As distintas feições da pobreza a partir dos enfoques da sobrevivência, das necessidades básicas e da privação relativa


Boanerges de Freitas Barreto Filho
Professor do Departamento de Economia da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte em Pau dos Ferros/RN, Mestre em em Planejamento e Dinâmicas Territoriais no Semiárido.

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1. Introdução

A partir da Revolução Industrial inglesa ocorreu a aceleração do processo de acumulação, com a geração de riqueza econômica sem precedentes na história da civilização. Porém, em sociedades capitalistas, esse processo também foi marcado, por um lado, pela concentração e centralização de capitais nas mãos de uma determinada classe social e pelo pauperismo do proletariado[1], por outro lado.

A distinção entre as classes sociais, baseada na posse dos meios de produção em mãos de poucas pessoas (capitalistas) em relação ao abundante proletariado (força de trabalho formal e informal), exprime uma contradição fundamental (trabalho x capital) do modo de produção capitalista. Contradição que, mesmo considerando a possibilidade de melhoria das condições de vida de parte do proletariado, não cessa de ampliar a diferenciação socioeconômica, expressa pelo aumento da distância entre o topo e a base da pirâmide social (proletariado e lumpem proletariado[2]).

Observa-se em sociedades transformadas a partir da Revolução Industrial, que a maioria das pessoas tem que vender a força de trabalho à medida que esta se torna mercadoria e tem que ser transacionada no mercado. Não tendo mais, essas pessoas, como produzir os meios necessários para sobreviver[3] e sob pena de sucumbir à fome, estabelece-se e difunde-se o elemento estrutural da pobreza, amplifica-se a vulnerabilidade (o trabalhador tem que vender sua mercadoria para sobreviver) e difunde-se esse novo padrão[4] em que a dominação como relação social aparece como algo típico (natural) da estrutura social. (ABREU, 2012).

Assim, ao considerar, ao longo do tempo e em diferentes espaços geográficos, a dinâmica de transformações sociais provocadas pela acumulação capitalista (geração crescente de riqueza), tornam-se necessárias readequações de parâmetros para conceituação e mensuração da pobreza, ou seja, ocorrem mudanças no que se convenciona considerar como as condições determinantes da pobreza.

Por exemplo, em determinada circunstância histórica, pode ser que a necessidade de uma determinada população ter acesso a determinada cesta de alimentação básica fosse um parâmetro suficiente para dimensionar o contingente das pessoas que estivessem no limiar da sobrevivência física (enfoque da sobrevivência, associado ao conceito de pobreza absoluta). No pós Segunda Guerra Mundial, o tratamento teórico modifica-se para um rol mais amplo de necessidades básicas que deveriam ser observadas para a conceituação e mensuração da pobreza (enfoque das necessidades básicas, associado ao conceito de pobreza relativa). Mais recentemente, a conceituação passa para a caracterização daquilo que representa uma condição de vida digna no alvorecer do século XXI (enfoque da privação relativa ou privação das capacidades/capacitações, associado ao economista indiano Amartya Sen). 

Por sua vez, a ambiguidade relacionada ao conceito de pobreza se mantem nas diferentes tipologias propostas para sua conceituação e mensuração o que representa, conforme Altimir (1979), uma dificuldade para estudos sobre a temática.  Os inúmeros estudos que postulam o atendimento das necessidades alimentares se deparam com muitas dificuldades para tratar dos diferentes aspectos envolvidos para a fixação dos alimentos mínimos a serem considerados como, de acordo com Rocha (2003, p. 12), aspectos culturais, diferentes características dos indivíduos, condições de vida, dentre outros e contemplam, em muitos casos, “[...] apenas numa simplificação analítica”. Para este autor a extrapolação do atendimento apenas das necessidades alimentares para incorporar outras necessidades básicas (basic needs), como a habitação, saneamento, educação etc., não exime essa opção de juízos de valor e controvérsias[5].

Por fim, a conceituação de pobreza a partir do enfoque da privação relativa também apresenta ambiguidades à medida que pressupõe as pessoas possam viver com dignidade. Um conjunto mais amplo de privações ou, conforme proposto por Sen (2000), a privação das capacidades básicas de um indivíduo é o que caracteriza a condição de pobreza.

Considerando a complexidade relacionada a temática, o trabalho propõe sistematizar as contribuições teóricas acerca da evolução do conceito de pobreza, com ênfase nas abordagens da sobrevivência, necessidades básicas e privação relativa. Além da introdução, tem-se a segunda seção que apresenta elementos do debate sobre o conceito de pobreza. Em seguida, a quarta seção trata sobre as abordagens da sobrevivência, necessidades básicas (basic needs) e privação relativa ou privação de capacidades/capacitações. Empós, tem-se as conclusões.

2. Afinal, o que é pobreza?

Em que pese sua ambiguidade teórica para dar conta da tragédia humana relacionada ao fenômeno, para Altimir (1979) o uso do conceito de pobreza justifica-se em função das preocupações éticas e políticas para o aspecto particular da inadequada distribuição (de renda e dos bens sociais) nos distintos espaços geográficos, bem como, para apontar caminhos e soluções para o problema[6].

A complexidade do fenômeno apresenta-se desde o momento em que se busca conceituar o termo pobreza, e mesmo a determinação de parâmetros para a caracterização das suas condições não exaure completamente a possibilidade de que a opção conceitual utilizada seja carregada de ambiguidade teórica situada num campo normativo[7].

Barros et al. (1992, p. 16 apud ABREU, 2012, p. 98) reafirmam o argumento ao afirmar que a “pobreza é um fenômeno complexo que significa coisas diferentes para diferentes pessoas”. Em Barros, Henriques e Mendonça (2000, p.124), os autores indicam que: “A pobreza, evidentemente, não pode ser definida de forma única e universal”.Ao buscar parâmetros mais objetivos estes autores admitem que a insuficiência de renda é um parâmetro simplificador para a definição do fenômeno e seria apenas satisfatório para a delimitação do tamanho da população que sobrevivem em situação de pobreza. Apontam que: 

[...] a pobreza refere-se a situações de carência em que os indivíduos não conseguem manter um padrão mínimo de vida condizente com as referências socialmente estabelecidas em cada contexto histórico. Desse modo, a abordagem conceitual da pobreza absoluta requer que possamos, inicialmente, construir uma medida invariante no tempo das condições de vida dos indivíduos em uma sociedade. A noção de linha de pobreza equivale a essa medida. Em última instância, uma linha de pobreza pretende ser o parâmetro que permite, a uma sociedade específica, considerar como pobres todos aqueles indivíduos que se encontrem abaixo do seu valor (BARROS, HENRIQUES, MENDONÇA 2001, p. 02).

Para Pizzio (2010, p. 96): “[...] cada sociedade à sua maneira tem forjado concepções não só acerca da pobreza, mas fundamentalmente sobre quem pode ser considerado pobre”.

Por sua vez, Cobos, Athias e Mattos (2020) indicam que Spicker (1999) identificou 12 (doze) definições sobre pobreza, circunscrevendo-as em quatro grupos principais:

Num primeiro grupo, denominado ‘pobreza como conceito material’, o autor define pobreza por meio dos conceitos de necessidade, nível de privação (ao longo do tempo) e limitação de recursos (da qual emerge a abordagem mais usual de análise da pobreza em termos de renda). O segundo grupo refere-se à definição de pobreza por meio de circunstâncias econômicas e engloba os conceitos e definições de pobreza em termos de padrão de vida, desigualdade (pobreza relativa) e posição econômica (estratificação por classes). No terceiro grupo, a pobreza é definida pelas ‘circunstâncias sociais’, associando-se aos conceitos de classe social (underclass), dependência (assistidos), vulnerabilidade a riscos sociais, ausência de ‘entitlements’ (ótica da efetivação de direitos) e exclusão social. Por fim, o autor define também pobreza como um julgamento moral, no qual as sérias privações a ela associadas são vistas como moralmente inaceitáveis (COBOS, ATHIAS, MATTO 2020, p.6).

Para Rocha (2003, p. 19) a utilização de linhas de pobreza absoluta nos estudos sobre a realidade brasileira ainda seria aceitável, porém devendo ser adotada para “enfrentar condições de vida particularmente adversas nos bolsões de pobreza”. 

Ainda, Hoffmann (1998) também:

[...] argumenta que a renda é uma medida bastante imperfeita das condições de vida das pessoas e das famílias, embora ainda seja a melhor medida isolada dessas condições. Dado certo nível de renda para uma família, as condições de saúde de seus membros, ou ainda o nível educacional, por exemplo, pode fazer que ela esteja ou não em condições de pobreza (HOFFMANN 1998, Apud ALBUQUERQUE, CUNHA, 2012, p. 48).

Verifica-se que um nível de renda[8] mínima para definir quem esteja ou não em condição de pobreza é a principal diretriz “[...] da perspectiva monetária (em ter ou não acesso aos recursos monetários), focalizando a renda e o consumo de indivíduos e domicílios como informação básica tanto para a concepção quanto para a mensuração da pobreza”. (ALBUQUERQUE; CUNHA, 2012, p. 47). A abordagem monetária (focada na renda) passou a ser criticada[9], segundo Albuquerque e Cunha (2012, p. 48), por não ser capaz de contemplar o caráter mais amplo do fenômeno da pobreza: 

[...] o enfoque da renda não é suficiente para dimensionar a situação de pobreza, [...] [por isso, os estudos passaram a] incluir em suas análises as variáveis não monetárias que influenciam a situação de pobreza. Desse modo, parte-se de uma perspectiva absoluta de pobreza[10] em que pobre é aquele que tem menos do que um mínimo objetivamente definido, para uma perspectiva relativa, em que o pobre é que tem menos do que os outros na sociedade.

Já a abordagem conceitual da pobreza relativa[11] “[...] define necessidades a serem satisfeitas em função do modo de vida predominante na sociedade em questão, o que significa incorporar a redução de desigualdades de meios entre indivíduos como objetivo social” (ROCHA, 2003, p. 11). Neste sentido, percebe-se a pobreza de umas em relação a situação de outras pessoas, ou seja, estabelecendo-se diferenciações entre pessoas e/ou grupos sociais, geralmente, contemplando distinções de ordem econômica (desigualdade). 

Enquanto pessoas e/ou grupos sociais possam alcançar níveis mais elevados de bem-estar, mediante circunstâncias diversas (parcimônia, herança, capacidade inventiva e/ou empreendedora, violência etc.), inúmeras pessoas e/ou grupos sociais permanecem à margem e/ou deterioram-se suas condições de vida, indicando diferentes graus de desigualdade ao longo do tempo e distintos espaços geográficos.

Segundo Silva e Silva (2002, p. 73), a partir da década de 1960, na América do Norte, e na Europa, nas décadas de 1970 e 1980, a literatura especializada se tornou abundante no uso de termos correlatos[12] e de definições sobre pobreza, ainda que:

[...] a tendência é referenciá-la como um fenômeno relativo, que depende do modo de vida dominante de cada país, como fenômeno dinâmico, heterogêneo, multidimensional, pela interferência de aspectos quantitativos e qualitativos representados por um acúmulo de deficiências socioeconômicas e culturais. Além do problema de deficiência de renda, ao conceito de pobreza agregam-se problemas de saúde, educação, moradia, desemprego e grande dificuldade de fazer valer direitos no meio profissional e extraprofissional.

Vale destacar que a “[...] pobreza como conceito relativo é uma abordagem de cunho macroeconômico, assim como o conceito de pobreza absoluta”. Ademais, a “[...] pobreza relativa tem relação direta com a desigualdade na distribuição de renda” (CRESPO; GUROVITZ, 2002, p. 03). Ressalve-se que, segundo Silva e Silva (2002), mesmo existindo algum consenso entre os especialistas acerca da multidimensionalidade do fenômeno da pobreza ainda remanescem estudos que adotam o caráter unidimensional, estritamente monetário, para caracterização e mensuração da pobreza[13].

Em linhas gerais, Silva e Silva (2002) indica que os estudos sobre as explicações do fenômeno da pobreza podem ser agrupados em diferentes campos de abordagem teórica:

[...] é possível serem identificados pelo menos quatro grupos de abordagem que tratam dessa questão [da pobreza]: 1) as Abordagens Culturalistas, cujas causas da pobreza são identificadas em fatores internos aos indivíduos, expressos pelo desenvolvimento de padrões valorativos, a partir dos quais os pobres são identificados; 2) as Abordagens Estruturais, que apontam as determinações de ordem estrutural como causas determinantes da pobreza; 3) as Abordagens Liberais / Neoliberais que apontam como causa explicativa da pobreza o próprio indivíduo, ressaltando as deficiências pessoais: ignorância, preguiça, infortúnio, fraqueza, etc., e, finalmente, 4) a Abordagem que situa a pobreza enquanto um Fenômeno Multidimensional e Relativo. (SILVA E SILVA, 2002, p. 75).

Já a explicação da pobreza mais frequente é a que recorre a duas noções: 1) insuficiência dos níveis de vida e 2) desigualdade na distribuição de recursos, originando a concepção de pobreza absoluta e pobreza relativa. (SILVA E SILVA, 2002, p. 85).

Kageyama e Hoffmann (2006, p. 81), baseando-se em Hagenaars e De Vos (1988), apontam que: 

[..] todas as definições de pobreza podem ser enquadradas numa das três categorias seguintes:  a) pobreza é ter menos do que um mínimo objetivamente definido (pobreza absoluta); b) pobreza é ter menos do que outros na sociedade (pobreza relativa); c) pobreza é sentir que não se tem o suficiente para seguir adiante (pobreza subjetiva).

Antes de sistematizar alguns apontamentos sobre as abordagens da pobreza a partir dos enfoques sugeridos por Crespo e Gurovitz (2002), saliente-se que, quaisquer que sejam os critérios adotados para conceituar pobreza, faz-se necessário reafirmar a insuficiência para abarcar todos os elementos delineadores do fenômeno. 

Diz Romão (1982, p. 356):

[...] embora definida em termos amplos, [o conceito de pobreza] não pode, naturalmente, abranger em todas as suas dimensões o sofrimento da miséria. A pobreza implica muito mais do que meras considerações econômicas, nas necessidades não-econômicas como de auto-realização, liberdade, prestígio, participação na sociedade, etc., são muito difíceis de aferir.

Romão (1982, p. 356) propõe que o caminho mais adequado para seguir, tendo em vista a complexidade da temática e o caráter de alguma arbitrariedade envolvida em qualquer escolha, é o proposto por Sen (1979, p. 288): “[...] temos de aceitar o elemento de arbitrariedade na descrição da pobreza e tomá-lo tão explícito quanto possível”.

3. Três abordagens sobre pobreza e sua trajetória

Para Crespo e Gurovitz (2002), as concepções sobre pobreza podem ser agrupadas em três enfoques: a) o da sobrevivência, b) das necessidades básicas e, c) o da privação relativa, destacando-se as contribuições de Amartya Sen e Deepa Narayan.

3.1 Sobrevivência

enfoque da sobrevivência buscou determinar um nível de rendimento capaz de suprir as carências alimentares diárias para assegurar a manutenção física de um indivíduo (consumo de calorias necessárias para a subsistência - kcal). Dentro desta perspectiva, o trabalho de Rowntree[14] sobre a situação em York (Inglaterra) na virada do século XIX para o século XX tornou-se referência para os estudos sobre pobreza na Europa, América Latina e serviu como diretriz para elaboração de estudos da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe(CEPAL)[15], e no Brasil.

Neste sentido, enquadravam-se como pobres aquelas pessoas que não dispunham de renda suficiente para consumir o mínimo necessário para se manterem vivas, geralmente, expresso numa cesta de alimentos básicos. 

Como Raitano e Ribeiro (2019, p. 3-4) explicitam:

A abordagem da subsistência foi constituída na Inglaterra e teve em sua história duas grandes fases. A primeira, no final do século XIX, seguindo a linha das Poor Laws e dos estudos nutricionais que buscavam encontrar e formular ações que possibilitassem o acesso de pessoas pobres a um nível mínimo de alimentação, nível esse que seria suficiente apenas para garantir sua reprodução física. Os pobres, nessa fase, eram as pessoas que pertenciam às famílias que não possuíssem renda suficiente para alcançar esse nível de alimentação. [...]. Na segunda fase dessa abordagem, que ocorreu nos anos posteriores à Segunda Guerra Mundial, a abordagem muda de tom no sentido de que e a pobreza passa a ser entendida como um problema para a manutenção da coesão social e, torna-se assim, alvo de políticas públicas de Estado. Para isso, as ações estatais se concentraram na manutenção do pleno emprego como forma de possibilitar o acesso de todos a recursos básicos, nesse caso, a alimentação [...].

Também Crespo e Gurovitz (2002) confirmam que os primeiros estudos sobre a pobreza a partir do enfoque da sobrevivência, foram publicados por nutricionistas da Inglaterra e se tornaram uma abordagem razoavelmente difundida até meados do século XX. Norteou a concessão de financiamentos de instituições como o Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento (BIRD)[16] para a realização de ações e projetos de enfrentamento da pobreza em países em desenvolvimento. Por meio de uma parametrização em relação à subsistência do público-alvo, estabeleciam-se um rol de ações implementadas com recursos do BIRD. 

Dentre as ações elegíveis como prioritárias, pode-se destacar o fomento de atividades produtivas a fim de gerar renda para as pessoas pobres, tais como: repasses de recursos, a fundo perdido, para associações de pequenos produtores rurais, inclusive custeio, e para realização de investimentos em infraestrutura (eletrificação rural, pequenos açudes, barragens, perfuração e instalação de poços, melhorias em estradas vicinais, habitação rural etc.). 

Sob a égide de tão restritiva abordagem, compreende-se porque as ações governamentais implementadas em diversos países, especialmente aquelas financiadas por recursos do BIRD, não asseguravam a superação definitiva da pobreza, mas, tão-somente, a atenuação da situação. A lógica dessas ações era somente assegurar às pessoas um rendimento para alcançar o nível de sobrevivência e, consequentemente, reduzir a tensão social sempre presente em regiões com mais acentuada concentração de pobreza[17]. Evidentemente, não se deve menosprezar intervenções governamentais que tinham/têm este propósito de suprir carências nutricionais básicas e mitigar os problemas da fome. Contudo, no aspecto teórico, não resta dúvida que esse tipo de abordagem “[...] se refere de maneira inequívoca à noção de pobreza absoluta”, não sendo o mais adequado para captar a multidimensionalidade do fenômeno da pobreza. (ROCHA, 2003, p. 19).

Segundo Raitano e Ribeiro (2019, p. 04):

São duas as principais críticas em relação a essa abordagem. A primeira delas critica o fato de que ao tratar apenas a questão de a subsistência alimentar as pessoas são entendidas como seres unicamente físicos, ignorando os seres sociais que são, as maneiras como essas pessoas se relacionam em sociedade e com bens não materiais. A segunda crítica apoia-se na problemática de definir como e o que é considerado o nível alimentar básico. As necessidades alimentares também são condicionadas socialmente e diferentes indivíduos, possuem diferentes necessidades, o que gera grande dificuldade na hora de definir esse nível.

Entrementes, no aspecto operacional, a utilização de linhas de pobreza pode ser suficiente para diagnosticar determinadas circunstâncias, sendo preferível sua utilização em áreas de bolsões de pobreza e países muito pobres. Ademais, mesmo “[...] partindo das noções de pobreza absoluta e de consumo mínimo, as linhas de indigência e de pobreza podem ser definidas de forma tão próxima à noção de pobreza relativa quanto se queira”. (ROCHA, 2003, p. 14).

3.2 Necessidades básicas

A complexidade do fenômeno da pobreza e o crescente interesse pela temática deram impulso para que se desenvolvesse o enfoque das necessidades básicas (basic needs), pois possibilita “[...] incorporar uma gama mais ampla de necessidades humanas [...]” (ROCHA, 2003, p. 19). Pois, segundo Rocha (2003, p. 19), definir pobreza a partir da abordagem das necessidades básicas amplia as perspectivas para se compreender o fenômeno, isso porque não se limita aos aspectos alimentares, reconhecendo a importância de incorporação de outras “[...] necessidades humanas, tais como educação, saneamento, habitação etc.” Ainda, para Rocha (2003, p. 20), o desenvolvimento do escopo teórico das necessidades básicas corresponde ao esforço para compreender o fenômeno da pobreza de forma “multifacetada” e apresenta três aspecto essenciais para a readequação do enfoque: 1) abandona a renda como indicador-chave e passa a adotar parâmetros sobre a qualidade de vida; 2) estabelece objetivos e medição dos resultados para a sociedade e; 3) enfatiza o caráter multidimensional da pobreza.

Como marco temporal no qual a abordagem das necessidades básicas passou a ganhar espaço no debate teórico e, consequentemente, influência na implementação de ações[18] os autores apontam:

[...] a partir de 1970, a pobreza tinha a conotação de necessidades básicas, colocando novas exigências, como serviços de água potável, saneamento básico, saúde, educação e cultura. Configurou-se o enfoque das necessidades básicas, apontando certas exigências de consumo básico de uma família. Essa concepção passou a ser adotada pelos órgãos internacionais, sobretudo por aqueles que integram a Organização das Nações Unidas (ONU), representando uma ampliação da concepção de sobrevivência física pura e simples(CRESPO, GUROVITZ2002, p. 4-5).

Com o propósito de evidenciar os resultados das ações de enfrentamento da pobreza se tornou corriqueiro o uso de indicadores sociais diversos que, embora operacionais, não conseguiam rivalizar com a assertividade de um indicador sintético como, por exemplo, o PIB per capita. Neste sentido, autores como Drewnowsky e Scott (1966), Morris e Liser (1977), Hicks e Streeten (1979), dentre outros, buscaram a sistematização de um indicador sintético capaz de servir como parâmetro para mensuração da pobreza. (ROCHA, 2003). 

 Como os diversos índices propostos apresentavam limitações[19], não chegaram a ser amplamente utilizados, porém foram contribuições importantes para o desenvolvimento e aprimoramento de medidas e indicadores para mensuração da pobreza. Em 1990, seguindo a linha da importância de sistematização de um índice sintético, foi publicado o Relatório de Desenvolvimento Humano de 1990, documento elaborado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Este relatório trouxe o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) como alternativa ao PIB per capita, ao oferecer uma proposta de índice sintético[20] bem mais amplo e contemplar aspectos não eminentemente econômicos.

Além do IDH, o PNUD criou mais 09 (nove) índices ao longo da década de 1990, dentre os quais: Medida de Privação de Capacidade – MPC[21] (1996) e Índice de Pobreza Humana – IPH (1997). (SANTAGADA, 2014, p. 124). Conforme Rocha (2003, p. 26), o IPH foi 

[..] definido de forma diversa conforme se trate de países em vias de desenvolvimento (IPH-1) e países industrializados (IPH-2). [O índice é composto apenas por indicadores sociais]: percentual de pessoas com esperança de vida inferior a 40 anos; proporção de adultos analfabetos e; o resultado da média simples de dois indicadores: proporção da população sem acesso a água tratada e a proporção de crianças menos de cinco anos com peso insuficiente.

Em relação ao conceito de pobreza, baseando-se em Rocha (2003), Albuquerque e Cunha (2012, p. 48), afirmam que: “Esse enfoque sustenta que são pobres as pessoas que não têm suas necessidades básicas atendidas, cujo consumo de uma cesta de bens e serviços não atinge o mínimo considerado necessário para subsistência”.

Também buscando esclarecer elementos conceituais relacionados à abordagem das necessidades básicas, Pereira (2006, p. 234), citando Gough (1999), aponta que “necessidades básicas são aquelas que se não forem devidamente satisfeitas implicarão sérios prejuízos[22] à vida material e à autonomia do ser humano”.

Para Silva, Lacerda e Neder (2011, p. 518):

A preocupação dessa abordagem é muito mais na qualificação da pobreza do que na sua quantificação. Os pobres são frequentemente identificados com base nas suas rendas, e a linha de pobreza utilizada varia muito. Mas há o entendimento de que este não é um critério suficiente. A ele deve ser somada a satisfação de necessidades básicas, tais como educação, saúde, nutrição, saneamento, moradia, acesso à água tratada, entre outros. Assim, essa abordagem introduz a multidimensionalidade nos estudos da pobreza e do desenvolvimento, sendo a sua contribuição inquestionável.

Verifica-se o reconhecimento de que as pessoas têm necessidades mais amplas do que a alimentação, requerendo-se uma gama bem maior de recursos para a satisfação das necessidades, recursos esses não disponíveis nos países da periferia. 

3.3 Privação relativa

À medida que a virada do milênio se aproximava, tornou-se cada vez mais evidente que as pressões migratórias, por motivações econômicas, tendiam a crescer, bem como as tensões sociais nas áreas mais pobres do planeta[23]. Por outro lado, a crise do capitalismo no último quartel do século XX legitimou o ideário neoliberal como a solução para o enfrentamento da insolvência fisco-financeira que assolou os diversos países, especialmente, os da periferia. Assim, os organismos multilaterais, com destaque para o Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco Mundial, passaram a exigir o cumprimento de condicionalidades alinhadas com as diretrizes do Consenso de Washington para liberação de recursos às nações endividadas da periferia, ademais, de forma adicional, assegurando-se mercados para as inovações tecnológicas (renovação do capital fixo e criação de novos desejos e necessidades oriundas da revolução tecnológica) provenientes dos países centrais e maior liberdade nos fluxos de capitais.

A estratégia de restabelecimento das perspectivas de ganhos vultosos para o capital foi bem-sucedida no exato sentindo para a qual foi engendrada e, como não poderia ser diferente, os setores e áreas merecedoras de incorporação ao moderno e dinâmico capitalismo global progrediram materialmente. Contudo, a dualidade estrutural se potencializou e as áreas atrasadas e pobres passaram a ser vistas como as únicas responsáveis pela condição em que se encontravam, pois, a situação decorreria de resistências criadas e mantidas nas áreas pobres ao processo globalizante. A solução para os males estava dada pela adoção do neoliberalismo e o desfrute do padrão de vida existente nos países mais ricos poderia ser alcançado mediante o estabelecimento de estratégias locais/regionais de atração do grande capital. 

A penúria predominante nas áreas periféricas decorreria de problemas internos (econômicos, sociais, políticos, institucionais, culturais etc.) e/ou por culpa do próprio pobre[24]. Afirma Estensoro (2003, p. 217):

[...] o sistema de produção (capitalismo) num momento específico do seu desenvolvimento (globalização) e numa parte específica do sistema (periferia) revela um quadro de impossibilidade de promover a cidadania e a democracia apoiadas na sociedade civil, devido à situação de pobreza e desigualdade que sufoca os movimentos sociais e violenta os direitos humanos.

Assim, no contexto histórico em que ganha ênfase o paradigma neoliberal (a partir da crise estrutural do capitalismo na década de 1970), concebe-se:

[...] o pauperismo [...] como um problema individual-pessoal e, portanto, ‘devolve’ à filantropia (individual ou organizacional) a responsabilidade pela intervenção social: surge o debate do ‘terceiro setor’ [...], da filantropia empresarial (ou ‘responsabilidade social’), do voluntariado. A autoajuda, a solidariedade local, o benefício, a filantropia substituem o direito constitucional do cidadão de resposta estatal [...]. (MONTAÑO, 2012, p. 276).

Para Montaño (2012, p. 277), a estratégia neoliberal de combate à pobreza decorre da execução de políticas sociais do Estado, por ações das empresas privadas e/ou por iniciativas do “terceiro setor”. Verifica-se que as diretrizes para o enfrentamento da pobreza através de políticas sociais devem ser construídas por consensos estabelecidos entre o Estado e a sociedade e a partir da mobilização de forças e recursos internos. Ademais, as ações teriam que proporcionar condições para que as pessoas possam dispor de alternativas de funcionamentos e, assim, serem capazes de viver condignamente.

Em tal contexto histórico, passa-se a enfatizar um conjunto mais amplo de circunstâncias necessárias para que as pessoas pobres sejam capazes de alcançar o bem-estar. Abreu (2012, p. 97), citando Sen (1992, p. 95; p. 110), indica que:

[...] a ‘capacidade de uma pessoa consiste nas combinações alternativas de funcionamentos[25] cuja realização é factível para ela’, [neste sentido,] pode entender-se pobreza como a impossibilidade de uma pessoa, ou grupo de pessoas, transformar essas capacidades em oportunidades para viverem a vida de acordo com seus objectivos e vontades, ou ainda, a incapacidade de alcançar o bem-estar devido à falta de meios económicos e à impossibilidade de converter rendimentos e recursos escassos em capacidade de funcionar.

Ainda segundo Abreu (2012, p. 97-8), o conceito de pobreza proposto por Sen (1992) vai além da “incapacidade de uma pessoa sustentar as suas necessidades básicas devido ao baixo rendimento”, acrescendo, nesta perspectiva:

[...] a falta de condições para viver uma vida mais longa, o não acesso às facilidades de educação e de saúde, a dificuldade em escapar a uma situação de sub ou mal nutrição crónica, o não acesso a água potável, a energia eléctrica, a condições de habitabilidade dignas e meio ambiente saudável, o não acesso à cultura e ao lazer, os quais resultam em desvantagens quase inultrapassáveis para competir no mercado de trabalho, e que, por sua vez, estão na base da reprodução do círculo vicioso da pobreza: sem trabalho nem rendimento, não existem condições objectivas nem subjectivas para acesso à educação e à saúde, mães sub ou malnutridas e pouco escolarizadas ou analfabetas colocam no mundo mais crianças com desvantagens à nascença, que irão confrontar-se com os mesmos problemas, muitas vezes agravados, que os seus progenitores enfrentam e que não terão condições de as alterar em seu favor.

Neste sentido, percebe-se que o fenômeno da pobreza, à luz do enfoque da privação relativa[26], demanda verdadeiro engajamento da sociedade e esforços governamentais para criar alternativas viáveis para quebrar o círculo vicioso da pobreza, devendo-se reconhecer os distintos contextos dos países e regiões, sobretudo, em relação à disponibilidade de recursos econômicos e capacidade operacional para formulação e execução de políticas públicas[27].

Conforme Abreu (2012, p. 99), a abordagem da pobreza realizada por Sen:

[...] é a de maior abrangência, colocando a questão bem na sua origem, ou seja, na impossibilidade real das pessoas tirarem proveito dos seus potenciais (para alguns, já de si bastante afectados à nascença por inúmeras desvantagens acumuladas) para viverem a vida do seu jeito, sem que sejam criadas condições, pelo estado e pela sociedade, que permitam incluir as liberdades substantivas na pauta da procura incessante de maior igualdade de condições, de oportunidades e de resultados.

Tem-se, paradoxalmente, uma interpretação mais ampla sobre o fenômeno da pobreza a partir do enfoque da privação relativa e um verdadeiro esvaziamento do papel do Estado no contexto de predomínio do paradigma neoliberal, restando a possibilidade de atuação conjunta das empresas, do terceiro setor e dum Estado fraco para atenuação do problema.

Pinheiro (2012) sustenta que o foco de Sen são as pessoas, e não a renda, e busca demonstrar como a expansão do horizonte de liberdade é o elemento-chave para que as capacidades humanas sejam plenamente realizáveis. Neste sentido, as “liberdades substantivas”[28] devem assegurar que as pessoas disponham de oportunidades e possam ter uma vida digna e feliz.

Para Crespo e Gurovitz (2002, p. 05):

[...] a privação de capacidades elementares pode refletir-se em morte prematura, subnutrição considerável (especialmente de crianças), morbidez persistente, analfabetismo e outras deficiências. Essa definição não despreza o fato de a pobreza também ser caracterizada como uma renda inferior a um patamar pré-estabelecido, pois uma renda baixa pode ser a razão primeira da privação de capacidades de uma pessoa.

Segundo Zambam e Leal (2020, p. 167), as contribuições de Sen para o enfrentamento da pobreza se fundamentam nas ações do Estado no sentido de formular e executar políticas públicas para assegurar “direitos sociais básicos”, portanto, confrontando-se a posposição neoliberal.

Nessa perspectiva, as pessoas dependem do Estado e da sociedade enquanto promotores de papéis de sustentação (proteção e fortalecimento de capacitações (capabilities)), e ‘não de entrega sob encomenda’ [...]. Ou seja, demonstra que sua promoção não prescinde de ações positivas pelos agentes (estatais e/ou não estatais), a fim de disponibilizar recursos (financeiros, humanos e estruturais) com o intuito de garantir os direitos sociais, que são imprescindíveis à alavancagem das capacitações (capabilities). (ZAMBAM; LEAL, 2020, p. 174).

O papel do Estado seria criar as condições para o desenvolvimento das capacidades/capacitações através de políticas públicas e, portanto, atenuar ou eliminar as mazelas da pobreza. (ZAMBAM; LEAL, 2020).

Salama e Destremau (1999, p. 79), citados por Silva, Lacerda e Neder (2011, p. 520), sintetizam o conceito de pobreza, formalizado a partir da abordagem da privação relativa, nos seguintes termos:

Trata-se, pois, de uma abordagem qualitativa que, sem negligenciar o possuir material, dá ênfase a valores de realização e de liberdade, com os funcionamentos representando um modo de se levar a vida, as capacidades [capacitações] e as diversas oportunidades que se apresentam a uma pessoa e entre as quais ela escolhe. No enfoque das capacidades [capacitações], nem a utilidade, nem o rendimento podem ser identificados com o bem-estar. A definição de pobreza não pode, portanto, se basear no fraco nível de um ou de outro, mas, de preferência, na inadequação dos meios econômicos referentes à propensão das pessoas em convertê-las em capacidades [capacitações] de funcionar, e isto num ambiente social, econômico e cultural particular.

Reconhece-se a importância da renda para alcançar o bem-estar, mas não se circunscreve a complexidade do fenômeno da pobreza a essa variável, visto que inúmeros aspectos (idade, papéis sexuais e sociais, localização etc.), fatores (inteligência, metabolismo, habilidade física etc.) e as condições predominantes na sociedade (as privações variam de sociedade para sociedade) podem afetar as capacidades/capacitações. (SILVA; LACERDA; NEDER, 2011).

Nessa perspectiva, a abordagem [da privação de capacidades/capacitações] tem como núcleo a noção da capacidade dos indivíduos de usufruir de um tipo de vida que valoriza. Para se atingir esse tipo de vida, o indivíduo deve usufruir de algumas liberdades instrumentais como: oportunidades econômicas, liberdades políticas, facilidades sociais, garantias de transparência e segurança protetora. (RAITANO; RIBEIRO, 2019, p. 08).

Silva, Lacerda e Neder (2011, p. 519), baseando-se em Sen (2001), apontam que o conceito de pobreza[29]deve ser entendido “como privação das capacitações básicas”, devendo-se considerar as condições mínimas necessárias para assegurar, “[...] os funcionamentos relevantes [...] desde os físicos elementares [...] até realizações sociais mais complexas tais como tomar parte na vida da comunidade [...]”. (SEN, 2001, p. 173 apud SILVA; LACERDA; NEDER, 2011, p. 519).

4. Conclusões

Tomando-se por base alguns dos elementos mencionados no levantamento sobre o conceito pobreza, percebe-se que a utilização de um enfoque não deslegitima as outras opções. Isso porque restou evidente que a existência de distintas abordagens e de inúmeros índices e medidas sociais que podem ser aplicados à mensuração do fenômeno da pobreza decorre, especialmente, do dissenso relacionado ao conceito. Assim, as distintas medidas adotadas e/ou índices propostos e os respectivos aportes teóricos que lhe dão sustentação não devem ser, aprioristicamente, descartados ou considerados mais (ou menos) apropriados, uma vez que não se pode eliminar, por completo, em nenhuma das abordagens, as ambiguidades relacionadas à temática da pobreza.

Saliente-se que a pobreza é um fenômeno observável nas áreas periféricas do modo de produção capitalista e em áreas delimitadas dos países desenvolvidos, afetando as classes situadas na base da pirâmide social, caracterizando-se pela ausência/insuficiência de acesso/garantia ao que é identificado como as condições necessárias para um ser humano viver com dignidade, sendo que tal determinação do que é necessário dispor/consumir/ter acesso/sentir é algo discricionário e mutável ao longo do tempo histórico. 

Em síntese, a evolução do debate teórico sobre o conceito de pobreza partiu de estudos relacionados ao consumo de calorias (kcal) necessárias para assegurar à subsistência das pessoas, demandando-se para tanto um nível de renda, passando para a publicação de estudos, a partir de meados do século XX, que ampliam o escopo de tal consumo para além de alimentos, incorporando-se outros tipos de bens e serviços, porém, ainda circunscrito ao enfoque da renda (perspectiva absoluta de pobreza).

Já nas décadas de 1970 e 1980 passa a predominar o enfoque das necessidades básicas (perspectiva relativa de pobreza), cujo avanço mais notável foi o reconhecimento de que as necessidades das pessoas não deviam ser restritas apenas a alimentação. 

Por fim, os trabalhos de Amartya Sen trazem o entendimento de pobreza a partir do enfoque das privações relativas ou privações de capacidades/capacitações, em que se desenvolve o conceito de pobreza como um fenômeno de caráter multidimensional. Neste sentido, o caminho é o de buscar explicitar, da melhor forma possível, o conceito de pobreza, buscando ir além da seara economicista e colocar as pessoas como os sujeitos relevantes do debate e das pesquisas.

 

[1] “[...] quanto maior a potência de acumular riqueza, maior a magnitude do exército industrial de reserva. E quanto maior esse exército industrial de reserva em relação ao exército ativo, tanto maior a massa da superpopulação. E quanto maior essa massa (de Lázaros da classe trabalhadora) tanto maior o pauperismo”. (MARX, 1980, Livro I, p. 747 apud MONTAÑO, 2012, p. 279).

[2] “O conceito inicial referia-se a uma fração de classe constituída por trabalhadores muito pobres sem qualquer lugar ou vínculo com a produção ou com o mercado de trabalho formal. Sobrevivem à custa de pequenos expedientes e atividades intermitentes. Por sua própria fragmentação, é uma camada que tende a realizar ações individuais em detrimento de iniciativas coletivas. Raramente atua de forma organizada”. (MARINGONI; ARAÚJO, 2019, s/p.)

[3] O mínimo que uma pessoa requer para sobreviver deve suprir a necessidade da alimentação. Entretanto, conforme Rocha (2003, p. 11-2): “Mesmo as necessidades fundamentais de alimentação, cujo atendimento poderia estar associado ao mais absoluto conceito de pobreza, não são um dado indiscutível”.

[4] “A lei que mantém a superpopulação relativa ou exército industrial de reserva sempre em equilíbrio com o volume e a energia da acumulação prende o trabalhador mais firmemente ao capital do que as correntes de Hefaísto agrilhoaram Prometeu ao rochedo. Ela ocasiona uma acumulação de miséria correspondente à acumulação de capital”. (MARX, 1996, p. 275).

[5] Diz Rocha (2003, p. 19-20): “Existe [...] amplo escopo para julgamentos de valor associados à definição das necessidades básicas, à forma de ordenar os pobres em função do número de necessidades não atendidas e à ponderação relativa atribuída a cada uma das necessidades consideradas”.

[6] “El análisis de la medida en que el concepto de pobreza tiene significación teórica podría parecer pedante frente a las dramáticas dimensiones humana del problema. Lo certo, sin embargo, es que la ambigüedad teórica del concepto de pobreza representa uma dificultad básica para los estúdios de la pobreza, y que el uso del concepto encuentra, en cambio, su justificación em las preocupaciones éticas y políticas por este aspecto particular y extremo de la mala distribución de los bienes sociales, y em la voluntad política de dedicarse especialmente a su solución.” (ALTIMIR, 1979, p. 03).

[7] “A falta de inserção precisa do conceito de pobreza, num corpo teórico significativo, o transforma numa noção essencialmente normativa. Nesse sentido, as normas que fixam as necessidades básicas e os níveis adequados para sua satisfação vinculam-se, necessariamente, a algum esquema valorativo que também seleciona as políticas para combater a pobreza”. (SILVA e SILVA, 2002, p. 73). Altimir (1979, p. 07), também salienta que o conceito de pobreza é essencialmente normativo e seu conteúdo efetivo varia junto com a norma sobre necessidades básicas ou bem-estar em que se baseia.

[8] Evidentemente, não se pode menosprezar que a renda é o principal determinante na definição de quanto cada pessoa pode consumir. (COBOS, ATHIAS, MATTOS, 2020). Contudo, diversos estudos propõem parâmetros mais amplos do que o nível de renda para conceituação e mensuração do fenômeno da pobreza, como os que fazem uso de indicadores sociais e/ou inclusão de variáveis não econômicas.

[9] “Admitir a exclusividade da renda como a mais adequada proxy de bem-estar é ignorar outras dimensões que influenciam o bem-estar, seja do indivíduo, da família, da comunidade, região ou país. A extensão dessa exclusividade para o estudo da pobreza produz uma simplificação do debate que já não pode mais ser aceita” (SILVA, LACERDA, NEDER, 2011, p. 512).

[10] Altimir (1979), define a pobreza absoluta como a condição em que não se obtém rendimento suficiente para a sobrevivência.

[11] “A pobreza relativa, comumente definida como a percentagem da população que vive com menos do rendimento mediano numa dada população, é claramente uma medida de distribuição de rendimento e, como tal, obviamente insuficiente para abranger as diversas formas que a pobreza, enquanto privação de capacidades, pode apresenta.” (ABREU, 2012, p. 98). Ademais, a variável renda apresenta limitações para capturar os efeitos da “[...] oferta de serviços públicos, subsídios e outros benefícios, [dando] impulso adicional as abordagens que utilizam indicadores sociais ao invés da renda como medida de bem-estar” (ROCHA, 2003, p. 18).

[12] Segundo a autora: “a noção de pobreza aparece, na literatura, relacionada ou como sinônimo de variadas palavras ou expressões como pauperização, precarização, empobrecimento, desigualdade, exclusão, vulnerabilidade, marginalidade, pobreza unidimensional; pobreza multimensional, miséria, indigência, diferenças sociais, discriminação; segregação, desqualificação, privação, deficiência, inadaptação, pauperismo, precarização, apartheied social; estigmatização, baixa renda, classe baixa, underclass etc. Cada um desses termos ou expressão indica um estado particular do processo da pobreza ou suas dimensões e características.” (SILVA E SILVA, 2002, p. 71).

[13] Sobre o uso de metodologia de mensuração de pobreza unidimensional e multidimensional, ver Cobos, Athias e Mattos (2020).

[14] “Rowntree propunha-se a definir uma linha de pobreza absoluta, já que se refere a famílias cujos rendimentos são insuficientes para que obtenham o ‘mínimo meramente necessário à manutenção da eficiência física’. [...] fica claro, no entanto, a adoção de um conceito de pobreza que incorpora aspectos relativos, vinculados às necessidades sociais em York (Inglaterra) ao longo do tempo [...]”. (ROCHA, 2003, p. 13).

[15] “As linhas de pobreza da Cepal para a América Latina são, há três décadas, todas calculadas mediante o uso do método calórico indireto”. (SOARES, 2009, p. 15).

[16] No Brasil foram realizadas inúmeras intervenções que contaram com recursos provenientes do Banco e que contemplavam repasses para mitigação da pobreza, sobretudo nas áreas rurais, com destaques para o Projeto POLONORDESTE, Projeto Sertanejo, Programa de Apoio ao Pequeno Produtor Rural (PAPP) e Programa de Combate à Pobreza Rural (PCPR).

[17] Por exemplo, aquelas decorrentes dos conflitos fundiários do Nordeste.

[18] Para Rocha (2003) e Soares (2009), esse tipo de abordagem foi concebido para analisar as situações de países ricos, entretanto, passou a ser aplicado também nos países em desenvolvimento, servindo, inclusive, para orientar estratégias de atuação do BIRD, ou, mais especificamente, para orientar a aplicação de recursos captados junto à referida instituição.

[19] O trabalho de Rocha (2003) apresenta as principais contribuições e limitações dos estudos citados. Santagada (2014) traça um panorama sobre a evolução histórica dos indicadores sociais no plano internacional a partir dos anos 1960.

[20] Estudo de Oliveira (2013, p. 08) afirma: “Com a criação do IDH, a ideia de que o conceito de desenvolvimento não deveria estar restrito ao aspecto puramente econômico foi estabelecida de modo definitivo. Assim, além da dimensão econômica, dada pelo tradicional conceito de PIB per capita, foram utilizadas em um mesmo índice de desenvolvimento variáveis referentes à educação e à saúde.”

[21] Santagada (2014, p. 124), baseando-se em Pereira (2000), aponta que a MPC “considera a falta de três capacidades básicas: capacidade de estar bem alimentado e saudável; capacidade para a reprodução saudável e capacidade para ser educado e instruído”.

[22] “E por sérios prejuízos deve-se entender ‘impactos negativos cruciais que impedem ou põem sério risco a possibilidade objetiva dos seres humanos de poder expressar sua capacidade de participação ativa e crítica. São, portanto, danos cujos efeitos nocivos independem da vontade de quem os padece ou da cultura em que se verificam’”. (PEREIRA, 2006, p. 234).

[23] “O relatório da FAO de 2003 sobre Insegurança Alimentar mostra que entre 1995/97 e 1999/2001 houve um aumento em 18 milhões de pessoas que sofrem fome crônica. [...] Conforme o mesmo relatório, as regiões geográficas em que a porcentagem de pessoas famintas é maior são: a África (com exceção da África do Norte), a América Central, o Caribe e a Ásia Meridional. [...], a FAO denunciou que morre de fome uma pessoa a cada quatro segundos: dos 842 milhões de seres humanos que passam fome no mundo inteiro, 798 (sobre)vivem nos países em desenvolvimento.” (MARINUCCI; MILESI, 2011, p. 05).

[24] A causa da pobreza encontra-se no próprio indivíduo, por “[...] ausência de virtudes individuais, promiscuidade, vadiagem, incompetência, preguiça, criminalidade e vagabundagem. Esta é uma concepção malthusianista (Thomas Malthus, 1766-1834) que defendia que o pobre é pobre por causa de si mesmo, pois não tem determinação (iniciativa), força de vontade e vive de forma desiquilibrada - especialmente no quesito sexualidade, gravidez/natalidade.” (SCHWARTZMAN, 2004, apud GUIMARÃES, 2016, p. 02).

[25] “Os funcionamentos compreendem estados e ações [...]. Podem variar desde coisas elementares como estar nutrido adequadamente, estar em boa saúde, livre de doenças [...] até realizações mais complexas, tais como ser feliz, ter respeito próprio, tomar parte na vida da comunidade e assim por diante.” (SEN, 2008, p. 79).

[26] Também são utilizadas as expressões privação de capacidades e privações de capacitações. Saliente-se que, Raitano e Ribeiro (2019) propõem que o enfoque da privação relativa, da privação de capacidades/capacitações e da pobreza multidimensional devem ser consideradas elaborações teóricas distintas.

[27] Rocha (2003) salienta que as políticas antipobreza, para serem eficazes, têm que contar com os meios financeiros e gerenciais compatíveis.

[28] Pinheiro (2012, p. 15), indica que: “Liberdades substantivas são aquelas que enriquecem nossas vidas e a que queremos atingir como fins, ao passo que as [liberdades] instrumentais são os meios para atingir aqueles fins. Por exemplo, para atingir a liberdade substantiva de ter boa saúde, eu busco as liberdades instrumentais de me alimentar bem, repousar, fazer exercícios físicos, viver em um lugar livre de poluição etc.”

[29] Percebe-se que a elaboração teórica realizada por Sen é bem mais complexa e sofisticada. Segundo Crespo e Gurovitz (2002, p. 05): “Essa abordagem [da privação relativa], apesar de ser mais sofisticada e abrangente, apresenta mais dificuldades de utilização, dada a necessidade de definir a extensão e a severidade da não participação das pessoas que sofrem privação de recursos.”

 

 

 

 

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