Experiências de cooperação interfederativa no Brasil. Reflexões a partir de um estudo comparativo de consórcios intermunicipais de saneamento básico


Antonella Maiello
Professora Adjunta do Programa em Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR) da UFRJ

Ana Lucia Nogueira de Paiva Britto
Doutora em Urbanismo pelo Institut D'Urbanisme de Paris - Université de Paris XII (Paris-Val-de-Marne); Professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e do Programa de Pós-graduação em Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Yasmim Ribeiro Mello
Doutora em Urbanismo (PROURB-FAU), Universidade Federal do Rio de Janeiro

Paula Sousa de Oliveira Barbosa
Mestre em Urbanismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (PROURB/UFRJ). Pesquisadora do Laboratório de Estudos de Águas em Áreas Urbanas (LEAU/PROURB/UFRJ)

1. Introdução

No Brasil 70% dos municípios têm menos de 20 mil habitantes, totalizando, segundo o Censo do IBGE de 2010, 33.618.857. Na faixa entre 20 mil e 50 habitantes temos mais 963 municípios e aproximadamente 29 milhões de habitantes. Muitos desses municípios não têm condições técnicas e financeiras para exercer as funções que lhes foram atribuídas no processo descentralizador iniciado pós Constituição de 1988. Se por um lado, o caráter descentralizador da Constituição é indiscutível, por outro, ela acabou deixando muitas sobreposições na execução das decisões, definindo como competências ‘comuns’ entre as três instâncias federativas funções governamentais em várias áreas de políticas públicas (Art., 23). Contudo, na maioria das vezes é para o município que se voltam as expectativas em relação ao provimento de serviços públicos. São aos governos municipais que se dirigem as demandas dos cidadãos por uma vida mais digna, pois a oferta de serviços públicos de qualidade é fundamental para a redução da pobreza e das desigualdades sociais. Entretanto, determinadas políticas públicas, voltadas para alguns tipos de serviços públicos, não encontram nos limites territoriais municipais possibilidades de execução satisfatória.

A questão da descentralização dentro do sistema federativo brasileiro é complexa, e não cabe neste artigo aprofundar esse tema. Contudo, como assinalam Abrucio e Soares (2001) e Arretche (1996) a elevação dos padrões de eficácia e eficiência e a inovação governamental não são alcançadas naturalmente pela descentralização, entendida como transferência de responsabilidades aos governos municipais. Os autores argumentam que isso vai ocorrer em função de três fatores: modernização dos governos locais em termos administrativos, que depende, em muitos casos, de assistência das instâncias superiores de governo; da garantia de recursos financeiros suficientes para a realização das políticas públicas sob sua responsabilidade; da própria democratização política, como fator fundamental para a melhoria da ação estatal (ABRUCIO; SOARES, 2001, p. 29).

Se no Brasil de hoje a democratização política é incontestável, os outros dois fatores supracitados, modernização administrativa e disponibilidade adequada de recursos financeiros, ainda não são encontrados no conjunto do território nacional. Para muitos municípios faltam recursos financeiros; os municípios pequenos dependem, na maioria dos casos, quase que exclusivamente, das transferências federais, pois possuem limitada capacidade de geração de receita própria. A falta de recursos financeiros tem como um dos seus corolários a frágil capacidade técnica e institucional para cumprir, com eficiência e eficácia, as funções que lhes foram atribuídas. Nesses casos, a instituição da cooperação entre municípios é condição para que a política pública exista. Estudos de política local destacam que: “A constatação de que os municípios sozinhos não conseguem formular e implementar todas as políticas públicas os tem conduzido a buscar soluções cooperativas, especialmente por meio de consórcios” (ABRUCIO; FILIPPIM; DIEGUEZ, 2013, p. 1546.).

No âmbito dos serviços de saneamento básico essa afirmativa se confirma. Os municípios que optaram por assumir a gestão dos serviços, através de serviços municipais, encontram inúmeras dificuldades em assumir as competências a eles atribuídas pela Lei nº 11.445/2007, que estabelece diretrizes nacionais para o saneamento básico. Contudo, a mesma lei aponta a cooperação interfederativa e a gestão associada como uma alternativa para enfrentar o problema. No que diz respeito ao saneamento básico, e particularmente aos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário, a implementação de programas e desenvolvimento de projetos, e mesmo diferentes dimensões da gestão de serviços (planejamento, regulação, fiscalização e prestação) podem vir a ser feitas de forma consorciada. A Lei nº 11.445/2007 permite ao município, através do arranjo de colaboração federativa, articular-se formalmente com outros municípios (e, eventualmente, com o estado) para exercer consorciadamente determinadas competências, sejam as de natureza indelegável, sejam aquelas delegáveis nos termos do art. 8° da referida Lei.

Dentro desse quadro, favorável à formação de consórcios públicos para apoiar a gestão dos serviços de saneamento básico, este trabalho apresenta parte dos resultados de pesquisa financiada com recursos da FUNASA (Fundação Nacional de Saúde) e do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e voltada para a definição do estado da arte dos consórcios intermunicipais de saneamento no Brasil e a análise de casos de estudos selecionados.

O artigo proporciona uma comparação entre quatro casos de estudo, que representam uma subseleção da pesquisa geral, no intuito de identificar, mediante a descrição e a análise dos processos de constituição e funcionamento do consórcio, as alavancas que permitem a sustentabilidade no tempo das experiências consorciadas. 

O texto é organizado em quatro seções: o enquadramento teórico e conceitual; a descrição da metodologia; a apresentação dos casos de estudo; uma seção de conclusões que discute e problematiza as evidências da análise. 

2. Federalismo e cooperação intergovernamental: quadro teórico e conceitual

O conceito de federalismo remonta à época tardia do Império Romano, sendo relacionado à palavra latina foedus, ou seja ‘pacto’ (RODDEN, 2004). Segundo Rodden, os pactos e os contratos são relacionamentos formais caracterizados por ‘reciprocidade’, i.e. cada uma das partes envolvidas compromete-se a preencher obrigações para o outro. Qualquer forma de federalismo vem de fato dessa premissa lógica. Trata-se de uma forma de estado cujo funcionamento envolve, pelo menos algum subconjunto das atividades do governo central, um processo decisório baseado na cooperação ativa das unidades subnacionais.

Segundo Burgess, é possível identificar duas causas principais, mas necessariamente concomitantes, para o surgimento do federalismo: a ‘heterogeneidade’ entre as diferentes entidades territoriais, como disparidades socioeconômicas, diferenças étnicas, linguísticas e culturais, bem como políticas, entre as demais regiões e sub-regiões de um país (BURGESS, 1993); e a ‘unidade’, ou seja, a vontade e o ideal de um estado unitário que, apesar das diferenças, encontra as motivações para constituir-se e reconhecer-se em uma única supraentidade estadual e governamental (Ibid., apud ABRÚCIO; FRANZESE, 2007, p. 2). 

O federalismo brasileiro surgiu no molde do modelo federal estadunidense (Abrucio; Franzese, 2007). Entretanto, há substanciais diferenças entre os dois contextos estaduais, a partir de sua gênese para acabar com seus atuais mecanismos de governo. Para começar, conforme evidenciado por Abrúcio e Franzese (Ibid.), os EUA nasceram mediante um processo de unificação impulsionado por colônias separadas e independentes entre elas. Ao contrário, o Brasil surgiu como estado unitário e, ao criar um estado federal, ocorreu, em verdade, um processo de descentralização. 

Para Abrúcio e Franzese (Ibid.) a própria gênese do estado federal brasileiro fez com que o conceito de federalismo se tornasse sinônimo de descentralização. Por vez, o conceito de descentralização, associado ao fim da ditadura, e reforçado com a Constituição de 1988, tornou-se sinônimo de democratização. Entretanto, como vários estudos destacam (MELO, 1996; ABRUCIO; COSTA, 1999; SOUZA, 2005; ABRUCIO; FRANZESE, 2007), nem sempre a descentralização de poderes, ainda que fortalecendo a autonomia dos governos locais, tem trazido práticas de governo mais democráticas e políticas públicas mais igualitárias ao nível local. 

A Constituição de 1988 traz sobreposições na execução das decisões nas seguintes áreas de políticas públicas: conservação do patrimônio público; saúde e assistência social; acesso à cultura e educação; proteção ao meio ambiente; fomento à produção agropecuária e ao abastecimento alimentar; moradia e saneamento básico; combate às causas da pobreza; e política de educação para a segurança no trânsito (Art. 23 da Constituição). Isso tem de fato deixado um vazio estrutural ao nível da organização dos poderes e das funções de governo que, na descontinuidade administrativa da política, nunca foi enfrentado. Nesse vazio as responsabilidades de cada nível federal não estão claras, o que permite que cada esfera de governo, dependendo da contingência político-econômica, pode culpar a outra por problemas e lacunas, desorientando o cidadão que não sabe (nem poderia saber) quem cobrar pelo desserviço do dia a dia (ABRUCIO; FRANZESE, Ibid., p. 15). 

Fora isso, a falta de definição das atribuições de funções e responsabilidades, em uma carta constitucional como aquela brasileira, voltada para proporcionar regras e não apenas princípios (ABRUCIO; FRANZESE, 2007; ARRETCHE, 2013), tem deixado a iniciativa política aos três níveis de governo sem obrigação de coordenação, levando a ações e programas de políticas públicas duplicados, quando não conflitantes, com consequente desperdício de recursos públicos, que, por sua própria natureza, são escassos. 

No quadro complexo do federalismo brasileiro, onde existe dificuldade de coordenação interfederativa, os consórcios podem vir a cumprir esse papel. Ribeiro (2006) define os consórcios públicos, objeto desse artigo, como instrumentos de construção de uma política pública em bases regionalizadas, isto é, em escalas regional e supramunicipal.

3. Os consórcios no Brasil: quadro institucional e legislativo 

A Lei de Consórcios (Lei 11.107, 2005), regulamentada pelo Decreto nº 6.017, de 17 de janeiro de 2007, tem como objetivo proporcionar a segurança político-institucional necessária para o estabelecimento de estruturas de cooperação intermunicipal, inclusive interfederativa, e solucionar impasses na estrutura jurídico-administrativa dos consórcios. 

Os consórcios, nos termos da Lei nº 11.107/2005, são parcerias entre dois ou mais entes da federação, para a realização de objetivos comuns, em qualquer área; são pessoas jurídicas, que podem assumir a personalidade de direito privado ou de direito público. Os primeiros são associações civis e possuem um regime jurídico híbrido. Os segundos são autarquias de caráter especial e submetem-se às regras de direito público em geral. A Lei nº 11.107/2005 traz várias formas possíveis de cooperação entre entes públicos: Consórcios entre Municípios, Consórcios entre Estados, Consórcios entre Estado(s) e Distrito Federal, Consórcios entre Município(s) e Distrito Federal, Consórcios entre Estado(s) e Município(s), Consórcios entre Estado(s), Distrito Federal e Município(s), Consórcios entre União e Estado(s), Consórcios entre União e Distrito Federal, Consórcios entre União, Estado(s) e Município(s), Consórcios entre União, Estado(s), Distrito Federal e Município(s).

A Lei de Consórcios e seu decreto de regulamentação trazem novas perspectivas para a gestão de serviços públicos, disciplinando o modelo do consórcio como alternativa de gestão. Nesse sentido, a prestação de serviço público em regime de gestão associada é definida especificamente pelo Decreto nº 6.017/2007 (inciso XIII do art. 2º) como: 

[...] a execução, por meio de cooperação federativa, de toda e qualquer atividade ou obra, com o objetivo de permitir, aos usuários, o acesso a um serviço público com características e padrões de qualidade determinados pela regulação ou pelo contrato de programa, inclusive quando operada por transferência total ou parcial de encargos, serviços, pessoal e bens essenciais à continuidade dos serviços transferidos [...]. 

Desse modo, no âmbito da gestão associada, é possível viabilizar, entre outros, o arranjo que permite que municípios se articulem voluntariamente em órgão público intermunicipal de caráter autárquico (consórcio público de direito público) com capacidade de planejar, regular, fiscalizar e prestar diretamente ou delegar e contratar conjuntamente serviços públicos de sua competência.

O primeiro passo para viabilizar a cooperação entre municípios, na gestão de serviços públicos de saneamento, é a celebração de um protocolo de intenções, de acordo com o artigo 3o da Lei nº 11.107/2005. O protocolo de intenções se constitui, nos termos do art. 2º do Decreto nº 6.017/2007, no “contrato preliminar que, ratificado pelos entes da Federação interessados, converte-se em contrato de consórcio público”. Ele define, conforme os pontos de I a XIII do artigo 5o do Decreto nº 6017/2007, todas as condições e os critérios que moldam a estrutura federativa, a partir da finalidade e do âmbito, ou âmbitos, de atuação, até a natureza (i.e. pública ou privada) do consórcio, a composição dos órgãos colegiados e o processo de tomada de decisão (i.e. modalidade de votação, número de votos por cada membro). A ratificação do protocolo se efetua por meio de lei, na qual cada legislativo aprova o protocolo de intenções. No entanto, caso previsto, o consórcio público pode ser constituído sem que seja necessária a ratificação do contrato por todos os que assinaram o protocolo. Por exemplo, se um protocolo de intenções foi assinado por cinco municípios, pode-se prever que o consórcio público será constituído com a ratificação de apenas três municípios.

Os recursos para os consórcios podem advir de receitas próprias, obtidas com suas atividades, ou oriundas das contribuições dos municípios integrantes. A contribuição financeira dos municípios pode variar em função da receita municipal, da população, do uso dos serviços e bens do consórcio ou por outro critério julgado conveniente, sempre a partir da discussão entre os entes consorciados. De qualquer forma, os critérios que definem a contribuição financeira devem estar explicitados no estatuto do consórcio, que define a forma de contrato de rateio.

Com relação ao âmbito de atuação do consórcio, o artigo 3º, inciso XIII § 1o do Decreto 6017/2007 estabelece que “os consórcios públicos poderão ter um ou mais objetivos e os entes [...] poderão se consorciar em relação a todos ou apenas a parcela deles”. O Decreto, nesse ponto, refere-se ao conjunto de ações e serviços de competência das políticas públicas. 

No que diz respeito ao saneamento, a Lei n° 11.445/2007 permite ao município, através do arranjo de colaboração federativa, articular-se formalmente com outros municípios (e, eventualmente, com o estado) para exercer consorciadamente determinadas funções como o planejamento, a regulação e fiscalização dos serviços públicos de saneamento básico, no território que integra o consórcio. 

4. Metodologia 

Tratando-se de um estudo que é parte de uma pesquisa exploratória, i.e. voltada, antes de tudo, à observação e ao enquadramento de um fenômeno sobre o qual o conhecimento é ainda incipiente (FLYVBJERG, 2006), foi escolhida como metodologia aquela dos estudos de caso, na sua vertente de casos de estudos múltiplos (YIN, 2013). Dentro do levantamento amplo das experiências de consórcios de saneamento básico no Brasil realizado para a pesquisa da FUNASA, foram selecionados quatro casos de estudo (ver Seção 5). Tendo em vista os objetivos deste artigo, foram identificadas duas dimensões de análise: 1) descrição e 2) comparação. Para satisfazer a primeira dimensão de análise, voltada para a exploração do tema e então para identificação de casos relevantes, foram adotados os seguintes critérios para a seleção: (i) âmbito de intervenção, i.e. saneamento básico, considerando apenas instâncias que tenham atuação nos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário; (ii) duração da experiência no tempo, identificada a partir da data de criação e tempo de funcionamento, o que, em princípio, é um indicativo de sustentabilidade da experiência; (iii) resultados já obtidos no apoio aos serviços municipais de saneamento básico, nos setores de abastecimento de água e esgotamento sanitário Com base nesses critérios foram selecionados três dos quatro casos de estudo. Para dimensão comparativa adotou-se como critério de seleção a dinâmica do processo, i.e. de baixo pra cima (bottom-up) e de cima pra baixo (top-down). Sendo os três casos já selecionados todos de tipo bottom-up, a quarta experiência, do CORESA Sul (Consórcio Regional de Saneamento do Sul do estado do Piauí) foi selecionada por ser uma iniciativa de tipo top-down.

Os estudos dos três primeiros casos foram baseados em material documental (protocolo de intenções, estatuto, atas e relatórios anuais) e também em materiais de campo coletados mediante as seguintes técnicas: visitas às áreas dos consórcios, observações participantes nas reuniões e entrevistas com membros do corpo técnico-administrativo dos consórcios. Já a análise do CORESA Sul foi baseada exclusivamente em análise documental, tomando material de estudo documentos oficiais e pesquisas pregressas.1 

5. Estudos de Caso

5.1. Consórcio Intermunicipal de Saneamento Básico da Zona da Mata de Minas Gerais, CISAB 

O Consórcio Intermunicipal de Saneamento Básico da Zona da Mata (CISAB Zona da Mata) localiza-se no estado de Minas de Gerais, na região homônima, entre as Serras da Mantiqueira, do Caparaó e da Piedade. Integram o consórcio 25 municípios, cuja sede fica no município de Viçosa. Estes municípios, prevalentemente de pequeno porte, somam uma população de aproximadamente 550 mil habitantes, sendo a maioria (74%) urbana. Como pode ser verificada na Figura 1, a área de abrangência do consórcio é descontinua, visto que há municípios localizados a uma distância de 250 km do município sede (Figura 1). 

O CISAB tem como objetivo principal o apoio à prestação de serviços de saneamento básico nos municípios consorciados, como através da capacitação técnica do pessoal ou auxílio operacional. O consórcio adota como princípio que, havendo economia de escala, o máximo da gestão do serviço deve permanecer no próprio Município, pelas autarquias, fortalecendo em Minas Gerais esse modelo de gestão.

Figura 1 – Municípios participantes do CISAB Zona da Mata


Fonte: Mapas CISAB – Elaboração própria.

a) Atores envolvidos no processo de constituição e dinâmica relacional

No processo de constituição do CISAB dois atores se destacam: a Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) e os técnicos dos SAAEs (Serviços Autônomos de Água e Esgoto) dos municípios consorciados. O apoio da FUNASA foi decisivo, visto que a Fundação convocou e fomentou a criação do consórcio. A relação entre a FUNASA e os municípios do consórcio para a criação do CISAB tem início ainda na década de 1990, a partir de reuniões que buscavam estruturar e discutir tanto o orçamento, como formas de gestão associada dos serviços de saneamento básico. 

Os municípios do CISAB assumiram a gestão dos serviços de saneamento básico, em grande medida graças à cooperação da União, prestada por intermédio do então Serviço Especial de Saúde Pública (Sesp), hoje FUNASA. São, em maioria, municípios que resistiram ao modelo centralizador do Planasa (Plano Nacional de Saneamento). De maneira geral, tais serviços são organizados sob a forma de autarquia municipal e, comumente, denominados como Serviço Autônomo de Água e Esgoto (SAAE). Conforme indicado no Protocolo de Intenções do Consórcio, os municípios do CISAB apresentam um traço comum, que vai além da circunstância de possuírem ou desejarem possuir serviços próprios de saneamento, mas o fato de terem compartilhado a luta da defesa da autonomia municipal e do saneamento básico como um serviço público essencial. 

Conforme relato em entrevista com a superintendente, Tânia Duarte, a FUNASA fez uma convocação tanto aos municípios que tinham SAAEs, como àqueles que não possuíam esse modelo de serviço. Já os municípios que tinham os serviços de saneamento geridos por concessão do Estado foram excluídos. A entrevistada ressalta que, inicialmente, os prefeitos não foram os mais interessados na constituição do consórcio, mas sim os técnicos dos SAAEs dos municípios envolvidos. De fato, a dedicação dos técnicos foi central na constituição do Consórcio, pois é a partir do comprometimento dessa categoria, a qual em 2004 assumiu a promoção e o acompanhamento das reuniões intermunicipais aviadas pela FUNASA, que os municípios se articularam em associação, surgindo a proposta de formação do Consórcio Intermunicipal de Saneamento Básico da Zona da Mata. A coesão entre os técnicos trouxe o envolvimento dos prefeitos, levando à assinatura do protocolo em 2007 e à constituição do consórcio em 2008. 

Como fora exposto pela superintendente, em entrevista, o processo de constituição do consórcio e elaboração do Protocolo foi longo, com muitas reuniões durante os finais de semana, para chegar-se a este objetivo final, em 2008: 

No início da criação do consórcio, foi a gente que correu atrás, era uma equipe e a gente já sabia quais eram os municípios (nós que já éramos administradores de autarquias). [...] O Protocolo de Intenções é fruto de um trabalho em conjunto dos serviços municipais. [...] Nós elencamos aquilo que era propício para os serviços municipais e pensamos qual seria a nossa demanda. São muitos municípios que foram elencados no Protocolo do CISAB, com realidades distintas, [...]. Por isso a importância em fazermos todo esse trabalho de elencar as demandas.

O processo de criação do consórcio deu-se de maneira interna, fruto de um trabalho de uma equipe, enfrentando dificuldades como o desinteresse inicial dos prefeitos, questões de gestão financeira e descontinuidade política (e.g. mudança de prefeito). É importante destacar que o CISAB tem um papel importante na defesa da gestão pública municipal em contraponto ao modelo de concessão a companhia estadual, COPASA. Ter seu serviço na forma de gestão municipal é condição para adesão ao CISAB; o consórcio orienta e estimula outras experiências de consorciamento no mesmo formato entre os municípios de Minas Gerais.

b) Aspectos financeiros e contratuais

A estrutura do contrato de rateio é definida e votada em assembleia. O contrato determina que as contribuições financeiras serão estipuladas com base no número de ligações de água existentes em cada município, que é levantado pela comissão de orçamento do CISAB.

c) Atuação e sustentabilidade no tempo

O levantamento das atividades desenvolvidas pelo CISAB Zona da Mata deu-se através da leitura das atas, fruto das assembleias e divulgadas no próprio sítio eletrônico do consórcio. Outras fontes de informações foram as reportagens divulgadas tanto no site do consórcio, como no site do Serviço Autônomo de Água e Esgoto de Viçosa-MG (SAAE-Viçosa) e as entrevistas realizadas em visita ao CISAB.

Atualmente, as atividades realizadas pelo CISAB são: análises laboratoriais de controle e monitoramento da qualidade da água; cursos de capacitação técnica e de Saneamento Básico (PMSB) aos municípios do consórcio que manifestarem interesse em apoio administrativo; compras coletivas com redução de custos para os SAAEs elaboração de concursos para funcionários dos SAAE’s; auxílio na elaboração dos Planos Municipais de Saneamento, atividade que conta com o apoio da FUNASA e é financiada a partir de recursos de cobrança da água da Agência de Bacia Hidrográfica do Rio Doce (IBIO – AGB Doce); elaboração do Plano Municipal de Saneamento compartilhado; promoção de seminários com os gestores municipais e técnicos dos serviços de saneamento e licitações compartilhadas, tais como, compra de material laboratorial e equipamentos. Além disso, o consórcio tem papel central no apoio a outras iniciativas de cooperação intermunicipal em Minas Gerais.

5.2. Consórcio Intermunicipal de Saneamento do Paraná, CISMAE/CISPAR 

Formado atualmente por 42 municípios, o CISPAR é o resultado da decisão de dois consórcios, o CISMAE (Consórcio Intermunicipal de Saneamento do Paraná), que reunia 31 municípios da região Noroeste e Norte Central do Paraná e o CISMASA (Consórcio Intermunicipal dos Serviços Municipais de Saneamento Ambiental do Norte do Paraná) que reunia 9 municípios da região Norte do Paraná que se fundiram. Seu objetivo é prestar serviços de apoio aos SAAEs dos municípios consorciados, além de atuar na regulação e na fiscalização. Os municípios que compõem o CISPAR somam uma população de aproximadamente 346 mil habitantes, sendo que 84% desta concentram-se nas áreas urbanas. Ainda assim, a maior parte dos consorciados possui menos de 10 mil habitantes. O CISMAE, predecessor do CISPAR, foi fundado em 2001, ao longo de sua ação assumiu a forma de consórcio público, tendo agregado, paulatinamente, um número cada vez maior de municípios, atuando no apoio à prestação dos serviços nos municípios consorciados. 

O CISMASA Consórcio Intermunicipal dos Serviços Municipais de Saneamento Ambiental do Norte do Paraná, que se fundiu ao CISMAE, foi instituído em 22 de fevereiro de 2006, e em 28 de agosto foi aprovada a sua instituição em consórcio público de direito público, na forma da Lei n. 11.107/2005. Sua organização foi inspirada na experiência do CISMAE.

Figura 2 – Municípios participantes do CISPAR


Fonte: Base das malhas municipal e estadual: IBGE, 2010.

A fusão dos dois consórcios deu-se da seguinte forma: o CISPAR – Consórcio Intermunicipal de Saneamento do Paraná foi constituído sob a forma de consórcio público, com personalidade jurídica de direito público, sob a forma de associação pública e natureza autárquica, sendo sucessor do CISMAE. O CISMASA ficou automaticamente extinto diante da ratificação por todos os municípios nele consorciados do contrato de consórcio publico e do estatuto do CISPAR.

a) Atores envolvidos no processo de constituição e dinâmica relacional

O CISMAE, consórcio maior que deu origem ao CISPAR, e protagonizou o processo de fusão, foi criado em 2001, a partir da experiência de consorciamento oriunda do SUS, no âmbito da Lei Federal nº 8.080/90. Inicialmente, e conforme a própria ata da reunião de fundação da entidade, a cooperação teve por objetivo a realização de análises de água no laboratório da FUNASA. Existia um laboratório instalado no município de Maringá que atendia os SMAEs e as comunidades indígenas. As autarquias, não possuíam laboratórios individualizados e usavam esse laboratório. Uma entrevista com um dos coordenadores do consórcio permite entender o papel dos administradores locais, como os prefeitos na articulação desse consórcio.

Na época, com medo de perder esse laboratório para a Secretaria de Estado de Saúde, ou para um atendimento exclusivo às comunidades indígenas, pensamos uma forma de manter esse laboratório conosco, a gente pensou em associação, cooperativas, pensou em várias coisas, até que chegamos ao consenso de criar um consórcio privado na época com base do que já existia na saúde, dentro da Lei nº 8.080. [...] A gente conseguiu criar esse consórcio, fazer convênio com a FUNASA e assumir esse laboratório. Na verdade, a gente já assumia em parte, ajudava com algumas despesas com reagentes [...]. Começamos com laboratório pequeno, com análises bacteriológicas de água e daí foi crescendo; não paramos mais (Entrevista com Arildo Aparecido de Camargo, coordenador geral do CISMAE).

Em função da necessidade, a partir da Lei nº 11.107, de 6 de abril de 2005, e visando a continuidade desse processo de cooperação, os municípios consorciados, deliberaram pela transformação do CISMAE/PR em consórcio público de direito privado em 2005. De acordo com o Sr. Arildo Camargo (coordenador geral do CISMAE), o modelo de consórcio adotado seria baseado no que já existia na área de saúde, seguindo a Lei Federal nº 8.080/1990.

Com a edição do Decreto Federal nº 6.017, de 17 de janeiro de 2007, que regulamenta a Lei n nº 11.107/ 2005, dispondo sobre normas gerais de contratação de consórcios públicos, houve a previsão, em seu art. 39, caput, de que a União, a partir de 1o de janeiro de 2008, somente celebrara´ convênio com consórcios constituídos sob a forma de associação pública. Foi essa a razão que levou o CISMAE a mudar seu estatuto. Segundo a entrevista realizada também houve incentivos da FUNASA para essa mudança. 

Nós fizemos todo o processo, mas chegou no final não tinha dotação orçamentária na contabilidade da União. Nós poderíamos perder recursos de R$ 1.800.000,00 para compra de equipamentos para esse laboratório que hoje é de alta complexidade, e aí o que a gente fez foi usar um plano B: [...] fizemos convênio de R$ 1.800.000,00 com Terra Rica. Depois Terra Rica devolveu em doação esses equipamentos [...] (Entrevista com Arildo Aparecido de Camargo, coordenador geral do CISMAE).

O Centro de Referência em Saneamento CRSA é de fundamental importância para o CISMAE. Ele foi inaugurado em junho de 2012. O centro, instalado no Parque Industrial Mário Bulhões, em Maringá, foi construído e equipado pela Funasa, sendo o terreno cedido pela prefeitura desse município. Maringá é atendido pela SANEPAR (Companhia de Saneamento do Paraná) e não aderiu ao Consórcio. 

b) Aspectos financeiros e contratuais

Assim como o CISAB Zona da Mata, o contrato de rateio do CISPAR define a contribuição dos consorciados em função do número de ligações de água do município.

c) Sustentabilidade no tempo 

O CISMAE e o CISMASA promoviam várias atividades institucionais com significativa redução nos custos para os municípios: contratação de profissionais especializados; licitação para elaboração dos planos municipais de saneamento; elaboração de projetos de água e esgoto para as autarquias dos entes consorciados; reivindicação de recursos nas esferas supramunicipais; treinamento e capacitação de pessoal em parceria com a FUNASA; licitação compartilhada; compras em nome das autarquias inclusive com dispensa de licitação; estabelecimento de convênios com empresas públicas e privadas com vistas à redução de custos para os consorciados. 

Com a criação do CISPAR, essas atividades se ampliaram e houve um avanço na função de regulação. Conforme o Contrato de Consórcio Público, o CISPAR pode atuar como ente regulador dos municípios consorciados, função assumida em 2015. A resolução de 07 de abril de 2015 dispõe sobre o regimento do ORCISPAR, Órgão Regulador de Saneamento do CISPAR, instituído no Estatuto do CISPAR de 11 de novembro de 2013. O ORCISPAR funciona por meio de câmaras de regulação específicas, sendo que cada município consorciado deve constituir uma câmara de regulação. Também destaca-se que o regimento do ORCISPAR inclui a participação de usuários dos municípios consorciados.

5.3. Consórcio Público de Saneamento Básico da Bacia Hidrográfica do Rio dos Sinos – Pró-Sinos 

O Consórcio Público de Saneamento Básico da Bacia Hidrográfica do Rio dos Sinos (Pró-Sinos) está localizado no estado do Rio Grande do Sul. O consórcio tem como objetivo promover a interação e a capacidade administrativa dos serviços públicos de saneamento básico nos municípios que o integram. Ele é o único consórcio de abastecimento de água e esgotamento sanitário que envolve municípios metropolitanos: dos 26 municípios apenas seis estão fora da Região Metropolitana de Porto Alegre. Estes somam uma população de 1.720.290 habitantes, sendo que 95,07% desta concentram-se nas áreas urbanas. Entre os 26 consorciados, 15 apresentam população entre 20.000 e 100.000 habitantes, havendo predomínio de municípios de médio porte. A prestação do serviço de saneamento nos municípios consorciados englobados pelo sistema é feita majoritariamente pela Companhia Rio-Grandense de Saneamento (CORSAN), que atende 17 dos 26 municípios consorciados. Há cinco municípios atendidos pela própria prefeitura e dois municípios atendidos por autarquias (Figura 3).

Figura 3 – Municípios participantes do Consórcio Pró-Sinos


Fonte: Base das malhas municipal e estadual: IBGE,2010.

a) Atores envolvidos no processo de constituição e dinâmica relacional

O Pró-Sinos adota como território de ação a bacia hidrográfica do Rio Sinos, sendo enfatizado o curso d’água principal como elemento de integração entre os municípios. Um catalizador da articulação entre os munícipios na Bacia do Rio dos Sinos, mencionado no protocolo, foi o desastre ambiental de grandes proporções ocorrido no início de outubro de 2006. O protocolo de intenções menciona que a sociedade gaúcha esperava de seus gestores públicos ações de curto, médio e longo prazo, para que fatos como estes não mais se repetissem. E o consórcio viria a ser um articulador dessas ações.

Na entrevista com Viviane Diogo, Diretora Executiva, explica o desastre e seu papel de catalizador do consórcio:

nós tivemos uma contaminação de uma empresa que fazia armazenamento de grande quantidade de chorume, que entrou no rio e causou uma grande mortandade em 2006 [...]. Isso causou um impacto muito grande e aí ficou a questão: quem é o responsável? [...] Então levamos esta sugestão na época para o prefeito de São Leopoldo, já que a CORSAN (Companhia Riograndense de Saneamento) não estava com iniciativa de fazer um programa para o tratamento de esgoto na região, o SEMAE (Serviço Municipal de Água e Esgoto São Leopoldo) e a COMUSA (Companhia Municipal de Saneamento de Novo Hamburgo), que são operadoras municipais, também não iriam conseguir de toda extensão deste trabalho de resolver a questão do esgotamento e da contaminação do rio.

De fato, o protocolo de intenções destacava ainda a impossibilidade técnica dos municípios, principalmente os menores, de construírem sozinhos soluções ambientalmente adequadas. As dificuldades financeiras por que passavam todos os municípios também foram mencionadas, o que tornava limitada a realização de investimentos na área de saneamento básico. A CORSAN foi muito pressionada pelos municípios para apresentar uma solução para o problema do esgotamento. O período era de renovação dos contratos de concessão e alguns municípios como Canoas e Sapucaia, pressionaram a companhia, sob a ameaça de não renovação dos contratos.

Levamos na época a questão para o prefeito de São Leopoldo, [...]. Então as partes todas já estavam conversando, resolvemos fazer reunião dos prefeitos da Região do Vale dos Sinos. A Câmara Estadual também entrou nesta discussão e a embaixada da Holanda ficou sabendo da ideia do consórcio e colocou o delegado comercial da missão holandesa do RS à nossa disposição para levar o grupo de prefeitos e outros interessados à Holanda para conhecer como era o sistema consorcial holandês. [...]. Eu depois ainda fui numa missão da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária [...]. Olhei o modelo português de consórcio, que também é baseado no modelo holandês e funciona muito bem. Porque tanto o povo português quanto o holandês, mesmo com participação de juntas administrativas, entende que o consórcio é apolítico à gestão da localidade, do município. Já aqui não, trocou o prefeito, troca a administração, trocam os consórcios, até porque o Pró-Sinos não tem um quadro de funcionários, todos são cedidos pela prefeitura, pelos SAAEs (depoimento de técnico do Pró-Sinos).

Existiam outras associações entre municípios da região, notadamente o Comitê Sinos, criado em 1988. No início houve resistência do Comitê à criação do Consórcio; houve uma visão de que o Pró-Sinos seria uma outra organização institucional que esvaziaria o Comitê Sinos. Todavia, essa resistência foi diluída pelo esforço feito pelos técnicos do consórcio de explicitar claramente o papel das duas organizações, dando início a uma cooperação. O Comitê Sinos reúne 32 municípios, desses 26 fazem parte do Pró-Sinos atualmente. O consórcio Pró-Sinos foi o primeiro consórcio público de saneamento constituído com base na Lei Federal nº 11.107 de 6 de abril de 2005. 

b) Aspectos financeiros e contratuais

Segundo o Contrato de Rateio, o valor da contribuição é baseado no número de habitantes de cada município sendo estabelecido um valor da contribuição para diferentes faixas de população e por área dentro da bacia. Os municípios são os responsáveis pelas parcelas a seu encargo, sendo-lhes facultado repassar esta responsabilidade dentro de sua estrutura a organismos a eles subordinados, como SAAEs, mantendo-se, entretanto, sempre sua a responsabilidade perante os demais integrantes do Consórcio.

c) Sustentabilidade no tempo e atuação

São inúmeras as atividades desenvolvidas pelo consórcio com impacto importante sobre os municípios membros e sobre a bacia hidrográfica do Rio Sinos. O consórcio é uma referência nas atividades de planejamento. Foi responsável pelo desenvolvimento do Plano de Bacia do Rio dos Sinos, realizado em parceria com o Comitê de Bacia (Comitesinos), abrangendo os 32 municípios da Bacia; possibilitou a elaboração dos Planos Municipais de Saneamento Básico dos entes consorciados e do Plano Regional de Saneamento Básico da Bacia Hidrográfica do Rio dos Sinos. Atua na educação ambiental através do Programa Educação Ambiental da Bacia, programa permanente, com os “Coletivos Educadores”, envolvendo todos os 26 municípios consorciados e outros municípios do estado do Rio Grande do Sul. Realiza assessoria técnica aos municípios (especialmente aos municípios de menor porte), na elaboração de projetos em saneamento. Implementou o Sistema de Gerenciamento Integrado da Bacia Hidrográfica do Rio dos Sinos, que inclui a Central de Monitoramento da Bacia Hidrográfica e proporciona um sistema de controle, monitoramento (qualidade da água, vazão e nível do rio) e emissão de alertas meteorológicos. Foi responsável pela construção da Usina Regional de Reciclagem de Resíduos da Construção Civil do Pró-Sinos. Articulou nos últimos anos a aprovação de mais de 700 milhões de reais em investimentos através do PAC 1 e do PAC 2 (Programas de Aceleração do Crescimento) do Governo Federal destinados aos municípios consorciados.

5.4. Consórcio Regional de Saneamento do Sul do Estado do Piauí, CORESA Sul

O Consórcio Regional de Saneamento do Sul do Estado do Piauí (CORESA Sul) teve como ponto de partida uma iniciativa do governo estadual e do PMSS, Programa de Modernização do Setor de Saneamento, da Secretaria de Saneamento do Ministério das Cidades, em 2005. O objetivo do consórcio era o planejamento, a regulação, a fiscalização e a prestação dos serviços públicos de abastecimento de água e esgotamento sanitário nos municípios consorciados. Observa-se que é o único, dentre os consórcios analisados na pesquisa, que deveria assumir a prestação de serviços de água e esgoto.

a) Atores envolvidos no processo de constituição e dinâmica relacional

O consórcio surgiu a partir de iniciativa do governo do estado do Piauí e do PMSS – Secretaria de Saneamento do Ministério das Cidades de reorganizar a prestação dos serviços em função da sua precária qualidade e da difícil situação financeira da companhia estadual AGESPISA – Água e Esgotos do Piauí S.A. Foi solicitado pelo Governo do Estado ao Ministério das Cidades um planejamento institucional para a implantação de um novo modelo de gestão dos serviços de água e esgotos, sendo firmado um acordo de cooperação técnica entre Governo do Estado e o Ministério em 2003. Após a elaboração de diagnóstico da situação dos serviços, a área de atua­ção da AGESPISA foi redefinida limitando-se à capital e à região metropolitana, de forma a criar condições de sustentabilidade financeira para a empresa. O restante do território estadual foi dividido em quatro macrorregiões, sendo definidos quatro consórcios regionais de saneamento para a prestação de serviços. 

Os consórcios iriam trabalhar em escala regional, facilitando a cooperação entre os municípios da região e o governo do estado. O Serviço Local de Saneamento (Selos) gerenciaria os serviços no nível local. O Selos, operado pela Secretaria Municipal de Obras e Serviços Públicos de cada município, iria realizar operações locais, manutenção leve, leitura de medidores de água e faturamento de contas de água. A tomada de decisão, antes concentrada no nível estadual, seria transferida para os níveis regional e municipal, permitindo a governança associativa dos serviços públicos, e a constituição da escala necessária para a sustentabilidade dos serviços.

Foi efetivamente criado o CORESA Sul, uma autarquia com autonomia financeira e diretiva, que reúne 30 municípios do sul do Piauí e o próprio Governo do Estado.

A ratificação do Protocolo de Intenções, apesar das inúmeras atividades da equipe do PMSS de esclarecimento sobre o projeto (através de seminários de capacitação), não foi um processo simples. Mas, ainda assim, este foi ratificado pela Assembleia Legislativa do Piauí, em setembro de 2005. 

O funcionamento efetivo desse consórcio enfrentou alguns impasses iniciais, sobretudo relacionados à participação e aceitação do projeto por setores do governo estadual e pela AGESPISA. De fato, o processo foi conduzido pela equipe do PMSS, sem a completa aceitação dessas duas instâncias. O processo de estruturação do consórcio foi lento, mas, em 2008, foram aprovadas verbas do PAC 1 garantindo 32 milhões de reais em investimentos em infraestrutura nos municípios do consórcio; eles também receberam recursos da FUNASA e do Ministério das Cidades. 

b) Aspectos financeiros e contratuais

O Contrato de Rateio que, em princípio, seria firmado com todos os associados, foi assinado apenas pelo estado do Piauí, que assumiu todos os encargos relativos aos custos iniciais (rateio e investimento) da implantação do consórcio. No entanto, as dificuldades financeiras do governo do estado dificultaram o repasse de verbas para o CORESA Sul, fazendo com que o consórcio não pudesse realizar as diversas atividades previstas. A falta de recursos financeiros para qualificar pessoas, adquirir ou contratar programas e equipamentos de informática para operacionalizar o consórcio, aliados às dificuldades impostas por alguns setores da AGESPISA, que ainda tinham resistência em repassar a gestão dos sistemas de abastecimento de água para os municípios, são impasses identificados por Piterman (2014) sobre o funcionamento do CORESA Sul. 

c) Sustentabilidade no tempo e atuação

Atualmente, o consórcio está inoperante e a obra da sede, cuja previsão de conclusão era 2008, não foi finalizada. Um jornal local anunciava que as obras estavam abandonadas. O Site do Consórcio traz informações referentes a 2007, não tendo sido atualizado. Todas essas informações mostram que o consórcio, nas condições atuais, não apresenta perspectivas de sustentabilidade. Apesar de estar completamente regularizado (protocolo de intenções, leis de ratificação, contrato, estatuto), o CORESA Sul não conseguiu implantar uma estrutura de financiamento estável, não possui sede, equipamento ou corpo técnico contratado e não demonstra efetividade nas ações, tendo também dificuldades de implantar uma governança efetivamente cooperativa. Pode-se atribuir esse impasse no funcionamento à fragilidade político-institucional e financeira dos municípios e à mudança de posição da AGEPISA durante o processo de estruturação do consórcio. Assim, verifica-se que a iniciativa de consorciamento top-down fracassou.

6. Conclusões 

O trabalho aqui apresentado tinha uma finalidade principalmente exploratória, sendo construído metodologicamente em duas dimensões: uma descritiva, que proporciona uma leitura interpretativa dos processos de constituição dos consórcios tomados individualmente e baseada tanto em entrevistas quanto em fontes secundárias, sobretudo de natureza documental; e uma comparativa, que, com base nas mesmas fontes, compara entre elas uma ou mais das experiências de consórcio selecionadas. A análise dessa experiência é importante para o debate sobre o tema, considerando que a institucionalização dessas instâncias se deu efetivamente a partir de 2007, com o decreto de regulamentação da Lei 11.105/2005, e que ainda há vários entraves de natureza político-cultural à difusão dessas práticas, como argumentado na introdução e documentado em estudos anteriores sobre esse assunto (ABRUCIO; SOARES, 2001). 

Este artigo evidencia, mediante a descrição do processo de constituição dos consórcios analisados, por um lado as dinâmicas relacionais no funcionamento dessas instâncias, evidenciando fatores propulsores e empecilhos ao seu surgimento, e, por outro, possíveis alavancas para viabilizar a sustentabilidade no tempo das práticas de consorciamento. 

Com relação à dimensão descritiva, a partir dos relatos dos casos CISAB, CISPAR e Pró-Sinos, emerge a importância do comprometimento dos atores locais, sobretudo dos quadros técnicos dos SAAEs, no processo de estruturação e de sustentação dos consórcios. A literatura internacional sobre serviços públicos tem já observado a associação positiva entre educação e a mentalidade do servidor como indivíduo e a sua motivação e comprometimento na prestação do serviço, bem como entre esse comprometimento e a qualidade do serviço público (PERRY et al., 2008). Esses quadros técnicos dos SAAEs são a base do sistema bottom-up de organização dos consórcios que conseguiram sucesso e sustentabilidade na sua organização. Eles fazem parte de uma comunidade política que partilha ideais municipalistas e que tem como seu órgão de representação a ASSEMAE, Associação de Serviços Municipais de Saneamento. Criada em 1984, como lugar de resistência ao modelo PLANASA, a entidade busca o fortalecimento e o desenvolvimento da capacidade administrativa, técnica e financeira dos serviços municipais de saneamento. Ao longo de sua história, a Associação discutiu propostas municipalistas marcantes, como a destinação de maior parte do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) para o saneamento e ainda as inúmeras mobilizações pela criação de legislação específica para o setor, a exemplo da Lei do Saneamento (11.445/2007), Lei dos Resíduos Sólidos (12.305/2010), Lei dos Consórcios Públicos (11.107/2005).

Os resultados desta pesquisa enfatizam, portanto, a relevância da dimensão coletiva dos atores locais e da natureza processual e relacional da construção do consórcio, enquanto instância pública, como algo não linear mas sim dialógico e complexo, e nesse sentido ‘político’ (LEFEBVRE, 2001; LEFEBVRE; ENDERS, 2006). Quando entrevistados, esses atores referem de processos intricados e demorados que têm demandado trabalho de promoção e acompanhamento, além de treinamento, mas que também, nesse esforço, têm produzido aprendizado e viabilizado a articulação como elemento constitutivo de um modo de funcionamento do serviço público. A constituição do consórcio nesses casos tem representado ao mesmo tempo o objetivo de um processo de coesão entre instâncias separadas mas com um certo grau de homogeneidade – já que a maioria das prefeituras envolvidas nas experiências estudadas são todas de pequeno porte – e o meio para a construção de uma comunidade, proporcionando momentos de agregação, discussão e deliberação fundantes de uma cultura do ‘público’ (LEFEBVRE; ENDERS, 2006). Portanto, observamos que esse comprometimento dos atores locais, parte dos técnicos dos SAAEs, envolve prefeitos e gestores locais, como alavanca de sustentabilidade do consórcio no tempo; esta alavanca tem uma dúplice natureza, sendo determinada por: a) uma componente cultural, que diz respeito à valorização da dimensão pública e coletiva – que por um lado é anterior ao processo de consorciamento e por outro se constrói durante esse processo; e b) por uma componente contingencial, que diz respeito à homogeneidade entre os atores e a acontecimentos que têm acionado o processo (ex. o desastre ambiental no caso rio-grandense). 

A dimensão comparativa da pesquisa, que leva a observar os três casos face ao do CORESA – Piauí, traz a confirmação dos elementos destacados na dimensão descritiva da análise e a identificação de uma segunda alavanca que diz respeito à estrutura dos consórcios. Com relação à confirmação da análise descritiva do fato, a descrição do processo de constituição do CORESA, quando comparada com as dos outros três consórcios, mostra uma dinâmica antes de tudo top-down, mais linear, mas, justamente por isso, com muito menos legados em termos tanto institucionais e administrativos (i.e. o funcionamento do consórcio), quanto sociais e politico-culturais (a construção da coletividade). Com relação à segunda alavanca identificada, nas três experiências que classificamos como bottom-up, o consórcio é estruturado com base em relações horizontais (i.e. não hierárquicas) entre os municípios membros, que, tendo todos assinado o contrato de rateio, se responsabilizam um com o outro para contribuir proporcionalmente para o funcionamento do organismo intermunicipal. Entretanto, no CORESA – Piauí, apenas o Estado assinou o contrato, sendo também o único órgão para o qual confluem responsabilidades e encargos. Existe também uma evidente diferença entre a cultura política municipalista forte, que tem maior expressão no sul e no sudeste do país, e que caracteriza os outros consórcios (CISAB, CISPAR e Pró-Sinos). Essa cultura municipalista é radicalmente diferente do que Abrucio (2002) define como municipalismo autárquico, isto é, uma ideologia segundo a qual os governos locais poderiam sozinhos resolver todos os dilemas de ação coletiva colocados às suas populações. Nos casos analisados ela tem nas suas bases a cooperação intermunicipal, e como estrutura de apoio a ASSEMAE, anteriormente citada. Esse tipo de cultura municipalista cooperativa é muito frágil na maioria dos estados do nordeste, onde ainda domina uma cultura política marcada por uma forte subordinação das estruturas políticas locais aos governos estaduais. Isto se explica pela falta de recursos administrativos e econômicos nos municípios, como no caso dos municípios do Piauí, e pela permanência de práticas patrimonialistas, onde os interesses de um grupo político predominam sobre o interesse coletivo, desconfigurando a formulação inicial de consórcio proposta pelo Ministério das Cidades.

Embora preliminares, sendo o resultado de uma pesquisa exploratória e descritiva, os achados relatados nesse artigo têm evidenciado a relevância das experiências consorciadas, antes de tudo como práticas inovadoras de cooperação e articulação política no nível local voltadas para a gestão do saneamento. Por outro lado, o trabalho traz elementos para a discussão da escala adequada (regional e intermunicipal) para a gestão de determinados serviços públicos (ABRUCIO; FRANZESE). Ele traz, nesse sentido, pistas de investigação sobre instâncias cooperativas no Brasil, suas formas de organização – bottom-up e top-down sobre as manifestações das assimetrias do federalismo brasileiro, em diferentes contextos regionais, que merece ser aprofundada por futuras pesquisas. 

Notas

1 A análise desse caso foi baseada principalmente na tese de doutorado de Ana Piterman, integrante do Programa de Pós-Graduação em Saneamento Meio Ambiente e Recursos Hídricos da Universidade Federal de Minas Gerais, e participante do projeto de pesquisa.

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