Comércio inter-regional no Brasil: Do fim do arquipélago a uma integração assimétrica – 1943-2006
Olimpio José de Arroxelas Galvão
Ph.D. em Economia, University College da Universidade de Londres, UK; Prof. aposentado do PIMES e do Departamento de Economia da UFPE; Prof. Titular da Faculdade Boa Viagem/DeVry - UNIFBV, Recife/PE
REVISTA POLÍTICA E PLANEJAMENTO REGIONAL – RPPR – Rio de Janeiro, Vol. 8, No. 2, maio a agosto de 2021, p. 297 - 319 ISBN 2358-4556
Submetido em 30.07.2020; aprovado em 28.06.2021
1. Introdução
Estudos sobre comércio exterior de economias soberanas se encerram na investigação de suas relações com países com os quais mantêm transações. No caso de regiões de um país tais transações vão além das relações internacionais, porque estas não somente mantêm estreitos vínculos comerciais com outras regiões, como é ainda mais intensa a interação comercial e financeira delas entre si. Este é o caso do Brasil, um país de dimensão continental, no qual o comércio por vias internas e por cabotagem ultrapassa por larga margem o comércio de cada região com o exterior do país. Isso não foi sempre assim, porém. Somente na década de 1950, após, portanto, mais de 450 anos de sua história, tornaram-se as regiões brasileiras mais integradas comercialmente entre si do que com o exterior da nação.
O conhecimento de aspectos fundamentais da natureza das relações comerciais internas entre estados e entre regiões pode ser extremamente útil para formulação de políticas regionais, por diversas razões: permite conhecer o jogo das forças econômicas e políticas que estão subjacentes aos conflitos federativos passados e contemporâneos da nação; possibilita complementar diagnósticos das condições socioeconômicas da cada região dentro do contexto nacional, sobretudo no que diz respeito aos seus níveis relativos de competitividade; e constitui importante ferramenta auxiliar para mensuração tanto dos pontos fortes quanto das fraquezas e vulnerabilidades das economias regionais.
Todavia, enquanto o comércio exterior de um país é contemplado com detalhado sistema de coleta de informações e, nos dias contemporâneos, através de bases de dados on-line e em tempo real, o comércio doméstico – inter-regional e interestadual – é quase ignorado pelos órgãos nacionais de estatística.
Curiosamente, o Brasil talvez seja pioneiro nas tentativas de levantamento de dados sobre transações inter-regionais de comércio embora, por diversas razões, enorme base de dados levantados pelo IBGE, desde épocas remotas, não torne utilização possível da grande maioria de tais informações.
Este artigo objetiva mostrar como o Brasil era, ainda até a primeira metade do Século XX, um arquipélago de ilhas econômicas, com suas regiões mantendo relativamente poucas comunicações comerciais entre si – e como um processo de integração emerge e se acelera em anos posteriores. Evidências são apresentadas através do exame de 6 matrizes inter-regionais de comércio, a primeira para 1943, a última para 2006.
2. As matrizes de comércio inter-regional
Estudos sobre comércio interno e, de modo geral, sobre integração econômica regional, são escassos no Brasil por duas razões inter-relacionadas: a pequena importância do comércio inter-regional, até início dos 1950s, e ausência de levantamentos estatísticos adequados sobre fluxos domésticos de comércio (e.g. OLIVEIRA e REICHSTUL, 1973; GOODMAN e CAVALCANTI, 1974; SINGER, 1974; MOREIRA, 1975; CANO, 1977, 1985; OLIVEIRA, 1977a, 1977b; GUIMARÃES, 1989; GALVÃO[1], 1984, 1988, 1999, 2004).
Antes dos 1950s – quando o transporte rodoviário se tornou meio predominante do comércio inter-regional – a cabotagem era o único sistema de transporte de caráter verdadeiramente nacional no Brasil e, em muitos casos, única modalidade de comunicação inter-regional. Limitações técnicas e ineficiência da navegação costeira tornaram a cabotagem incapaz de constituir instrumento eficaz para unificação dos mercados regionais, sobretudo na fase de maior avanço da industrialização brasileira. As ferrovias, por outro lado, exerceram papel relevante no desenvolvimento de alguns estados ou regiões. Todavia, as dificuldades que sempre acompanharam a implantação de vias férreas, além dos altos custos operacionais dos sistemas regionais existentes, impediram as ferrovias, tal como sucedeu com a cabotagem, de funcionarem como fator verdadeiramente integrador, particularmente no período mais moderno do desenvolvimento nacional.
Como consequência, apenas após a efetivação de programa nacional de construção de rodovias nos anos 50 e 60 rompeu o Brasil, de fato, com o estado de relativo isolamento de suas economias regionais. A impressionante expansão dos fluxos do comércio inter-regional, a partir dos 1950s, testemunha o notável avanço no processo de integração econômica do País e a formação de mercado nacional virtualmente unificado.
Tais fatos explicam por que exame compreensivo do comércio inter-regional é impossível para anos anteriores à década de 1940. Existem informações disponíveis sobre exportações e importações estaduais, tanto por cabotagem, quanto por vias internas, mas tais dados não se prestam à análise do comércio inter-regional, porque o sistema de coleta empregado pelos órgãos encarregados do levantamento e apuração dos dados não especificava o destino das exportações estaduais nem a procedência das importações, tornando impossível a reconstituição das informações através de matrizes interestaduais de comércio. E, mesmo depois que informações sobre comércio dos estados passaram a ser levantadas por origem e destino das mercadorias, não é possível reconstituição de dados relevantes em bases anuais, por problemas de cobertura – muitos estados importantes ficando ausentes das tabulações – e em decorrência da descontinuidade dos levantamentos. Ressalte-se, aqui, que o instrumento de coleta das estatísticas de comércio interno no Brasil era a Guia de Exportação, de emissão obrigatória em todos estados brasileiros quando da saída de mercadorias, dos estados para o exterior e destes para as demais unidades da Federação. Frequentes mudanças na legislação tributária nacional acarretavam paralisações nas apurações em vários anos posteriores a cada alteração. Com a suspensão dos impostos interestaduais de exportação - que se deu em vários estados em anos diferentes ao longo das décadas de 1930 e 1940 – foram abolidas as guias de exportação, passando os estados a utilizar instrumentos de coleta precários, que provocavam imperfeições nos dados e consideráveis retardamentos na apuração (BRASIL, IBGE, 1973).
Por outro lado, circunstâncias políticas operaram no sentido de impedir levantamentos dos fluxos de comércio interestadual. É interessante registrar, a propósito, que várias tentativas de implantação de sistema nacional de coleta, de iniciativa do Poder Executivo - por inspiração dos órgãos de estatística - foram bloqueadas pelo Poder Legislativo Federal. No início dos 1950s, o Conselho Nacional de Estatística solicitou à Presidência da República providências para instituição de sistema unificado de levantamento das estatísticas interestaduais de exportação por vias internas, com vistas à apuração dos dados do intercâmbio comercial entre os estados, segundo origem e procedência das mercadorias, de modo a possibilitar, nas palavras daquele Conselho, "a apresentação da balança comercial de cada Unidade Federada" (BRASIL, IBGE, 1973, p.3). Arguia referido Conselho sobre as enormes vantagens de tal procedimento, que permitiria dar conhecimento das "condições de produção e abastecimento das várias regiões do País, demonstrando o jogo das forças econômicas que interferem no funcionamento do sistema de mercados internos" (p. 4). Transformada a solicitação do Conselho de Estatística em projeto de lei, foi este remetido pelo governo ao Congresso Nacional em 1952, não sendo aprovado. Em 1954, nova tentativa foi igualmente rejeitada pelo Poder Legislativo (p. 4), o que dá a impressão de que alguns estados - especialmente os com maiores superávits em seus balanços de comércio e que geralmente estavam ausentes das computações realizadas anteriormente – não se mostravam particularmente interessados em revelar a natureza das suas relações comerciais internas.
Por essas razões, longa série de mais de 40 anos de exaustivos levantamentos sobre comércio por vias internas realizados pelo IBGE veio a ser considerada de escasso ou nulo valor, não tendo sido até recentemente utilizada por pesquisadores. Contudo, após minucioso exame desses levantamentos por este autor, os dados disponíveis, após pequenos ajustamentos (ver GALVÃO, 1984,1988, 1999), permitiram a construção de duas matrizes quase completas para a década dos 40: para 1943, que o IBGE considerou como havendo alcançado “elevado grau de precisão e cobertura”[2], outra para 1947, menos completa, mas a melhor que pôde ser obtida nesta década e seguinte. Como a década de 40 pode ser vista como a da gestação do processo nacional de integração, esses dois anos oferecem evidências novas e relevantes do estado das articulações econômicas que prevaleciam entre as diferentes regiões do País.
Além dessas duas matrizes, duas outras também puderam ser construídas para a década dos 60: para 1961, outra para 1969 - último ano no qual matriz relevante de comércio pôde ser obtida até então, já que no final dos 1970s foram inteiramente extintos pelo IBGE levantamentos referentes ao comércio por vias internas. A matriz de 1969, a mais completa de todas as quatro apresentadas entre 1941 e 1969, resultou da recuperação de dados não processados, via projeto da UFMG, no final dos 1970 (ANDRADE, 1976, 1977). Como a fonte dos dados era a mesma das matrizes anteriores (notas fiscais emitidas pelas secretarias da Fazenda de cada unidade federada) como a metodologia da apuração decorreu de trabalho conjunto entre CEDEPLAR e IBGE, os resultados dessa matriz são comparáveis com as dos anos anteriores.
Após longo período de interrupção do processamento de dados sobre comércio inter-regional, dois levantamentos foram realizados com os mesmos objetivos: para 1999, outro para 2006. Depois de várias tentativas pelo IPEA durante a segunda metade dos 1990, foi obtida, para 1999, matriz de fluxo de comércio interestadual, resultado de esforço das secretarias de fazenda dos Estados, com processamento pelo IPEA/IPLAN. Além da fonte dos dados (VASCONCELOS, 2001a, e 2001b)), as matrizes correspondentes a este ano podem ser encontradas, de forma resumida, em GALVÃO e VERGOLINO (2004, tabelas 61 a 63). A matriz para 2006 foi obtida, mediante apoio do BNDES, via processamento das notas fiscais por cada secretaria da fazenda e pode ser encontrada em GARCIA et al. (2012).
É desnecessário advertir sobre deficiências das informações utilizadas neste trabalho. Todavia, a despeito das imperfeições, os dados referentes ao comércio doméstico brasileiro constituem uma fonte relevante de informações, retratando de maneira consistente as principais características do comércio inter-regional brasileiro no período 1943-2006.
3. O fim do arquipélago: O comércio nas décadas de 1940 e 1960
Esta seção resume estudos anteriores deste autor, cobrindo 4 das 6 matrizes inter-regionais de comércio, para 1941, 1947, 1961 e 1969 (GALVÃO: 1984, 1988, 1999, 2004 ). As matrizes, que reproduzem os fluxos interestaduais de comércio por vias internas, apontam para dois importantes fatos: a reduzida significação do comércio inter-regional por vias internas ainda na década de 1940 e a notável mudança que ocorreu durante e após os 1950s, na magnitude e natureza das relações comerciais entre as regiões brasileiras.
Em 1943, o comércio inter-regional de mercadorias por vias internas alcançou cifra de tão-somente 18% do total do comércio interestadual por vias internas, revelando que a parte mais substancial do comércio entre os estados, ou 82% de todos os bens exportados e importados por vias internas, não ocorreu entre diferentes regiões, mas entre estados das mesmas regiões: a natureza das articulações interestaduais era predominantemente intrarregional, não inter-regional. Assim, o quadro usualmente desenhado por contemporâneos brasileiros e estrangeiros dos 1940s, retratando o país como imenso "arquipélago" de ilhas econômicas relativamente isoladas, fica amplamente confirmado. Corroborando esta constatação, quando se compara o que as regiões comercializavam com o exterior (8,7 milhões de cruzeiros correntes para exportações e 6,2 milhões para importações, com o total do comércio inter-regional de Cr$3,2 milhões), conclui-se que os vínculos econômicos que uniam as regiões brasileiras com o exterior, em termos de valores comercializados, eram muito mais fortes do que aqueles que uniam as regiões do País entre si.
Algumas diferenciações quanto à natureza das articulações regionais existiam e são dignas de menção. Constatava-se que tanto no Nordeste quanto no Sudeste e, em menor grau, no Norte, o comércio inter-regional apresentava reduzida importância, em confronto com o total dos fluxos interestaduais. No Nordeste, apenas 5% das exportações tinham destinação extrarregional enquanto não mais que 17% das importações se originavam de outras regiões. No Sudeste, essas cifras correspondiam a 12% para exportações e 9% para importações, e no Norte, os percentuais correspondentes alcançavam 38 e 48%, respectivamente. As regiões Sul e Centro-Oeste, porém, revelavam quadro oposto: nessas duas áreas, as transações comerciais dentro do País se davam de forma predominantemente inter-regional. Nos estados do Sul, 75 e 76%, respectivamente, de todas as exportações e importações por vias internas, tinham destino e origem extrarregional, enquanto praticamente todo o comércio do Centro-Oeste (99% dos fluxos nas duas direções) era inter-regional.
Mesmo analisando-se os dados com cautela, não parece haver dúvida quanto ao caráter do comércio por vias internas das regiões brasileiras no início dos 1940s: predominantemente intrarregional no Nordeste, Sudeste e, em menor escala, no Norte, e predominantemente inter-regional no Sul e Centro-Oeste.
Outro ponto a destacar diz respeito aos balanços inter-regionais de comércio. Os dados mostram que Sudeste e Nordeste apresentavam situação exatamente oposta, o primeiro superavitário, o segundo deficitário, com todas as regiões do país. O Sul revelava pequeno superávit com todas as regiões, exceto com o Sudeste; o Norte apresentava posição deficitária com todas as regiões, exceto o Nordeste, e o Centro-Oeste aparecia superavitário com o Norte e Nordeste e deficitário com o Sul e Sudeste. Digno de nota é o déficit nordestino, o maior de todos os apresentados pelas regiões brasileiras, 87% do qual resultante de desequilíbrio comercial com o Sudeste.
O exame do comércio interestadual na segunda metade dos 1940s revela um quadro que não parece ter sofrido grandes alterações: o comércio intrarregional continuando a apresentar amplo predomínio sobre o intercâmbio total por vias internas. Com efeito, entre 1943 e 1947, a importância do comércio inter-regional por vias internas aumentou de 18% para tão somente 20%, indicando que 4/5 de todos os fluxos comerciais por vias internas ocorriam, ainda, intra-regionalmente. Comparando-se o comércio das regiões com o exterior do País - que apresentou cifra de Cr$21,2 milhões de exportações e Cr$22,8 milhões de importações - com o inter-regional por vias internas (Cr$5,3 milhões) mais o via cabotagem (Cr$15,4 milhões), fica mais uma vez patenteado que as regiões brasileiras ainda se encontravam, na entrada dos anos 50, frouxamente "integradas", e bastante menos articuladas entre si, do que com o exterior do País.
Com respeito à natureza das articulações inter-regionais, mantêm-se, em 1947, as mesmas características apresentadas em 1943: o comércio por vias internas das regiões brasileiras assumindo os mesmos padrões de diferenciação do início da década - predominantemente intrarregional no Norte, Nordeste e Sudeste e predominantemente inter-regional no Centro-Oeste e Sul. Vale ressaltar, mais uma vez, a grande diferença na natureza das articulações do Nordeste e Sul com o Sudeste. O Nordeste ainda apresentava tênues ligações econômicas com a região mais desenvolvida do País, já que tão somente 4% das exportações e 14% das importações, respectivamente, tinham destino e origem extrarregional. A região Sul, ao contrário, mantinha em 1947, tal como já revelado no início dos 40, vinculações bem mais estreitas com o Sudeste, tendo em vista que 75% das exportações e 67% das importações, por vias internas, terem se destinado a, e procedido de, outras regiões brasileiras, principalmente o Sudeste. A seguinte comparação reforça o fato assinalado: enquanto o total do comércio por vias internas (exportações mais importações) entre Sul e Sudeste alcançou Cr$3,592 bilhões correntes, cifra correspondente para o Nordeste alcançava tão-somente Cr$377 milhões. Digno de nota é que o Nordeste continuou registrando o mais volumoso déficit de todas as regiões brasileiras.
As informações consideradas até então fornecem evidência suficiente para confirmar, primeiro, que o Brasil não havia, ainda, desenvolvido um mercado nacionalmente unificado por volta do final da Segunda Guerra Mundial e, segundo, que os obstáculos apresentados pelas deficiências de comunicações internas variavam em graus distintos entre as diferentes regiões.
A importância desse último ponto deve ser devidamente enfatizada: enquanto Norte e Nordeste permaneciam virtualmente isolados da região mais industrializada do país por vias internas de comunicação, tanto o Centro-Oeste quanto o Sul apresentavam estreitas vinculações com o Sudeste, através de meios interiores de transporte.
O fato de Centro-Oeste e Sul apresentarem, muito mais cedo que o Nordeste, contatos econômicos mais intensos, via meios interiores de transporte, com a região mais desenvolvida do país propicia rica fonte de insights para investigação dos efeitos diferenciados dos impactos provocados pela integração regional. Registre-se, aqui, que a composição do comércio de mercadorias variava grandemente em função dos meios de transporte. A cabotagem, por exemplo, concentrava-se largamente no transporte de matérias primas e produtos alimentares. Assim, desde que o intercurso comercial do Nordeste com o resto do país, até o final dos anos 40, era realizado quase que exclusivamente pela cabotagem (a rodovia Rio-Bahia entrou em tráfego em outubro de 1949, e não havia ferrovias ligando o Nordeste ao Sudeste), essas regiões permaneceram "protegidas" da concorrência das indústrias do Sudeste por um período mais longo que as outras. Consequentemente, as economias do Centro-Oeste e do Sul tiveram seus mercados expostos às mais modernas e maiores indústrias do Sudeste, em período mais remoto do que àquelas dos estados mais ao norte do país[3]
Para a década dos 50 não foi possível levantar dados sobre o comércio inter-regional por vias internas. As informações disponíveis cobrem apenas alguns estados brasileiros, ficando ausentes das computações os mais importantes, como São Paulo, Minas e Rio de Janeiro.
Os 1950s testemunharam a aceleração do processo de integração dos mercados regionais, em decorrência da instalação de rede de rodovias-tronco ligando todos os espaços econômicos relevantes da nação e do próprio amadurecimento do capitalismo industrial brasileiro. A inexistência de informações para a década de 50, entretanto, é parcialmente compensada pelos dados do comércio inter-regional da matriz de 1961, cuja relevância é óbvia por ser capaz de refletir as transformações ocorridas na década anterior.
Sobre a matriz de 1961, as seguintes observações devem ser consideradas: Minas, estado em quase todos os anos ausente das computações, ficou fora do levantamento. Quanto a São Paulo, também ausente dos dados do IBGE, sua inclusão tornou-se possível graças a levantamento realizado pelo seu Departamento de Estatística, em 1962, e publicado em forma mimeografada como apêndice ao Plano de Ação do Governo, naquele ano, e de onde este autor extraiu os dados constantes da matriz mencionada.
Cumpre assinalar que mesmo considerando-se as imperfeições dos levantamentos, os dados parecem revelar, de maneira consistente, as mudanças mais fundamentais que ocorreram na natureza do relacionamento inter-regional. Observa-se, por exemplo, que houve considerável expansão do grau de abertura das economias regionais, os dados apontando para extraordinária expansão dos fluxos inter-regionais de comércio entre 1947 e 1961. Notável evidência dessa expansão é o aumento de sua participação nos fluxos totais de comércio por vias internas, de tão somente 18 e 20% em 1943 e 1947, para 45% em 1961.
Evidência adicional do extraordinário crescimento das articulações regionais a partir dos 1950s é encontrada confrontando-se o comércio inter-regional por vias internas e o comércio país com o exterior. Este confronto mostra total reversão na importância relativa do comércio internacional para as regiões. Assim, enquanto durante todos os anos 40 e também até pelo menos a primeira metade dos 50, as exportações do país para o exterior superavam por larga margem as exportações totais inter-regionais por vias internas, verifica-se no final dos 50, drástica inversão nesses fluxos, as exportações inter-regionais passando a superar, de forma ampla, os valores exportados para o exterior. Com efeito, enquanto em 1943 e 1947 as exportações brasileiras para o exterior eram, respectivamente, 2,7 e 4 vezes maiores que as exportações inter-regionais por vias internas, na entrada dos anos 60 as exportações internacionais representavam tão somente 68% dos fluxos correspondentes ao comércio inter-regional, a despeito de, no período 1943-1961, tais exportações terem revelado notável expansão, mais que triplicando seu valor em dólares correntes norte-americanos (BRASIL, IBGE, AEB, 1946 e 1962).
Ressaltem-se os balanços inter-regionais de comércio. Observa-se, em linhas gerais, que nenhuma mudança expressiva parece ter ocorrido nas posições finais das regiões brasileiras. O Norte continuava registrando posição tradicionalmente deficitária. O Nordeste mantinha situação amplamente deficitária, seu déficit com o Sudeste sendo apreciável, representando mais de 93% do total do seu saldo negativo. Já o Sudeste consegue inverter sua posição deficitária que pareceu registrar no final dos 40, apresentando substancial superávit com o restante do país, revelando apenas reduzido déficit com os dois estados do Centro-Oeste. O Sul, por sua vez, continuava apresentando saldos positivos nas suas transações comerciais com todo o país, à exceção do Sudeste, embora seus superávits com o Norte, Nordeste e Centro-Oeste tivessem sido pequenos, relativamente ao déficit com o Sudeste. Finalmente, o Centro-Oeste que, a despeito de ter registrado saldos positivos com o Norte, Nordeste e o próprio Sudeste, apresentava um grande déficit com o Sul, mais que anulando seus saldos positivos com o restante das regiões.
1969 é o último para o qual pôde ser obtida matriz completa de fluxos do comércio interestadual antes da década de 1990. Graças a convênio entre IPLAN e CEDEPLAR, foi possível recuperar dados levantados pelos estados, incluindo a cabotagem – com dados agora incluídos, porque computados de acordo com a origem e o destino dos bens exportados e importados.
Primeiro aspecto a destacar é que, em 1969, o comércio por vias internas alcançou predominância quase total em relação aos fluxos inter-regionais. A cabotagem, pouco mais de duas décadas antes meio predominante de ligação comercial das regiões brasileiras, reduz sua contribuição drasticamente durante os 60, participando em 1969 com tão-somente 4,8% do comércio interestadual total e alcançando não mais que 10% dos valores relativos ao comércio inter-regional por vias internas. O declínio da cabotagem é acompanhado por enorme expansão do transporte rodoviário, que passa a constituir, de longe, principal meio de aproximação econômica das regiões brasileiras.
A matriz de 1969 revela que o comércio interestadual total (vias internas mais cabotagem) atingiu, em 1969, Cr$34,3 bilhões, dos quais Cr$16,1 bilhões corresponderam ao comércio inter-regional e Cr$18,2 bilhões ao intrarregional. Os dados mostram que o comércio entre as regiões aumentou sua participação para pouco mais de 47% (comparado a 18,3%, 19,7% e 44,6% em 1943, 1949 e 1961) - aumento certamente não tão expressivo quanto ao registrado na década anterior, mas bastante significativo, levando-se em conta que a grande melhoria das comunicações internas entre os estados de cada região trouxe, de igual modo, uma enorme expansão do comércio intrarregional. Por outro lado, é interessante observar que, mesmo com o extraordinário crescimento revelado pelo comércio inter-regional nos anos 50 e 60, ainda predominava o comércio intrarregional no Brasil, constituindo este cerca de 53% de todas as transações comerciais entre os estados brasileiros em 1969. Esta cifra refletia, inequivocamente, as grandes disparidades espaciais de desenvolvimento existentes na economia nacional, sendo uma manifestação disso o fato de quase metade de todo o comércio interestadual brasileiro ter sido realizado entre os 4 estados do Sudeste (Cr$14,6 bilhões contra Cr$34,3 bilhões), e de o intra-regional dessa região ter sido praticamente equivalente a todo o comércio inter-regional brasileiro (Cr$16,1 bilhões para o inter-regional e 14,1 bilhões para o comércio interestadual no Sudeste). Evidência adicional da concentração de atividades econômicas no território nacional é o fato de que dois estados apenas - Rio de Janeiro e São Paulo - eram responsáveis por quase 81% dessa última cifra. Visto que o Sudeste constitui 10,8% do território nacional (tal cifra para Rio mais São Paulo é de apenas 3,4%), os dados acima revelam claramente quão fortemente estavam concentrados a renda e o comércio em tão pequena área do espaço nacional.
A matriz de 1969 confirma a natureza essencial das articulações regionais, já assinaladas nos anos anteriores. Com efeito, observa-se que, tal como em 1943, 1947 e 1961, o comércio nas regiões Sudeste e Nordeste era predominantemente intrarregional, enquanto o das regiões Centro-Oeste, Norte e Sul era predominantemente inter-regional.
A mesma matriz também revela a significação das relações internas de comércio para Sudeste e Nordeste, confirmando a predominância do comércio intrarregional nessas duas regiões, tal como ocorria no período 1943-1961, já que 62 e 64%, respectivamente, de todo seu comércio de mercadorias foram fruto do intercâmbio realizado dentro das fronteiras dos próprios estados dessas regiões.
Com relação à predominância do comércio intrarregional no Sudeste, fica claramente constatado que os estados que compõem esta região - os mais desenvolvidos do país - transacionavam muito mais entre si do que com as demais regiões brasileiras. Considerando-se que as importações extrarregionais do Sudeste representaram, em 1969, apenas 29% de todas suas importações interestaduais, infere-se que esta região era relativamente autossuficiente de fontes de insumos extrarregionais (para não falar de produtos finais), embora se revelasse extremamente dependente de insumos, bens de capital e tecnologia do exterior do País.
No caso do Nordeste, a grande importância de seu comércio intrarregional decorre, de um lado, de sua histórica dificuldade de comunicações com outras regiões (até os 1950s) e, de outro, de dispor a região, desde longas datas, de rede interna de transportes relativamente desenvolvida. Como área da nação densamente habitada e com largas partes de seu território recorrentemente afetadas por severas estiagens, a construção de açudes e estradas veio a se constituir na principal resposta, tanto de governos estaduais quanto do Federal, ao desafio de empregar milhões de nordestinos que se tornavam temporariamente destituídos de seus meios de subsistência. Resultado dessas políticas foi dotar o Nordeste, nas décadas anteriores à de 50, de um bom sistema de transportes interiores, constituído de estradas que não teriam sido implantadas em circunstâncias normais, por falta de justificativa econômica. Assim, quando foram realizadas as ligações entre os sistemas regionais nos 50 e início dos 60, o Nordeste já contava com rede apreciável de rodovias de tráfego permanente, certamente em desproporção à importância econômica da região. Essa rede de transportes, que na época do isolamento relativo do Nordeste facilitou o fluxo de mercadorias entre os nove estados da região, veio também facilitar, depois da "integração", o intercâmbio inter-regional.
Com respeito às demais regiões brasileiras, a matriz de 1969 ainda revela, como já registrado nas outras matrizes, que Centro-Oeste e Sul continuaram, durante a década dos 60, a manter relações comerciais predominantemente com outras regiões do país. Seu intercâmbio comercial continuou se verificando, diferentemente das regiões Norte e Nordeste, predominantemente inter-regionalmente, e principalmente com o Sudeste. O tipo de relacionamento dessas duas regiões com o resto do país é em parte explicado pelo fato terem estruturas de produção relativamente diversificadas e pela presença, nelas, de um setor agrícola avançado tecnologicamente. Além do mais, Centro-Oeste e principalmente Sul são grandes produtores de commodities de amplo consumo nacional - tais como trigo, soja, feijão, arroz, carnes, lã, além de vinhos - todos eles gozando de vantagens comparativas vis-à-vis as demais regiões brasileiras, em vista da qualidade de seus solos agrícolas.
Confrontando-se, mais uma vez, comércio inter-regional por vias internas e o comércio do país com o exterior, verifica-se persistência da tendência assinalada nos anos anteriores: a de o intercâmbio doméstico entre as regiões assumir papel cada vez mais importante, relativamente ao comércio das regiões brasileiras com o exterior do País. Comparando-se os fluxos do comércio doméstico das regiões com o exterior constata-se que, enquanto o valor total das exportações inter-regionais alcançou Cr$16,1 bilhões, o montante das exportações do Brasil para o exterior registrou Cr$9,2 bilhões, ou seja, não mais de 57% de todo o comércio inter-regional. E isto, é bom frisar, a despeito de as exportações para o exterior terem revelado, na segunda metade dos 60, uma expressiva expansão, por força das políticas de incentivo governamental ao comércio internacional implementadas a partir de 1964.
Examinando-se, por fim, as relações inter-regionais pela ótica dos balanços comerciais, observam-se pequenas mudanças nas posições de algumas regiões, sem alteração, todavia, dos padrões já assinalados para os três anos anteriores.
Tal como nos anos já analisados, as menos desenvolvidas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste apresentaram, em 1969, balanços comerciais amplamente deficitários com o resto do país. Em contraste, o Sudeste industrializado alcançou substancial excedente comercial com todas as regiões - exceção feita ao Sul. Esse déficit do Sudeste com o Sul, embora de ordem não desprezível, não foi capaz, porém, de anular a posição favorável que aquela região obteve com as outras, e muito especialmente com o Nordeste.
O Sul, por sua vez, além de ter conseguido um resultado positivo com o Sudeste, emerge, no final dos 60, como a única a revelar superávits comerciais com todas as regiões do país. Seu superávit, embora expressivo, representava, todavia, menos de 21% daquele alcançado pelo Sudeste.
Digno de nota, mais uma vez, é a magnitude do déficit comercial do Nordeste. Esta região, a despeito de ter obtido pequenos saldos tanto com o Norte quanto com o Centro-Oeste, apresentou com o Sul, mas principalmente com o Sudeste, um déficit realmente volumoso, que chegou a superar mais de duas vezes o valor de todas suas exportações para o resto do país (compare-se cifra de Cr$1,1 bilhão para o total das exportações inter-regionais do Nordeste, com Cr$2,3 bilhões para o déficit do Nordeste com o resto do país).
Também deve ser anotada a significação do déficit do Nordeste para com as demais regiões superavitárias do Brasil - ou seja, o Sul e o Sudeste. Uma inspeção nos dados apresentados em trabalhos anteriores deste autor (GALVÃO, 1984 e 1999) permite revelar que o Nordeste funcionou, durante todo tempo aqui analisado, como "vent for surplus" de apreciável importância para as duas regiões mais desenvolvidas, tendo em vista ter sido responsável por mais de metade de todo excedente comercial do Sul, e por mais de dois terços do que o Sudeste alcançou com todo o País: uma evidência inconteste da frágil base econômica dos estados nordestinos expressada tanto pela sua incapacidade de conquistar mercados extra regionais, quanto, principalmente, de se defender contra importações competitivas de outras regiões brasileiras.
4. O comércio nas décadas de 1990 e 2000
Como assinalado, durante as décadas de 1970 e 1980 não foram mais coletadas informações sobre comércio interestadual no país. Na segunda metade dos 1990s, o IPEA, após algumas tentativas, conseguiu fechar matriz das entradas (compras de bens e alguns serviços incluídos nas notas fiscais estaduais do ICMS) e das saídas (vendas), para 1999 (VASCONCELOS, 2001a).
Como para todas as matrizes anteriores, os números constantes dessa nova matriz não podem ser tomados inteiramente pelos valores de face, em decorrência de problemas de cobertura, que afetaram com maior ou menor intensidade alguns estados da Federação[4]. Os dados, porém, parecem apresentar consistência e, apreciados no seu agregado, fornecem sinalizações relevantes sobre aspectos importantes das articulações comerciais entre regiões e estados. De igual forma, a matriz de 1999 confirma as principais características das relações inter-regionais e interestaduais examinadas nas quatro matrizes do período 1943-1969 (GALVÃO, 2004).
Um primeiro aspecto a destacar é a confirmação da importância do comércio doméstico para todas as regiões. Dados da matriz de 1999 revelam que continuou crescendo a fração do PIB de cada região destinada ao comércio inter-regional, em relação àquela voltada para o comércio com o exterior. Com efeito, para todas as regiões, o valor das suas vendas domésticas superava, em pelo menos quatro vezes, o valor de suas exportações para o resto do mundo.
Outro aspecto interessante foi a ocorrência de clara assimetria com relação à importância do comércio doméstico e do internacional entre as regiões. No Nordeste, por exemplo, enquanto suas vendas para o mercado interno eram, em 1999, 6,6 maiores que suas vendas ao exterior, as compras dessa região no mercado interno representaram mais de 10 vezes os valores correspondentes a suas aquisições do resto do mundo. Comparando-se tais cifras para as demais regiões, observa-se que, em termos relativos a economia da Região Nordeste era muito mais dependente do mercado interno para vender sua produção do que era em relação ao mercado internacional, como também já foi mostrado nas matrizes anteriores.
A desagregação dos mesmos dados fornece rico cenário para apreciação da natureza das transações comerciais entre as regiões e estados brasileiros. Importante fato a destacar é o grande contraste entre o Sudeste e o resto do país. Essa região teria apresentado, em 1999, saldo nas suas transações comerciais inter-regionais de R$39 bilhões, enquanto o Nordeste registrou déficit de 24 bilhões, o Sul de 15 bilhões e o Centro-Oeste de R$300 milhões. Apenas o Norte aparecia com pequeno superávit nas suas transações, de pouco menos de R$700 milhões, graças à Zona Franca de Manaus.
Contraste ainda maior é apresentado entre São Paulo e os outros estados. Enquanto São Paulo obteve saldo líquido da ordem de R$51 bilhões, apenas três, dos 26 demais estados, registraram um valor positivo nas suas transações interestaduais: Amazonas (R$8,9 bilhões de superávit), Paraná (R$4,6 bilhões) e Espírito Santo (R$38 milhões). Ou seja, apresentavam-se deficitários nas suas relações comerciais inter-regionais todos os estados do Nordeste, todos os do Centro-Oeste, todos os do Norte (exceção do Amazonas), todos os do Sul (exceção do Paraná) e todos os do Sudeste, com exceção de São Paulo e Espírito Santo.
A natureza das articulações comerciais entre as regiões brasileiras contribui para explicar, sem dúvida, a dificuldade de se fazer reforma tributária que há décadas é discutida no Congresso nacional. Como assinala Varsano (1997), “os estados exportadores líquidos no comércio interestadual são numericamente poucos” (como mostrado acima), mas econômica e politicamente muito importantes. Esse autor, ao realizar estimativa - caso fosse adotado o princípio da tributação do ICMS no destino – mostra perda de São Paulo de valores, a preços da época, correspondentes a mais de 10% da arrecadação total do mencionado estado (VARSANO, 1997, p 10).
Em 2006 foi realizado o último levantamento, até o presente, das relações comerciais internas no Brasil, com o apoio do BNDES, utilizando-se mesma metodologia de apuração das notas fiscais das secretarias de fazenda estaduais. Tal como advertido para levantamentos anteriores, valores dessa matriz também devem ser apreciados com cautela, pois é normal, em trabalhos dessa magnitude, detecção de falhas, tanto por omissão de algumas informações (o não registro de operações comerciais entre alguns estados, mesmo quando tais operações efetivamente existiram)
quanto por questões relacionadas à própria computação dos dados (por falhas na totalização dos registros entre alguns estados e regiões)[5]. Porém, mesmo com imperfeições, as informações nela contidas apresentam congruência quando comparadas aos resultados dos levantamentos anteriores.
A matriz para 2006 revela mudanças, mas nenhuma que altere a natureza estrutural das relações entre os estados brasileiros e, principalmente, as do Nordeste com o resto do país.
A Região Nordeste continuava deficitária nas suas relações comerciais com o país e, como nos levantamentos anteriores, seus déficits eram maiores com as regiões mais ricas, ou seja, Sul e Sudeste, com as quais o Nordeste ainda mantinha saldos comerciais negativos com todos os estados das duas regiões mencionadas. Como era de se esperar, São Paulo permanecia com tradicional posição superavitária, e seu saldo com o Nordeste correspondia a 73% do de toda a Região Sudeste e a 50% do total nacional.
A dificuldade de uma possível reforma tributária – uma questão acima levantada – é comprovada também com tais dados, na medida em que envolve um sério impasse de natureza federativa, caso os estados das regiões mais ricas não sejam adequadamente compensados (obviamente pelo Governo Federal), com uma mudança na estrutura da tributação do ICMS. Como essa compensação aos estados superavitários em suas relações comerciais internas envolve montante expressivo de recursos e, ademais, como os estados deficitários perderiam capacidade de fazer suas próprias políticas industriais, via concessão de incentivos fiscais estaduais, o impasse deverá continuar com difícil solução, levando-se em conta a reduzida capacidade de a União bancar os custos da mudança tributária, especialmente no momento atual de crise com a pandemia da covid-19.
A matriz de 2006 registra tanto fatos já observados nos levantamentos anteriores, como algumas mudanças dignas de menção.
O comércio interno no Brasil continuou se expandindo a taxas elevadas, mais do que o PIB do país, apesar do grande crescimento das exportações para o exterior (GARCIA et al., 2012), confirmando a ampla predominância das relações comerciais inter-regionais no cenário nacional.
Fenômeno de especial significação parece ter ocorrido nas articulações do Nordeste com as demais regiões do país. Um confronto entre as duas matrizes mais recentes, a de 1999 e a de 2006, mostra que as vendas do Nordeste para o resto do país cresceram mais que suas compras. Este fato, indicando que o histórico déficit comercial da região estaria diminuindo, levou alguns autores a argumentar que tal resultado poderia evidenciar redução das desigualdades regionais no país[6].
Vários pontos podem ser considerados a esse respeito. Inicialmente, leve-se em conta a dificuldade de comparações de valores monetários absolutos, mesmo que adequadamente deflacionados, entre matrizes de anos diferentes, já que parte expressiva das diferenças pode ser atribuída a problemas de cobertura, pois não se sabe exatamente o grau de subestimação ou de superestimação dos fluxos comerciais entre um e outro levantamento.
Todavia, este não é o maior questionamento. A plausibilidade dos resultados agregados em relação a tendências parece ser a questão maior. Haveria, de fato, uma explicação para a redução do déficit comercial do Nordeste em relação ao país? E haveria alguma correlação direta entre redução ou aumento de déficits com a diminuição ou aumento das desigualdades regionais? O Nordeste cresceu mais que o Brasil entre 1999 e 2006. Durante esse período, a Região foi beneficiada por políticas de transferência de renda do Governo Federal, como expansão do Bolsa Família, concessão de aposentadorias urbanas e rurais para não contribuintes, sensível aumento no salário-mínimo, expansão do crédito aos consumidores, todas proporcionando impactos diferenciados regionalmente, e claramente em benefício do Nordeste.
Por outro lado, além de políticas quase que inteiramente voltadas à expansão do consumo, nenhuma alteração na estrutura produtiva teria ocorrido no Nordeste, no mesmo período, a não ser início de algumas poucas obras públicas e implantação de alguns projetos na área industrial. Nesse contexto, portanto, o que pareceria ser mais plausível de ter ocorrido seria um aumento das importações da região e não das exportações, já que não teria ocorrido fato novo, de natureza estrutural, que justificasse maior expansão das exportações e, consequentemente, começo de tendência de inflexão nas relações comerciais entre Nordeste e resto do país – a não ser as exportações de veículos pela Bahia, o que tornou esse estado o único a obter superávit comercial com o Sudeste. Com o fechamento recente da fábrica da Ford nesse estado, muito possivelmente o superávit pode desaparecer ou se reduzir em muito.
A inexistência de levantamentos mais recentes das relações comerciais entre estados brasileiros é de se lamentar. Os anos após 2006 registraram mudanças de grande magnitude no cenário mundial e nacional e, mais especificamente, para efeitos deste estudo, no Nordeste do país.
Durante a segunda metade dos anos 2000 e nos primeiros da segunda década do milênio, intensificaram-se os programas de transferências governamentais ao Nordeste, de conteúdo assistencialista, e na forma de investimentos em infraestrutura: portos, aeroportos, rodovias, irrigação, transposição de águas do São Francisco e projetos ferroviários (Transnordestina/ Ferrovia Norte-Sul), para citar alguns. Além do mais, volume apreciável de investimentos públicos e privados foi realizado na região, como Refinaria de Petróleo, Petroquímicas, estaleiros, Fiat/Chrysler, Hemobrás, siderúrgica e implantação de grandes projetos de energia eólica, além de outras instalações fabris. A substancial ampliação do crédito bancário na região é fato importante também a ressaltar, pelas suas óbvias implicações sobre o consumo.
A expansão do volume de transferências governamentais, a ampliação do crédito bancário e principalmente dos investimentos em infraestrutura e em novas instalações fabris estariam propiciando ao Nordeste ingressar em um novo ciclo de crescimento. Todos os fatos acima mencionados teriam afetado a natureza das articulações inter-regionais em anos posteriores a 2006. O sentido dessas mudanças não parece difícil de prever: a ampliação da renda e consumo dos nordestinos, associada ao novo ciclo de crescimento da região, teria provocado uma elevação expressiva das importações do Nordeste das regiões industrializadas do país. Por outro lado, projetos de infraestrutura e principalmente instalação de novas indústrias, também teriam gerado grande demanda de importações de insumos, peças e componentes, e de máquinas e equipamentos produzidos em outras regiões do país. Novo surto de industrialização induziria, por certo, o surgimento de cadeias produtivas, aumentando as transações industriais dentro da região. Mas, geralmente é longo o tempo para que grande parte dessas cadeias produtivas tenha sua produção internalizada numa região de menor desenvolvimento. Assim, a industrialização da região, ao aumentar emprego e nível da renda regional, ampliará seu consumo e suas importações. Da mesma forma, as novas cadeias produtivas que se formarão, também elevarão as importações de insumos e de bens de capital das regiões mais desenvolvidas, em um processo que gera benefícios mútuos a todas as regiões do país.
Dentro desse contexto, um provável crescimento do déficit comercial dos estados do Nordeste em relação ao resto do país, como aqui postulado, não seria um indicador de aumento das desigualdades regionais, assim como sua redução não sugere uma redução dessas desigualdades. A forma como o déficit é financiado é que é a questão central. O financiamento via transferências para fins assistencialistas e via crédito ao consumidor, gera demanda que vaza em grande proporção para fora da região, e contribui pouco para o aumento da renda e do emprego na região assistida. Mas, quando o financiamento do déficit ocorre através de investimentos para fins produtivos, a capacidade produtiva da economia é expandida, o que permitirá, ao longo do tempo, fortalecimento dessa economia e a permanência, também por um longo período de tempo, de déficits saudáveis nas suas relações domésticas com outras regiões. E, nesse contexto, até as transferências para fins puramente assistencialistas exerceriam papel positivo (quando associadas a ciclo de crescimento resultante de investimentos), pois estas contribuiriam para aumentar a demanda agregada que poderia ser crescentemente suprida por indústrias locais ou induzindo instalação de novos empreendimentos que não se sentiriam motivados a vir para o Nordeste, sem existência desse aumento da demanda regional.
Essas mudanças serão captadas quando de um novo levantamento das relações comerciais interestaduais, ficando aqui a sugestão de como é importante a continuidade desses levantamentos.
Voltando à matriz de 2006, e examinando-se, por fim, os dados desagregados por regiões e estados, merecem consideração a continuidade de tendências observadas, mas também a ocorrência de novos fatos.
Um exemplo de continuidade das tendências é refletida na permanência de relações deficitárias da Região Nordeste com o resto do país. O déficit total da região teria alcançado, no ano de 2006, um total de R$30 bilhões, um valor que teria correspondido a quase 10% do PIB da região no mesmo ano (R$311 bilhões) – uma cifra, sem dúvida, bastante expressiva.
Uma novidade, digna de destaque, é o fato de que, pela primeira vez, um estado da região teria registrado um saldo favorável nas suas relações agregadas com o resto do país. De acordo com os dados da matriz de 2006, a Bahia foi superavitária não somente com o país como um todo, mas com a região Sudeste e com o Estado de São Paulo (na verdade, o superávit com a região Sudeste ocorreu apenas com São Paulo, já que com os três demais estados dessa região – o Rio de Janeiro, Minas Gerais e o Espírito Santo, a Bahia teria registrado déficits). Outro aspecto relevante do relacionamento da Bahia com seus parceiros comerciais é o descolamento desse estado da sua dependência dos mercados nordestinos. Para a Bahia, o comércio com outras regiões teria sido muito mais importante do que com outros estados do Nordeste. Esta última região teria absorvido tão somente 24% do total das vendas baianas para todo o país, enquanto apenas o Estado de São Paulo, sozinho, teria participado com quase 43% das compras de produtos do Estado da Bahia (FERREIRA JÚNIOR et al. 2009). A Geografia, no caso baiano (ou seja, sua maior proximidade do Sudeste) poderia ser a explicação para o fato acima, além obviamente, do maior grau de desenvolvimento e de diversificação do parque industrial da Bahia. Vale frisar que, desagregando-se as vendas baianas para o país como um todo, as suas principais exportações são constituídas de produtos do seu complexo petroquímico, de veículos automotores, de produtos metalúrgicos e do processamento de produtos alimentícios (FERREIRA JR et al., 2009).
Isto não quer dizer, porém, que o Estado da Bahia tenha perdido o seu papel de grande exportador para os estados nordestinos. Na verdade, esse estado continua mantendo uma posição de centro de distribuição (ou redistribuição) para toda a região, evidência disso sendo o seu superávit comercial com todos os estados da região.
De grande interesse, do ponto de vista regional, é a posição do Estado de Pernambuco. Enquanto a matriz de 1999 mostrou uma participação predominante, mas declinante, desse estado, como centro distribuidor para os estados nordestinos, os dados da matriz de 2006 revelam que a importância pernambucana como supridor dos estados da região teria aumentado, e não continuado a declinar, entre os dois levantamentos. Pernambuco continua, como no passado, deficitário com todas as regiões brasileiras, com exceção do Nordeste. Com esta região, porém, o Estado teria mantido um substancial superávit comercial, registrando um déficit apenas com a Bahia. Todavia, o déficit pernambucano com o estado baiano é relativamente pequeno, tal déficit sendo superado por saldos positivos maiores para com todos os estados nordestinos, em relação à Bahia, com exceção do Estado do Maranhão (ou seja, com os oito estados nordestinos, o superávit pernambucano era maior do que o déficit com a Bahia, exceto o Maranhão, estado com o qual Pernambuco também obteve saldo comercial positivo)[7].
Segundo as informações da matriz de 2006, o saldo comercial de Pernambuco com os demais estados da região Nordeste (ou seja, o saldo do comércio intrarregional) teria sido de R$ 7,5 bilhões, enquanto o da Bahia com os seus vizinhos regionais teria sido de R$ 3 bilhões – significando que o superávit pernambucano com o Nordeste era mais que o dobro do registrado pela Bahia com os mesmos estados. Este resultado estaria a revelar que o “descolamento” da economia baiana em relação aos seus parceiros nordestinos teria criado um vácuo que foi preenchido por Pernambuco, que teria intensificado mais ainda, as suas articulações com os estados da própria região. Mais uma vez a explicação para este fato poderia estar na geografia, já que Pernambuco tem uma posição privilegiada no Nordeste, em comparação com a Bahia. Mas há outra explicação que complementa a anterior: a partir do final dos anos 1990, o governo de Pernambuco adotou uma política explícita de incentivos fiscais, para atrair para a Região Metropolitana do Recife centrais de distribuição de mercadorias. Esta política teria sido altamente exitosa, tornando o estado talvez o maior polo distribuidor (e redistribuidor) de toda a Região Nordeste.
Outra informação também reveladora do papel de Pernambuco no cenário regional é o fato de que o seu superávit comercial com o Nordeste (de R$ 7,9 bilhões) teria sido ligeiramente inferior ao déficit do estado com toda a Região Sudeste (R$ 8,3 bilhões) – um pouco menos do que R$ 400 milhões. Considerando que o déficit comercial de Pernambuco com todo o país teria sido da ordem de R$ 4 bilhões, o superávit desse estado com a Região Nordeste (apesar de um déficit com a Bahia de R$ 572 milhões) teria representado quase o dobro do déficit registrado com o resto do país (o déficit interestadual total), e, excluindo a Bahia, tal superávit mais que compensaria o déficit total com a Região Sudeste.
5. Conclusões
Seis matrizes de comércio interestadual, aqui reunidas pela primeira vez, fornecem suporte empírico sobre o “Brasil Arquipélago” dos anos anteriores a Segunda Grande Guerra e sobre a transformação econômica, após a década de 1950, que levou o país a concluir a unificação de seus mercados regionais em mercado verdadeiramente nacional.
O estudo mostra que, até o princípio dos anos 50, o Brasil ainda não tinha uma economia “continental”. O comércio inter-regional total (incluindo cabotagem) e o por vias internas, ainda se encontravam em fase embrionária, predominando amplamente o comércio doméstico realizado entre os próprios estados de cada região.
Em decorrência da inexistência de rede nacional de rodovias ou ferrovias o comércio inter-regional era realizado majoritariamente através da cabotagem – voltado para o comércio de matérias primas, com pequena participação de bens manufaturados. Como resultado, pode-se inferir ter assumido o comércio inter-regional caráter mais complementar que competitivo, quando comparado ao realizado por outros meios de transporte, como o ferroviário e o rodoviário.
As décadas de 1950 e 1960 testemunharam uma extraordinária expansão do comércio inter-regional (especialmente o por vias internas) passando este, a partir de então, a superar por larga e crescente margem, as exportações regionais para o exterior.
A cabotagem, continuou a se expandir, mas passa a ter importância marginal, tornando-se o caminhão o veículo de transporte dominante no comércio inter-regional. A construção de troncos rodoviários ligando todas as regiões brasileiras removeu progressivamente as barreiras naturais ao comércio inter-regional, possibilitando a unificação efetiva do mercado nacional e, assim, a penetração, em todos os mercados regionais, da produção das grandes indústrias que ainda operavam em escala regional.
O sistema unificado de transporte que emergiu nos anos seguintes rompeu definitivamente com o isolamento econômico em que viviam as regiões brasileiras, condição que havia prevalecido por cerca de 4 séculos e meio da história do país.
O processo de unificação de mercados regionais afetou desigualmente o território nacional, provocando efeitos diferenciados sobre o desenvolvimento de suas regiões “periféricas”.
Alguns aspectos importantes desse processo são abaixo destacados:
- Por terem Centro-Oeste e Sul começado mais cedo a se comunicar por vias internas com o Sudeste, suas indústrias tiveram mais tempo para se ajustar às mudanças na divisão do trabalho impostas pelo processo de integração, do que tiveram as das regiões Norte e Nordeste. Por conta dessa assimetria no timing do processo de integração, as diferenças nas escalas das unidades produtivas do Centro-Oeste e, especialmente, das do Sul, em relação às do Sudeste não eram ainda tão grandes na época em que se acelerou a integração, quanto eram quando teve início mesmo processo, especialmente no caso do Nordeste. Este fato, se de um lado protegeu por mais tempo as indústrias do Nordeste, forçou-as, por outro, a sofrer processo mais agudo de ajustamento, tanto pela rapidez em que se deu a integração, quanto pelas diferenças maiores de escala entre as economias da região e as dos estados mais desenvolvidos do país.
- Inferência especial parece ser o fato de que, juntamente com outras diferenças históricas, as economias sulinas revelaram capacidade de transformação maior do que os estados nordestinos, o que é evidenciado pelo ajustamento bem melhor sucedido alcançado por elas, tanto na sua base agrícola quanto na industrial.
- As profundas assimetrias no desenvolvimento regional brasileiro, em termos de déficits no comércio doméstico entre as regiões mais desenvolvidas e as menos, e especialmente entre o estado de São Paulo e os do Nordeste, introduzem um componente importante na dificuldade da realização da reforma fiscal, tão discutida há várias décadas, sobretudo no que diz respeito ao ICMS – pela incapacidade estrutural que tem relevado o estado brasileiro em promover as devidas compensações para os estados perdedores com a reforma.
Por fim, merece destaque especial o problema do duplo déficit comercial que uma região do país pode apresentar: no comércio inter-regional e no internacional. Quando tais déficits ocorrem, a região deficitária pode sofrer severos constrangimentos para crescer. Tanto quanto um país, quando uma região apresenta um grande déficit nas suas transações correntes (com o exterior da nação ou com o resto do país) e este déficit não pode ser totalmente financiado por transferências financeiras (do resto do país ou do mundo), a economia da região com déficit estrutural será obrigada a reduzir o crescimento de sua demanda agregada e, assim, sua capacidade de crescimento. Durante muitos anos a economia da Região Nordeste manteve relação deficitária nas relações comerciais totais com seu exterior, registrando, porém, superávit no comércio internacional e déficit no inter-regional – este último maior do que o primeiro – parte do qual era coberto com transferências do governo federal. Assim, foi sempre necessária alguma transferência de recursos do governo central para a região, que ocorria através de políticas de desenvolvimento regional, seja diretamente, via gastos públicos, seja indiretamente, através dos mecanismos de incentivos fiscais e financeiros a atividades produtivas regionais. Este retrato do problema das assimetrias no comércio inter-regional traz como mensagem que somente um forte e crescente influxo de capitais externos (internacionais e do resto do país), também associado à expansão das exportações das regiões deficitárias, possibilitará a obtenção de taxas de crescimento capazes de reduzir as desigualdades regionais existentes. No longo prazo, a variável crítica para o desenvolvimento sustentado dessas economias é a expansão das exportações, associada ao incremento da produção regional de bens substitutos de importações, para que possa ser reduzida sua dependência de volumosas e talvez incertas transferências de recursos de fora da região
[1] Os trabalhos do autor estudam a integração regional no Brasil em perspectiva nacional, usando enfoque empírico e histórico por um período mais longo;
[2] Sobre a qualidade e abrangência dos dados da matriz de 1943, o IBGE declarava que em 1943 “o levantamento havia alcançado elevado grau de precisão e cobertura”. BRASIL, IBGE, AEB, v.VI, 1941-1945, RJ, p. 288.
[3] Foram as seguintes as datas em que se concluíram as principais ligações ferroviárias no Brasil: SP/Rio, 1887; SP/Minas (Triângulo Mineiro), 1888/89; Rio/Minas, a partir de 1869; SP/Mato Grosso e SP/Goiás, a partir de 1905; Rio/SP/Rio Grande do Sul, 1910; SP/Bahia e outros estados do Nordeste, final dos anos 60. (MATOS,1974; AZEVEDO, 1950; DUNCAN, 1932; SILVA,1949; SINGER,1974; e BRASIL, MT,1974;1980).
[4] O autor esteve presente em Brasília, como convidado, para reunião promovida pela Diretoria de Estudos Regionais e Urbanos do IPEA, quando das discussões sobre coleta e apresentação dos dados para os anos de 1996 a 1999 e foi notificado da existência de problemas de cobertura quanto ao processamento dos dados para alguns estados.
[5] Problemas dessa natureza podem ser detectados a partir do confronto entre as matrizes para os estados e a matriz agregada para o país como um todo. Grande parte dos dados dessa matriz não foi ainda divulgada publicamente, mas diversas notas técnicas podem ser encontradas no site www.politicaapls.redesist.ie.ufrj.br. Ver GARCIA et al. (2012), publicado em revista de circulação nacional.
[6] Computações encontradas em GARCIA et al. (2012), assim como as inferências mencionadas acima.
[7] A fonte dos dados para o Estado de Pernambuco é MOUTINHO et al.(2009).