Processo de segregação e diferenciação socioespacial em Manaus - AM


Ageane Alves Ramos
Mestre em Geografia pelo Programa Pós-Graduação em Geografia/PPGEOG da Universidade Federal do Amazonas/UFAM. Professora da Rede Municipal de Educação de Manaus/SEMED.

Fredson Bernardino Araújo da Silva
Doutorando em Geografia da Universidade Federal do Amazonas

Marcos Castro de Lima
Doutor em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo, professor do Departamento de Geografia e do Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal do Amazonas-UFAM.

REFERÊNCIAS 

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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1988). Emenda constitucional nº 26, Artigo 6º de 14 de fevereiro de 2000. Dos Direitos e Garantias Fundamentais. Brasília: Senado Federal, 1988. Disponível em <http://www.senado.leg.br/atividade/const/con1988/con1988_16.04.2015/art_6_.asp>. Acesso em: 30 jun. 2019. 

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1988). Lei nº 10.257 regulamenta artigos 182 e 183 de 10 de julho de 2001. Brasília: Senado Federal, 1988. DOU, Brasília, 10 de jul. 2001. Disponível:<https://legislacao.presidencia.gov.br/atos/?tipo=LEI&numero=10257&ano=2001&ato=39fATQU5kMNpWT905>. Acesso em: 30 jun. 2019.

BRASIL. Lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012. Dispõe sobre a proteção da vegetação nativa; altera as Leis nºs 6.938, de 31 de ago. 1981, 9.393, de 19 de dez. 1996, e 11.428, de 22 de dez. 2006; revoga as Leis nºs 4.771 de 15 de set. 1965 e 7.754 de 14 de abr. 1989, e a Medida Provisória nº 2.166-67, de 24 de ago. 2001. Dá outras providências. Presidência da República.  Casa Civil para Assuntos Jurídicos: DOU, Brasília, 25 de mai. 2012. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12651.htm>.  Acesso em: 30 jun. 2019.

BRASIL. Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000. SNUC – Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza. Decreto nº 4.340, de 22 de ago. 2002; Decreto nº 5.746, de 5 de abr. 2006. Plano Estratégico Nacional de Áreas Protegidas: Decreto nº 5.758, de 13 de abr. 2006. Ministério do Meio Ambiente. Brasília: MMA/SBF, 2011.

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SOUZA, Marcelo Lopes. ABC do desenvolvimento urbano. 9ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2019.

 

1. Introdução

A segregação socioespacial tem papel de destaque no cotidiano dos indivíduos que se adequam às condições impostas pela sua inclusão na sociedade diferenciada. Na busca de sobreviver, percebem-se pertencentes a ela e, não sem razão, Jessé de Souza afirma que “é assim que o mundo social se mantém desigual apesar da pretensão formal de igualdade jurídica entre as pessoas. É assim que o pertencimento de classe efetivamente atua no cotidiano” (SOUZA, 2018, p. 65). Destaca-se a desigualdade estrutural existente nos grupos sociais, que interioriza no perceber-se diferente da realidade do outro e os convence das circunstâncias existentes que são desiguais e restritas, definindo que os subalternizados se percebem como grupos inferiores, pois não acessam os mesmos elementos que as classes superiores, o que se desenvolve na prática cotidiana. 

Essa perspectiva atribui que os símbolos de status e bom gosto, causam a percepção de mundos opostos, embora mais imagéticos para quem os tem, por evidenciar bem a diferenciação de classes sociais. Isso se reproduz em várias escalas, por exemplo, na vizinhança, num mesmo espaço topográfico, mas que topologicamente podem estar distanciados da realidade um do outro. Essas desproporções entre os grupos com maior e menor poder aquisitivo dados em uma mesma topografia, contribui drasticamente para o aumento da segregação residencial que envolve a carência das necessidades básicas materiais e imateriais, especialmente à classe mais pobre.

Não obstante, a diferenciação da cidade no contexto dos fragmentos residenciais diz respeito à qualidade de vida e se desenvolve como reflexo social, isto é, compreende-se como produto das desigualdades econômicas e de poder e que pode ser explicada a partir de onde cada grupo social pode viver e sob quais condições.

Sobre essa problemática, é possível encontrar resolução por meio de atores que contribuem para os processos de diferenciação e segregação socioespacial em uma sociedade desigual. Características que tanto incluem os grupos com melhores condições socioeconômicas e excluem os menos favorecidos das necessidades básicas imateriais como saúde, educação, cultura, entre outros, e bens materiais como moradia, saneamento, entre outros, que fazem parte da infraestrutura básica e formam uma série de indicadores das desigualdades sociais em um mesmo tecido urbano. 

A legislação estabelece a equidade no direito à cidade, como definida pelos artigos 182 e 183 da Constituição Federal[1] (BRASIL, 1988) regulamentada pela Lei Federal nº 10.257 de 10/07/2001 do Estatuto da Cidade, que aplica: “ [...] o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental”  (BRASIL, 2001). Legaliza-se a preocupação dos direitos dos cidadãos ao uso da propriedade urbana em equilíbrio com o seu meio ambiente, assim como item III desta Lei, que replica essa responsabilidade para municípios através dos Planos Diretores Municipais. Critério que estaria “assegurando o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas, respeitadas as diretrizes previstas” (BRASIL, 2001), para tanto, deveria ser mais prática e igualitária a toda sociedade, pois, enquanto marco regulatório, definiu-se os objetivos para a promoção da reforma urbana, e instrumentos que deveriam ser colocados para reduzir as diferenças socioespaciais, as especulações imobiliárias, como também colocar os princípios de sua execução. Ou seja, são instrumentos jurídico-políticos que encontram diversas contradições tendo em vista a realidade das cidades brasileiras.

Entendimento que leva a busca da conexão entre a legislação, democratização do planejamento e da gestão, tríade necessário à redução das desigualdades socioeconômica-espacial intraurbana que, se alinhados, representam um maior passo para mudanças estruturais em prol da sociedade (SOUZA, 2018). Por outro lado, o que se apresenta ainda são as dificuldades da manutenção desses instrumentos legais de forma equitativa, não obstante existam para proteger o cidadão e seu meio ambiente, oportunizam e beneficiam em proporção bem maior os agentes sociais concretos.

Caso que se reproduz em Manaus, que apresenta a relevante particularidade do urbano na Amazônia no que se refere à vinculação entre a drenagem e a organização do espaço urbano em função de disparidades infraestruturais da dimensão da moradia, tendo as pontes como típicos objetos da paisagem manauara. Neste sentido, o objetivo deste trabalho é observar as desigualdades socioespaciais no contexto da moradia em duas localidades cortadas por corpos hídricos com presença de pontes nos trechos das comunidades do Bairro da União e demais setores do bairro Parque Dez de Novembro a fim de comparar com o caso do trecho limítrofe dos bairros Japiim/Distrito Industrial I.

Para tanto, fez-se uso de material cartográfico em função da análise da segregação e diferenciação socioespacial a partir de variáveis de abastecimentos de energia elétrica, de água, e de esgotamento sanitário, bem como um paralelo com a questão socioeconômica na dimensão da renda (IBGE, 2010). Os dados secundários foram verificados em campo.

2. Breve contexto sobre a área de estudo - a ponte como fixo geográfico de referência na relação entre ocupação e drenagem

 

Fernandes (2013) expõe a pouca credibilidade de leis que contribuíram para o crescimento urbano nacional e teoricamente amparou o aumento da segregação. Fato visível na segregação residencial existente na cidade de Manaus, principalmente no que se refere aos cursos hídricos, com a existência dos aglomerados subnormais no Igarapé do Bindá, uma Área de Proteção Ambiental (APA)[2] do Parque Linear do Bindá (Decreto nº 1.499 de 27/03/2012) e em Área de Preservação Permanente (APP)[3] (Código Florestal, Lei nº 12.651/12) nas extensões da margem do Igarapé do Quarenta, de mesmo nome de sua bacia hidrográfica. Embora essas ocupações tenham ocorrido antes das leis atuais, tem por definição do município o decreto nº 3.318, de 12 de maio de 2016 que estabelece:

§ 1º Nas hipóteses de áreas urbanas consolidadas, será admitida a flexibilização das disposições constantes no art. 4º do Código Florestal, dada a perda da função ambiental da APP, desde que observado o limite mínimo previsto no disposto no inciso III da Lei nº 6.766/79, de quinze metros (15m), na faixa marginal do curso d`água, contado desde o leito regular, verificada a ausência de interesse ecológico e situação de risco ambiental (MANAUS, 2016). 

É notório que esse limite mínimo de 15m na faixa marginal do curso d’água não se generalizou na prática, permanecendo as exceções como regra, evidenciada pela realidade que se apresenta na área de estudo, onde a maioria pobre ocupa as áreas de vertentes ao fundo de vale ou os próprios cursos hídricos. Ora a montante ou dedeterminado lado da ponte existem condições menos precárias e até mais favoráveis em suas casas ou apartamentos, externando no espaço geográfico realidades diferentes.

As condições materiais e imateriais estão imbricadas em uma noção da existência da “’ralé’ de marginalizados, abaixo da classe trabalhadora, sob outra forma, dá continuidade à sociedade escravocrata do passado” (SOUZA, 2018, p. 69). A afirmação cabe, principalmente, à precariedade da condição de vida a que grupos excluídos são submetidos, com a ausência das necessidades básicas nas localizações que ocupam. Vinculado ao meio ambiente, é evidente a diferenciação no que concerne ao direito urbanístico.

Nessa apreensão, elementos típicos da paisagem urbana da metrópole Manaus como o caso das pontes aparecem como fixos geográficos com função para a mobilidade urbana, mas que podem servir de referência de dinâmicas socioespaciais mais complexas, passíveis de contextualizar a segregação e a diferenciação, isto é, são objetos criados para unir partes mas que também podem sinalizar contradições e rompimentos na organização socioespacial.

3. A infraestrutura urbana básica como indicador dos processos de segregação e diferenciação na metrópole Manaus

3.1 Bairro da União e setores selecionados do bairro Parque Dez de Novembro

Imediatamente representadas nas Figuras 01 a 05, estão as informações extraídas do Censo Demográfico 2010 sobre o bairro do Parque Dez de Novembro, que é cortado pelo igarapé do Bindá, como anteriormente já descrito, que em sua margem direita recebe o topônimo pelos seus moradores do bairro da União. Essa localização também possui outras denominações internas, à medida que surgiam novas ocupações irregulares, onde seus habitantes criaram topônimos ao novo território ocupado, como a Palestina, o Sovaco da Cobra e o Green Ville. Nesse sentido, foram mantidas nessa pesquisa os topônimos internos aos setores censitários, apenas para relacionar as realidades vivenciadas pelos moradores desses locais.

Na Figura 1, acerca dos domicílios com energia elétrica via rede geral de distribuição sem contador, destaca-se os setores censitários da comunidade denominada “Bairro da União” com os maiores índices, que estão entre os intervalos de 10,1% até 15%, 15,01% até 25% e 25,1% até 32%, que apresentam a forma irregular e a presença das ligações clandestinas nos setores identificados como o “Sovaco da Cobra”, na área marginal do igarapé, a “Palestina”, aclive ao norte. 

 

Figura 01: Mapa de domicílios com energia elétrica via rede geral de distribuição sem contador, a partir de setores censitários do bairro Parque Dez de Novembro e Bairro da União. 

Fonte: IBGE (2010), SEMSA (2010). Elaboração: Jean Campos, Fredson Bernardino, Ageane Alves Org.: a autoria.

 

Sob o intervalo de 1,1% até 10% aparece o “Green Ville”, da vertente a áreas marginais. Sobre os setores da margem esquerda do igarapé do Bindá, há a mesma faixa percentual de 1,1% até 10%, ocorrendo também o intervalo de 0% até 1%. No entanto, esta última localização requer destaque, pois foram incluídas num mesmo setor censitário, moradias precárias sem medidores da comunidade Green Ville às moradias não precárias, como aquelas do conjunto Castelo Branco e condomínios residenciais como Arvoredo, Jauaperi, La Villete, Giardino de Millano e Marron, que representam os menores percentuais de moradias que consomem energia sem contador, constituindo, portanto, uma área que evidencia maior regularização junto à concessionária de energia elétrica, mostrando, dessa forma, diferenças internas em um mesmo setor censitário e bairro em que revela a ocorrência das formas desiguais de acesso a um serviço básico como a energia elétrica.  

A figura acima, portanto, revela a face desigual onde o maior percentual significa o fator negativo da não regularização do serviço de energia elétrica, pela ausência de medidas de consumo mediadas por contadores regulares.

Na figura 02, que evidencia os domicílios conectados à rede geral de abastecimento de água, nas áreas censitárias do bairro Parque Dez de Novembro e Bairro da União demonstram, que os menores percentuais estão em setores da margem esquerda do igarapé do Bindá, com intervalos de 1% até 2% e em setores na margem direita de 3% até 70%. 

 

Figura 02: Mapa de domicílios conectados à rede geral de abastecimento de água, a partir de setores censitários do bairro Parque Dez de Novembro e Bairro da União. 

Fonte: IBGE (2010), SEMSA (2010). Elaboração: Jean Campos, Fredson Bernardino, Ageane Alves Org.: a autoria.

 

Porém, essa aparente existência de um vácuo não significa que aqueles sujeitos não tenham acesso a água potável, pois existem alguns poços artesianos nestes setores. Os condomínios na margem esquerda que venham dispor de poço artesiano precisam atender um público seleto, que pagam o condomínio, e para estar regulares, é fundamental que atendam a legislação do Estado na figura do Decreto nº 28.678 de 16/06/2009, Lei nº 3.167 de 28/08/2007, para captar água subterrânea, assim como são outorgados e fiscalizados pelo Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (IPAAM). No que concerne às perfurações dos poços artesianos de setores da comunidade Bairro da União, sua ocorrência é por residências, para atender à realidade da época no início da ocupação, quando era comum a insuficiência da rede hidráulica e/ou vazão que impedia a água chegar nesses locais regularmente.

A situação de perfuração de poços fez com que alguns residentes contratassem um prestador, no entanto, isso significava reduzir ao máximo o pouco que dispunham para amenizar a situação de precariedade em que viviam. Ainda foram incluídos nestes mesmos setores censitários moradias da margem do rio como as comunidades Green Ville e “Sovaco da Cobra”, que possuem ligações irregulares. Tais questões foram observadas em campo e em diálogos com os moradores do Bairro da União. 

Como último detalhe desta figura, destacam-se os índices de 81% até 90% e 91% até 99% dos setores censitários, que representam a grande maioria dos domicílios conectados à rede geral de abastecimento de água em ambas as margens do Igarapé do Bindá no bairro Parque Dez de Novembro. Assim, o consumo da água potável por meio da rede geral de abastecimento pela concessionária ou poço, demonstram internamente as diferenças contidas para o seu acesso.

Na figura 03, referente aos domicílios conectados à rede geral de esgotamento sanitário via rede geral de esgoto e pluvial, o maior percentual de 90,1% até 99% representa setores com moradias em condomínios privados. No menor intervalo, de 4% até 7%, estão em setores na margem esquerda. Nos intervalos de 70,1% até 90% e 7,1% até 50%, representam a maior parte dos setores presentes em ambas as margens do igarapé. E no último intervalo, de 50,1% até 70%, estão os setores da margem direita do Igarapé do Bindá. Grande parte dos setores possuem conexões com a rede geral de esgotamento sanitário e pluvial, demonstrando, sobretudo nos menores percentuais, onde se encontram comunidades nas áreas do fundo de vale, isto é, como maior proximidade com o rio no Bairro da União e setores do bairro Parque Dez de Novembro.

 

Figura 03: Domicílios conectados à rede geral de esgotamento sanitário via rede geral de esgoto e pluvial. Setores censitários do bairro Parque Dez de Novembro e Bairro da União. 

Fonte: IBGE (2010), SEMSA (2010). Elaboração: Jean Campos, Fredson Bernardino, Ageane Alves Org.: a autoria.

 

Além do propósito de demonstrar os setores censitários que estão conectados à rede geral de esgoto e pluvial, a figura 03 chama atenção pelos domicílios não conectados, demonstrando significativa demanda de fossas para o tratamento primário do esgoto doméstico, como ainda, a destinação dos efluentes para a rede geral. 

Com a intenção de esclarecer sobre destinação dos efluentes, a Figura 04 representa os domicílios com esgotamento sanitários via rio, cujo setor com maior percentual ficou entre 35,1% até 85% que eliminam seus esgotos diretamente no igarapé do Bindá, com forte presença de precariedade e este mesmo setor que possui o menor índice conectado à rede de esgoto, conforme representação na figura anterior (Figura 03). Na sequência, ainda com os maiores índices, entre 7,1% até 35%, 4,1% até 7%, também estão os setores que têm a presença da mesma condição urbanística na sua topografia, visível da vertente ao fundo de vale do Bairro da União. E com os menores percentuais, 0% até 1% e 1,1% até 4%, encontram-se todos os setores censitários da margem esquerda do Igarapé do Bindá, que afirmam não destinar seus efluentes diretamente via rio. 

 

Figura 04: Domicílios com esgotamento sanitário via rio ou lago, a partir de setores censitários do bairro Parque Dez de Novembro e Bairro da União. 

Fonte: IBGE (2010), SEMSA (2010). Elaboração: Jean Campos, Fredson Bernardino, Ageane Alves Org.: a autoria.

 

Os percentuais representados na Figura 04 demonstram a eliminação dos efluentes das residências via rio, revelando, que, embora as informações censitárias apontem um maior número de setores conectados à rede de esgoto, na figura anterior (Figura 03), ainda se destacam os setores do Bairro da União, como a localização que mais despeja efluentes no Igarapé do Bindá. No entanto, como já enfatizado, as moradias da margem esquerda contemplam diversos condomínios e conjuntos residenciais, sendo possível que estes mais recentes e modernos projetos residenciais, possuam Estação de Tratamento de Esgoto (ETE) própria e mantida pelos condôminos. Em pesquisa de campo à concessionária de águas da metrópole sobre os bairros abrangidos por sistema de esgotamento e existência de ETE, confirmou-se a inexistência desses serviços, isto é, não existe rede coletora de sistema de esgotamento ativa para ETE, nem na áreas delimitadas do bairro do Parque Dez de Novembro, porém, na cidade de Manaus há algumas ETEs ativas e inativas, bem como redes coletoras que podem influenciar extraídos pelo Censo do IBGE.

Além disso, dentro dos critérios formais pesquisados pelo Censo Demográfico, os menores intervalos, entre 0% até 4%, ocorrem na margem esquerda e, em contrapartida, os maiores intervalos, entre 4,1% a 85%, estão na margem direita, representam proporcionalmente a diferenciação pela forma de despejos de seus efluentes, que leva a primeira dedução de que os moradores da margem esquerda destinam mais corretamente do ponto de vista sanitário e ambiental seus esgotos. 

No entanto, ao se identificar em pesquisa de campo a ausência de ETEs, revela-se a informalidade da aparente destinação correta dos resíduos, que de fato não acontece nessas localizações. A representação cartográfica com base nas informações do IBGE, permitiu demonstrar um pouco da metrópole internamente, a partir das variáveis escolhidas, ou melhor, o conteúdo disposto sob o solo pavimentado, das redes de esgotamentos sanitários em diversos setores (Figuras 03 e 04). Consta-se, de forma mais emergencial, que a destinação de boa parte do efluente do recorte observado vai para o rio e sem tratamento. 

Destaca-se, por fim, que até 2020 não existiam estações de tratamento nessas localidades. Dessa maneira, tanto um lado como o outro usam o igarapé como receptáculo, pois se não há ETE ativa nessas áreas, a destinação dos efluentes é tratada igualmente, sendo que dessa forma ambas as localizações poluem o igarapé do Bindá, o que consequentemente contribui para a degradação ambiental neste local.  

No que se refere à socioeconomia, na Figura 05, observa-se os domicílios com renda mensal de 5 a 10 salários mínimos, em que na margem esquerda do Igarapé do Bindá, setores com os maiores percentuais de renda, entre os intervalos de 15% até 30% e de 4% até 15%. De forma oposta, na margem direita, correspondente ao Bairro da União, estão com índices menores, de 2,1% até 4%, 0,1% até 2% e 0%. A renda retrata a existência da diferenciação econômica e social entre os setores, apresentando, mais uma vez, realidades diversas no mesmo bairro que possui um rio como divisor de águas, pontes que unem topograficamente dois lados e servem para separar topologicamente o outro pela própria condição de vida que os segrega.

 

Figura 05: Domicílios com renda mensal de 5 a 10 salários mínimos Setores censitários do bairro Parque Dez de Novembro e Bairro da União. 

Fonte: IBGE (2010), SEMSA (2010). Elaboração: Jean Campos, Fredson Bernardino, Ageane Alves Org.: a autoria.

 

Conforme pode ser constatado nas figuras acima, as contradições no bairro Parque Dez de Novembro, na área dividida pelo Igarapé do Bindá, e que também faz a divisa entre o conjunto Castelo Branco e demais condomínios de classe média, na margem esquerda, e o Bairro da União, na margem direita, cuja história se vincula às resistências em deixar uma gleba irregularmente ocupada, não estão somente na paisagem, na superfície constatável num primeiro momento por meio da visão e da percepção, mas também revela a sua face nos dados apresentados e espacializados nos mapas mostrados em suas distintas variáveis. Dessa forma, as pontes ali existentes como objetos geográficos que unem duas margens, também se constituem em objetos diferenciadores de lados distintos, cuja predominância de pensamento reside no “entre nós e eles” de cada lado da margem.

3.2 Japiim e Distrito Industrial I

Realidade similar, mas guardando algumas distinções do revelado para o Parque Dez de Novembro, o outro recorte espacial selecionado para esta pesquisa, também apresenta as pontes que unem e separam grupos distintos entre duas margens do Igarapé do Quarenta.  

Representados nas imagens 06 até 10, os setores censitários do bairro Distrito Industrial I e Japiim, como já exposto, a maior parte do bairro Distrito Industrial é formado por empresas que compõem o Polo Industrial de Manaus (PIM), tendo poucas áreas para moradia. Assim, foi delimitado neste bairro os setores que recebem o topônimo de “Manaus 2000”, comunidade localizada na margem esquerda do Igarapé do Quarenta. E, na margem direita, está o bairro do Japiim, com os conjuntos residenciais “Atílio Andreazza” e “Conjunto 31 de Março”, bem como a comunidade identificada com o topônimo de “Igarapé do Quarenta”, formada por moradias precárias incluindo palafitas na extensão da margem. 

Na figura 06, acerca dos domicílios com energia elétrica via rede geral de distribuição sem contador, apresenta toda a margem esquerda do mapa com o índice de 2,1% a 10%, porém, ressalta-se que a área delimitada é a Manaus 2000, oriunda do projeto de casas populares na década de 1990, e está destacada na figura com pontos em cor preta dentro do mapa. 

 

Figura 06: Domicílios com energia elétrica via rede geral de distribuição sem contador, a partir de setores censitários do bairro Distrito Industrial I e bairro Japiim. 

Fonte: IBGE (2010), SEMSA (2010). Elaboração: Jean Campos, Fredson Bernardino, Ageane Alves Org.: a autoria.

 

Manaus 2000 desempenha o papel de enclave territorial e serve para o ir e vir, principalmente dos trabalhadores das empresas do PIM diariamente. Nessa localização, há uma única avenida, a Avenida Manaus 2000, que serve para atender especialmente esse público e diversos moradores residentes nas proximidades. Esta via, juntamente com as demais ruas desse conjunto de casas populares, está passando por metamorfoses através do processo de invasão–sucessão, definido por Corrêa (2005), onde se deixa de ter a principal função de residir, para se converter em locais de comércio e serviço.

A margem direita do Igarapé do Quarenta apresenta um único setor com o mesmo intervalo referido anteriormente, de 2,1% a 10%. Mas apresenta o índice de 0% dos setores do conjunto Atílio Andreazza e seu oeste, e sentido fundo de vale, que apresentam área com vegetação ciliar. Com esse mesmo percentual de 0%, encontram-se setores do conjunto 31 de Março com extensão da vertente ao platô. Imediatamente, no intervalo de 0,01% até 2%, chama atenção, pois apresenta um único setor censitário da vertente para margem do igarapé, que foram incluídas moradias precárias próximas e da área marginal que não possuem contador, conforme identificação no local. Com os maiores índices nos intervalos de 10,1% até 26% e 26,1% até 35%, estão setores onde se evidenciam afunilamentos das ruas e precariedade das residências, à medida em que se aproxima do fundo de vale, bem como a extensão de moradias tipo palafitas, que não possuem contador, destacados no mapa por triângulos na cor vermelha (Figura 06).

Essa variável, domicílios com energia elétrica via rede geral de distribuição sem contador, retirada do Censo 2010 do IBGE, aponta as diferenças existentes dentro de um único setor, que generaliza as informações pela estatística, porém a pesquisa de campo demonstra nos detalhes que há desigualdades nos acessos por um mesmo setor censitário. Além disso, a figura mostra diferenciação da forma de acesso à energia elétrica pela sua topografia, ao apresentar formas distintas entre os setores. Igualmente, destaca-se menor incidência de informalidades da vertente ao platô, tanto nos bairros Japiim como no Distrito Industrial I. E, inversamente, há a situação para ambos os bairros sentido fundo de vale, contando a presença de moradias precárias e palafitas na comunidade do Igarapé do Quarenta, que utiliza de forma clandestina a energia em suas palafitas.

Cabe à reflexão, de acordo com o que se problematizou pela Figura 06, o fato de que nem sempre as estatísticas e sua espacialização em mapas irão corresponder ao dado real contido no espaço geográfico, que somente poderá ser revelado mediante pesquisas de campo.

Na figura 07, sobre os domicílios conectados à rede geral de abastecimento de água, representa o bairro Distrito Industrial I na margem esquerda do Igarapé do Quarenta e os setores do Manaus 2000, onde predominam os intervalos de 96,9% até 100% e 69,5%. Neste setor com menor percentual, foram identificados poços, para atender 5 vilas com 10 quitinetes e um pequeno restaurante e sorveteria, não sendo possível identificar a manutenção ou teste de potabilidade da água nestes locais. 

Os setores com percentual de 69,5% no Distrito Industrial, referem-se a várias indústrias que podem dispor de poços, e estão fora da delimitação deste estudo, mas por via de regra, empresas precisam garantir a idoneidade dos negócios e, para tanto, manter as outorgas, certidões, alvarás em dia, constituindo o básico para se ter instalado no seu pátio uma infraestrutura que lhes assegure a operacionalidade, e assim, estarem de acordo com a legislação exigida pelo IPAAM. 

 

Figura 07: Domicílios conectados à rede geral de abastecimento de água, a partir de setores censitários do bairro Distrito Industrial I e bairro Japiim. 

Fonte: IBGE (2010), SEMSA (2010). Elaboração: Jean Campos, Fredson Bernardino, Ageane Alves Org.: a autoria.

 

Ainda na Figura 07, encontra-se o bairro Japiim, onde se localizam os conjuntos Atílio Andreazza com o intervalo de 92,9% a 96,8% e o conjunto 31 de março com os intervalos de 96,9% a 100%, 92,9% a 96,8% e 69,6% até 92,8%. No entanto, destaca-se que dentro dos maiores percentuais da vertente ao fundo de vale é observado inúmeras moradias precárias e palafitas na área marginal, que não estão conectadas à rede geral de distribuição de água, embora se utilizem deste serviço de maneira não regular junto à concessionária de águas.

Na figura 08, a partir dos domicílios conectados à rede geral de esgotamento sanitário via rede geral de esgoto e pluvial, representam o bairro Distrito Industrial I em que há setores como no Manaus 2000, com índices de 80,1% a 96% e 40, 1% a 80%, enfatizando que na maior parte dos setores deste bairro estão instaladas indústriasque possuem estações de tratamento de esgoto como ETEs. Há ainda o fato de que esse conjunto fez parte de um habitacional construído pelo poder público municipal, o que acaba por refletir nos dados apresentados. 

 

Figura 08: Mapa de domicílios conectados à rede geral de esgotamento sanitário via rede geral de esgoto e pluvial, a partir de setores censitários do bairro Distrito Industrial I e bairro Japiim. 

Fonte: IBGE (2010), SEMSA (2010). Elaboração: Jean Campos, Fredson Bernardino, Ageane Alves Org.: a autoria.

 

Sobre o bairro Japiim, na margem direita do Igarapé do Quarenta, é demonstrado o conjunto Atílio Andreazza com 80,1% até 96% e no conjunto 31 de Março há setores com intervalos de 7% a 15%, 15,1% a 20%, 20,1% a 40% e 40,1% a 80%, como também uma extensão na margem do igarapé que não possui rede conectada. Outro ponto é que o conjuntos Atílio Andreazza e Manaus 2000 apresentaram os maiores percentuais de moradias conectadas à rede geral de esgotamento sanitário, esse fato ocorre por constituírem moradias mais recentes em relação ao conjunto 31 de Março, ou seja, aquele onde foram construídas as primeiras moradias do Japiim na década de 1970 e que ainda possuem significativa quantidade de fossas nas próprias residências.

Na figura 09, referente aos domicílios com esgotamento sanitários via rio/lago, demonstra apenas um setor no bairro do Japiim que dá destinação ao esgotamento via rio, no caso o igarapé, com o índice de 15% a 60% e como já destacado, foi incluído na coleta de dados do IBGE toda uma extensão de moradias precárias na área marginal, que libera seu esgoto diretamente no igarapé. Ressalta-se que a grande quantidade de setores que apresentam 0% e 0,1% a 2%, e ainda no bairro Distrito Industrial nos setores do Manaus 2000, o intervalo de 0% e 2,1% a 15%. No entanto, exatamente no conjunto Atílio Andreazza, que possui alto percentual de canalização de esgoto e ao mesmo tempo conclui não destinar o esgoto sanitário ao rio ou lago e situação similar ocorre no conjunto Manaus 2000, porém, ambas as áreas não possuem ETE. Demais setores do Japiim apresentam grandes números de fossas sépticas nos próprios terrenos, mas os domicílios que embora com canalização para seu esgotamento sanitário, destinam tanto quanto as demais residências, seus efluentes ao rio, pelo fato de não haver estação de tratamento ativa ou inativa no bairro do Japiim e no Manaus 2000, conforme evidenciado em pesquisa de campo e análise das informações junto a concessionária de águas e esgoto da cidade de Manaus.

 

Distrito Industrial I

 

Figura 09: Mapa de domicílios com esgotamento sanitário via rio ou lago, a partir de setores censitários do bairro Distrito Industrial I e bairro Japiim. 

Fonte: IBGE (2010), SEMSA (2010). Elaboração: Jean Campos, Fredson Bernardino, Ageane Alves Org.: a autoria.

 

As informações oficiais do IBGE que demonstram grandes números de moradias que não despejam seus efluentes diretamente no igarapé, é questionável, como contribui para demonstrar a forma sutil que diferencia e segrega, pois, enquanto um envia o seu esgoto pela canalização, produz a imagética de que está fazendo o “correto”, o morador das áreas próximas às margens do igarapé, ali despeja diretamente seu efluente, sob a visão de que fazem o incorreto, sendo que nos dois casos os resíduos de esgotos sanitários são destinados ao mesmo curso d´água.

Nesse sentido, constrói-se a imagética de que somente o “outro”, sobretudo, o morador das margens, é o causador da poluição por estar mais visível (topograficamente) a quem passa. No entanto, o comportamento em relação ao meio ambiente não é diferente, e nem totalmente culpa desses moradores sobre a destinação incorreta dos esgotos sanitários, pois esse processo vai muito além de controle individual, visto que ainda existe a carência de canalizações de esgotos no bairro do Japiim. A situação mais crítica é a não existência de ETE para bairros com mais de 50 anos de existência.

Na figura 10, que demonstra os domicílios com renda mensal de 5 a 10 salários mínimos, no bairro Japiim, apresentam apenas um setor na vertente, apresenta o intervalo de 9,1% a 10% e outros setores da vertente ao platô apresentam 6,1% a 9%, como ainda 5,1% a 6%, 2,1% a 5% e 0,0% a 2% e no Manaus 2000 os intervalos de 2,1% a 5% e 0,0% a 2%.

 

Figura 10: Mapa de domicílios com renda mensal de 5 a 10 salários mínimos, a partir de setores censitários do bairro Distrito Industrial I e bairro Japiim. 

Fonte: IBGE (2010), SEMSA (2010). Elaboração: Jean Campos, Fredson Bernardino, Ageane Alves Org.: a autoria.

 

As proporções de menores salários estão mais presentes nos setores próximos às áreas marginais com o intervalo de 0,0% a 2%, representando, através dos dados estatísticos do IBGE, as desigualdades que estão hábastante tempo sendo produzidas nas margens dos igarapés e, no caso do Japiim e Parque Dez de Novembro, desde meados da década de 1970 até os dias atuais, como impactos negativos de ocupação e expansão urbana na metrópole Manaus, como afirma Oliveira (2003). Isso, contudo, não deve ser tratado em sua forma absoluta, pois nas proximidades de muitos igarapés há condomínios de classe média e até classe média alta, que tem esses cursos d’água ao fundo, com seus altos muros, como a querer lhe negar tal proximidade. Embora, como já afirmado, a predominância seja dos segmentos mais pobres.

4. A diferenciação interna entre os dois recortes espaciais

Sobre a diferenciação interna nos dois microcosmos pesquisados nos bairros em Manaus, notam-se características comuns na origem, quando ocuparam os cursos hídricos da cidade, onde, no passado, o homem amazônida que morava na margem ou no próprio rio, vivia sua vida ribeirinha na dependência do tempo cíclico (ecológico), isto é em maior conformidade com a sazonalidade hidroclimatológica, como definido por Lima (2014, p. 220), sendo uma “singularidade regional”. 

No entanto, no que se refere ao urbanismo e à ocupação das margens dos igarapés urbanos, isto traz consequências danosas, tendo em vista que há o predomínio das moradias mais simples, a maioria em palafitas, cujo cotidiano dos moradores sofre a interferência do regime das cheias dos rios e com o volume que causa a esses moradores a perda do pouco que têm, conforme ocorrência em 2020 no Bairro da União e no Manaus 2000 (Figura 11). 

Figura 11: Alagações de casas nas proximidades do leito fluvial. A) Comunidade Bairro da União. B) Comunidade Manaus 2000. 

Fonte: G1 AM (2020), Portal do Holanda (2020). Org.: a autoria.

 

Mas a escolha por essas localizações na metrópole está relacionada à baixa renda ou renda nenhuma, assim como a sua condição social. Este ficar de frente para o rio nas periferias, não é algo contemplador ou romântico e nem serve de fonte de alimento ou recurso hídrico, em vista do fato da precarização desses locais. Isto traz a reflexão de que esse cidadão vindo para a metrópole ou mesmo nela nascendo, não tem a mesma relação com os cursos d´água urbanos, como têm os ribeirinhos amazônicos com os rios, pois se estes últimos têm nos rios uma extensão de sua vida, e aqueles o têm como possibilidade de moradia, sofrendo com os resultados da precariedade urbanística e das precipitações, sempre tão abundantes na metrópole amazônica.

A análise dos dados estatísticos (IBGE, 2010) apresentou inúmeras diferenciações entre os setores coletados, e contribuíram para indicar como a topografia é um dado relevante para evidenciar a diferenciação e segregação socioespacial. Nas áreas de ocupações irregulares — chamadas vulgarmente de “invasões” — estão, na maioria dos casos, nas vertentes próximas às margens ou mesmo nas margens e leitos dos igarapés urbanos, com os maiores índices de precariedade e deficiência urbanística. Porém, numa dimensão geomorfológica, da vertente para o platô, estão a maioria das casas dos conjuntos e condomínios com os melhores resultados coletados.

Tal realidade demonstra as formas em que estão estabelecidas as moradias mais pobres na metrópole, podendo-se afirmar que a “segregação residencial, é essencialmente um produto da cidade” (SOUZA, 2019, p. 83). Segregação e diferenciação como expressões socioespaciais produzidas no seio da sociedade de classes, estruturalmente estratificadas e contidas muitas vezes em um mesmo bairro, que tem em sua paisagem as contradições que não precisam estar topograficamente distantes, embora no que se refere às condições urbanísticas, as distâncias sejam bem mais evidentes em cada margem dos cursos d´água urbanos, ou igarapés mesmo que sejam unidas por meio de uma ponte.

Por sua vez, um objeto geográfico como a ponte não somente revela a junção ou articulação de duas margens, como tradicionalmente é vista, mas também tem a capacidade de revelar as diferenças nas formas em que cada grupo se representa do seu lado e como produz a imagética do lado oposto. E isso ocorre também em consequência dos fatores históricos de cada lado, bem como de fatores como renda e qualidade urbanística. Nesse sentido, muitas vezes uma ponte serve mais para mostrar o “outro lado” do que mesmo unir esses dois lados. Como síntese deste processo se pode constatar uma topografia próxima e uma topologia distante.    

Do ponto de vista dos dados, esses fatos se comprovam ao analisar-se os dados do uso de energia elétrica sem contador, que apresenta maior incidência nos setores com moradias oriundas de ocupações irregulares e precárias. E mesmo que exista o programa social “Luz para Todos”, que tem como principal objetivo a universalização da distribuição e o acesso à energia elétrica, conforme Lei nº 10.438/2002, Resolução 223 da Aneel e Decreto nº 4.873 de 11/11/2003, que instituíram a tarifa social para atender a demanda da população pobre e em extrema  pobreza, essas medidas ainda não foram suficientes para eliminar ou evitar ligações clandestinas de energia elétrica, conforme os maiores índices entre 10,1% até 32% contidos no Bairro da União e os índices entre 10,1% até 36% existentes da vertente ao fundo de vale no bairro do Japiim.

Quanto ao abastecimento de água via rede geral de distribuição, constatou-se altos percentuais de moradias conectadas, mesmo que apresentem percentuais sem conexão, representando ligações clandestinas e poços. Neste último item, com ressalva devido às manutenções básicas e testes de potabilidade de água regulares em setores como condomínios e indústrias, não tão comuns em setores com residências como no Bairro da União. 

Há ainda questões relacionadas aos benefícios sociais, como a taxa social sobre o consumo de água tratada pela Lei Municipal nº 2.001, de 26 de junho de 2015, art. 1.º, que embora exista no município de Manaus, não consegue evitar totalmente as ligações clandestinas nas áreas marginais e/ou nos aglomerados subnormais que estão irregulares nestes bairros.

De fato, a tarifa social de energia e taxa social de água, foram implementadas para universalizar a distribuição e acesso aos mais pobres ou em extrema pobreza, mas as leis sozinhas não serão suficientes, se não estiverem efetivamente relacionadas à realidade social e econômica dos sujeitos. Destacando que não faltam leis, mas falta a efetividade destas alinhadas à redução das diferenças socioespaciais existentes. Nesse sentido, os índices da renda constatada em salários mínimos menores nas moradias precárias dos setores próximos e nas áreas marginais, evidenciam que no Bairro da União estão as menores faixas, em relação a margem esquerda do bairro Parque Dez de Novembro, destacando áreas de condomínios com melhor faixa de salários em relação às demais.

No dado de esgotamento sanitário via rede de esgoto, ambas as localizações expressam significativasconexões via rede em alguns setores, bem como a existência de fossas sépticas nas próprias moradias nesses bairros. Mas o destaque está nos setores com residências conectadas à rede para coleta de esgotamento sanitário, pois apresentam uma melhor destinação dos seus resíduos. No entanto, isso só pode ser considerado no início do processo de destinação dos efluentes, pois não existe ETE nas duas localizações. Uma questão que depara com as informações do Censo, pois essas moradias conectadas só se diferenciam das moradias que despejam seus esgotos sanitários diretamente no rio pelas conexões. Isso porque não existe tratamento e a destinação é a mesma, com exceção dos condomínios com ETEs particulares que tratam seus esgotos antes da destinação no rio. 

A deficiência no que se refere ao saneamento básico não é uma realidade apenas da metrópole Manaus, como também não é realidade apenas dos tecidos urbanos pesquisados. Esta metrópole possui menos de 20% da rede de esgoto sanitário da área urbana, conforme página da transparência da Prefeitura com “Diagnóstico de esgotamento sanitário em Manaus, é apresentado em seminário na Universidade de Lisboa” (MANAUS, 22/10/2019) e pelas poucas ETEs, conforme página oficial da concessionária de águas do município. 

No entanto, ainda está no papel e nas páginas online da Prefeitura a possibilidade de melhoria do saneamento básico, e consequentemente a saúde pública da população de Manaus. Até 2030, como previsto, esse compromisso com a sociedade vai precisar de muitos esforços e políticas de continuidade de ações, algo que de fato não ocorre na esfera do planejamento urbano nas cidades brasileiras, e Manaus não foge a essa regra. 

As áreas em referência nesta pesquisa exercem o papel de enclaves territoriais em seus bairros, pois servem de acessos e passagens entre as áreas adjacentes que contemplam, principalmente, os setores de comércio, serviços e vice-versa no caso do Bairro da União. E o Manaus 2000 é uma área de considerável passagem ao PIM e serviços portuários.

Diante do exposto, sobre a importância desses microcosmos e das análises objetivas dos critérios elencados, retrata que por mais de quatro décadas a densidade demográfica de Manaus que saiu de 312.160 IBGE (Censo 1970) para 1.802.014 IBGE (Censo 2010), sendo que as estimativas atuais (2020) a colocam com 2,2 milhões de habitantes. Sua expansão que iniciou na zona sul, na orla do rio Negro, expandiu para Zona Oeste e fortemente para Leste e Norte. Tal expansão e sua expressão socioespacial demonstram que a ocupação urbana pelos mais pobres, ocorreu principalmente nas áreas de vertentes, fundos de vale e igarapés que, posteriormente, se tornaram áreas ocupadas com aglomerados subnormais como os setores identificados nos bairros Japiim e Parque Dez de Novembro.

Mesmo com algumas políticas de habitação, que acabaram configurando alguns setores da metrópole, em margens de igarapés, como o Programa Social e Ambiental dos Igarapés de Manaus (PROSAMIM), desde 2006, o problema de habitações e de ocupações em margens de igarapés persiste com inúmeras famílias expostas às condições precárias e insalubres, dentro de um mesmo tecido urbano onde as diferenciações socioespaciais estão bem definidas pelas características levantadas. Que diferenciam e segregam. Sendo assim:

Menos segregação residencial tende a significar maiores chances de interação entre os grupos sociais diferentes, e maior interação tende a facilitar enormemente a demolição de preconceitos (SOUZA, 2019, p. 83).

 

Preconceitos revelados pelo cidadão que se percebe topologicamente distante da realidade do outro, seja pela existência de uma ponte que atesta essa diferença entre dois lados, pela topografia ou pela topofilia, que os diferencia, e reforçam essa percepção de diferentes valores, de moradias, de possibilidades, entre tantos fatores que os distancia topologicamente, contribuindo para a formação de grupos homogêneos internamente ao seu lugar.Trata-se, portanto, de uma heterogeneidade que, quando se fala da relação entre os lugares, sabe-se que se lida com os mesmos problemas socioespaciais urbanos cotidianamente no lugar que se sentem pertencidos. 

5. Considerações Finais

As diferenças socioespaciais foram observadas, neste estudo, por meio de representação cartográfica de alguns itens escolhidos que se referem à infraestrutura urbana básica nesses espaços. Para tal foram utilizados dados de informações retiradas do Censo Demográfico de 2010 do IBGE, onde se dispõem de informações que expressam as diferenças e segregações existentes dentro de uma metrópole como Manaus.

 Essas diferenças, concretizados enquanto expressão socioespacial na morfologia de áreas mais próximas à margem dos igarapés, se referem a recortes espaciais em termos de tipos de moradias diferenciadas oriundas de ocupações irregulares, do acesso à energia e água sem contador e a respeito de menores rendas por salários mínimos e se evidenciam, ainda, pela rede de esgoto mais presente em uma das margens desse pequeno rio onde há presença maior de condomínios e conjuntos residenciais. 

Por outro lado, nas proximidades do fundo de vale e na margem direita dos trechos escolhidos dos igarapés selecionados para esta pesquisa, existem aglomerados subnormais e uma maior deposição de despejos dos esgotos sanitários diretamente nos cursos d´água. Curiosamente, e que carece de mais estudos, ocorre uma relação entre valorização do espaço e o relevo em Manaus, sob a tríade platô, vertente e fundo de vale, em que quanto mais próximo do fundo de vale (onde pode ter ocorrência de corpos hídricos), há uma tendência de maior precarização, constatação inversa ao processo urbanístico que se observa em lugares como a cidade do Rio de Janeiro, por exemplo  one a proximidade com a praia tende a ser mais valorizada que o alto dos morros.

No entanto, há de se considerar o fato de que mesmo aquele grupo que possui conexão com a rede de esgotamento sanitário, ou seja, que aparentemente se enquadra e o que se julga incorreto para os que nas normas urbanísticas, no fundo, conforme se constatou, segue o mesmo percurso e destinação de seus resíduos, daqueles moradores que despejam diretamente nos cursos d’água, isto que não existem, nessas localizações, ETEs. Nesse sentido, ambos os grupos contribuem para o escoamento de efluentes diretamente no leito dos igarapés. 

Observou-se ainda, que em algumas áreas os rios urbanos foram impermeabilizados e concretados, mas que influenciam tão somente em relação às áreas que não estão impermeabilizadas, como receptáculos dos esgotos sanitários e demais efluentes. Ressalte-se a existência de fossas sépticas em algumas residências, como também a presença de poços artesianos nessas localizações. Vale outro destaque à comparação de áreas mais recentes com condomínios residenciais, a existência de ETEs particulares e poços artesianos controlados pelos processos legais, para sua existência junto aos órgãos reguladores do estado, como o Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas IPAAM, fator que exige uma manutenção financeira dos seus condôminos. 

Desta maneira, o poder de consumo do espaço como mercadoria e a terra urbana, sobretudo para moradia em áreas próximas a igarapés, e do acesso à infraestrutura básica, são fatores que demonstram a realidade da reprodução socioespacial diferenciada e segregada na metrópole Manaus. Sobretudo, nesta pesquisa, acontece nos recortes escolhidos, onde existem características da ilegalidade de áreas, que se tornaram legais, das pontes que constituem objetos geográficos, que rompem a descontinuidade espacial entre margens de igarapés, mas que também revelam as diferenças socioespaciais, segregação e diferenciação dos grupos sociais que (re)produzem o espaço urbano. 

Portanto as diferenças e semelhanças são tônicas da realidade socioespacial de uma metrópole desigual.  

 

[1] Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo poder público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.

Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.

[2] Art. 15. A Área de Proteção Ambiental é uma área em geral extensa, com um certo grau de ocupação humana, dotada de atributos abióticos, bióticos, estéticos ou culturais especialmente importantes para a qualidade de vida e o bem-estar das populações humanas, e tem como objetivos básicos proteger a diversidade biológica, disciplinar o processo de ocupação e assegurar a sustentabilidade do uso dos recursos naturais (BRASIL, 2000). 

[3] Código Florestal, Lei nº12.651/12: Art. 3o Para os efeitos desta Lei, entende-se por: (…) II – Área de Preservação Permanente – APP: área protegida, coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas (BRASIL, 2012).

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