com a intensificação de invasões, degradação ambiental e discriminação étnico-racial provocadas pelas alterações do Plano Diretor do município de Palhoça, em Santa Catarina. Em agosto de 2020, a Prefeitura Municipal aprovou a Lei Municipal n° 4.847/20, através da qual instituiu a Macrozona Turística do município, “[...] como instrumento de zoneamento, uso e ocupação e ordenação do território.” (PALHOÇA, 2020, art. 1º). Segundo a lei, a Macrozona Turística tem como finalidade: "[...] ordenar o território e possibilitar a definição de orientações estratégicas para o planejamento das políticas, programas e projetos em áreas diferenciadas, objetivando o desenvolvimento sustentável do Município" (PALHOÇA, 2020, art. 2º, Lei Municipal n° 4.847/20).

A recém-criada Macrozona Turística está localizada na parte sul do município de Palhoça, que corresponde a um lugar sagrado do território tradicional Guarani, onde se encontram as terras indígenas Massiambu e Morro dos Cavalos. A despeito da notoriedade da presença indígena no município, explicitada pelos conflitos entre essas comunidades e o poder público, o novo zoneamento do Plano Diretor, o qual instituiu a Macrozona Turística, não faz qualquer menção à existência do território Guarani. 

Este artigo aborda as consequências da invisibilização da Terra Indígena Guarani Morro dos Cavalos e Massiambu, bem como os principais conflitos territoriais vividos pelas comunidades indígenas. Visa-se, portanto, analisar as relações dos instrumentos de planejamento territorial, em escala local com políticas setoriais e o agravamento dos conflitos territoriais. 

Para tanto, pode-se resumir as etapas de pesquisa da seguinte forma: a. consulta de documentos de órgãos governamentais e não governamentais, b. participação em audiências públicas para discussão da revisão do Plano Diretor (observação direta), c. análise das alterações no zoneamento do Plano Diretor de Palhoça a partir da instituição da Macrozona Turística, d. elaboração de croquis e mapas com informações do zoneamento, e por fim, e. análise dos Planos de Gestão Territorial e Ambiental das comunidades Guarani de Massiambu e Morro dos Cavalos. Tais procedimentos foram adequados à condição de isolamento social provocada pela pandemia da Covid-19[2]. O amparo teórico da pesquisa se fundamentou centralmente nos conceitos de território e territorialidade (LADEIRA; GALLOIS), e nas discussões relacionadas ao Estatuto da Cidade, às disputas cartográficas (ACSELRAD & COLI, 2008) e instrumentos de Planejamento Territorial.

2    O município de Palhoça (SC), o Plano Diretor e a questão ambiental   

A porção sul de Palhoça é o território ao qual correspondem as alterações recentes do zoneamento do Plano Diretor. Nessa região, localizada na Região Metropolitana de Florianópolis, significativa parte da planície litorânea está com suas características ambientais bem preservadas e vêm sofrendo forte pressão pela expansão urbana, resultado da conurbação com a capital do Estado e demais municípios metropolitanos. Essa mesma região, justamente pela sua importância ambiental, encontra-se amplamente protegida pela legislação ambiental, pois faz parte do complexo de biodiversidade da Mata Atlântica.

O zoneamento imposto formalmente ao interior da Terra Indígena Morro dos Cavalos prevê usos incompatíveis com a categoria Terra Indígena ao desconsiderar e invisibilizar esta na Lei Municipal n° 4.847/20. Tal fato não contempla, portanto, a legislação indigenista e sua incidência nas políticas públicas municipais – situação que vulnerabiliza o território Guarani ao facilitar sua invasão. Até então, podemos perceber que a invisibilização das comunidades Guarani aliada à flexibilização da legislação municipal e ambiental, fazem parte de um processo de expansão da urbanização na denominada Macrozona Turística. Portanto, tal invisibilidade se relaciona ao discurso cartográfico, que se situa no âmbito das disputas cartográficas, sendo que os mapeamentos representam a disputa entre distintas representações do espaço que se articulam às próprias disputas territoriais. Assim, o zoneamento deve ser considerado ele mesmo como um enunciado performático, instrumento com consequências práticas no território (ACSELRAD & COLI, 2008).

Ante o exposto, é fundamental reafirmar a imprescindibilidade da regularização fundiária para efetivação dos direitos territoriais Guarani e, para além, é necessário explorar possíveis articulações entre as políticas ambiental e indigenista e a política urbana visando a proteção dessas comunidades. Para isso, buscamos compreender como as alterações do Plano Diretor do município de Palhoça afetam o território Guarani, a partir da relação entre diretrizes da gestão territorial e ambiental de terras indígenas da política indigenista e os instrumentos previstos no Estatuto da Cidade, tomando o Plano Diretor como o instrumento articulador das políticas setoriais.

O Estatuto da Cidade, em seu artigo 1º, parágrafo único “estabelece normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental.” Com o objetivo de ordenar o desenvolvimento das funções sociais da cidade o artigo 2º estabelece uma série de diretrizes gerais. Dentre essas diretrizes é importante destacar temas como gestão democrática, planejamento e ordenação do território e sustentabilidade ambiental – diretamente ligados ao conteúdo do Plano Diretor. Assim, podemos dizer que o Poder Público estará atendendo ao previsto no Estatuto da Cidade quando a aplicação dos instrumentos de política urbana, regulamentados na lei, estiver voltada a essas diretrizes. No capítulo das Diretrizes Gerais constam os parâmetros orientadores da construção da política urbana, dentre os quais destacamos alguns.

O primeiro deles é a garantia do direito a cidades sustentáveis – em sentido amplo, para as presentes e futuras gerações. Dentre o conjunto dos direitos humanos, esse direito passa a ter vigência como um dos direitos fundamentais da pessoa humana. Reconhece, também, a proteção ao patrimônio – em diferentes dimensões como a cultural e histórica - como parte do direito às cidades sustentáveis. Adiante, preconiza a gestão democrática através da participação popular, em todo processo desde a formulação, execução e controle de ações para o desenvolvimento da cidade. Para isso, indica a necessidade de reconhecer politicamente a existência de atores sociais com concepções de vida e de cidade que são conflitantes, cujos interesses devem ser discutidos e negociados em esferas públicas e democráticas. 

Para viabilizar a execução da política urbana pelos municípios, de maneira a atender as diretrizes gerais, o Estatuto da Cidade estabelece instrumentos urbanísticos a serem utilizados. Em razão do tema abordado é importante destacar alguns entre estes instrumentos. A seu respeito vale pontuar aquele denominado “institutos jurídicos e políticos” (inciso V, art. 4º) que, em sua alínea f, viabiliza a criação de zonas especiais. Essa possibilidade tem sido importante para o estabelecimento de zonas destinadas a proteger povos e comunidades tradicionais que se encontram em situação de insegurança jurídica pela falta de regularização fundiária de seus territórios. Embora inicialmente estivessem voltadas especialmente à regularização jurídica da posse da terra para população de baixa renda, há algumas experiências que mostram ser possível explicitar, principalmente em contexto urbano ou de expansão urbana, a vulnerabilidade fundiária e degradação ambiental impostos às populações tradicionais.

Vale destacar, também, o avanço dessa questão na instituição do Estudo do Impacto de Vizinhança (EIV) no Plano Diretor, destinado a empreendimentos considerados promotores de alterações significativas no perfil da região na qual pretendem se instalar[3]. Assim, através da cartografia das diretrizes e objetivos do Plano Diretor expressa no Macrozoneamento e na instituição de Zonas, é definida a divisão do território que embasa as estratégias de intervenção a partir de um referencial espacial. A Resolução Nº 34 de 2005 do Ministério das Cidades, que emitiu as orientações e recomendações quanto ao conteúdo mínimo do Plano Diretor, é bastante clara sobre a necessidade da delimitação de áreas e respectivas destinações nos mapas, com descrições de perímetros, a respeito de toda legislação incidente sobre o uso e ocupação do solo no território municipal (art. 3º, inciso, V[4]).

Junto a esse movimento, houve a crescente incorporação da questão ambiental nos planos diretores, como é o caso das zonas de interesse ambiental. Nesse período, observou-se crescente número de planos diretores que incorporaram a questão ambiental entre suas diretrizes gerais, embora poucos tenham previsto mecanismos e instrumentos capazes de efetivar a política ambiental. Segundo estudos que se debruçaram sobre esses planos diretores, principalmente na década seguinte ao Estatuto da Cidade, a política ambiental não foi abordada de maneira integrada com as demais políticas setoriais. (SANTOS JUNIOR; MONTANDON, 2011).

O tratamento segmentado entre os instrumentos e as políticas em questão implicou em uma visão dualista entre cidade e natureza que ajuda a fragmentar o tratamento da questão a partir da complexidade dos conflitos e de uma abordagem que envolva os usos ambientalmente coletivos, por exemplo, fundamentais na relação dos povos indígenas com o território. Para além, esses estudos apontaram o desafio, frente ao mercado imobiliário, para o enfrentamento dos conflitos advindos das dinâmicas territoriais em áreas de interesse ambiental.

3 A territorialidade Guarani na Baixada do Massiambu 

O território tradicional Guarani - Yvy Rupa - compreende partes da Bolívia, do Paraguai, da Argentina, do Uruguai e do Brasil, onde nas regiões Sul e Sudeste encontram-se atualmente cerca de cem tekoa (aldeia), além de outros locais de uso, de paradas provisórias ou sistemáticas e áreas esbulhadas. 

Na região metropolitana de Florianópolis há cerca de 10 tekoa (aldeia). Dentre as áreas reivindicadas por tradicionalidade, somente uma foi homologada e atualmente se encontra em processo de reestudo. Na região da Baixada do Massiambu, área afetada diretamente pela criação da Macrozona Turística, estão localizadas: a Terra Indígena Morro dos Cavalos, composta pelas aldeias ItatyYakã Porã e o Centro de Formação Tataendy Rupa, e; a terra indígena Massiambu – Pirarupa

A Terra Indígena Morro dos Cavalos, com 1.998 hectares, foi declarada como de ocupação tradicional através da Portaria Declaratória 771 de 2008 do Ministério da Justiça. Desde então, a comunidade reivindica o avanço no processo de regularização fundiária da Terra Indígena, com a indenização dos ocupantes de boa fé e sua saída da área declarada, bem como o ato de homologação pela Presidência da República. Diversas ações judiciais contestaram a demarcação, nas quais a decisão foi favorável aos indígenas. Atualmente, a Ação Cível Originária 2323, a última investida do governo estadual contra o reconhecimento dos direitos territoriais Guarani no Morro dos Cavalos, aguarda julgamento no Supremo Tribunal Federal, estando ligada ao resultado do julgamento com repercussão geral da Ação Cível Originária 1100, do caso da Terra Indígena Ibirama Laklano, do povo Laklano-Xokleng, também de Santa Catarina.

A terra indígena Massiambu está em processo de identificação por tradicionalidade. No momento, a comunidade vive numa área de apenas 4,6 hectares. Essa área corresponde a um imóvel objeto de sequestro pelo estado de Santa Catarina, o qual foi cedido para Fundação Nacional do Índio em 1993. O Grupo de Trabalho de identificação foi instituído há mais de dez anos e até o momento não concluiu os estudos. A literatura do século XVI relata a foz do rio Massiambu como importante local de reabastecimento, comércio e trocas entre diferentes grupos não indígenas e indígenas. Naquela época, o local era conhecido como “Porto dos Patos”, propício para aportar as embarcações, que ali se abasteciam com mantimentos e água (ANTUNES et al., 2011; PERES, 2019). 

Desde então, cada vez mais a região foi sendo invadida por diferentes grupos de juruá (não indígenas) e à medida que a ocupação da costa litorânea se intensificava, os Guarani se deslocavam de maneira a evitar o contato e decorrentes conflitos. Entretanto, essa região nunca deixou de ser território Guarani e, junto à Ilha de Santa Catarina, representa um lugar sagrado de referência para o deslocamento das famílias. 

A partir da década de 1960 as obras de infraestrutura alteram intensamente a dinâmica espacial da região. A instalação das rodovias BR 101 e 282 foi profundamente impactante para a territorialidade Guarani no litoral de Santa Catarina. Com a implantação das rodovias – que na região do Morro dos Cavalos atravessou o território, o processo de urbanização se intensificou. Decorre disso as reivindicações de reconhecimento do território Guarani com a regularização fundiária das terras que tradicionalmente ocupam[5], que ganharam visibilidade principalmente com as obras de duplicação da rodovia BR 101.

Observamos que embora a demarcação de terras signifique o confinamento das comunidades em pequenas porções do extenso território Guarani, esses compreendem que atualmente ela é necessária.

“Nosso povo deslocou-se em busca de um lugar que garantisse o futuro das crianças e jovens, a permanência de nossas vidas e biodiversidade das florestas. A percepção de território, Yvy Rupa, para nós está ligada com a ideia da livre circulação em espaços onde cabem o Nhandereko, modo de vida Guarani. A terra são pequenas partes desse vasto território. Hoje essas terras precisam ser homologadas para uma garantia da existência de tekoas e do Nhandereko, para que consigamos circular pelas tekoas com certa segurança, na tentativa de uma vida sem violências vindas de juruá (não indígena).” (TERRA INDÍGENA MORRO DOS CAVALOS, 2021, p.16).

Embora para as Terras Indígenas sejam estabelecidos limites físicos, a territorialidade Guarani projeta o território para além desses limites. De maneira geral, autores clássicos desde Ratzel vinham utilizando o conceito de território como uma porção circunscrita do substrato espacial material, historicamente associado ao recorte político-espacial definido pelo Estado-nação. Atualmente, podemos afirmar que a relação que gera o território envolve poder, para além do poder político – incluindo tanto o poder de dominação quanto o simbólico, de apropriação. Assim, o território como ”campo de força”, seria a projeção espacial de relações de poder. (HAESBAERT , 2004a; SOUZA, 1995; 2018).

Nesse sentido, o território seria múltiplo, diverso, já que enquanto “espaço-tempo vivido”, apropriado, admite a sobreposição de territorialidades, ao contrário do território “unifuncional” proposto e reproduzido pela lógica capitalista hegemônica. Logo, devemos identificar os territórios a partir daqueles que os constroem, reconhecendo os objetivos do controle social, sejam eles de ordem mais material/econômico-políticos ou simbólica/cultural. (HAESBAERT, 2004b).

Por sua vez, a territorialidade diz respeito às práticas espaciais, que exprimem os elementos culturais presentes nas experiências de ocupação e gestão territorial indígena. Somado a isso, o contato com os não indígenas coloca os grupos indígenas diante de lógicas espaciais distintas das suas, estabelecendo um contexto de confronto entre lógicas espaciais e, por conseguinte, diferentes formas de organização territorial (GALLOIS, 2004). Sendo a territorialidade construída através das práticas espaciais, consideramos essas como práticas sociais nas quais a espacialidade é ponto fundamental da forma de organização ou dos objetivos a serem alcançados. (SOUZA, 2018).  Assim, diferentes práticas espaciais são combinadas em estratégias sócio-espaciais, que podemos relacionar aos diferentes contextos vividos localmente pelos indígenas.

Entre os Guarani podemos observar categorias e conceitos específicos que se relacionam com uma dinâmica de controle social e apreensão territorial que extrapola os limites físicos das aldeias. Ainda, ao estudar a maneira como os Guarani vivem e se organizam social e espacialmente é importante considerar a diversidade de origem e vivências dos grupos familiares, e como essas experiências são incorporadas e adaptadas em diferentes realidades locais (LADEIRA, 2007; 2008).

Isso porque uma das características fundamentais da cultura Guarani é a mobilidade, que nos remete ao extenso território Guarani. A literatura a respeito da mobilidade Guarani tratou os deslocamentos a partir do motivo mítico, referenciados pelos lugares sagrados em direção ao mar, onde se pode chegar à “Terra Sem Mal”, a “Terra Sem Males”, a “Terra Indestrutível”, intensamente abordada na etnografia sobre os Guarani.

“Nosso território, Yvy Rupa, é a floresta Mata Atlântica, regada pelo oceano Atlântico. Acreditamos que para além do oceano existe a Yvy Mara’ẽyn, a terra sem males, e a chegada nessa terra é a caminhada de nossas vidas. Por isso precisamos nutrir a terra de diversidade, movimentar e plantar nosso alimento, nos alimentar do que plantamos. Dessa forma, nutrimos a plenitude do espírito para que em nossa partida possamos atravessar o oceano na passagem para a Terra sem Males.” (TERRA INDÍGENA MORRO DOS CAVALOS, 2021, p.20).

Somado a isso, a mobilidade entre aldeias tece uma rede de relações que confere unidade ao território, apesar da descontinuidade física. (LADEIRA, 2007; 2008). 

“Buscamos manter nossos processos culturais através da circulação nas terras, havendo mudanças e trocas de e entre pessoas cotidianamente. Isso faz com que os laços de parentesco sejam conectados sem fronteiras e a ligação das pessoas com o vasto território seja intensa, principalmente para os mais velhos que passam por várias terras durante suas vidas e visitam parentes por todo território.” (MORRO DOS CAVALOS, 2021, p.16).

A circulação entre aldeias acontece por diferentes motivações como visitar os parentes, troca de informações, casamento, dentre outras. Essa convivência e a reciprocidade são fundamentais no modo de vida Guarani, e influenciam a dinâmica de ocupação territorial. Relaciona-se a isso, a ética do “caminhar” (guata), que por sua vez é fundamental para a saúde Guarani[6].

A abordagem mais contemporânea é buscar compreender a mobilidade no contexto dos processos históricos que transformaram o modo de concepção e uso do espaço, além de analisar as formas atuais de apreensão da espacialidade e do manejo ambiental, intimamente ligados à Mata Atlântica (PISSOLATO, 2007; LADEIRA 2007, 2008). São os ambientes associados a esse bioma que fornecem os elementos necessários para a formação de um tekoa (aldeia), no sentido ideal de lugar onde se pode viver o teko (modo de ser Guarani):

“A percepção de território, Yvy Rupa, para nós está ligada com a ideia da livre circulação em espaços onde cabem o Nhandereko, modo de vida Guarani. A terra são pequenas partes desse vasto território. Hoje essas terras precisam ser homologadas para uma garantia da existência de tekoas e do Nhandereko, para que consigamos circular pelas tekoas com certa segurança.” (TERRA INDÍGENA MORRO DOS CAVALOS, 2021, p. 15).

Assim, podemos afirmar que a territorialidade Guarani, como prática espacial exercida em profunda relação com a Mata Atlântica, apresenta-se como uma força de resistência no contexto de expansão urbana prescrito na instituição da Macrozona Turística de Palhoça. Ao mesmo tempo em que essas práticas Guarani são condicionadas pela existência da Mata Atlântica e a manutenção de suas características, elas produzem as condições de conservação desse bioma na Baixada do Massiambu.

3.1 Interfaces da política indigenista e urbana

No texto da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas observamos referências às diferentes políticas públicas, especialmente àquelas de ordem territorial. Em geral, referem-se à necessidade de participação dos povos indígenas na elaboração dos instrumentos de gestão e planejamento do território. Também afirma as instâncias de participação dessas políticas como  legítimas para participação dos povos indígenas e consequente discussão sobre a relação de seus territórios com a sociedade nacional. Essa previsão também consta no Decreto 5.051 de 2004 e na Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), os quais preveem a consulta sempre que medidas legislativas ou administrativas possam afetar diretamente comunidades tradicionais e, ainda, que os programas governamentais devem ser efetivados junto às comunidades interessadas desde o planejamento, coordenação, execução até sua avaliação.

Como mencionado, o Plano Diretor do município de Palhoça não incluiu as terras indígenas em seu zoneamento, ainda que de maneira menos explícita. Por outro lado, reconhecemos a importância que esse instrumento da política urbana tem em regular o uso e ocupação do solo, induzindo a ocupação ou, pelo contrário, criando áreas de uso especial, estratégicas para determinados objetivos de regulação.

Assim, a partir da intersetorialidade entre as políticas urbana e indigenista, interessou-nos estabelecer interfaces e ações possíveis para a implementação de instrumentos que possam contribuir para proteção dessas comunidades Guarani frente à expansão urbana na região da Baixada do Massiambu, parte do extenso território tradicional Guarani.

Para isso, partimos das ameaças e objetivos de “bem viver” indicados nos Planos de Gestão Territorial e Ambiental dessas comunidades, com objetivo de reduzir os impactos e violências sofridas cotidianamente. Em seguida, relacionamos essas ações aos objetivos previstos na Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas, estruturados em eixos temáticos para, então, explorar interfaces com a política urbana, tomando o Plano Diretor como instrumento de articulação entre as políticas.

3.2 Os Planos de Gestão de Massiambu e Morro dos Cavalos e os objetivos da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental

Inicialmente, apresentamos abaixo a Tabela 1 que apresenta um confronte entre ameaças relatadas nos Planos de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas[7], e ações indicadas por eles para o bem viver das comunidades.

Tabela 1 – Ameaças e as ações para o bem viver Guarani.

 

AMEAÇAS

AÇÕES PARA O BEM VIVER

TI[8] MASSIAMBU

Monocultura de arroz: obstrução dos afluentes do Rio Massiambu e contaminação hídrica por agrotóxicos

Demarcação da terra indígena

Substituição da monocultura de arroz por agrofloresta

Constrangimento pelo uso do rio

Gestão compartilhada na área do PAEST[9]

Trilha etnoturística e casa turística

TI MORRO DOS CAVALOS

Expansão do reflorestamento do Pinnus

Homologação da TI

Conservação da biodiversidade

Invasão dos limites da TI

Gestão compartilhada com o PAEST

Proteger as nascentes

Divulgação caluniosa de informações sobre os indígenas

Etnoturismo

Dar visibilidade às práticas Guarani e à TI

 

Fonte: Elaborado pelos autores a partir dos Planos de Gestão de Massiambu e Morro dos Cavalos (2021).

Adiante, relacionamos os objetivos da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI) por eixo temático, conforme disposto no art. 4º.

O inciso I, denominado eixo 1 – proteção territorial e dos recursos naturais, é composto por 10 alíneas, dentre as quais destacamos o que segue. O primeiro tema diz respeito à questão hídrica – ela é considerada central nos Planos de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA) analisados, assertivamente. As áreas que ainda possuem Mata Atlântica, principalmente as mais acidentadas, se destacam pela importância na produção de água. A Mata Atlântica, que é constituída por um conjunto de formações florestais e ecossistemas associados (restingas, manguezais e campos de altitude), é um dos biomas mais ameaçados do planeta. Atualmente está reduzida a apenas cerca de 22% de sua cobertura original, da qual apenas 7% estão bem conservados em fragmentos acima de 100 hectares, dentre os quais estão localizadas as terras indígenas. Assim, as terras indígenas juntamente com as unidades de conservação são fundamentais para a manutenção da sociobiodiversidade da Mata Atlântica (COMISSÃO PRÓ-ÍNDIO, 2013). Além de abastecer os municípios vizinhos, num contexto de grandes centros urbanos consumidores.

O PGTA da comunidade de Morro dos Cavalos denuncia uma situação sobre esse tema. A área dessa TI compreende uma região hídrica muito importante para o abastecimento das comunidades vizinhas. A despeito do serviço de proteção e revitalização das nascentes e cursos d’água pelos Guarani, localmente são veiculadas informações improcedentes de que, com a homologação da Terra Indígena, a comunidade Guarani impedirá o acesso à água pelos não indígenas (TERRA INDÍGENA MORRO DOS CAVALOS, 2021, p. 38). Pelo contrário, no Plano de Gestão os Guarani reafirmam que “Para nosso povo, a água é um bem sagrado e comunal, que jamais poderá ser privatizada e não deverá ser contaminada. Além disso, a preservação das matas minimiza os problemas de seca.” (TERRA INDÍGENA MORRO DOS CAVALOS, 2021, p. 39). Nesse sentido, a alínea f indica que deverão ser promovidas “ações de proteção e recuperação de nascentes, cursos d’água e mananciais essenciais aos povos indígenas” (art.4º, inciso I[10]).

A divulgação da cultura Guarani e os serviços ecossistêmicos prestados pelos povos indígenas, somada às ações constantes nesse objetivo, podem contribuir para combater a animosidade local causada pela “divulgação caluniosa de informações sobre os indígenas”, que consta como uma das “ameaças” no plano da comunidade de Morro dos Cavalos ou o constrangimento relatado por Massiambu quanto ao uso comum do rio.

A respeito da vulnerabilidade da comunidade Guarani de Massiambu, em razão da demora para finalização do processo de delimitação, a alínea c prevê “[...] a proteção dos recursos naturais das terras indígena em delimitação, por meio de ações de prevenção e de defesa ambiental pelos órgãos e entidades públicos competentes, em conjunto com os povos, comunidades e organizações indígenas” (art.4º, inciso I[11]). Assim, a defesa ambiental das áreas ocupadas pela comunidade deve ser garantida, durante todo o processo, pelos órgãos e entidades competentes, como, por exemplo, a Fundação Cambirela de Meio Ambiente de Palhoça.

A seguir, no inciso II, eixo 2 – governança e participação indígena - há seis objetivos, dentre os quais destacamos a vinculação com instrumentos de planejamento territorial. De maneira mais direta, faz referência à necessidade de participação dos povos indígenas nos processos de zoneamento ecológico-econômico (alínea b) e nos comitês e subcomitês de bacias hidrográficas (alínea d). Também cita a necessidade de participação indígena no monitoramento da qualidade das águas em terras indígenas.

O eixo 3 – áreas protegidas, unidades de conservação e terras indígenas (inciso III) -  reforça a necessidade enfatizada nos planos de assegurar aos Guarani de ambas as comunidades a gestão compartilhada do Parque Estadual da Serra do Tabuleiro - PAEST[12]. Indica que planos conjuntos de administração das áreas de sobreposição das terras indígenas com unidades de conservação sejam elaborados e implementados com os povos indígenas (alínea b), assim como a participação indígena nos conselhos gestores das unidades de conservação localizadas em áreas contíguas às terras indígenas (alínea c). Conforme já salientado anteriormente, a territorialidade Guarani se dá para além dos limites confinantes das poligonais da delimitação e demarcação de terras indígenas, e parcela significativa dessas áreas, de diversos usos pelos Guarani, se encontra nos limites do PAEST.

Passando ao eixo 4 – prevenção e recuperação de danos ambientais (inciso IV) -  constam várias ações voltadas à recuperação e restauração ambiental, incluindo a agrobiodiversidade. Chamamos atenção para as alíneas a, c e d que tratam de recuperação de áreas degradadas, controle da poluição e uso de sistemas agroflorestais na recuperação de paisagens em áreas degradadas. Esses objetivos estão diretamente ligados às propostas de substituição da monocultura de arroz por agroflorestal, ação que, por sua vez, visa controlar a contaminação hídrica por agrotóxicos (Massiambu). Quanto ao Morro dos Cavalos, a substituição do reflorestamento de Pinus por espécies nativas dialoga com objetivos de recuperação de áreas degradadas e a restauração da biodiversidade.

No eixo 5 – uso sustentável de recursos naturais e iniciativas produtivas indígenas (inciso V) - percebemos estreita relação com o eixo anterior, ao passo que promove iniciativas produtivas sustentáveis, como agroflorestas e enriquecimento com espécies vegetais para artesanato. Mas o tema que se destaca é o do etnoturismo. Ambos os planos citam o interesse em implementar essa atividade, através de trilhas ecológicas e casa turística. A alínea g objetiva “apoiar iniciativas indígenas sustentáveis de etnoturismo e ecoturismo, capacitando as comunidades para a gestão das atividades”. Essa ação se relaciona diretamente com as possibilidades de avanço no diálogo com o PAEST.

Por fim, quanto à necessidade de dar visibilidade às práticas Guarani e às próprias terras indígenas, ressaltamos as alíneas a e b do eixo 6 – propriedade intelectual e patrimônio genético, que trata do reconhecimento, proteção e valorização dos direitos dos povos indígenas “sobre conhecimentos, práticas, usos tradicionais, costumes, crenças e tradições associados à biodiversidade e ao patrimônio genético existente nas suas terras”, inclusive através da produção etnocientífica para o fortalecimento de base econômica, social e ambiental. Ainda sobre a visibilidade, o último eixo, 7 – capacitação, formação, intercâmbio e educação ambiental, traz como objetivo central a formação e capacitação não somente dos indígenas, mas também dos não indígenas, principalmente dos quadros técnicos de órgãos públicos que sejam responsáveis pela implementação e execução da PNGATI.

4 PNGATI e Planos Diretores: suas interfaces e outros casos de referência  

Passamos a identificar interfaces entre as políticas indigenista e urbana, a partir dos temas já destacados, que relacionam as ações previstas nos PGTAs e os eixos temáticos da PNGATI.

4.1 O Zoneamento

O zoneamento é um instrumento importante para ordenação de grandes áreas do município. Quanto ao município de Palhoça, o estabelecimento das macrozonas urbana e rural contribuiria para proteção das áreas de relevância ambiental, já que as regras de uso e ocupação do solo para áreas rurais são mais restritivas do ponto de vista da descaracterização ambiental. Além disso, possibilitaria algum nível de controle quanto à franja de expansão urbana, ao explicitar espacialmente o avanço da urbanização em áreas de interesse ambiental que atualmente possuem características rurais, significando menor pressão no uso e ocupação local.

Já as Zonas Especiais de Interesse Social tem sua origem ligada aos movimentos de defesa dos favelados e luta pela consolidação de assentamentos precários que surgiram nas cidades brasileiras no momento da redemocratização, no final da década de 1970. Esse movimento gerou demandas locais por regularização dessas ocupações (BRASIL, 2011, p. 152). Nesse contexto, a partir da década de 1980 começa a se desenhar o instrumento das Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) ou Áreas de Especial Interesse Social (AEIS) como resultado da luta dos assentamentos irregulares pela não remoção e melhoria das condições urbanísticas, além da regularização fundiária.

No caso específico da interface com a política indigenista, a instituição de zonas especiais no zoneamento municipal permite reconhecer a diversidade de ocupações existentes, possibilitando, inclusive, o estabelecimento de planos próprios, qualificados ambientalmente conforme a população de cada zona especial instituída. A aplicação desse instrumento está diretamente relacionada ao “direito a cidades sustentáveis”, como o direito aos meios de subsistência respeitando a pluralidade étnica e cultural, além do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Existem diversas experiências relacionadas a criação dessas zonas, com diferentes nomenclaturas e em diferentes regiões do país. O relatório dos Planos Diretores da Bahia, realizado pela Rede de Avaliação e Capacitação para Implementação dos Planos Diretores Participativos do Observatório das Metrópoles, revelou a articulação entre os Planos Diretores municipais daquele estado com o registro de identidades territoriais ligadas ao tema ambiental (COSTA; CAMPANTE; ARAÚJO, 2011). Em um contexto territorial radicalmente diferente, município de São Gabriel da Cachoeira, estado do Amazonas, tem cerca de 80% de seu território constituído por terras indígenas. No zoneamento do Plano Diretor, as terras indígenas são classificadas como “Macrozona das terras indígenas”, e em seu texto esclarece o papel do município em relação às TIs e determina a consulta prévia aos povos indígenas para realização de qualquer projeto ou obra naquela macrozona (LEVY, 2010).

Outras duas experiências tratam da invisibilização de comunidades tradicionais (indígenas e quilombolas) nos zoneamentos dos Planos Diretores dos municípios de Pontal do Paraná e São Luis do Maranhão. De maneira parecida com o que ocorreu no zoneamento de Palhoça, esses municípios realizaram o rezoneamento sob demanda, instituindo áreas estratégicas de expansão urbana e instalação de grandes empreendimentos, ferindo o direito dos povos e comunidades tradicionais à consulta, como previsto na Convenção nº 169 da OIT (RIBEIRO, 2017; CUNHA, 2018).

Interessante ressaltar experiências analisadas por Abirached (2011) da relação entre diferentes zoneamentos e Áreas Protegidas no litoral de São Paulo. De maneira geral, as comunidades indígenas são reconhecidas no zoneamento do Plano Diretor como zonas de preservação ambiental, turismo sustentável e preservação do patrimônio cultural. Para além, os Planos Diretores incluem em seus objetivos o reconhecimento e valorização do modo de viver das populações indígenas, incluso o apoio para produção de bens culturais. Por fim, registramos o caso do município de Araquari, Santa Catarina, em que, através da judicialização do processo de revisão do Plano Diretor Participativo pelo Ministério Público Federal, a participação das comunidades Guarani foi decisiva para barrar a implementação de zonas industriais sobrepostas às terras indígenas no município, embora a pressão da ocupação no entorno venha impondo forte descaracterização ambiental, sob pena da perda de biodiversidade caso as terras indígenas restem isoladas (WIPPRICH, 2020; NUNES JUNIOR, 2019).

Assim, as possibilidades de contemplar as terras indígenas no zoneamento são diversas e estão relacionadas à proteção territorial e dos recursos naturais, prevenção de danos ambientais e uso sustentável dos recursos naturais. Em todos os casos, fica claro que o zoneamento não deve ser um mero instrumento técnico de planejamento territorial, mas é a sua politização somada à mobilização das comunidades que poderá servir aos objetivos de bem viver dos Guarani da Baixada do Massiambu.

4.2 Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV)

Sem prejuízo à necessidade de estudo prévio de impacto ambiental, nos termos da legislação ambiental, o município pode definir os empreendimentos ou atividades privados ou públicos que dependem de elaboração de estudo prévio de impacto de vizinhança. Conforme inciso VII do art. 37 do Estatuto da Cidade, dentre as questões mínimas a serem analisadas nesse tipo de estudo figura o “patrimônio natural e cultural”.

Dessa maneira, o EIV poderia ser utilizado para fazer constar na lei municipal a necessidade de consulta às comunidades Guarani, como medida relacionada ao monitoramento da intensificação da ocupação e instalação de empreendimentos no entorno das terras indígenas na Baixada do Massiambu. Esse instrumento se relaciona aos mesmos eixos da PNGATI que o zoneamento, além do eixo da governança e participação, com a consulta às comunidades indígenas e algum nível de participação indígena em termos de gestão municipal.

4.3 Democratização da gestão do município

O tema da participação e da consulta perpassa tanto os PGTAs quanto as políticas indigenista e urbana. Destacamos os instrumentos de zoneamento e do EIV pelas possibilidades de intervenção territorial, contudo, a participação das comunidades é pressuposto para que tais instrumentos sejam aplicados com alguma efetividade. A lei que institui a Macrozona Turística do município de Palhoça cria o Conselho Municipal de Desenvolvimento da Macrozona Turística, de natureza consultiva e fiscalizatória, com atribuição de, entre outros, atuar na formulação de diretrizes de desenvolvimento e apresentar projetos e ações nas questões relacionadas ao meio ambiente. Entretanto, o funcionamento de tal Conselho fica condicionado a definições que virão através de Decreto do Poder Executivo Municipal, ou seja, depende de nova regulamentação.

Embora os Conselhos sejam importantes instâncias de participação e consulta, a participação indígena é bastante dificultada. Dentre outras razões, é importante destacar a falta de capacitação legislativa e técnica das prefeituras para o indigenismo, de modo que não é raro presenciar falas preconceituosas e excludentes de agentes públicos nesses espaços. De toda maneira, a exemplo da participação no zoneamento ecológico-econômico e comitês de bacia hidrográfica indicadas na PNGATI, o Conselho Municipal deverá ser criado e pode ser uma instância que traga visibilidade às comunidades indígenas, inclusive promovendo capacitação, formação e intercâmbio cultural.

O etnoturismo, atividade proposta nos PGTAs é um exemplo de ação que envolve esses vários temas, desde a proteção territorial e ambiental, atividade econômica sustentável, até educação ambiental – e promoção do etnoturismo na Macrozona Turística. Sobre esse tema, é interessante notar que, na lei que institui a Macrozona, não há previsão de ações para incentivar o turismo de base comunitária e sustentável naquela área, embora o próprio nome a designe como turística.

Certamente os indígenas compreendem os limites da participação, representatividade e decisão nessas instâncias, o que os mobiliza a construir outras estratégias de gestão de seus territórios. Embora seja possível elaborar algumas ações que envolvam ambas as políticas, é preciso reconhecer as limitações da gestão intersetorial a partir da simples elaboração de planos com políticas públicas justapostas. 

Surge então a necessidade de se pensar sobre o sentido local de ações políticas de resistência aos processos hegemônicos em curso na Baixada do Massiambu. Nesse sentido, algumas experiências[13] como a construção de redes e circuitos econômicos alternativos que visem a construção de políticas públicas no âmbito municipal podem ser consideradas uma prática espacial importante na defesa do território, especialmente entre comunidades tradicionais em situações de conflito por lógicas distintas de apropriação ambiental.

Importante destacarmos o caso da atuação das comunidades de Morro dos Cavalos e Massiambu na ocasião dos incêndios ocorridos na Baixada do Massiambu. Entre 10 de setembro e 11 de outubro de 2019 ocorreram diversos focos sucessivos na região, os quais fazem parte das pressões da ocupação da região. Naquela ocasião, os incêndios atingiram grande parte da Zona primitiva e uma parte da Zona de Recuperação do Parque Estadual da Serra do Tabuleiro (PAEST, 2019). Além de diversas instituições, dezenas de voluntários e moradores participaram do combate ao incêndio, dentre eles as comunidades Guarani. Pelo ocorrido, o governo do estado criou um Grupo de Trabalho para elaboração do Plano de Contingência a Incêndios Florestais na Baixada do Massiambu.

Para além, a mobilização popular se manteve e as comunidades locais da Baixada do Massiambu organizaram eventos de educação ambiental, com apoio do PAEST e diferentes instituições. Disso resultou a criação do “Grupo Técnico Científico de Apoio à Restauração Ecológica da Baixada do Massiambu”, formado por instituições públicas, sociedade civil, moradores, pesquisadores, professores e comunidade Guarani. (PAEST, 2019).

O plano elaborado conta com diferentes linhas de ações para recuperação da Baixada do Massiambu. No objetivo “Restauração Ecológica”, consta: “Buscar equalização das relações institucionais entre a gestão do PAEST e da Área de Proteção Ambiental (APA) do Entorno Costeiro com a Terra Indígena do Morro dos Cavalos” e “Implementar as ações do plano de Manejo do PAEST e Plano de Gestão Ekoetno Envolvimento da Terra Indígena do Morro dos Cavalos” (PAEST, 2019, p. 25). A linha de ação Ecodesenvolvimento Territorial busca “estabelecer sinergias com o Plano de Gestão Ekoetno Envolvimento da Terra Indígena do Morro dos Cavalos”. Por fim, o Centro de Formação Tataendy Rupa, da Terra Indígena Morro dos Cavalos, fica responsável pela elaboração de um projeto para criação de viveiro de mudas na sede do PAEST.

5. Considerações finais

É possível afirmar que as alterações no Plano Diretor do município de Palhoça estão relacionadas ao processo de expansão urbana do município, que por sua vez, encontra-se na área de conurbação da Região Metropolitana de Florianópolis. A partir da década de 1970 o município de Palhoça teve um significativo crescimento urbano, ligado principalmente à instalação de indústrias atraídas pela implementação das rodovias BR 101 e 282. Atualmente, a implementação da Macrozona Turística na região sul do município nos aponta que as alterações estão ligadas à flexibilização da intensidade de uso e ocupação do solo.

Assim, a invisibilização das comunidades Guarani na Macrozona Turística está relacionada à disputa territorial, que é expressa também nas representações cartográficas e, portanto nas disputas cartográficas. Essas por sua vez, podem ter um papel importante na afirmação de territórios e são instrumentos políticos que explicitam conflitos. Por essa razão, invisibilizar a presença Guarani nessa região interessa ao modelo de desenvolvimento espacializado na Macrozona Turística, já que as comunidades Guarani e sua forma de apropriação espacial fortalecem a manutenção das áreas ambientalmente bem conservadas, resultando na resistência aos processos hegemônicos de produção e reprodução sócio-espacial.

Ao estabelecer relações entre os objetivos da PNGATI e o PD, podemos afirmar que há interessantes possibilidades de articulação entre as políticas indigenista e urbana. Essa última já tem relações mais bem estabelecidas com demais políticas setoriais como de saneamento e saúde. Nesses moldes, os instrumentos voltados à questão fundiária, à consulta e participação popular poderiam ser um ponto de contato entre objetivos comuns.

Como exemplo, exploramos o zoneamento e sua potencialidade para a proteção territorial e prevenção de danos ambientais, o estudo de impacto de vizinhança e a necessidade de consulta aos moradores possivelmente impactados e a possibilidade de monitoramento da ocupação do entorno das comunidades Guarani e a democratização da gestão do território através da criação do conselho municipal de desenvolvimento.

Obviamente, a politização dos instrumentos previstos no Estatuto da Cidade é requisito para alcançar as diretrizes estabelecidas. Pois, como observamos, a instituição da Macrozona Turística do município de Palhoça sem a participação da população e suas organizações não atende às diretrizes do Estatuto da Cidade, mesmo porque foi implementada em atendimento a dinâmicas alheias ao interesse da “cidade de direito”. Assim, podemos afirmar que no caso das alterações do Plano Diretor de Palhoça o Poder Público não está atendendo à previsão legal de aplicação dos instrumentos da política urbana, regulamentados na lei.

Ademais, a aprovação da lei que alterou o Plano Diretor se deu durante a pandemia, impedindo a participação popular, mas especialmente a dos povos indígenas, devido à vulnerabilidade epidemiológica dessas populações e a necessidade do distanciamento social. Essa situação caracteriza o descumprimento da consulta livre, prévia e informada sempre que medidas legislativas ou administrativas possam afetar os povos indígenas, conforme disposto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho.

Para além, é necessário apontar a sobreposição de instrumentos e unidades de planejamento e gestão. Há pelo menos três deles com diferentes abordagens que podem incidir no território das comunidades Guarani na Baixada do Massiambu. O primeiro, da municipalidade, no qual verificamos a invisibilização; do PAEST, que de certa forma limita a territorialidade Guarani, e; dos limites da própria Terra Indígena, como categoria jurídica. Essa diversidade de unidades de planejamento, e a falta de articulação entre elas define um cenário que requer alguns apontamentos e reflexões.

O primeiro diz respeito a reconhecer que são esferas diferentes de planejamento, o que requer diferentes “lugares” de participação social, ampliando as demandas de lideranças e sujeitos envolvidos com esse tipo de atividade nas comunidades. Além disso, são instâncias de diferentes discursos, e até mesmo domínios técnicos, muitas vezes contraditórios. De partida, citamos como exemplo o campo do direito, pois envolvem legislações e normativas diferentes, sobrepostas. Ademais, em relação aos instrumentos correlacionados, também há uma diversidade (como audiências públicas, zoneamentos, planos de manejo, etnomapeamentos, dentre outros).

Importante ressaltar que a desarticulação entre essas unidades de planejamento dificulta o processo de participação, que por sua vez, facilita a invisibilização das comunidades. Assim, além de combater o processo de invisibilização, que tem como contexto os divergentes interesses políticos e econômicos e uma complexidade de gestão, é necessário construir possibilidades de planejamento e gestão da questão territorial indígena de forma integrada.

É importante ressaltar, por fim, que as considerações aqui apresentadas não propõem a substituição do dever do Estado brasileiro de demarcar as terras indígenas de Massiambu e Morro dos Cavalos, cumprindo todas as fases da regularização fundiária. Como bem afirmam os Guarani através de seus planos de gestão, somente o reconhecimento de seus territórios com o processo de demarcação das terras indígenas garantirá a mínima segurança para as famílias que nelas se encontram. Assim, buscou-se refletir sobre as possibilidades de atuação para a proteção das comunidades dado contexto atual de vulnerabilidade territorial e flexibilização da legislação ambiental do país, de maneira a minimizar os impactos e ameaças do entorno, especialmente enquanto perdurarem os processos de demarcação dessas terras indígenas.

 

[1] Como, por exemplo, o projeto de lei 490, que propõe alterações que fragilizam o processo de demarcação e possibilita a exploração de recursos naturais em terras indígenas.

[2] Para maiores detalhes da pesquisa original, consultar: A invisibilização das comunidades indígenas no Plano Diretor do município de Palhoça (SC): o território Guarani e a Macrozona Turística.

[3] Os critérios para realização do EIV, bem como determinadas características das zonas especiais constam na Resolução nº 34 do Conselho Nacional das Cidades, no artigo 3º, inciso II, e artigo 5º, respectivamente.

[4] BRASIL, 2005.

[5] Conforme art. 231 da Constituição Federal.

[6] Sobre saúde a territorialidade Guarani: PASSOS, 2021.

[7] Esses planos constam no Processo Funai nº 08620.001963/2009-81.

[8] Terra Indígena (TI)

[9] Parque Estadual da Serra do Tabuleiro - PAEST

[10] BRASIL, 2012.

[11] Idem, 2012.

[12] Cerca de 80% da Terra Indígena Morro dos Cavalos é afetada pelo PAEST.

[13] Ver o caso das cipozeiras e cipozeiros da Mata Atlântica (GRAVA, D.S.; FLORIT, L.F.; ANTUNES, D.L: 2019).

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