Estratégias empresariais de “antecipação” e “gestão” da conflituosidade social: as “soluções negociadas” de conflitos trabalhistas e socioambientais
Luis Régis Coli
Professor Adjunto do IPPUR/UFRJ, pesquisador ETTERN/IPPUR/UFRJ
1. Introdução
Este trabalho se propõe a analisar, sob o foco das iniciativas de “resolução negociada” de conflitos, as práticas e discursos que orientam a ação empresarial na “antecipação” dos processos de contestação social de suas atividades, discutindo tais mecanismos alternativos de “solução de conflitos” como parte de um conjunto de ações que visam garantir a “legitimidade pública” de empresas que, com este objetivo, se apresentam como praticantes da “responsabilidade social corporativa” e adeptas do chamado “ambientalismo empresarial”. Além disso, o texto procura examinar a influência dos modelos de negociação trabalhista na consolidação das estratégias de “resolução negociada de conflitos ambientais”, entendidas como mais uma maneira de assegurar a continuidade dos pressupostos do desenvolvimento econômico capitalista sem que se questionem os processos estruturais geradores dos conflitos socioambientais.
O trabalho se inicia apresentando uma breve trajetória da ascensão dos mecanismos de “resolução negociada”, internacionalmente conhecidos como Alternative Dispute Resolution, apontando para suas principais características e para o contexto histórico de sua propagação. Em seguida, discutem-se os métodos empresariais de “antecipação da contestabilidade social” e de prevenção da conflituosidade sob o escopo de adoção das práticas de “responsabilidade social corporativa”, dos chamados “códigos de conduta” e das atividades de empresas que se afirmam “ambientalmente responsáveis”. A seção posterior, visando constituir as relações entre as negociações trabalhistas e a “resolução” de conflitos ambientais, se concentra nos debates acerca das “negociações coletivas”, tomando como enfoque principal as propostas do setor industrial brasileiro no momento de esgotamento da ditadura militar, ao início dos anos 1980, diante da intensificação das ações dos setores mais articulados do sindicalismo nacional. Logo, abordam-se na sequência as analogias e diferenças que tornaram os modelos de negociação trabalhista referências para as técnicas de Environmental Dispute Resolution. As contradições que envolvem os discursos e práticas do Banco Mundial quanto ao “tratamento” de conflitos ambientais são avaliadas posteriormente e seguidas pelas considerações finais.
2. A ascensão dos mecanismos alternativos de “resolução negociada” de conflitos
A consolidação dos instrumentos e práticas associadas à “solução de conflitos” que envolvem iniciativas de Alternative Dispute Resolution – (ADR) é entendida, de maneira geral, como uma resposta aos movimentos de reivindicação de direitos que se desenvolveram nos Estados Unidos durante a década de 1960. Sem que se busque uma definição “universal”, as estratégias de “resolução negociada”, ou ADR, podem ser caracterizadas pela utilização de práticas de mediação, arbitragem, facilitação, conciliação ou negociação direta em fóruns não litigiosos, que têm como finalidade produzir soluções de caráter “consensual”, envolvendo “ganhos mútuos” para as partes em conflito (LIPSKY; SEEBER, 1998; KRIESBERG, 2009; SOARES; ALEMÃO, 2009; VIÈGAS et al., 2014). Durante os anos 1970 e 1980, a “resolução negociada” tornou-se institucionalizada em faculdades e universidades norte-americanas, agências governamentais e no meio empresarial e não governamental (KRIESBERG, 2009). Tendo se espalhado por diversos países a partir dos anos 1990, dentre eles o Brasil, as técnicas de ADR têm propagado uma “ideologia da harmonia”, estabelecendo o que Nader (1994) denominou, sob outro olhar, de “harmonia coercitiva”, cuja retórica:
[...] estava associada à paz, enquanto a solução mediante disputa judicial era relacionada à guerra. Uma é antagônica, a outra não antagônica. Em uma há confronto, insensibilidade, destruição da confiança e da cooperação e apenas perdedores, enquanto na outra a cura suave e sensível dos conflitos humanos produz apenas vencedores. As alternativas estavam associadas à qualidade de ser moderno: “criando hoje o tribunal de amanhã.” (NADER, 1994, p. 21).
Desse modo, nos termos de Viègas et al.:
Pautando-se em discursos de eficiência e eficácia, harmonia e pacificação, consenso e solidariedade, negociação e acordo, participação e diálogo, informalidade e celeridade, tais métodos possuem como tônica em seus objetivos principais: ansiar por rapidez e efetividade de resultados; reduzir custos administrativos e judiciais; reduzir a duração e reincidência dos litígios; facilitar a comunicação e promoção de ambientes “cooperativos”; e transformar e melhorar as relações sociais. Nessa literatura, é comum mencionar-se os tribunais “abarrotados”, a demora e a dificuldade de se chegar a uma solução definitiva e o risco de um ente não conseguir “levar nada”, dado poder “perder” integralmente caso não haja negociação prévia. Outra forma de justificação para o uso dessa metodologia é a ideia de que submeter os litígios ambientais à apreciação de experts concederia maior confiabilidade e celeridade à resolução dos litígios (2014, p. 48).
Nesse aspecto, ao se pesquisar as mais diversas fontes que envolvem seus defensores, percebe-se com certa clareza a ideia de que as técnicas e estratégias de ADR possuem uma espécie de “validade universal”. Assim, os discursos dos defensores da ADR promoveram uma ampliação de sua gama de utilidades para as mais diversas esferas da vida social, política, econômica e cultural, dos conflitos entre Estados aos conflitos familiares:
Realizaram-se conferências voltadas para o meio ambiente, com o objetivo de verificar a possibilidade de deslocar “a ênfase de uma abordagem vencer ou perder para outra de equilíbrio de interesses”. Os sindicatos foram inundados por planos de controle de qualidade, em que trabalhadores e administração, juntos, cooperavam harmonicamente, em uma situação vencer ou vencer. As reservas indígenas americanas foram convencidas por emissários de Washington a encarar o lixo nuclear como uma solução vencer ou vencer – saindo da miséria econômica e ao mesmo tempo contribuindo para com o seu país. Grupos de ativistas do meio ambiente estão sendo pressionados mediante reuniões de consenso, também supostamente de tipo vencer ou vencer. Problemas familiares são mediados, enquanto na Califórnia e em muitos outros estados tal mediação é obrigatória (NADER, 1994, p. 21).
O desenvolvimento da perspectiva de resolução de conflito se dá em consonância com a ideia de “consenso”, principalmente a partir da celebração do Consenso de Washington, de maneira que esta invade as agendas públicas internacionais de discussão sobre o desenvolvimento, especialmente em matéria de combate à pobreza e de políticas sociais (VIÈGAS et al., 2014). Fundando-se como base de um discurso que busca se antecipar a qualquer forma de conflito político, seus reflexos no debate socioambiental foram logo percebidos:
É sabido que, entre analistas e atores sociais, desenvolveu-se, ao longo dos anos 1990, a impressão de que teria havido um processo de “substituição” do ambientalismo contestatário por um “ecologismo de resultados”, pragmático e tecnicista. [...] Há, de fato, indicações de que a “substituição” do projeto contestatário por uma atuação técnico-científica associada ao discurso do localismo e à aplicação de tecnologias de formação de consenso é um propósito comum a organismos multilaterais, governos e empresas poluidoras. Em relatório recente para o Brasil, o Banco Mundial dizia “reconhecer seu papel de catalisador” na promoção da participação da sociedade civil. Pretende-se assim promover uma ação de antecipação, capaz de capturar os movimentos de contestação ao padrão dominante de desenvolvimento no interior do que se tem chamado de “modernização ecológica”, noção que designa o processo pelo qual as instituições políticas internalizam preocupações ecológicas no propósito de conciliar o crescimento econômico com a resolução dos problemas ambientais, dando-se ênfase à adaptação tecnológica, à celebração da economia de mercado, à crença na colaboração e no consenso (ACSELRAD, 2010 , pp. 10 -107).
3. Responsabilidade Social Corporativa, “prevenção” de conflitos e “antecipação” da “contestabilidade social”
O quadro que se apresenta nos últimos anos tem, assim, refletido os esforços por parte de grandes corporações empresariais em “prevenir” e “antecipar” os possíveis conflitos gerados por suas atividades. O uso de tecnologias de antecipação possui, na atualidade, papel fundamental no conjunto de práticas adotadas por empresas que querem evitar as vias judiciais e, principalmente, uma maior regulação, através de acordos obrigatórios e imposições legais, de suas formas de operação. Desta maneira, empresas cujo funcionamento tende a causar impactos socioambientais estão entre as maiores adeptas dos “acordos voluntários” e das políticas de “responsabilidade social”.
Tendo como fio comum, entre suas várias definições, a “natureza voluntária” de suas “boas práticas”, as iniciativas de “Responsabilidade Social Corporativa” (RSC) são comumente classificadas como “socialmente responsáveis” por não serem realizadas sob a obrigatoriedade de agências governamentais ou instituições intergovernamentais, pois seriam “voluntariamente perseguidas”, especialmente através de seus “códigos de conduta corporativa” (ROWE, 2005, p. 123). Tais códigos de conduta começaram a disseminar-se durante os anos 1970, após um período de crescente desconfiança sobre muitas das maiores empresas transnacionais dos Estados Unidos que, principalmente entre 1975 e 1976, tiveram reveladas ao grande público práticas de suborno, lavagem de dinheiro, apoio a golpes de Estado, dentre outras atividades ilegais. A desconfiança pública nas corporações contribuiu, à época, para um ambiente favorável à regulamentação que poderia vir a ser aproveitado pelos movimentos trabalhistas e demais movimentos sociais. Em 1976, a Comissão das Nações Unidas sobre Empresas Transnacionais tornou prioritária a formulação, adoção e implementação de um projeto para um código de conduta abrangente e juridicamente vinculativo sobre Empresas Transnacionais, o que levou os países do Norte a responder com uma aparente concessão: as Diretrizes da OCDE sobre Empresas Multinacionais, um código de conduta de caráter voluntário (ROWE, 2005).
Os esforços dos países ricos em desarticular as negociações de um código obrigatório para as empresas transnacionais acabaram por ser bem sucedidos e, em 1977, ele já havia sido transformado em um mecanismo voluntário. Ainda assim, mesmo quase concluído em 1981, as negociações foram paralisadas e o projeto praticamente abandonado em um curto período de tempo. As Diretrizes da OCDE, portanto, foram usadas para impedir o controle obrigatório que pretendia se estabelecer sobre as transnacionais através da ONU: “O ano de 1976 marca assim a entrada do código de conduta voluntário para o repertório estratégico do mundo dos negócios” (ROWE, 2005, p. 129). Nas décadas que se seguiram, o código de conduta corporativa tornou-se uma das respostas empresariais preferidas às ameaças aos lucros oferecidas pelas possibilidades de regulação obrigatória. Seja em resposta à crítica direta ou na luta para evitá-la, as empresas trabalharam intensamente na década de 1990 para conter a crescente frustração com os abusos corporativos. Neste período, todos os grandes códigos corporativos foram elaborados por empresas de relações públicas, na esteira de uma série de investigações que ganharam notoriedade midiática:
O Código do Wal-Mart chegou depois que surgiram relatos de que as suas fábricas fornecedoras em Bangladesh estavam usando trabalho infantil; O Código da Disney nasceu da “revelação do Haiti”2; A Levi’s escreveu sua política como uma resposta aos escândalos envolvendo trabalho prisional. Sua finalidade original não foi produzir reformas, mas “amordaçar os grupos de vigilância offshore” (KLEIN, 2000, p. 440 apud ROWE, 2005, p. 139).
Diante do cenário contemporâneo, marcado pela incapacidade – ou indisposição – dos governos em conter o avanço da mercantilização sobre as mais distintas esferas da vida social, certos direitos acabam tornando-se indisponíveis como um bem público geral, sendo, ao invés disso, fornecidos por atores privados. Logo, a empresa, e não o Estado, torna-se a garantidora desses direitos, através de documentos e compromissos sem estatuto legal ou ético. O ator privado passa a ser responsável por assegurar que tais direitos sejam providos, embora não seja tão evidente a quem se referem tais direitos, se aos “consumidores” ou aos “trabalhadores”. A partir de uma base “autorregulada”, esses acordos pretendem “garantir” a proteção dos direitos da sociedade e a preservação da “natureza” (LIPSCHUTZ, 2005).
Reforçando o caráter estratégico de tais iniciativas empresariais, Dupuis (2007) afirma que a gestão “socialmente responsável” pode ser caracterizada como um modelo para gerenciar de modo antecipatório a contestabilidade econômica e social. Para Dupuis, a análise em termos de “contestabilidade” permite que se avance na compreensão acerca das características econômicas e institucionais que determinariam a “sensibilidade” das empresas à ameaça de contestação social, assim como de seu grau de “obsolescência moral”, considerando-se que uma forte exposição tenderia a incitar as empresas a implementar atividades voluntárias de proteção que se concretizariam supostamente através de uma “melhoria da qualidade social e ecológica dos seus produtos” (DUPUIS, 2007, p. 133). Godard (1993), pioneiro em tais análises, associa tais ameaças à perspectiva de uma “legitimidade contestável”, pois não bastaria às empresas apenas combinar de forma “ótima” os “fatores de produção”, elas precisariam gerir também as questões de legitimidade, isto é, envolver-se em uma espécie de “gestão pública” (management public) (GODARD, 1993). Neste contexto, as iniciativas de empresas que visam “maximizar” seu “desempenho ambiental” correspondem a uma gestão de sua “legitimidade pública” (HOMMEL, 2006, p. 15).
Ao analisar o predomínio de abordagens com fortes características funcionalistas/positivistas nos trabalhos que versam sobre a RSC, El Akremi et al. (2008) destacam o recurso à existência de uma suposta convergência entre diferentes questões no campo econômico, social e ambiental, que aponta não apenas para a compatibilidade de interesses das “partes interessadas”, mas também para um pressuposto de que a eficiência econômica é equivalente à eficiência social e ecológica. Logo, “sobre o plano ideológico, a abordagem funcionalista da RSC se apresenta como um discurso de legitimação do capitalismo, que procura justificar a dominação hierárquica de um grupo (os capitalistas ou ocidentais) sobre outros grupos” (EL AKREMI et al., 2008, p. 71). Segundo Jones (1996), o discurso de responsabilidade social contribui para a hegemonia ideológica na qual os arranjos institucionais contemporâneas são retratados como se servissem ao interesse geral, ao passo que, na verdade, eles servem aos interesses de uma minoria. O princípio de gestão paternalista por trás da responsabilidade social serviria, assim, também para legitimar a dominação hierárquica, ao invés de encorajar o pluralismo democrático:
Em suma, o conceito de responsabilidade social sugere um capitalismo “mais gentil”, que não requer a vigilância de forças de contraposição para mantê-lo honesto porque ele (o capitalismo) é essencialmente benigno, ou pelo menos pode sê-lo através de mecanismos procedimentais existentes. Postular um capitalismo que aja voluntariamente em conformidade com os princípios da responsabilidade social é absurdo. Isso retorna a discussão ao meu ponto central: O discurso da responsabilidade social é viável apenas na ausência de uma compreensão fundamentada da economia política capitalista. Por outro lado, sugerir que as organizações empresariais irão se comportar de forma socialmente responsável, como resultado da pressão externa exercida por forças de contraposição (por exemplo, trabalhadores, Estado, ambientalistas) é uma posição muito diferente, teoricamente mais plausível e empiricamente sustentável. Mas tais ações de contraposição são desnecessárias se a responsabilidade social se torna uma verdadeira força motriz do comportamento empresarial (JONES, 1996, p. 34).
Já pesquisadores como Cederström e Marinetto (2013) ressaltam o foco dominante, na literatura sobre RSC, dado aos “problemas práticos” em detrimento de questões contextuais mais amplas: “Uma orientação pragmática se distingue por sua ignorância sobre questões estruturais. Ela vai olhar para problemas particulares – tais como a pobreza – e argumentar que a melhor maneira de resolver esses problemas é através da intervenção, principalmente voluntária, das corporações” (p. 422). Em outros termos:
Para eles não há uma única classe operária que seja explorada na atualidade. Existem apenas problemas concretos a serem resolvidos: a fome na África, a situação das mulheres muçulmanas, a violência fundamentalista religiosa. Quando há uma crise humanitária na África [...] não há nenhuma razão em se engajar em uma retórica anti-imperialista à moda antiga. Em vez disso, todos nós deveríamos nos concentrar apenas no que realmente funciona para resolver o problema: envolver as pessoas, governos e o mundo dos negócios em um empreendimento comum; começar a movimentar as coisas, em vez de depender da ajuda estatal centralizada; abordar a crise de uma forma criativa e não convencional, sem se preocupar com rótulos. (ŽIŽEK, 2008, pp. 18-19 apud CEDERSTRÖM; MARINETTO, 2013, pp. 421-422).
Lyon e Maxwell (2004), por sua vez, reforçam o caráter estratégico das políticas “ambientais” para o mundo dos negócios ao analisarem o chamado “ambientalismo empresarial” (Corporate environmentalism), considerando-o essencialmente uma ferramenta para influenciar o comportamento dos ativistas ambientais, legisladores e reguladores, embora possa também prover benefícios auxiliares às corporações, tais como a atração de “consumidores verdes” ou a redução de custos. Para Bowen (2014), o “ambientalismo empresarial” define-se como um conceito genérico que capta uma ampla gama de “práticas ambientais” específicas. Estas práticas podem ser “orientadas para o produto” (product-oriented), como quando as empresas desenvolvem produtos que sejam de alguma forma “mais verdes”, ou “orientadas para o processo” (process-oriented), tais como iniciativas que visam reduzir o desperdício ou aumentar a eficiência dos recursos. A noção de ambientalismo empresarial inclui também investimentos em sistemas de gestão, isto é, investimentos na infraestrutura interna que afetam o modo como a produção é gerenciada. Os managers costumam descrever uma variedade de prática – de rótulos ecológicos a sistemas de reciclagem para a compra de créditos de carbono – como “ambientalismo empresarial”, que também incluiria, por seu turno, o envolvimento da empresa na proliferação de normas de gestão ambiental, elaboração de relatórios ambientais, parcerias, associações industriais, programas de treinamento de funcionários, consórcios e convenções de negócios, que são todos relacionados à oferta de melhorias no “desempenho ambiental” de uma empresa (BOWEN, 2014).
No âmbito da produção agrícola, as críticas crescentes à agricultura convencional e industrializada não se refletem apenas em maior pressão sobre o agronegócio, mas também são muitas vezes percebidas como novas oportunidades para estratégias de negócios “sustentáveis”, abrindo “nichos de mercado” para produtos “ecologicamente corretos”. Ademais, internamente, as empresas podem lucrar com o “ambientalismo” se conseguirem “capturar” o “consumidor verde”, estendendo ou renovando sua gama de produtos para incluir alimentos orgânicos, ou ainda tentando convencer compradores de que seus produtos são mais environmentally-friendly do que os dos seus concorrentes, a fim de manter ou ampliar sua participação no mercado (JANSEN; VELLEMA, 2004). Estas iniciativas, entretanto, parecem associar-se ao contexto mais amplo dos processos de mercantilização da diferença e da autenticidade que caracterizaram as transformações do capitalismo nas últimas décadas, tal como apresentadas por Boltanski e Chiapello (2009), e que representaram sua resposta – visando a endogenização da demanda – à intensa reivindicação de diferenciação e de desmassificação que marcou o fim da década de 1960 e o início da de 1970 nos países mais ricos. Praticando-se a cooptação via mercantilização, transformaram-se em “produtos” – com preço e possibilidade de troca mercantil – bens e práticas que antes se localizavam fora do mercado:
É o processo mais simples pelo qual o capitalismo pode reconhecer a validade de uma crítica e adotá-la, integrando-a nos dispositivos que lhe são próprios: os empresários, ouvindo a reivindicação expressa pela crítica, procuram criar produtos e serviços que a satisfaçam e possam ser vendidos. [...] Foram assim introduzidas modificações na produção em massa para que esta pudesse propor bens mais diversificados, destinados a terem vida mais curta e sofrerem mudanças mais rápidas (pequena produção em série, multiplicação das opções oferecidas ao consumidor...), em oposição aos produtos padronizados do fordismo. Nessa nova oferta, os empresários viram uma possibilidade de lutar contra a saturação dos mercados, aguçando o apetite dos consumidores pelo fornecimento de produtos de “qualidade”, oferecendo ao mesmo tempo mais segurança e maior “autenticidade” (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009, pp. 444).
A mercantilização do que antes era considerado “autêntico”, contudo, tende a levantar suspeitas, tais como as direcionadas, durante os anos 1990, ao “marketing ecológico”, uma prática que havia se desenvolvido em várias direções:
A primeira direção consistiu em patrocinar campanhas para a proteção do meio ambiente e em divulgá-las por meio de um emblema (mecenato ecológico). Mas era tentador também recorrer à publicidade ecológica que enfatizasse os esforços feitos para tornar os produtos menos poluentes e nocivos, melhorar sua produção no sentido de maior respeito ao meio ambiente ou facilitar sua eliminação no fim do seu ciclo de vida. [...] Mas, rapidamente, os consumidores se tornaram cada vez mais céticos em relação a argumentos desse tipo. A reação dos especialistas em marketing ecológico consistiu em tentar desmercantilizar suas campanhas, recorrendo a especialistas externos, autoridades públicas, comissões pluralistas, associações de ambientalistas ou institutos de etiquetagem, solicitando auditorias ecológicas a escritórios que dispusessem de instrumentos para tanto (VIGNERON; BURSTEIN, 1993), a fim de “construir credibilidade” perante os “cães de guarda ambientais” (BENNETT; FRIERMAN; GEORGE, 1993). Parece, porém, que a perda de credibilidade do marketing ecológico decorria não só do uso de argumentos bem pouco fundamentados ou do fato de que um produto promovido pela publicidade como menos poluente sob certo aspecto podia ser mais poluente sob outro aspecto omitido, mas também porque a própria linguagem da ecologia foi transformada em argumento comercial. A mercantilização bastaria para criar dúvidas sobre a realidade e sobre o valor dos produtos ecológicos (BOLTANSKI e CHIAPELLO, 2009, pp. 451-452).
Seguindo o caminho dos estudos que se concentram em refletir sobre a natureza da crítica – principalmente os de Boltanski e Chiapello (2009 – Cederström e Marinetto (2013) observam que, tradicionalmente, as empresas têm sido conhecidas por empregar duas estratégias amplas e parcialmente sobrepostas para evitar a atenção indesejada: a gestão de riscos e a gestão de reputação:
Na gestão de riscos, as empresas procuram escapar do fogo cruzado através da ponderação e avaliação das suas atividades mais perigosas, tanto preventivamente (ao avaliar os riscos potenciais de antemão) e retroativamente (ao minimizar ou suprimir a crítica após o fato). Na gestão da reputação, a corporação vai longe para proteger ou melhorar a reputação de sua marca, através, por exemplo, da doação de fundos para as comunidades locais, ou o patrocínio de ONG – em suma, se envolvem em qualquer atividade que se passe como socialmente responsável com o objetivo de reconstruir ou melhorar a sua reputação (CEDERSTRÖM; MARINETTO, pp. 426).
Não obstante, estes autores argumentam que, na atualidade, poder-se-ia identificar uma terceira estratégia, que se baseia na gestão de reputação, mas que seria mais pró-ativa em sua natureza, pois se diferenciaria dos exemplos anteriores por não tentar se distanciar da crítica. Pelo contrário, é uma estratégia que faz com que as corporações, em um período de crise na qual aumentam as contestações ao sistema nos próprios países que protagonizam o capitalismo global, busquem colocar-se como se estivessem do mesmo lado da crítica social. Para Cederström e Marinetto (2013), elas se alinham com as críticas para dissociar-se de empresas vistas como eticamente irresponsáveis, de normas institucionais consideradas falhas, ou até mesmo do próprio sistema capitalista, utilizando-se de uma retórica e imagética supostamente anticapitalista e contracultural, como foi o caso dos fundadores da Ben & Jerry’s Ice Cream, que apoiaram ativamente o movimento Occupy Wall Street, ou da Mercedes Benz, através do seguinte episódio:
Um exemplo revelador é como a Mercedes Benz utilizou recentemente a fotografia icônica de Alberto Korda do líder rebelde argentino Che Guevara, um símbolo da contracultura e do anticapitalismo, para promover o uso compartilhado de automóveis. O presidente da Mercedes Benz, Dieter Zetsche, apresentou a nova iniciativa durante um show anual da Consumer Electronics. Com a foto de Che Guevara projetada ao fundo (e com o logotipo da Mercedes Benz em sua boina), Zetsche disse que alguns dos “colegas ainda pensavam que o compartilhamento de automóveis beirava o comunismo”, após o que ele retoricamente respondeu: “Mas se esse é o caso, viva la revolución”. Este golpe de relações públicas causou muita controvérsia, e na sequência de uma torrente de indignação, a empresa-mãe da Mercedes, Daimler, pediu oficialmente desculpas, afirmando “não tolerar a vida ou as ações desta figura histórica [Che Guevara] ou a filosofia política por ele defendida” (CEDERSTRÖM; MARINETTO, p. 426).3
4. A Negociação Coletiva nas relações de trabalho como mecanismo de “resolução negociada”
As práticas de mediação oriundas das negociações trabalhistas tiveram uma influência decisiva na constituição das estratégias de “resolução negociada” de conflitos que vêm se propagando por diversos países há algumas décadas. Como já afirmava Klare (1981), uma extensa literatura acerca da collective bargaining4 foi produzida na América do Norte sem grandes questionamentos aos processos fundamentais que caracterizavam as relações de dominação e cooptação, fortalecidas por legislações que regulavam e limitavam as possibilidades de ação dos trabalhadores da indústria. Essa literatura tomaria, assim, como dada e inquestionável a conveniência de se manterem os contornos institucionais básicos da ordem social capitalista liberal (KLARE, 1981). Consequentemente, se a teoria liberal dominante nos EUA acerca das negociações coletivas tende a esvaziar o conteúdo político e de classe do conflito industrial, para Klare (1981), ainda que os sindicatos tenham produzido melhorias importantes na vida de seus trabalhadores através das negociações, a ideologia legislativa da NC visaria justificar a hierarquia industrial, contrapondo-se a uma série de aspirações democráticas e autogestionárias, e permitindo a elaboração privada de leis por grupos poderosos.5 Tal como observava Damico (1986):
Sintetizando, podemos dizer que o sistema de relações industriais americano se caracteriza pela informalidade e pouca institucionalização do conflito e pela oposição ferrenha do patronato às organizações de trabalhadores. De um lado, temos sindicatos organizados firmemente a nível local, mas com pouca expressão no encaminhamento das questões de fundo dos trabalhadores. Cada sindicato local se encontra bastante isolado na mesa de negociações, recebendo apenas o apoio técnico indispensável do sindicato a que estão filiados. A possibilidade de solidariedade intersindical é vedada por lei, e a organização de novos sindicatos é também dificultada pela legislação. Logo, não é de surpreender a tendência à diminuição do percentual da força de trabalho que é sindicalizada (DAMICO, 1986, p. 94).
No Brasil, ao final dos anos 1970 e início dos anos 1980, grupos ligados à indústria buscaram conduzir ações, debates e discussões como forma de tentar garantir maior controle das relações de trabalho sob um contexto de ativismo sindical crescente e declínio da ditadura militar. Quanto a isso, destaca-se a realização do Seminário Internacional sobre Negociação e Relações de Trabalho, promovido em abril de 1981 pelo Instituto Euvaldo Lod – (IEL), órgão de estudos e pesquisas da Confederação Nacional da Indústria – (CNI). Tendo como objetivo representar uma “contribuição do setor industrial brasileiro”, assim como propor análises centradas nas “relações industriais” e nas possibilidades trazidas por um possível incremento das negociações coletivas sob o cenário de redemocratização que se vislumbrava, tal iniciativa constitui um exemplo da tentativa de articulação, no Brasil, de um modelo de “relações industriais” inspirado nas práticas de negociação vigentes nos países de “capitalismo avançado” que ainda vigoravam naquele período.
Em sua apresentação, o diretor do IEL, Tarcísio Meirelles Padilha, segundo se pôde verificar, assumindo formulações de assessores técnicos do Instituto que dirigia, elenca alguns dos pressupostos que orientariam o conjunto de discussões travadas na ocasião entre professores universitários, representantes estatais, sindicais e industriais.
Todo sistema de relações industriais constitui um sistema normativo que regulamenta as relações entre capital e trabalho. As normas podem ser classificadas de formas diferentes, segundo sua área de atuação. A predominância de um tipo de norma e a forma de relação entre elas permitem caracterizar um sistema. Uma distinção pode ser feita ainda entre as normas que regem diretamente as relações de trabalho e aquelas que o fazem indiretamente, regulamentando os comportamentos ou os modos de ação das diversas organizações formais ou informais pertencentes ao sistema (PADILHA, 1981, p. II).
Nos termos da assessoria de Padilha, a negociação coletiva seria definida como um processo social que forneceria um marco de referência no qual poderiam ser confrontados os pontos de vista dos empregadores e dos trabalhadores sobre os objetos dos conflitos, de maneira a eliminar suas causas: “assim como o processo eleitoral e a votação por maioria permitiram institucionalizar o conflito político, a negociação coletiva permite institucionalizar o conflito social” (PADILHA, 1981, p. II). Reivindicando uma certa percepção do que seria o papel de um “Estado democrático” sobre as relações de trabalho, que se dariam através de uma legislação mínima e da garantia do “livre exercício” das negociações, o texto defende o estímulo ao recurso da mediação e arbitragem, subordinado “à livre vontade das partes e sem utilização de qualquer meio coercitivo” (p. IV).
O Ministro do Trabalho de então, Murilo Macedo, procurou lembrar em seu discurso de abertura como tentou acentuar, após a sequência de greves de trabalhadores metalúrgicos do ABC paulista iniciadas em 1978, o papel do que chamaria de “sindicalismo democrático”:
O sindicalismo democrático se distingue do sindicalismo revolucionário na medida em que o primeiro vê no empresário um parceiro de jogo com o qual deve e pode transacionar, enquanto que na postura revolucionária o patrão é tido como o inimigo a ser destruído. Dessa dicotomia de posições decorrem táticas inteiramente diversas: para o sindicalismo democrático a tática básica é a negociação, pois seu objetivo fundamental é o acordo. Para o sindicalismo revolucionário a tática é evitar o acordo, pois seu objetivo central é o confronto. Através da negociação, o sindicalismo democrático procura atender os interesses de seus associados e influenciar a própria organização do sistema em que opera. Através do confronto, o sindicalismo revolucionário procura atender os interesses do partido e precipitar a subversão do sistema (MACEDO, 1981, pp. 2-3).
Já o presidente da Confederação Nacional da Indústria à época, Albano do Prado Franco, procurou apontar para o que chamou de “pioneirismo” da CNI no “âmbito patronal de grandes iniciativas”, afirmando que a mesma havia tomado a responsabilidade de abrir os canais para o diálogo sobre as relações de trabalho no país entre trabalhadores, empresários e “homens de governo” (FRANCO, 1981). A relação entre negociação coletiva e aumento da produtividade foi, ao longo do seminário, defendida com certa frequência6 por alguns de seus participantes como uma contrapartida necessária para o sucesso dos acordos e reajustes salariais, o que, em determinado momento, provocou o seguinte questionamento por parte de Abel Moraes de Bello Filho, então sindicalista na indústria química e farmacêutica:
Recentemente foi agregada ao cálculo do reajuste uma taxa correspondente à produtividade. A produtividade, por exemplo, na área dos vendedores e propagandistas de produtos farmacêuticos, é determinada por processo empírico. Não existem ainda meios de calculá-la com exatidão. Na oportunidade dos acordos os índices de produtividade são reivindicados, dir-se-ia, para fins de negociação! Esse processo não se tem revelado vantajoso para os empregados justamente desejosos de obter aumentos reais. É oportuno lembrar que, em épocas em que as dificuldades econômicas não tenham sido tão agudas, os trabalhadores não foram contemplados com melhores salários. Portanto, num momento como o atual, de crise, não é justo também que caiba aos trabalhadores o ônus maior de suportar as dificuldades que o País atravessa. Apreciaria sugerir ao Sr. representante do Ministério do Trabalho, aqui presente, a conveniência de ser elaborado um estudo para apurar quais as partes realmente beneficiadas nas negociações coletivas diretas entre trabalhadores e empresários. Esse tipo de negociação tem sido muito estimulado pelas classes empresariais, fato gerador de algumas dúvidas e apreensões dos trabalhadores (DE BELLO FILHO, 1981, p. 51).
As dúvidas de Bello Filho se justificam, na medida em que a disposição dos setores industriais para a negociação parece ter tido um caráter reativo diante das greves de metalúrgicos ocorridas nos anos anteriores, e sob um cenário de esgotamento da ditadura que indicava uma redução no patamar extremamente confortável vivido pelos grandes grupos patronais durante o período em que vigoraram os governos militares. A intervenção posterior de Antonio Toschi, à época presidente do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Metalúrgicas, Mecânicas e de Material Elétrico de Osasco, reforça tais questionamentos:
A propósito do tópico negociações, é oportuno lembrar que os meios trabalhistas encaram com suspicácia a frequência com que as representações patronais se eximem de negociar e aguardam que a Justiça do Trabalho se pronuncie sobre os dissídios. As reiteradas vezes em que as reivindicações dos trabalhadores vêm tendo a sua legalidade impugnada estimulam a suspeita a propósito da imparcialidade da justiça e, sobretudo, da legislação. O apelo sistemático aos tribunais é sintomático da resistência ao diálogo e da aversão ao entendimento. Permanece a impressão de que se cogitou tarde demais na via aberta pela negociação, dando-se tempo e ensejo a que se implantasse um clima de desconfiança entre patrões e trabalhadores. Para anular os efeitos dessa desconfiança, é indispensável que os contatos das representações das duas partes sejam mais frequentes, e que o hábito da negociação se vá estabelecendo gradualmente. É fundamental que a Justiça do Trabalho não aparente estar chamando a si a tarefa de romper o entendimento direto e de bloquear o caminho da ascensão dos trabalhadores (TOSCHI, 1981, pp. 91-92).
É importante ressaltar que as negociações coletivas também faziam parte das reivindicações dos setores sindicais, no entanto, os termos sugeridos pelos empresários pareciam ir de encontro a certos princípios de organização política que ganhavam mais força e visibilidade naqueles últimos anos da ditadura. A análise dos anais do seminário permite que se perceba a presença de alguns destes termos defendidos pelos setores industriais, que se propunham a orientar as propostas de negociação coletiva a partir da formulação de sugestões elaboradas por relatores após os debates dos grupos de trabalho, pleiteando, por exemplo, no relatório sobre o GT II, a despolitização da atividade sindical: “A não vinculação a qualquer atividade político-partidária é essencial à legitimidade da representação sindical” (MANZOLILLO, 1981, p. 105). A demanda pela diminuição da tutela do Estado transmutava-se, também, em um discurso empresarial de contornos liberais que associava regulação estatal a menor liberdade, como afirmava o texto do relator do primeiro grupo de trabalho, Robert N. Danneman, através da seguinte afirmação: “A Negociação, tanto mais livre e direta quanto possível, permitiria o natural estabelecimento de regras de conduta entre as partes, autorregulando e institucionalizando normas que, por sua vez, poderiam vir a dispensar uma interferência maior por parte do Estado” (DANNEMAN, 1981, p. 63, grifos nossos).
No que tange ao uso da mediação e da arbitragem, as intervenções abordaram temas referentes à viabilidade desses processos à luz da legislação vigente à época, ao papel da Justiça do Trabalho e a questão da “tutela” do Estado, entendendo que seriam necessárias mudanças tanto na legislação, quanto nos papéis atribuídos à Justiça do Trabalho e ao Estado para que as práticas de mediação e arbitragem7 ganhassem efetiva aplicabilidade. As duas práticas, ainda assim, foram consideradas úteis, no relatório do Grupo de Trabalho IV (intitulado A Legislação Trabalhista e os Processos de Negociação, Mediação e Arbitragem), como mecanismos “de suplementação da Justiça do Trabalho na mais rápida solução dos conflitos nas relações de trabalho” e “de coerência com as direções de uma abertura democrática e desejosa de redução da tutela do Estado” (AZEVEDO, 1981, p. 220). Diante do exposto, a preocupação em difundir estratégias de negociação coletiva, mediação e arbitragem por parte da CNI parece indicar, como apontado anteriormente, uma tentativa de conduzir “moderadamente” o processo de abertura democrática que então se desdobrava, tentativa esta que, como visto, contava com apoio estatal através do Ministro do Trabalho. Tendo se intensificado nos anos imediatamente posteriores às greves no ABC paulista, e diante da perspectiva de derrocada da ditadura, não parece surpreendente que representantes de algumas das empresas que alcançaram grande dimensão e riqueza sob os governos militares adotassem então um discurso fundado em certas interpretações acerca da “negociação”, da “mediação” e mesmo da “democracia” como forma de contenção das reivindicações que, naquele momento, eram elaboradas por alguns dos setores mais organizados da classe trabalhadora urbano-industrial brasileira. Incorporar os discursos alinhados às “resoluções negociadas”, oriundos de países como os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, foi uma das formas a partir das quais os setores industriais buscaram influenciar as possíveis transformações que a abertura política poderia trazer para o campo das relações de trabalho, particularmente entre os trabalhadores mais articulados das principais áreas de produção industrial, sem que se colocassem em questão os elementos estruturais que reproduziam as amplas desigualdades de classe, as formas de apropriação do território e da propriedade, assim como as relações de dominação que lhes eram largamente favoráveis. Conforme Costa (2005), no entanto, ainda que tenha se renovado por dentro, o chamado “novo sindicalismo” surgido ao final dos anos 1970 não foi capaz de mudar a face extremamente fragmentada da representação sindical no país:
O impulso inicial dos sindicatos mais fortes de expandir conquistas trabalhistas para diversas outras categorias representadas por sindicatos pequenos e fracamente organizados, especialmente no tocante à defesa de reajustes salariais centralizados, foi perdendo fôlego à medida que as empresas recompunham suas políticas de produção e gestão do trabalho e que a economia entrava em trajetória declinante, em relação às acentuadas taxas de crescimento do período do milagre econômico. As greves dos anos de 1980 foram fundamentais para impedir prejuízos maiores quanto ao nível de renda, mas não foram suficientes para incorporar conquistas mais generalizadas no plano da redução das desigualdades sociais e econômicas. Negociações coletivas descentralizadas, reflexo mesmo das delimitações estruturais do sistema de relações de trabalho, impediram uma maior homogeneização das conquistas no que se refere ao nível de emprego e ao padrão de distribuição de renda e bem-estar, o que veio a ampliar a já histórica/estrutural heterogeneidade do mercado de trabalho no país. As centrais sindicais encontraram enormes dificuldades para articular formas de representação política mais amplas, capazes de influir significativamente nas decisões governamentais de política econômica e social, sobretudo no âmbito das políticas redistributivas (COSTA, 2005, pp. 118-119).
Além disso, no quadro brasileiro, dificilmente se poderia falar em um modelo de sociedade salarial nos moldes europeus, pois, como lembra Kowarick (2002), “na acepção forte do termo”, nunca teria havido nenhuma modalidade societária semelhante no Brasil nem em qualquer país da América Latina, na medida em que esta supõe não somente uma força de trabalho em sua maior parte empregada de maneira permanente e regular segundo os pressupostos da legislação vigente, mas também percursos profissionais resguardados por contratos coletivos que conduzam à ascensão social e econômica, ou que ao menos garantam certos direitos aos que forem alijados do mercado de trabalho nessa trajetória. Experiências como as ocorridas no ABC paulista, ainda que bastante significativas e tendo alcançado grande visibilidade política, constituíram-se em casos isolados – “ilhas de modernização econômica e dinamização social – diante do cenário mais amplo das relações de trabalho no país. Não obstante, “essa experiência limitada no tempo e no espaço foi uma espécie de luz para as ações políticas nos seus esforços de ampliar os direitos que permaneciam restritos a um pálido e atrofiado Estado de Bem-Estar” (KOWARICK, 2002, p. 16).
Os anos seguintes, de maneira geral, foram marcados por diversos reveses quantos às possibilidades de ascensão econômica e social das classes trabalhadoras, precarizadas pelos processos que caracterizaram o esgotamento do modelo produtivo fordista, a partir do qual as estratégias de modernização tecnológica, produtiva e organizacional promoveram a eliminação de milhões de postos de trabalho na indústria, alimentada pela “terceirização” e pela “flexibilização” que inaugurariam as novas diretrizes associadas ao modelo de acumulação “pós-fordista” de contornos neoliberais. Enquanto o poder de barganha dos trabalhadores diminuía e as práticas de negociação coletiva se transformavam e se descentralizavam nos países e nos quais haviam se tornado referência, tais como a Grã-Bretanha, Estados Unidos, Itália, entre outros (KATZ, 1993), os modelos de negociação e “resolução” de conflitos por elas estabelecidos acabaram por influenciar as estratégias de “resolução negociada” que se propunham a dirimir os mais diversos tipos de conflito social. A proliferação destas práticas se deu, por sua vez, diante de um contexto de acirramento da conflituosidade social em diversos países centrais e periféricos do capitalismo mundial.
É importante lembrar, todavia, que no campo trabalhista o esforço na incorporação das “soluções negociadas” foi realizado, em anos recentes, por via de iniciativas e campanhas do sistema judiciário brasileiro através da promoção das práticas de conciliação. Em meados de 2006, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) deu início ao chamado “Movimento pela Conciliação”, encetando uma mobilização que resultou no “Dia Nacional pela Conciliação”, ocorrido em 08 de dezembro daquele ano. No ano seguinte foi então realizada a primeira “Semana Nacional pela Conciliação”, entre os dias 03 e 08 de dezembro de 2007, contando com o suporte de todos os tribunais de justiça do país, sob a coordenação do CNJ. O evento se repetiu em 2008 e motivou, em vários estados, um “Dia Estadual da Conciliação” (SOARES; ALEMÃO, 2009). Já Acselrad e Bezerra (2007) recordam que, desde sua criação no ano de 2000, as Comissões de Conciliação Prévia – CCPs (lei 9958/2000) mostraram-se como um dos instrumentos mais proeminentes na flexibilização das leis trabalhistas no país, aparecendo já em seu primeiro ano de vigência, segundo dados da Confederação Nacional da Indústria, em 29,05% das negociações.
Uma CCP é sempre um instrumento potencialmente poderoso para a flexibilização dos direitos trabalhistas, pois pode incidir sobre direitos que, em tese, não poderiam ser objeto de negociação, tais como o 13º salário e as férias, por causa da prerrogativa pró-patronal da quitação prévia. Cabe destacar, porém, o caráter pouco “flexível” com que o expediente da CCP é disseminado: a lei estabelece a obrigatoriedade da busca de conciliação prévia nas empresas ou categorias onde uma CCP já esteja estabelecida. Ou seja, fica vedada ao trabalhador a busca direta, sem passar primeiro pela CCP, por reconstituição de seus direitos junto à Justiça do Trabalho. Cria-se o estranho princípio de se ter a obrigação de negociar (ACSELRAD; BEZERRA, 2007, p. 9).
5. A “resolução negociada”: dos conflitos trabalhistas aos conflitos ambientais
Em artigo de 1986, intitulado The Labor Model for Mediaton and Its Application to the Resolution of Environmental Disputes, Sydney Solberg Lentz, então conferencista na Universidade de Oakland e consultora da seção de desenvolvimento e pesquisa organizacional do grupo de relações industriais da General Motors Corporation, procurou explorar as possibilidades oferecidas pelos modelos de mediação de conflitos trabalhistas na “resolução” de conflitos classificados como ambientais. O papel dos mediadores em disputas trabalhistas, nos Estados Unidos, já se encontrava mais claramente definido do que os de mediadores de outras áreas, uma vez que aqueles atuavam sob procedimentos regulamentados e bem estabelecidos de negociação coletiva:
Durante as últimas décadas, a mediação de tipo trabalhista foi aplicada a conflitos em arenas sociais mais amplas. Isto gerou entusiasmo sobre o potencial da mediação para ajudar a esclarecer questões em conflitos complexos e para fornecer um quadro para as partes que procuram resolver seus próprios conflitos. A mediação tem-se revelado particularmente bem sucedida na resolução de conflitos ambientais, isto é, os conflitos sobre o uso e alocação de recursos ambientais. A mediação de disputas ambientais tem ajudado organizações industriais, grupos de interesse público e agências governamentais em evitar litígios e no desenvolvimento de soluções para conflitos mutuamente acordados e mutuamente satisfatórios (LENTZ, 1986, p. 128).
O modelo de mediação trabalhista teria, porém, que sofrer algumas “adaptações” para que fosse implementado na arena de disputas ambientais, pois na comparação de Lentz – de forte inspiração sistêmica e funcionalista, cabe ressaltar – demonstrada na tabela a seguir com a finalidade de ilustrar o desenvolvimento de alguns dos pressupostos que viriam embasar as práticas mais difundidas de mediação de conflitos ambientais, as duas arenas se distinguiriam pelas seguintes características gerais:
O papel dos mediadores, todavia, guardaria semelhanças aplicáveis a distintas arenas de “tratamento” de conflitos, pois a mediação não exigiria qualquer tipo de expertise nas áreas em que estariam se desenrolando os conflitos, o que o mediador ofereceria seria um processo: “A mediação não tem vida própria; mediadores possuem meramente habilidades relacionadas à resolução de conflitos, não experiência no conteúdo das negociações. As partes em negociação “empoderam” o mediador através de sua necessidade de resolver sua disputa” (LENTZ, 1986, p. 130). Ademais, o mediador não possui autoridade para tomar decisões, apenas teria o objetivo de “persuadir” às partes em conflito a chegarem a uma “solução”, assim como também seria supostamente “imparcial”, sem interesses nos resultados possíveis da negociação (LENTZ, 1986).
Ainda que possam atuar de diferentes maneiras, Lentz atribui aos mediadores algumas funções características, tais como: fornecer um quadro dentro do qual as partes em disputa poderiam expressar com “segurança” as suas preocupações sobre o conflito; prover um canal de comunicação para que os adversários troquem informações; motivar as partes a reconsiderar suas posições originais, baixar as suas expectativas, e considerar as alternativas; oferecer informações e recursos, permitindo que as partes visualizem alternativas para alcançar seus objetivos; sugerir prazos para o fechamento de acordos e mesmo servir de “bode expiatório” quando as partes precisam se reportar às organizações que representam (LENTZ, 1986). Além destas “funções”, Lentz acrescenta outras que seriam necessárias para o uso da mediação na “resolução” de conflitos ambientais, divididas em quatro categorias: os mediadores devem ser capazes de iniciar as negociações; de identificar as partes em disputa, pois diferentemente dos conflitos trabalhistas, os conflitos ambientais podem envolver um número mais amplo e variável das mesmas; identificar também as questões e problemas geradores dos conflitos, que podem ser mais “vagos” e cujas “compensações” podem não estar claras; e, por fim, “facilitar” as negociações através de um conjunto variado de técnicas, já que tais conflitos não teriam procedimentos e estruturas bem definidas em relação aos conflitos trabalhistas (LENTZ, 1986).
Escrevendo em um período no qual os impactos das atividades de grandes empresas sobre o ambiente, tais como a General Motors, eram colocados cada vez mais em questão, o que se percebe através do texto de Lentz é um esforço na utilização do arcabouço oferecido pelas práticas de negociação coletiva no âmbito dos chamados conflitos ambientais. Outros autores fizeram esforços semelhantes durante os anos 1970 e 1980, período que, como visto anteriormente, marca o esforço de poderosas multinacionais em conter as tentativas de maior regulamentação de suas operações através da criação de iniciativas voluntárias e autorreguladas de conduta empresarial.8 Como lembram Acselrad e Bezerra (2007), ao discutir a disseminação de diversas experiências de “resolução” de conflitos ambientais durante a década de 1980 nos EUA: “essas iniciativas passaram a dar substância àquilo que vem sendo chamado, em toda a esfera de vigência da língua inglesa, como sistemas de Environmental Dispute Resolution. A expressão possui, hoje, utilização tão abrangente que é reconhecido por 52 mil páginas eletrônicas quando se faz uma busca9 a partir de um famoso sítio da internet” (ACSELRAD; BEZERRA, 2007, p. 6).
6. A “resolução negociada” como estratégia de dominação
O Grupo Banco Mundial – (GBM) tem sido, há vários anos, um importante ator de difusão dos discursos que pretendem articular os primados do crescimento econômico às práticas aparentemente consideradas como ambientalmente “sustentáveis”, sendo reconhecidamente um protagonista internacional das tecnologias de produção de “consensos” que minimize ou elimine os entraves que projetos e investimentos de grande porte possam enfrentar diante de seus possíveis impactos sobre ambientes e populações:
Pretende-se assim promover uma ação de antecipação, capaz de capturar os movimentos de contestação ao padrão dominante de desenvolvimento no interior do que se tem chamado de “modernização ecológica”, noção que designa o processo pelo qual as instituições políticas internalizam preocupações ecológicas no propósito de conciliar o crescimento econômico com a resolução dos problemas ambientais, dando-se ênfase à adaptação tecnológica, à celebração da economia de mercado, à crença na colaboração e no consenso (ACSELRAD, 2010, p. 107).
O incremento na utilização de mecanismos alternativos para a resolução de conflitos ambientais tem sido discutido pelo GBM há alguns anos, como forma de abordar os problemas gerados pelos projetos que financia e evitar que os mesmos alcancem as vias judiciais. Durante a elaboração de sua “estratégia ambiental”, em 2010, um documento com o título de Environmental and Social Conflict Resolution Mechanisms (WORLD BANK, 2010) defendia uma maior institucionalização interna dos chamados mecanismos de resolução de conflitos sociais e ambientais, ressaltando a necessidade em se tratar todos os conflitos de forma mais breve possível no interior de sua estrutura organizacional, evitando assim interpelações judiciais que possam representar atrasos nos projetos por ele financiados, constituindo-se:
[...] um sistema que ajudaria a medir cuidadosamente o desempenho, neste caso, o número real e a destinação de todas as queixas; a instaurar processos que se adiantem melhor para ajudar a antecipar, prevenir ou evitar problemas desnecessários; a tomar medidas concretas adicionais que se movem em direção a um nível zero de disputas não gerenciadas e tratadas com as comunidades e as partes interessadas afetadas pelos projetos nos quais o Banco se engaja (WORLD BANK, 2010, p. 16, grifos nossos).
Posteriormente, ao lançar a sua “estratégia ambiental” para o período 2012-2022, Toward a Green, Clean, and Resilient World for All, o GBM reafirmaria sua suposta adesão a um “novo tipo de desenvolvimento”, protagonizado em grande medida pelo setor privado e que “dá suporte para o crescimento enquanto se concentra mais na sustentabilidade e assegura que o ambiente é um fator essencial para o crescimento verde, mais inclusivo” (WORLD BANK, 2012, p. 1).
Nos termos da agenda “verde”, uma prioridade-chave é a parceria global Wealth Accounting and Valuation of Ecosystem Services (WAVES) – Serviços de Contabilização e Avaliação da Riqueza dos Ecossistemas –, que apoia os esforços dos países para incorporar o capital natural aos sistemas de contas nacionais; e através da Global Partnership for Oceans – Parceria Global para os Oceanos –, o foco está voltado para o restabelecimento da saúde dos mares e a optimização (sic) de sua contribuição para o crescimento econômico e a segurança alimentar.10
Estes princípios, contudo, são questionáveis não apenas pela adoção dos discursos empresariais que se dão nos moldes da Responsabilidade Social Corporativa e do “ambientalismo empresarial”, discutidos anteriormente neste trabalho, mas principalmente quando se examina o papel que o GBM tem tido na defesa dos interesses e dos investimentos de grandes corporações de mineração, petróleo e gás em alguns países da América Latina a partir de sua principal organização de resolução de conflitos, o International Center for Settlement of Investment Disputes – ICSID (Centro Internacional para a Arbitragem de Disputas sobre Investimentos).
Criado em 1966 através de um tratado multilateral que se propõe a promover acordos via conciliação e arbitragem de disputas internacionais envolvendo investimentos que opõem Estados e investidores no cenário internacional,11 o ICSID tem recebido um número crescente de demandas nos últimos anos provenientes de grandes corporações que desejam evitar os sistemas de justiça nacionais, aproveitando-se dos acordos comerciais multi e bilaterais assinados em anos recentes que preveem a possibilidade de recursos a tribunais internacionais de mediação e arbitragem. Como revela o relatório de Sarah Anderson e Manuel Perez-Rocha, do Institute for Policy Studies, denominado Mining for Profits in International Tribunals (2013), até março de 2013 existiam 169 casos de investidores contra Estados pendentes no ICSID, dos quais 60 (35,7%) estavam relacionados com petróleo, mineração, ou gás. O crescimento das ações é evidente, pois no ano 2000 apenas três casos desta natureza estavam pendentes no tribunal arbitral e, só em 2012, 48 casos foram apresentados no ICSID. Destes, 17 (35,45%) relacionadas com indústrias extrativas, todos direcionados contra “países em desenvolvimento”. Durante toda a década de 1980 e 1990 houve apenas sete destes casos apresentados ao ICSID (ANDERSON; PEREZ-ROCHA, 2013).
Em outubro de 2012, o Equador foi condenado pelo ICSID a pagar US$1,7 bilhão mais juros à empresa estadunidense Occidental Petroleum Corporation (Oxy) por ter cancelado seu contrato operacional em 2006. A empresa apresentou a reclamação no âmbito do Tratado bilateral EUA-Equador, ainda em 2006, depois que o Equador acusou a Oxy de transferir indevidamente uma parte de sua produção no país para uma empresa canadense, o que ocasionou o referido cancelamento do contrato (ANDERSON; PEREZ-ROCHA, 2013). Anteriormente, em junho de 2009, a transnacional mineradora Pacific Rim, com sede no Canadá, processou El Salvador por não autorizar uma licença de extração depois que a empresa supostamente investiu milhões na exploração da mina de El Dorado, na província nordeste de Cabañas. A empresa anunciou, em 2013, que pediria US$ 315 milhões ao governo daquele país (ANDERSON; PEREZ-ROCHA, 2013).
Em abril de 2014, mais de 300 organizações nacionais e internacionais da sociedade civil escreveram ao presidente do Banco Mundial, Jim Yong Kim, durante a sua reunião bianual em Washington, denunciando o envolvimento do banco no caso da Pacific Rim contra El Salvador. O governo salvadorenho afirmou que a empresa não conseguiu seguir os protocolos adequados para a emissão de uma licença, não possuía título para grande parte das terras consideradas para o projeto de mineração, não conseguiu garantir as autorizações ambientais adequadas e nunca chegou a apresentar o estudo de viabilidade final. Apesar do grande interesse nacional no conflito, a Pacific Rim não permitiu que os tribunais nacionais julgassem o caso, tendo apresentado, ao invés disso, a sua reclamação no tribunal de proteção dos investidores do Banco Mundial, o ICSID. Organizações trabalhistas, populares e de direitos humanos argumentaram ser inapropriado para o Banco Mundial, cuja missão é teoricamente aliviar a pobreza, presidir conflitos que ameaçam a autodeterminação dos países, detacando que a Pacific Rim estaria usando o mecanismo de arbitragem do Banco para subverter a governança local sobre questões críticas para o bem-estar das comunidades pobres. O Banco Mundial afirma oferecer um mecanismo de resolução de disputas neutro e de baixo custo que é inteiramente consensual, entretanto, mandatos de arbitragem construídos nos acordos comerciais e de investimento obrigam os países empobrecidos a submeter-se a sua jurisdição. A remoção, promovida pelo GBM, dos controles populares e nacionais sobre projetos locais, longe de atenuar a pobreza, ameaça as comunidades marginalizadas que são as mais frequentemente afetadas por projetos extrativistas. (CARASIK, 2014).
7. Considerações Finais
O objetivo deste trabalho foi explorar, através da análise das estratégias de “resolução negociada de conflitos”, as contradições presentes nos discursos e nas práticas empresariais quando confrontados por situações que possam representar ameaças aos seus lucros e/ou às suas formas de operação. A presença frequente de um tom conciliatório que afirma o “consenso”, a “negociação”, “a conduta ética”, o envolvimento das “partes interessadas” ou a “responsabilidade social”, tende a dissimular métodos que visam assegurar a continuidade dos primados corporativos de maximização do poder e da lucratividade e influenciar os meios de organização popular. Como visto, os esforços em evitar-se um maior controle sobre as atividades empresariais concentraram-se em legitimar as “vantagens” das “condutas voluntárias” e “socialmente responsáveis”. O desenvolvimento de iniciativas de “antecipação” da contestabilidade social procura conter as possibilidades de conflito geradas pelos danos sanitários e ambientais provocados por empresas que, não obstante, também podem recorrer às técnicas de “resolução negociada de conflitos ambientais” para perenizar sua atuação. Ao realizar-se, portanto, uma análise mais detida sobre tais pressupostos que têm orientado os procedimentos empresariais sob o capitalismo contemporâneo, é possível perceber que seus principais resultados se encontram na manutenção das relações hierárquicas de poder, riqueza e dominação.
Notas
1 O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – Brasil.
2 Caso em que foram reveladas as precárias condições de trabalho e os salários irrisórios recebidos por trabalhadores haitianos na fabricação de produtos para a companhia Disney naquele país. Ver http://www.globallabourrights.org/alerts/disney-in-haiti-are-human-rights-campaigns-necessary.
3 Ver também http://www.foxnews.com/us/2012/01/13/mercedes-benz-apologizes-for-use-che-guevara-photo-to-promote-its-vehicles.html.
4 Traduzida como “negociação coletiva”.
5 Klare (1981) também destaca que a literatura crítica à legislação sobre negociações coletivas nos Estados Unidos se caracterizava, até os anos 1980, por dois temas bastante comuns: Em primeiro lugar, o entendimento de que a legislação sobre negociação coletiva articula uma ideologia que tem como objetivo legitimar e justificar a hierarquia e dominação, desnecessária e destrutiva, no local de trabalho; já o segundo tema percebe que tal legislação desenvolveu uma arquitetura institucional, um conjunto de disposições legais e gerenciais, que reforçam essa hierarquia e dominação. Compreendidas como componentes de políticas públicas, os dois objetivos centrais das leis de negociação coletiva – NC seriam, portanto, integrar o movimento operário às políticas dominantes de “grupos de pressão” – que se contrapõem apenas sobre questões de distribuição no âmbito econômico – e assim institucionalizar, regulamentar e atenuar o conflito industrial. Por outro lado, percebidas como um componente da prática gerencial, as leis de negociação coletiva procuram formalizar a resolução de conflitos industriais e, assim, reforçar o controle gerencial sobre os objetivos da empresa e sobre a direção do processo de trabalho (KLARE, 1981).
6 Norberto Odebrecht, presidente da construtora que leva seu nome, diria posteriormente ao coordenar o Grupo de Trabalho IV, dedicado à legislação trabalhista e aos processos de negociação, mediação e arbitragem que “é indicado que se ultrapasse com êxito a fase da mútua comunicação e da negociação buscando sempre lograr, nas novas combinações, resultados tendentes ao aumento da produtividade, único meio propício para garantir a participação crescente de todos os envolvidos no processo produtivo nos respectivos resultados” (ODEBRECHT, 1981, p. 198). Nesse aspecto, Burton (1998) assinala o pioneirismo dos departamentos de Relações Industriais norte-americanos no âmbito das abordagens acerca da “resolução de conflitos” que vieram a influenciar o mainstream da chamada Conflict Theory, ao terem apontado para a “necessidade de interação” entre a administração das empresas e os trabalhadores se se desejasse incrementar a cooperação e aumentar a produtividade. Tais abordagens teriam coincidido com os trabalhos da denominada “teoria de tomada de decisão” (decision-making theory), que chamou a atenção para as vantagens dos processos de feed-back, ao invés da utilização do “poder sem ressalvas” e das abordagens hierárquicas nos procedimentos decisórios (BURTON, 1998).
7 Vale lembrar que o Brasil veio a aprovar uma lei de arbitragem em 1996 (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9307.htm).
8 Trabalhos como os de Susskind e Weinstein (1980), referência entre os pesquisadores e adeptos da área, se propuseram inclusive a identificar as “qualidades únicas” dos conflitos ambientais, tais como as referidas acima, para enquadrar as técnicas de produção de “consenso”, particularmente a mediação, em uma espécie de “teoria da resolução” para as disputas desse tipo. Susskind também coordenou um amplo projeto financiado pela Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos, no início dos anos 1980, que visava reduzir a quantidade de processos judiciais sobre conflitos ambientais e estimular o uso das estratégias de Alternative Dispute Resolution – ADR (BACOW; WHEELER, 1984).
9 Com o uso de aspas, apenas para os resultados cujo termo aparece completo (ACSELRAD e BEZERRA, 2007).
10 Grupo do Banco Mundial Revela Novo Enfoque ao Desenvolvimento “Verde, Limpo e Resiliente”. Comunicado à Imprensa 05/06/2012. (http://www.worldbank.org/pt/news/press-release/2012/06/05/world-bank-group-unveils-new-focus-on-green-clean-resilient-development).
11 https://icsid.worldbank.org/apps/ICSIDWEB/about/Pages/default.aspx.
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