O federalismo brasileiro e suas implicações na política urbana: notas a partir do caso do Programa de Aceleração do Crescimento


Maria Fernandes Caldas
Doutora em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Minas Gerais; Chefe de Gabinete da São Paulo Obras

1. O Federalismo no Brasil

A Constituição Federal de 1988 transformou o Brasil em um modelo de federação ímpar, sem precedentes, equiparando União, Estados, Distrito Federal e Municípios como entes federados, com a mesma hierarquia1. Esse modelo, influenciado especialmente pelas circunstâncias que conduziram à redemocratização do país, foi caracterizado também por um processo de descentralização inédito na história brasileira, implementado, no entanto, de forma desestruturada e caótica, cujas repercussões estão profundamente imbricadas com a problemática da gestão governamental e das relações intragovernamentais no país. Para a política urbana, o modelo de descentralização adotado, ou seja, a organização espacial do poder, contribuiu para o que pode ser denominado desgovernança urbana.

O federalismo brasileiro tem início com a proclamação da República, em 1889, e caracterizou-se pelo princípio do individualismo, no qual os direitos fundamentais têm origem nos indivíduos e não nas instituições coletivas, ou no Estado. “Todo poder emana do povo”, sempre declararam as Constituições brasileiras (SOUZA, 2005). Afirma a autora que as motivações para a instituição do modelo federativo no Brasil não tiveram relação com a manutenção da unidade, uma vez que esta nunca foi questionada e tornou-se cláusula pétrea2 na Constituição Federal. No seu entender, a “razão de ser do federalismo brasileiro sempre foi, e continua sendo, uma forma de acomodação das demandas de elites com objetivos conflitantes, bem como um meio para amortecer as enormes disparidades regionais”. (SOUZA, 1998, p. 6).

O modelo de federalismo resultante da Constituição de 1988 é bastante complexo e contraditório, pois atribui poderes iguais e competências descentralizadas, alto grau de autonomia, mas ao mesmo tempo, dependência do nível central em diversos aspectos, e cabe bem na afirmação de que o Brasil acabou por instituir um modelo de federalismo “simétrico em uma federação assimétrica” (SOUZA, 2005, p. 111).

A União detém a maioria de competências exclusivas, mas, em compensação, no âmbito das competências concorrentes, a Constituição atribuiu para os três níveis de governo responsabilidades comuns, especialmente na prestação dos serviços públicos, e neste ponto reside uma das maiores críticas ao atual modelo federativo brasileiro, pois, para haver cooperação, é preciso garantir autonomia e igualdade de condições para que seja mantido o equilíbrio de interesses entre os entes participantes, assim como são necessários mecanismos que estimulem a cooperação entre os entes. Nada caracteriza mais fortemente o Brasil do que a enorme desigualdade entre municípios, estados e regiões. Agravadas pela ausência de mecanismos de coordenação e de cooperação, ao contrário de práticas colaborativas, o que se fortaleceu no país foram as estratégias de competição entre entes federados.

De fato, o modelo de federação que se consolidou no país é bastante controverso, não havendo consenso na literatura sobre quem se favorece com a divisão do poder. O Brasil optou por fazer a descentralização incompleta antes de enfrentar os problemas que dão origem aos imensos conflitos nacionais e que exigem reformas estruturantes, como é o caso da reforma política, da reforma tributária e fiscal, ou da reforma urbana, consolidando, portanto, um federalismo de conflitos por excelência.

Assim, vivemos em um modelo híbrido e paradoxal de federação, cooperativa em alguns aspectos, competitiva em outros, onde os entes têm, por direito, competência para exercer suas atribuições de forma descentralizada, mas, de fato, para boa parte, o fazem segundo políticas e processos essencialmente centralizados, em função do nível de dependência financeira ou das próprias estratégias criadas pelo nível central. Tal prática não se confunde com uma coordenação da relação intergovernamental, uma vez que não é universal ou instituída como política de governo, mas sim oportunista, no sentido de ser utilizada somente para os temas nos quais sua adoção gera algum tipo de favorecimento para o nível central. Assim, esse modelo de federalismo também agrava a dependência dos acordos e amplia a necessidade de coordenação das ações entre os governos.

Do ponto de vista tributário, a Constituição de 1988 ampliou as receitas dos estados e, principalmente, dos municípios, e a União procurou compensar suas perdas por meio da imposição de contribuições sociais de receitas, cuja competência é exclusiva do poder central. (SILVEIRA, 2012).3 A descentralização de recursos feita pela Constituição Federal de 1988 representou sim um processo de municipalização da receita, mas que foi acompanhada por um “processo desordenado de descentralização de encargos” (AFONSO et al., 1998, p. 5).

Na realidade, o Brasil é o país com o maior grau de descentralização tributária4, segundo Souza (1998, p. 8), mas a importância relativa dos municípios na geração da carga tributária nacional é bastante inferior a outros países, dos mais variados níveis de renda, organização e extensão territorial. De todo modo, a partir da Constituição de 1988, os municípios aumentaram expressivamente a receita tributária própria. Nas grandes cidades esse resultado deu-se pela modernização fazendária e pelo crescimento dos serviços no período pós-estabilização, e nas cidades menores pela simples regulamentação e cobrança de impostos e taxas antes não operacionalizadas (AFONSO et al., 1998).No entanto, apesar desse aumento expressivo, que elevou a participação dos municípios na partilha da receita tributária nacional, estes ainda arrecadam parcela pequena de todos os tributos cobrados no país, incluindo as contribuições sociais. Essa arrecadação apresenta-se fortemente concentrada nas maiores cidades, ou seja, os municípios, principalmente os menores continuam dependendo fortemente das transferências federais e estaduais.

Segundo Bremaeker (2015, p. 2), a receita orçamentária do conjunto dos municípios brasileiros, em média, é constituída por 68,72% de transferências, por 17,19% de receitas tributárias e por 14,09% de outras receitas. O alto grau de dependência dos Munícipios às transferências5 pode ser observado na Tabela 1. Apenas o grupo de 141municípios com mais de 200 mil habitantes apresenta receita tributária acima da média nacional. Mais preocupante ainda é constatar que os municípios com até 10 mil habitantes dependem quase exclusivamente das transferências federais e estaduais, principalmente considerando que esse universo representa 45% do total de municípios brasileiros. Se o recorte incluir os municípios até 50 mil habitantes, ou seja 89% dos municípios brasileiros, a dependência de transferência ainda alcança 84,12%.

A diferença tão expressiva na composição de receita dos municípios explica-se pela natureza urbana dos impostos de sua competência, que privilegiam os mais populosos e com menor índice de pobreza (BREMAEKER, 2015, p. 2). Portanto, o padrão da arrecadação é bastante concentrado nas maiores cidades e nas regiões mais ricas do Brasil, sendo importante reconhecer que há uma grande diferenciação no padrão de financiamento, que pode ser entendida pelas enormes disparidades regionais, de renda e de características institucionais dos municípios.

Diante da heterogeneidade dos municípios brasileiros e da condição de enorme desigualdade econômica e institucional entre as unidades federativas, a descentralização de competências com a ausência de políticas redistributivas e de um determinado padrão cooperativo de relações intergovernamentais, em certos aspectos, agravam as desigualdades.

A disparidade econômica e institucional entre os Estados brasileiros é gritante e agravada pelo crescente número de municípios, cuja instituição foi incentivada pela garantia de transferências de recursos via Fundo de Participação dos Municípios (FPM) e pelas facilidades advindas das regras bastante flexíveis que regulamentaram a criação de novos municípios durante um período após a Constituição. O FPM representa a principal fonte de financiamento para a grande maioria dos municípios, e sua importância relativa é inversamente proporcional ao tamanho do município.

De fato, como ensina Lorenzetti (2003) a Constituição de 19886 alterou a legislação excluindo a interferência do Poder Central e delegando inteiramente a cargo dos respectivos Estados a criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de municípios. A consequência foi uma profusão de municípios emancipados sem qualquer critério de base técnica, quase sempre atendendo a interesses eleitorais, a maioria não dispondo de receita própria compatível com as necessidades de sua própria sustentabilidade, portanto, de origem, dependentes dos repasses de receitas estaduais e federais.

Em 1980, existiam no país 3.974 municípios. Após a Constituição, o IBGE indicava, em 1996, a existência de 4.974 municípios e de outros 533 aguardando instalação, significando um crescimento de 39%. Em 2000, o Censo Populacional do IBGE, computou 5.561 municípios, dos quais 5.507 instalados e 54 aguardando instalação. Em 2010, segundo IBGE, o Brasil tinha 5.567 municípios, dos quais, 1.450, ou seja, 26%, criados a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988. Destes novos Municípios, 96% tem população inferior a 30 mil habitantes. A distribuição do total da população por regiões e por grupo de população é apresentada na Tabela 2. A Tabela 3 refere-se exclusivamente aos municípios criados à partir da Constituição Federal de 1988 e à sua participação no total dos municípios brasileiros.

Afirma Lorenzetti (2003, p. 4) que a “federação brasileira tornava-se mais pobre a cada novo município criado”, uma vez que o PIB nacional, assim como a arrecadação de receitas públicas) não cresceu na mesma proporção nesse período, o que significa dizer que as fatias de receita de cada município ficaram menores. Ao aumentar a base de repartição de receitas, esse crescente número de municípios repartiu o bolo em mais partes, agravando a situação financeira dos municípios mais pobres e criando uma fragmentada teia de instituições governamentais incompletas, incapazes, despreparadas, desqualificadas, sem recursos humanos, financeiros e técnicos para enfrentar os problemas urbanos.

Esta dependência extrema de recursos externos alimenta a competição predatória e propicia a influência do clientelismo parlamentar, com a velha troca de favores e promessas de políticos interessados na troca de apoio eleitoral. Importa dizer que tais circunstâncias, são, de alguma forma, estruturais e condicionantes do federalismo no Brasil e têm expressivo impacto na Política Urbana, na governabilidade, e na qualidade de vida das cidades brasileiras.

Para a Política Urbana, assim como para outras diversas políticas públicas, a Constituição estabeleceu competências concorrentes para os entes, mas, refletindo a disputa entre diversos atores e a forma conciliadora de conflitos do nosso federalismo, ao invés de orientar a criação de mecanismos de cooperação, nem sempre foi suficientemente explícita e postergou temas conflituosos para o futuro, entre eles, questões estratégicas para a Política de Desenvolvimento Urbano. Exemplo significativo dos problemas gerados pelo modelo de descentralização federativa brasileira, inclusive tributária, foi o tratamento dado às Regiões Metropolitanas, que apesar de concentrar 39% da população urbana brasileira8, não mereceram nenhum tratamento especial, que, minimamente contribuísse para instituir formas cooperativas de gestão visando à sua governança, ou seu adequado equilíbrio fiscal, ou sob qualquer outro tema.

Outro grave problema decorrente do modelo federativo, ao contrário do que aconteceu na saúde e na educação, é a total ausência de hierarquização de competências de gestão entre os níveis de governo na área de desenvolvimento urbano.

Deve-se também refletir de modo particular sobre o papel dos estados na federação brasileira. Com a elevação dos municípios à condição de entes federados com a mesma hierarquia dos demais, e ainda, com a perda relativa de receita, os estados passaram a se eximir de exercer papel estruturante de coordenação e desenvolvimento de seus municípios, incentivando, muitas vezes, disputas predatórias.

Neste contexto de extrema dependência e fragilidade dos entes subnacionais prevalecem muitas vezes os interesses políticos e eleitorais das oligarquias regionais e os interesses do capital privado, via de regra conflitantes com o avanço de importantes políticas públicas, consolidando a dinâmica perversa que perpetua a desigualdade urbana e determina o destino das cidades e dos pobres na cidade.

Pode-se verificar esta tese nos resultados do Programa de Aceleração do Crescimento – PAC, por meio do qual o Governo Federal estabeleceu a política de investimento em áreas urbanas e que teve o mérito de retomar os investimentos federais em infraestrutura destinando recursos para estados e municípios para execução de obras de infraestrutura urbana, como detalhado a seguir.

2. As implicações do modelo de federalismo brasileiro na execução do PAC

O Programa de Aceleração do Crescimento foi anunciado pelo Governo Federal em 22 de janeiro de 2007.9 Para as Políticas Urbanas, o PAC representou um salto importante, primeiramente ao reconhecer a magnitude dos problemas urbanos e a necessidade e urgência no seu enfrentamento com o apoio de recursos e políticas federais destinando grande volume de recursos para enfrentá-los, financiando a execução de empreendimentos focados na diminuição das desigualdades urbanas.

Pelo seu montante, podemos supor que a destinação de recursos para as cidades transformou o PAC no maior programa de obras de infraestrutura que o país implementou, considerando o período de tempo. Foram disponibilizados cerca de R$ 981,0 bilhões, dos quais, R$ 772 bilhões para o período de 2007 a 2014, visando à execução de obras pelos estados e municípios em diversas temáticas urbanas,conforme modalidades sintetizadas na Tabela 4.

Contudo, para além dos recursos financeiros, o PAC deveria ser capaz também de superar um de seus principais desafios – a inexistência de estudos, planos, projetos e as insuficientes estruturas técnicas e de gestão necessárias para gerenciá-lo em todos os níveis de governo11. Tais circunstâncias eram ainda mais graves nos municípios, uma vez que a estrutura institucional e técnica deficiente são uma marca das administrações municipais brasileiras, e, contraditoriamente ao esperado, pior ainda nas grandes metrópoles, em razão do modelo de governança mal resolvido que está instituído no país.

Como não há na atualidade suficiente diálogo federativo, eficiente modelo de gestão metropolitana e estrutura institucional de planejamento operante, praticamente não existem projetos concluídos para serem apresentados em uma eventual oferta de recursos exclusiva para as Regiões Metropolitanas. Não existe, nem por parte do Governo Federal nem, de um modo geral, por parte dos municípios envolvidos, eventual disposição para avançar nesta discussão em função dos delicados contornos políticos que essa abordagem enseja. Por outro lado, qualquer iniciativa neste sentido demanda longo tempo de maturação, cujo cronograma é incompatível com os prazos estabelecidos pelo PAC.

Os resultados na execução do Programa foram profundamente impactados pela capacidade de resposta imposta pelo padrão institucional dos estados e municípios brasileiros, conforme se constata na análise da performance de algumas das áreas setoriais apoiadas pelo PAC apresentadas a seguir.

Para a área da Saúde, cuja estrutura de funcionamento nas cidades atinge contornos dramáticos, o PAC anunciou recursos para construir e equipar Unidades de Pronto Atendimento – UPA, bem como para a construção e ampliação de Unidades Básicas de Saúde – UBS. Os critérios para alocação das UPAS priorizavam os municípios em decorrência da lógica de rede no sistema de saúde e as UBS foram ofertadas para qualquer porte de município. O repasse era feito por meio de transferência fundo a fundo (Fundo Nacional de Saúde para Fundo Municipal ou Estadual de Saúde) para que os Municípios ou Estados executassem as obras.

 Ocorre que, a despeito da crítica situação da estrutura de saúde no país, muitos dos entes que se candidatavam e eram selecionados não implementavam as obras porque, após a sua conclusão, passavam a responder pelo custeio das despesas de pessoal e manutenção, apesar de receber para tanto ajuda do SUS – Sistema Único de Saúde. O interesse dos prefeitos e parlamentares demonstrado nos concorridos processos de seleção estava mais relacionado aos frutos políticos imediatos decorrentes do anúncio dos recursos para a construção das UPAS e UBS do que ao compromisso de executá-la. Ao se depararem com a necessidade de pagar pela desapropriação do terreno para implantação do equipamento, pela elaboração de projetos e licenciamentos respectivos, pelo processo licitatório, pela forte fiscalização dos órgãos competentes, os municípios simplesmente desistiam de iniciar, ou pior, de concluir as obras, como é possível avaliar pelos resultados da Tabela 5. 

Para analisar estes resultados é necessário considerar que as seleções são feitas anualmente e é natural que alguns equipamentos selecionados no último período ainda se encontrem em fase preparatória, mas, por outro lado, é necessário admitir que tratam-se de obras com cronograma compatível com um prazo de execução de 12 meses.

Na Educação, o PAC financiou a construção e os equipamentos de creches e pré-escolas. Como critério de seleção nesse universo optou-se por focar nos maiores municípios uma vez que a falta desse equipamento nas maiores cidades expõe as crianças a riscos muito mais graves do que em municípios menores. Também integraram o PAC recursos para a construção e coberturas de quadras esportivas nas escolas, entendidas como alternativa importante de socialização e de incentivo à permanência de crianças no ambiente escolar fora do período de aulas, especialmente nos bairros de menor renda ou de maior violência urbana. Também nestes casos o repasse de recursos era feito em etapas prévias, por meio de transferência automática do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação para os Municípios e Estados.

A despeito de tratar-se de um universo de municípios maiores, a implementação desse equipamento enfrentou os mesmos problemas descritos anteriormente, com a ressalva de que, neste caso, a questão está menos relacionada com a capacidade institucional, muitas vezes também insuficiente, mas, mais afeta à dimensão dos problemas e encargos que tais municípios enfrentam atualmente, decorrente do déficit acumulado. Assim, mesmo sendo mais estruturados administrativamente, tais municípios têm dificuldades na prestação de sua contrapartida em terreno e custeio, uma vez que seus valores são sensivelmente afetados pelas dinâmicas imobiliárias e de mercado nas cidades grandes brasileiras. Os resultados desta modalidade podem ser analisados na Tabela 6.

Para a área de Cultura, Esporte e Lazer, foram incluídos no PAC, além do financiamento à recuperação do patrimônio histórico nacional, os Centro de Artes e Esportes Unificados – CEU, na verdade um complexo composto por cineteatro, biblioteca, ginásio poliesportivo, e equipamentos destinados à assistência social, foi direcionado às localidades de baixa renda dos maiores municípios. O projeto executivo do equipamento também foi elaborado pelo Governo Federal na tentativa de diminuir as conhecidas deficiências técnicas dos municípios. A eles, coube apenas a destinação do terreno e o respectivo projeto de implantação do equipamento e seu licenciamento junto ao Corpo de Bombeiros e no órgão ambiental competente, quando era o caso. Previa-se, no lançamento da seleção, a contratação de 800 unidades. No entanto, menos da metade, cerca de 44% foi contratada, apesar da importância, demanda e popularidade destes equipamentos. Os municípios não conseguiram apresentar terrenos, outros não conseguiram apresentar as licenças e cumprir com os poucos encargos sob sua responsabilidade e perderam o prazo para contratar equipamento. Em dezembro de 2013, somente 22 CEUs estavam concluídos e em operação e 11 ainda se encontravam em ação preparatória, levando o governo a optar por não dar continuidade a este modelo, mas introduzir novo equipamento, o Centro de Iniciação ao Esporte – CEI, cuja gestão é menos complexa, dedicado exclusivamente à pratica esportiva, com foco na iniciação esportiva e no esporte de alto rendimento, estimulando a formação de atletas em área de vulnerabilidade social. Foram contratados 285 CEIs, mas nenhum município ainda iniciou a execução das obras.

No campo da infraestrutura urbana o PAC destinou recursos que atingiram patamares muito altos para apoiar municípios nas áreas de habitação, saneamento, drenagem, prevenção de risco, mobilidade urbana, dentre outras12, como vimos nas tabelas anteriores.

A atuação do governo federal na Prevenção de Risco decorrentes de desastres naturais se deu a partir de 2009 com a decisão de apoiar obras de macrodrenagem nas cidades com histórico de alagamentos e de contenção de encostas integrados às obras de urbanização de assentamentos precários. Para definição das obras de prevenção a serem apoiadas, estabeleceu-se como critério de prioridade resolver estruturalmente os problemas recorrentes nas bacias hidrográficas e nas Regiões Metropolitanas que apresentassem o maior número de mortos e desabrigados em uma série histórica de 20 anos. Assim, 17 regiões metropolitanas e bacias hidrográficas foram priorizadas, abrangendo um total de 170 municípios, considerados os mais críticos para receber intervenções estruturantes, ou seja, intervenções capazes de dotar a área de condições para enfrentar a recorrência de desastres, considerando, naturalmente, um determinado padrão do fenômeno natural.13

É importante mencionar que, apesar da recorrência de acidentes, praticamente para nenhuma destas áreas existiam estudos hidrológicos e de drenagem elaborados, muito menos projetos executivos.

Mesmo recebendo recursos do PAC para os estudos, projetos e obras, os resultados produzidos estão muito aquém do esperado, com baixo percentual de execução e conclusão dos empreendimentos selecionados, em prejuízo de grande parte da população que continuará exposta aos riscos dos acidentes naturais recorrentes. Ainda existem obras de drenagem do PAC 1 não concluídas com execução média de 58%. As selecionadas no PAC 2, portanto, relativamente mais recentes, têm execução média de 12% na carteira de drenagem, 7% na carteira de Contenção de Cheias e apenas 11% na carteira de Contenção de Encostas(BRASIL, 2014b). Como se vê, não é por falta de recursos que não se enfrentam os problemas críticos das cidades brasileiras. Os dados de execução estão na Tabela 7.

A carteira de mobilidade urbana teve início no PAC 1 com recursos previstos, basicamente, para investimentos em projetos de metrôs em cinco cidades que na ocasião do lançamento do PAC já tinham esboçado algum nível de estudos ou projeto. São elas: Fortaleza, Recife, Salvador, Belo Horizonte e São Paulo. Da mesma forma que as demais temáticas, esses empreendimentos, a cargo de Governos de Estado, também avançaram muito pouco e os do Nordeste terminaram durante o PAC 2.

O tema da mobilidade voltou a ocupar fortemente a agenda governamental com a decisão de sediar a Copa do Mundo. Em 2010, um conjunto de empreendimentos destinados a melhorar a acessibilidade entre pontos de interesse para os deslocamentos relacionados ao megaevento, especialmente as ligações por transporte público entre estádios, aeroportos e regiões hoteleiras das cidades sedes foram selecionados e integraram uma matriz de responsabilidade entre os governos envolvidos e a União, mas não integravam o PAC. O investimento em mobilidade neste porte e volume era, para maioria dos municípios contemplados, uma novidade e uma oportunidade imperdível e os agentes locais, entusiasmados em poder responder às demandas reprimidas por transporte de qualidade nas grandes cidades, apresentaram propostas ousadas e assumiram compromissos difíceis de cumprir.

Apesar do monitoramento, muitos destes empreendimentos não foram concluídos a tempo, mesmo tratando-se do conjunto de interlocutores das maiores capitais e cidades brasileiras. Com projetos formulados inadequadamente houve uma grande quantidade de contratos aditados, licitações mal feitas, remoções de famílias cujos métodos não respeitaram minimamente a Política de reassentamento preconizada pela Política Nacional de Habitação. As obras que não foram concluídas para a COPA 2014 passaram a integrar a carteira do PAC. Com o lançamento do PAC 2 em 2011, foram selecionadas propostas de mobilidade urbana exclusivamente para municípios acima de 700 mil habitantes, que concentram 39% da população do país. Em 2012, a seleção voltou-se para propostas das cidades médias, entre 250 e 700 mil habitantes.

Se todas as demais políticas públicas lidavam com altos déficits, o tema da mobilidade certamente estava entre os piores nas grandes cidades, dado os poucos investimentos na área, por parte dos governos em todos as instâncias. Foi assim que, em 2013, o país vivenciou fortes manifestações populares que cobravam dos governantes providências imediatas para o barateamento e a melhoria do transporte público. É bem verdade que o movimento, à medida que crescia, ampliava também as reivindicações para toda a pauta dos problemas urbanos, mas seu estopim foi o tema da mobilidade. Em resposta a essas manifestações o governo federal anunciou um pacote de medidas que ficou conhecido como Pacto pela Mobilidade Urbana. Basicamente, as ações do Pacto previam medidas para barateamento da tarifa fundamentalmente centradas na política de desoneração, e o anúncio de mais R$ 50 bilhões para obras voltadas ao transporte coletivo.

A primeira seleção dos projetos apresentados por prefeitos e governadores, voltada inicialmente somente para cidades acima de 700 mil habitantes, somente conseguiu aplicar cerca de 50% do valor disponibilizado, por falta de projetos que atendessem às diretrizes, e a alternativa encontrada foi custear a elaboração de projetos para as maiores cidades com recursos do Programa. Assim, por falta de alternativa, nova rodada de seleção foi direcionada para municípios entre 400 e 700 mil habitantes. O resultado destas seleções está na Tabela 8.

No campo do Saneamento e da Habitação os processos de seleção ocorreram de forma bastante semelhante, assim como o perfil de execução da carteira de obras, apesar das particularidades de cada um desses setores. Foram selecionadas em 2007/2008 as intervenções nos maiores assentamentos precários das grandes cidades brasileiras (acima de 150 mil habitantes) e projetos estruturantes na área de saneamento, ou seja, uma oportunidade para o Brasil sanar parte da enorme dívida social gerada pelo processo de urbanização com as famílias mais pobres. O resultado da execução de obras desta seleção, embora tenha realizado importantes metas, ficou bem aquém do esperado como pode ser observado nas Tabelas 9 e 10.

É bem verdade que aos gestores locais coube enfrentar a execução de um conjunto de obras que, embora de baixa complexidade de engenharia, apresentavam dificuldades técnicas e operacionais para serem executadas, por inserirem-se em regiões muito adensadas, gerando frequentes modificações de projeto. Esses gestores deveriam também atender a uma complexa rede de órgãos fiscalizadores que, a despeito de mérito de suas ações, não atuam na forma de um sistema, implicando em permanentes auditorias, paralisações e demandas muitas vezes conflitantes. Destacam-se também os processos licitatórios que, fundamentados em projetos mal elaborados, deram, muitas vezes, margens a contratações que não se sustentaram no longo ciclo de execução deste perfil de empreendimentos. Tudo isso, gerido pelas estruturas municipais e estaduais despreparadas para tal, constituem pano de fundo

Parte dessa carteira, selecionada há sete anos, ainda está em execução. A carteira também apresentava, independentemente do proponente ser Estado ou Município, muitos empreendimentos iniciados e paralisados há anos. Outros nem foram iniciados até o presente e encontram-se em fase de ações preparatórias.

Entre 2007 e 2008, também foram feitas seleções para cidades menores, neste caso, por meio de seleção pública, mas o comportamento da carteira apresentou-se equivalente, pois se as cidades maiores têm melhor estrutura institucional, por outro lado, as obras são muito mais difíceis de serem realizadas. Nas menores, ocorre o inverso, as obras são mais simples e menores, mas a capacidade de gestão piora exponencialmente.

A partir da segunda etapa do PAC (2011-2014) os empreendimentos sem perspectiva de evolução, depois de amplo processo de negociação e interlocução com governadores e prefeitos e de serem esgotadas todas as tratativas possíveis para sua execução passaram a ser excluídos do PAC. Nessa decisão, buscava-se garantir ao menos a funcionalidade dos trechos de obra iniciados, exigindo-se a devolução do restante dos recursos. Quando não era possível, instituía-se um Processo de Tomadas de Contas Especial, implicando na responsabilização do agente público executor. O resultado dessas ações de monitoramento implicou, por exemplo, no cancelamento de obras selecionadas pelo PAC que alcançaram o valor de R$ 12,8 bilhões14 que deixaram de ser investidos em obras de grande importância para a população, em especial, para os mais pobres.

Assim, apesar das ações do Eixo Social e Urbano do PAC apresentarem potencial para se constituírem como instrumentos de promoção de justiça social na medida em que priorizam os investimentos urbanos em temas voltados à inclusão dos mais pobres na cidade, os benefícios do Programa ainda não alcançaram o impacto esperado, em grande medida, em razão do perfil institucional dos estados e municípios brasileiros e do modelo de organização federativa brasileira que instituiu um caótico processo de descentralização de competências na Política Urbana, e uma frágil e quase inexistente coordenação intergovernamental no país.

3. Notas Finais

A diversidade do perfil populacional, institucional, social, cultural, econômico e político dos municípios brasileiros expôs muitas fragilidades do modelo de federalismo e também da cultura clientelista consolidados no Brasil, interferindo na efetividade de políticas públicas implementadas.

A administração pública brasileira apresenta-se fragmentada pelo território. São 5.570 municípios, com suas câmaras de vereadores, que se articulam com deputados estaduais, federais e senadores, em uma intensa e permanente rede de disputas, favorecimentos, troca de favores e clientelismo. Destes municípios, 74% têm até 10 mil habitantes, e 96% têm até 30 mil habitantes. Mais de ¼ do total de municípios foi criado após a Constituição de 1988 para ampliar as bases de interesse de parlamentares, 96% deles com menos de 30 mil habitantes. Sabemos que boa parte destas instituições públicas são incompletas e ineficientes, e carecem das condições mínimas para seu adequado funcionamento institucional, não dispondo de estrutura administrativa até mesmo para tributar e muito menos para planejar e implementar a política urbana e executar obras de infraestrutura.

A grande heterogeneidade econômica e institucional dos municípios, associada à política de descentralização e à ausência de um determinado padrão de relações intergovernamentais cooperativas, em certos aspectos, agravaram as desigualdades. A dependência extrema de recursos externos alimenta a competição predatória e contribui para consolidar o clientelismo e a troca de favores em uma federação fragmentada e em permanente disputa e competição por recursos, votos e poder. Elevados à condição de entes federados os estados não priorizaram fomentar o desenvolvimento de seus municípios e não se teve notícias de iniciativas estaduais inovadoras na instituição de redes de cooperação ou a formação de consórcios públicos que visassem apoiá-los, nem mesmo para os municípios mais pobres. Os governos estaduais na atualidade comportam-se como importantes agentes na divisão territorial do poder no sistema federalista brasileiro, mas, contudo, são pouco atuantes na tarefa de induzir e apoiar estruturalmente o desenvolvimento urbano, humano e qualidade de vida dos municípios sob sua jurisdição.

Assim, pode-se concluir que o país, com o seu modelo de organização federativa, com o perfil institucional dos entes subnacionais ainda não conseguiu superar a correlação de forças desfavorável à transformação na direção de um padrão menos injusto socialmente nas cidades brasileiras.

Notas

1     Constituição Federal: Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos [...].

2     Dispositivo constitucional que não pode ser alterado nem mesmo por Proposta de Emenda à Constituição (PEC). A forma federativa de Estado está inserida como cláusula pétrea na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 em seu artigo 60, § 4º.

3     A participação dos municípios na receita total disponível aumentou de 9,5% em 1980 para 16,9% em 1992, enquanto que para os estados elevou-se de 24,3% para 31,0%, no mesmo período. A receita tributária disponível (inclusive transferências) dos municípios passou de 2,5% em 1980 para 4,1% do PIB já em 1992. (MELO, 1996, p. 15).

4     Para aprofundar a discussão sobre o assunto ver: SOUZA, Celina. Intermediação de Interesses Regionais no Brasil: O Impacto do Federalismo e da Descentralização. Dados, Rio de Janeiro, v. 41, n. 3, p.,1998. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0011-52581998000300003. Acesso em: 13 jun. 2015; AFONSO et al. Municípios, Arrecadação e Administração tributária: Quebrando tabus. BNDES. 1998. Disponível em: <http://www.bndes.gov.br/SiteBNDES/export/sites/default/bndes_pt/Galerias/Arquivos/conhecimento/revista/rev1001.pdf> Acesso em: 13 jun. 2015.

5     Para conhecer dados relativos aos 444 munícipios que compõem as Aglomerações Urbanas brasileiras e concentram 59% da população ver: BREMAEKER, François E. J. De. Recursos Financeiros dos Municípios que compõem as principais Aglomerações Urbanas em 2013. Observatório de Informações Municipais. Rio de Janeiro, março de 2015. Disponível em: http://www.oim.tmunicipal.org.br/abre_documento.cfm?arquivo=_repositorio/_oim/_documentos/5F96F8F3-F007-18A7-52734E3DA695120D06032015014018.pdf&i=2698. Acesso em: 20 mai. 2015.

6     §4o do art. 18 da CF de 1988: A criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de Municípios preservarão a continuidade e a unidade histórico-cultural do ambiente urbano, far-se-ão por lei estadual, obedecidos os requisitos previstos em lei complementar estadual, e dependerão de consulta prévia, mediante plebiscito, às populações diretamente interessadas.

7     Informações fornecidas à autora pela Subchefia de Relações Federativas da Secretaria de Relações Institucionais da Presidência da República, 2015.

8     Referência às onze maiores RMs, além da RIDE-DF: M Baixada Santista, RM Belém, RM Belo Horizonte, RM Campinas, RM Curitiba, RM Fortaleza, RM Porto Alegre, RM Recife, RM Rio de Janeiro, RM Salvador, RM São Paulo.

9     O PAC foi instituído pelo Decreto n. 6.025/2007, posteriormente modificado pelo Decreto n. 7.470/11. Esses decretos e os demais atos normativos afetos ao PAC estão disponíveis em: http://www.pac.gov.br/sobre-o-pac/leis-pac.

10   Dados fornecidos à autora com base nos balanços oficiais do Programa pelo Departamento de Informações da Secretaria do PAC, Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, em junho de 2015.

11   Para efeito de distribuição de recursos nas diversas seleções o PAC adota o seguinte critério de regionalização para agrupar os municípios:

      Grupo 1 – as Regiões Metropolitanas de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Salvador, Fortaleza, Curitiba, Campinas, Belém e Santos, municípios acima de 70 mil habitantes no N, NE, CO e acima de 100 mil habitantes no S, SE;

      Grupo 2 – Municípios entre 50 e 70 mil habitantes no N, NE, CO e entre 50 e 100 mil no S, SE;

      Grupo 3 – Municípios com menos de 50 mil habitantes.

12   O PAC apoia ações de pavimentação em vias urbanas existentes, prioritariamente em áreas de baixa renda e de maior adensamento populacional. Foram realizadas duas seleções (2010 e 2013) – R$ 10,2 bilhões – 645 empreendimentos selecionados. Os recursos são onerosos (financiamento). Por não tratar de ação estruturante não será detalhada neste texto.

13   Entre eles destacam-se a seleção de intervenções em São Paulo, na capital e Região Metropolitana, no valor de R$ 2,4 bilhões; Região Metropolitana e Bacia do Paraíba do Sul, que foram contempladas com R$ 1 bilhão; Santa Catarina, que foi selecionada com R$ 604,5 milhões para estudos, projetos e obras para as recorrentes enchentes no Vale do Itajaí; as Regiões Metropolitanas de Belo Horizonte e de São Paulo e a Região Serrana do Rio de Janeiro. Dados detalhados por Unidades da Federação podem ser encontrados no 11o Balanço do PAC. Balanço de 4 anos, 2011 a 2014. Disponível em: http://www.pac.gov.br/sobre-o-pac/publicacoesnacionais; Acesso em: 22 mai. 2015.

14   Informações fornecidas à autora pela Diretoria de Infraestrutura Social e Urbana da Secretaria do Programa de Aceleração do Crescimento, Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. 2015.

Referências

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–––––––––. Aceleração do Crescimento – PAC 1 2011-2014 – Balanço de 4 anos. Disponível em: http://www.pac.gov.br/sobre-o-pac/publicacoesnacionais. Acesso em: 22 mai. 2015.

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