Planejamento Governamental no Novo-Desenvolvimentismo Democrático: Auge e Deterioração das Capacidades Estatais (2003-2016)

Resumo 

À luz da literatura acerca das capacidades estatais e a partir de quatro temáticas macroestruturais, o artigo analisa o Planejamento Governamental do Novo Desenvolvimentismo Democrático (2003-2016). A primeira aborda a retomada do planejamento e a inserção da questão social na agenda pública quando da eleição de Lula da Silva, em 2002, que ocorreu em meio ao pânico generalizado no mercado financeiro internacional. A segunda analisa a inflexão desenvolvimentista e a revitalização das capacidades estatais e burocráticas para a promoção de políticas públicas voltadas à questão social. A terceira explora as reverberações sociais das políticas de planejamento governamental, focalizando o debate em torno da Nova Classe Média. Finalmente, investiga-se o esgotamento das políticas de planejamento, entre o final de 2014 e o início de 2015, causado por uma sucessão de fatores, como a crise fiscal do Estado brasileiro e a fratura da coalizão político-econômica de suporte.

Palavras-chave: Planejamento governamental; Novo desenvolvimentismo democrático; Capacidades estatais; Incorporação social; Brasil.

Abstract

Governmental Planning in Democratic New-Developmentalism: Rise and Deterioration of State Capacities (2003-2016)

In the light of the literature on state capacities and from four macrostructural themes, the article analyzes the Governmental Planning for New Democratic Developmentalism (2003-2016). The first deals with the resumption of planning and the insertion of the social issue in the public agenda when Lula da Silva was elected in 2002, which occurred amid widespread panic in the international financial market. The second examines the developmentalist inflection and the revitalization of state and bureaucratic capacities for the promotion of strategic public policies focused on the social question. The third explores the social reverberations of government planning policies, focusing on the New Middle Class debate. Finally, it is investigated the exhaustion of planning policies, between the end of 2014 and the beginning of 2015, caused by a succession of factors, such as the fiscal crisis of the Brazilian State and the fracture of the politico-economic support coalition.

Keywords: Government planning; New democratic developmentalism; State capacities; Social inclusion; Brazil.

1. Introdução 

Tendo em vista a eleição vitoriosa da coalizão de centro-esquerda liderada por Luiz Inácio Lula da Silva, em 2002, o objetivo crucial deste artigo é perscrutar o Planejamento Governamental do Novo Desenvolvimentismo Democrático (2003-2016), bem como suas tensões, potencialidades e esgotamento. No limiar do século XXI, a retomada do planejamento governamental enquanto função intrínseca, indelegável e estratégica do Estado brasileiro contemporâneo (CARDOSO JÚNIOR, 2014), está vinculada à revitalização do poder infraestrutural (MANN, 2008) do Estado, que diz respeito à sua capacidade de mobilizar recursos necessários para penetrar uniformemente a sociedade e implementar logisticamente suas decisões políticas em todo o território por meio da provisão de serviços públicos indispensáveis (saúde, educação, habitação, transporte/mobilidade, segurança e proteção social). Trata-se de galvanizar o intervencionismo estatal para o desenvolvimento de políticas públicas, a incorporação social de setores excluídos e a instauração de uma estratégia de construção do mercado interno como “motor do crescimento” (FURTADO, 2016). A inclusão se dá via aumento de renda – não contempla a redistribuição de riqueza. Os detentores desta última (notadamente a financeira), fortemente beneficiados pelas políticas da convenção de estabilização, têm seus interesses preservados. Dada a regressividade da estrutura fiscal, na medida em que a inclusão é financiada via gastos fiscais, são os “pobres” que arcam com parcela maior do seu custo. Neste sentido, os “pobres” são as vítimas principais dos impasses que cercam a reforma fiscal do Estado brasileiro (ERBER, 2011).

A agenda de inclusão caminha em direção antípoda ao Nacional-Desenvolvimentismo Autoritário (1964-1985), que primava exclusivamente pelo crescimento econômico exacerbado e pela dinamização da estrutura produtiva capitalista, em detrimento da questão social, relegada à última instância das políticas públicas. Ademais, contrasta com o ambiente institucional das Reformas Orientadas para o Mercado (1990-2002), caracterizado pela hegemonia da ortodoxia fiscal, da abertura econômica, da privatização do patrimônio público, da desregulamentação financeira e pela total negligência no tocante à questão distributiva. A principal questão a ser respondida por este artigo é a seguinte: Na ordem corporativa e capitalista brasileira, quais os efeitos do planejamento governamental levado a cabo pelo Novo Desenvolvimentismo Democrático (2003-2016)?

A hipótese é que as capacidades estatais e burocráticas levadas a efeito pelo planejamento governamental do Novo Desenvolvimentismo Democrático foram mais eficazes no sentido de criar condições (inéditas) para o crescimento econômico com distribuição de renda, inclusão social e retração das históricas desigualdades estruturais. Não obstante, esta modalidade de planejamento governamental se esgotou em razão dos seguintes fatores: baixo crescimento econômico, fratura na coalizão político-econômica de suporte, enfraquecimento das capacidades estatais de intervenção, resiliência das políticas neoliberais, ausência de reformas estruturais etc.

Convém conceituar detalhadamente capacidades estatais à luz da literatura especializada, que será utilizada para um exercício analítico-interpretativo acerca da conjuntura brasileira dos últimos treze anos. Assim, na perspectiva de Kent Weaver e Bert Rockman entre as capacidades estatais se incluiriam: 

  1. definir prioridades entre as diferentes demandas feitas ao poder público; 
  2. canalizar os recursos onde sejam mais efetivos; 
  3. inovar quando for necessário, ou seja, sempre que velhas políticas demonstrem sinal de esgotamento; 
  4. coordenar objetivos em atrito; 
  5. poder impor perdas a grupos poderosos; 
  6. garantir a efetiva implementação das políticas logo após terem sido definidas; 
  7. representar os interesses difusos e menos organizados, além dos poderosos e mais organizados; 
  8. garantir a estabilidade política para que as políticas públicas possam ter tempo de maturação na sua implementação; 
  9. estabelecer e manter compromissos internacionais em comércio e defesa, de modo a alcançar o bem-estar no longo prazo; 
  10. gerenciar divisões políticas de modo a garantir que não haja atritos internos (WEAVER; ROCKMAN, 1993). 

Por sua vez, Ernesto Stein e Mariano Tommasi ressaltam que capacidade estatal consiste em possibilitar a coerência entre as diferentes esferas de políticas, de modo que as novas políticas se encaixem com as já existentes (STEIN; TOMMASI, 2001). Já segundo Celina Souza, o conceito de capacidade estatal incorpora variáveis políticas, institucionais, administrativas e técnicas. De forma simplificada, pode-se definir capacidade estatal como o conjunto de instrumentos e instituições de que dispõe o Estado para estabelecer objetivos, transformá-los em políticas e implementá-los (SOUZA, 2016).

Aqui, torna-se crucial demarcar conceitualmente e com maior amplitude analítica o nosso objeto de estudo. Pensa-se o planejamento governamental dirigido pelo Estado brasileiro numa perspectiva macroestrutural de longo prazo, tendo em vista o desenvolvimento capitalista, a produção de políticas públicas e a incorporação social de setores populares excluídos. Em suma, mobiliza-se o Estado como o instrumento de ação coletiva da nação (BRESSER-PEREIRA, 2009; 2014) no âmago de uma estratégia de desenvolvimento. Daí resulta a necessidade de ressaltar o modo de interação do Estado brasileiro com atores estratégicos como o empresariado industrial, os sindicatos, os trabalhadores, os economistas/intelectuais e a burocracia governamental. Analisar-se-á, também, o modo como o capitalismo financeiro especulativo afeta a dinâmica de interação entre aqueles atores, bem como as suas reverberações sociais e políticas. Argumenta-se que o inimigo do planejamento governamental de longo prazo para o desenvolvimento capitalista com crescimento econômico, distribuição de renda e inclusão social é a dinâmica perversa do mercado financeiro especulativo, rentista e apátrida. Em virtude de sua natureza curto-prazista e predatória ele inviabiliza o Estado pensar a Nação numa dimensão temporal de amplo alcance.

Atualmente, planejar o desenvolvimento capitalista nacional em longo prazo constitui uma tarefa demasiadamente desafiadora, haja vista o fato de o Estado brasileiro possuir uma trajetória marcadamente intervencionista/capitalista e estar subordinado à fluidez, à volatilidade e às forças centrípetas da globalização econômica. O mundo globalizado impõe uma série de constrangimentos aos Estados nacionais, como a aquiescência rigorosa aos valores da disciplina fiscal, das metas de inflação e da estabilidade macroeconômica. Governa-se para assegurar o beneplácito dos mercados financeiros internacionais. Assim sendo, o planejamento enquanto estratégia nacional, por sua vez, passa a constituir uma meta secundária. Ao mesmo tempo, os Estados necessitam atrair o capital para fins de investimento produtivo e (tentam) inibir a ação do capitalismo financeiro, improdutivo e apátrida, cuja renda provém sumamente da especulação. 

As metas do planejamento nacional de longo prazo (saúde, educação, proteção social etc.), que são imprescindíveis à operacionalização e sustentabilidade do Estado do Bem-Estar Social, são suplantadas pelas metas de inflação, pela ortodoxia fiscal e pelo superávit primário. Este, por sua vez, destina-se ao pagamento dos juros da dívida pública, que alimenta cada vez mais a aristocracia rentista e parasitária do capitalismo financeiro nacional e global. As metas impostas pelo mercado financeiro ao Estado brasileiro são oriundas das agências de rating, de organizações multilaterais e de instituições globalizadas como Standard & Poors, Fitch, Moodys, FMI, Banco Mundial, BID, ONU, OCDE etc. Além das limitações de natureza financeira ao planejamento governamental das políticas públicas, há elementos de ordem interna como o controle dos atos discricionários do poder público, que se consubstanciam na atuação de agências de controle burocrático e judicial do Poder Executivo, como o Tribunal de Contas da União (TCU),1 corregedorias, controladorias, Ministério Público (MP), acompanhadas do aumento do poder de veto de vários órgãos dentro do Estado (ARANTES et al., 2010; CARDOSO JÚNIOR; GOMIDE, 2014). A necessidade crescente de accountability e de transparência constituem formas de controle democrático das atividades estatais e das políticas públicas que, em certos casos, chegam a emperrar os investimentos estratégicos e produtivos.

No atual cenário em que a globalização impõe restrições consideráveis sobre a consecução da política doméstica e aguça o acirramento da competitividade tanto entre os Estados nacionais como entre os mercados, a temática do planejamento governamental para o desenvolvimento capitalista é crucial, uma vez que reflete as capacidades estatais dos governos para implementar políticas públicas no longo prazo. Tendo em vista as limitações estruturais engendradas pela crescente interdependência e financeirização do capitalismo global, o planejamento está circunscrito a um ambiente de estabilidade macroeconômica e de ajuste fiscal, que limitam sobretudo as capacidades do Estado para a implementação e cumprimento de metas de largo alcance. Argumenta-se que, numa vertente macroestrutural, o planejamento levado a cabo pelo Estado pode (e deve) sintetizar uma estratégia de desenvolvimento que pense a Nação em longo prazo para a formatação e implementação de um escopo substantivo de políticas públicas a fim de minimizar as desigualdades sociais. Nesse sentido, torna-se crucial pensar o Brasil e propor (criticamente) subsídios analíticos e empíricos para o aprimoramento das políticas públicas a fim de nortear a ação estratégica do Estado brasileiro para o desenvolvimento, a soberania nacional e a incorporação social em grande escala. 

Além desta breve introdução, o artigo está dividido em quatro temáticas macroestruturais, estratégicas e centrais, que nortearam as políticas de planejamento e intervencionismo estatal do Novo Desenvolvimentismo Democrático. A segunda seção analisa a primeira temática, que aborda a retomada do planejamento e a inserção da questão social na agenda pública quando da eleição de Lula da Silva, em 2002, que ocorreu em meio ao pânico generalizado no mercado financeiro internacional. A terceira seção escrutina a segunda temática, tratando da inflexão desenvolvimentista na política macroeconômica e a revitalização das capacidades estatais e burocráticas para a promoção de políticas públicas estratégicas e prioritariamente voltadas à questão social. A quarta seção explora a terceira temática, focalizando as reverberações sociais das políticas de planejamento governamental e o complexo debate em torno da Nova Classe Média. A quinta seção investiga a quarta e última temática, perquirindo o esgotamento das políticas de planejamento, entre o final de 2014 e o início de 2015, que é causado por uma sucessão de fatores concomitantes, como a crise fiscal do Estado brasileiro, o escândalo de corrupção na Petrobras, a fratura da coalizão político-econômica de suporte, a ausência de reformas estruturais, a resiliência do neoliberalismo e o enfraquecimento das capacidades estatais de intervenção, que vêm revertendo o legado de inclusão social dos últimos anos. A sexta e última seção realiza as considerações finais, mostrando os principais resultados empíricos da pesquisa.

2. A revitalização do planejamento governamental com ortodoxia fiscal e a irrupção da questão social como objeto de políticas públicas

Em maio de 2002, a BCP Securities publicou um relatório intitulado “O Monstro Lula”, descrevendo o sentimento de pânico generalizado entre os agentes econômicos quando perceberam que Lula poderia ser o próximo presidente brasileiro. Os investidores temiam que o candidato esquerdista cessasse as políticas econômicas de FHC, aumentasse o gasto social do governo e aceitasse altos níveis de inflação. No cenário de pior caso, era esperado que Lula renacionalizasse as empresas privatizadas e desse calote na pesada dívida externa do país. A Goldman Sachs desenvolveu um Lulômetro – um modelo matemático designado para quantificar a probabilidade de vitória de Lula por meio do comportamento dos preços nos mercados de câmbio. Em junho de 2002, o otimismo foi totalmente deteriorado. O mercado de ações brasileiro caiu amplamente e as taxas de juros futuros aumentaram. A depreciação do Real por mais de 12% naquele mês, acumulou uma depreciação de 23% na primeira metade do ano. O prêmio de risco dos títulos soberanos brasileiros subiu para níveis nigerianos, entre os mais altos do mundo (CAMPELLO, 2015). A inflação ao consumidor estava em 12,5% ao ano e em aceleração, a dívida líquida do setor público havia subido para 51,3% do Produto Interno Bruto (PIB) e as reservas internacionais do Brasil eram de apenas US$ 37,8 bilhões disponíveis no BACEN, dos quais US$ 20,8 bilhões correspondiam a um empréstimo junto ao FMI (BARBOSA FILHO; SOUZA, 2010).

A reação inicial do PT foi minimizar a crise, insistindo que os mercados foram alimentados pelo exagero. Como a situação se agravou, o partido foi publicamente chamado pela equipe econômica de FHC para esclarecer seu compromisso com as políticas favoráveis ao mercado e a disciplina fiscal. Lula respondeu com uma “Carta ao Povo Brasileiro” na qual este compromisso foi explicitamente feito (CAMPELLO, 2015):

O PT e seus parceiros têm plena consciência de que a superação do atual modelo, reclamada enfaticamente pela sociedade, não se fará num passe de mágica, de um dia para o outro. Não há milagres na vida de um povo e de um país. Será necessária uma lúcida e criteriosa transição entre o que temos hoje e aquilo que a sociedade reivindica. O que se desfez ou se deixou de fazer em oito anos não será compensado em oito dias. O novo modelo não poderá ser produto de decisões unilaterais do governo, tal como ocorre hoje, nem será implementado por decreto, de modo voluntarista. Será fruto de uma ampla negociação nacional, que deve conduzir a uma autêntica aliança pelo país, a um novo contrato social, capaz de assegurar o crescimento com estabilidade. Premissa dessa transição será naturalmente o respeito aos contratos e obrigações do país. Vamos preservar o superávit primário o quanto for necessário para impedir que a dívida interna aumente e destrua a confiança na capacidade do governo de honrar os seus compromissos (CARTA AO POVO BRASILEIRO, Luiz Inácio Lula da Silva, 22/06/2002).

A carta, endereçada aos mercados financeiros temerosos, atribuiu a crise de confiança à fragilidade do modelo econômico conduzido por FHC e prometeu trazer estabilidade. Lula corajosamente garantiu que manteria a disciplina fiscal e tornaria a inflação baixa uma prioridade, e que o governo do PT não tomaria decisões unilaterais ou voluntaristas. Ele faria primeiro e, acima de tudo, “respeitar os contratos”, um eufemismo para pagar a enorme dívida pública do país e manter as privatizações. Além da Carta ao Povo Brasileiro, o programa de governo foi formalmente apresentado em julho, muito mais moderado que os anteriores. E, finalmente, em agosto, a “Nota sobre o Acordo com o FMI”, pela qual o partido prometeu respeitar o acordo com o FMI negociado no final do governo FHC. Alguns membros do partido ironicamente apelidaram o documento de “Carta para Acalmar os Banqueiros” e interpretaram-na como um mal necessário para prevenir a escalada de pânico dos mercados financeiros. Eles esperavam que, após as eleições, Lula retomaria a agenda original do PT (CAMPELLO, 2015; GIAMBIAGI, 2005). Diante das limitações impostas pelo mercado financeiro, no campo social, uma das principais plataformas eleitorais do presidente Lula, em 2002, foi a campanha contra a fome e a extrema pobreza, o que levou à criação dos programas “Fome Zero” e “Bolsa Família”, voltados à distribuição de renda e apoio financeiro às famílias socialmente vulneráveis.

O ceticismo sobre a conversão do PT à agenda de políticas favoráveis ao mercado e à disciplina fiscal foi generalizado. Havia um pessimismo do mercado de ações com relação à vitória de Lula, contrastando com o otimismo que prevaleceu em 1994 quando era esperada a vitória de FHC. O governo do PT também deveria implementar um “quadro institucional coerente” que incluiu um Banco Central independente, metas de inflação e uma taxa de câmbio flutuante (CAMPELLO, 2015). A perspectiva de um governo Lula servia como um teste importante para a economia brasileira. De fato, durante anos, inicialmente com as reformas orientadas para o mercado dos governos Collor/Itamar Franco e, especialmente, após o Plano Real, as autoridades tinham assumido o discurso das mudanças estruturais. Isso implicava afirmar que a defesa da estabilidade e, a partir do fim dos anos 1990, a austeridade fiscal, seriam transformações permanentes, que cristalizariam ambições nacionais e não as de partidos. O mercado pareceu durante muito tempo entender que o compromisso com a estabilidade e a austeridade era do presidente FHC, junto com seu ministro da Fazenda (Pedro Malan) e o Banco Central. Havia dúvidas, entretanto, sobre até que ponto esses compromissos seriam mantidos pelo governo subsequente. Muitos observadores internacionais temiam a decretação de uma moratória em 2003, no contexto da adoção – que alguns julgavam certa – de políticas populistas por parte de um novo governo liderado pelo PT (GIAMBIAGI, 2005).

A chegada de Lula à Presidência da República ocorreu em meio a um quadro de ataque especulativo e fragilidade macroeconômica, com a dívida líquida do setor público bastante elevada e reservas internacionais escassas. A urgência para ganhar a confiança do mercado a fim de voltar a atrair os fluxos de capital sujeitou o governo à influência dos investidores, resultando não somente na adoção de um programa econômico inesperadamente ortodoxo, mas também nas nomeações de líderes conservadores como cabeças do Banco Central (Henrique Meireles) e do Ministério da Fazenda (Antonio Palocci). Nas palavras de um membro da equipe de Lula, foi uma questão de “dar os anéis para manter os dedos”.2 O PT consolidou a liderança de Antonio Palocci – o principal interlocutor do partido com a comunidade financeira –, cujas políticas econômicas mal diferiram daquelas da equipe de FHC. Nas palavras de um ex-diretor do BACEN, entrevistado por Daniela Campello, Palocci “dificilmente parecia um petista, e falou a linguagem do mercado” (CAMPELLO, 2015, p. 99). Durante a campanha, Palocci consolidou uma reputação de ser moderado e favorável ao mercado na comunidade financeira. Ademais, foi visto como uma opção preferível do que nomes como Aloízio Mercadante ou Guido Mantega, considerados “muito heterodoxos” e muito próximos da agenda econômica tradicional do PT (CAMPELLO, 2015).

No primeiro mandato do presidente Lula, a política macroeconômica caracterizou-se pela continuidade em relação à orientação predominante no governo Fernando Henrique Cardoso, e a política fiscal, em particular, foi marcada pela intensificação do nível do superávit primário e ainda por propostas de déficit nominal zero (BARBOSA FILHO, 2013). O ano de 2003 começou com juros altos, que chegaram a 26,5%, e com cortes no orçamento que ultrapassavam R$ 14 bilhões, afetando áreas como saúde, educação e até o programa Fome Zero (O GLOBO, 17/09/2015). O primeiro compromisso da política econômica do governo foi resolver o problema fiscal e, para isso, aumentou a meta de resultado primário do setor público de 3,75% do PIB para 4,25% do PIB. O principal objetivo de tal medida foi sinalizar, para os agentes financeiros, o grau de comprometimento do governo Lula com o equilíbrio fiscal e, portanto, dissipar as preocupações do mercado com um eventual aumento explosivo na dívida pública (BARBOSA FILHO; SOUZA, 2010; LOUREIRO; SANTOS; GOMIDE, 2011). Nesse sentido, a visão que Palocci transmitia a seus interlocutores era de que o partido tinha mudado, passando a mensagem de que o PT tinha rompido com a ideia de ruptura (GIAMBIAGI, 2005, p. 200). 

Em consonância com as medidas de aperto monetário e fiscal, outro elemento importante para justificar a guinada do mercado após a onda de desconfiança que precedeu a eleição de Lula foi o compromisso do novo governo com as chamadas reformas estruturais, como a tributária e a previdenciária. No processo de aprovação desta última reforma, que entre outras medidas taxou os aposentados, criou regras mais rigorosas para aposentadoria e cortou o montante recebido por viúvos, os parlamentares do PT expressaram seu descontentamento ao votarem contra o governo. Após duras negociações, a liderança do partido optou finalmente por expulsar os dissidentes, levando a uma cisão que originou o PSOL e ampliou ainda mais o controle dos membros conservadores do partido. A reação dos parlamentares do PT à agenda econômica ortodoxa do governo não foi um evento isolado; a confiança dos mercados financeiros e do FMI veio ao custo da decepção de muitos dos apoiadores tradicionais do partido entre os movimentos de trabalhadores organizados, os pobres e a esquerda radical (CAMPELLO, 2015).

Portanto, não há nenhuma maneira de compreender a presidência de Lula ou suas consequências para a esquerda brasileira sem referência à globalização financeira e à disciplina de mercado. A experiência do PT, por sua relevância, lança luz sobre como a centralidade da construção da confiança do mercado tem contribuído para a persistência do neoliberalismo na América Latina (CAMPELLO, 2015).

3. Planejamento governamental e apogeu das capacidades estatais: crescimento econômico com inclusão social

Diferentemente do primeiro mandato, marcado pelo primado da ortodoxia no Ministério da Fazenda, no segundo governo Lula, todavia, ocorreram importantes mudanças institucionais, assim como a revitalização do poder infraestrutural (MANN, 2008) do Estado brasileiro. Ambos os fatores dizem respeito à retomada do planejamento governamental de longo prazo, uma vez que a coalizão governativa do Novo-Desenvolvimentismo Democrático conseguiu viabilizar, de forma sustentada no tempo, o crescimento econômico, a inserção social do amplo segmento mais desfavorecido da população e a criação de um mercado interno de consumo de massas robusto. Portanto, afirma-se que o crescimento do PIB foi o elemento propulsor que dotou o Estado de capacidades para a recuperação do planejamento governamental de ampla envergadura.

Primeiramente, as mudanças institucionais referem-se a uma inflexão desenvolvimentista, que se consubstancia a partir da entrada de Dilma Rousseff na Casa Civil, da substituição de Antonio Palocci por Guido Mantega, no Ministério da Fazenda, e da entrada de Luciano Coutinho na presidência do BNDES. Este último, por sua vez, impulsionou a orientação de apoio às políticas de viés desenvolvimentista, mais palatáveis a negociações com o empresariado industrial e o setor produtivo. O fim da “era Palocci” representou não apenas a inflexão da política fiscal, mas igualmente a ampliação da arena decisória. A participação da Casa Civil no comando da gestão econômica significou maior abertura desta arena a outros atores políticos, uma vez que constitui o espaço institucional de articulação entre o Executivo e o Legislativo e entre o governo federal e os governos subnacionais. O ajuste fiscal de 2003-2005 não acelerou substancialmente o crescimento da economia nem tampouco ajudou o compromisso de melhorar a renda e o emprego, o que fez a visão neoliberal ir se esgotando nos primeiros três anos do governo Lula. Destaca-se outro ponto ainda mais relevante: a proposta neoliberal de novos ajustes recessivos acabou fortalecendo a visão desenvolvimentista sobre política econômica ao final de 2005 (BARBOSA FILHO; SOUZA, 2010; LOUREIRO; SANTOS; GOMIDE, 2011). 

Por conseguinte, foram criadas as condições institucionais para que o Ministério da Fazenda realizasse uma política macroeconômica fortemente expansionista tanto pela ótica fiscal quanto monetária, reduzindo despesas e aumentando o gasto público. Com esse objetivo houve redução dos impostos dos setores de baixa renda, a diminuição da carga tributária sobre a indústria automobilística e a redução da meta de superávit primário. Ademais, não obstante a falta de cooperação do Banco Central, o Tesouro logrou intervir no sistema monetário ao promover a capitalizaçã

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