Escassez hidrossocial no município de São Gonçalo, Região Metropolitana do Rio de Janeiro
Andreza Garcia de Gouveia
Doutora em Ciências do Meio Ambiente pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGMA/UERJ); Pesquisadora de Pós-doutorado do Programa de Pós-graduação em Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (LEAU/PROURB/UFRJ)
Rosa Maria Formiga Johnsson
Doutora em Ciências e Técnicas Ambientais pela Université de Paris-Est Créteil (França); Professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Ana Lucia Nogueira de Paiva Britto
Doutora em Urbanismo pelo Institut D'Urbanisme de Paris - Université de Paris XII (Paris-Val-de-Marne); Professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e do Programa de Pós-graduação em Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro
REVISTA POLÍTICA E PLANEJAMENTO REGIONAL – RPPR – Rio de Janeiro, Vol. 8, No. 2, maio a agosto de 2021, p. 161-183 ISBN 2358-4556
Submetido em 31.07.2020; aprovado em 14.05.2021
1. Introdução
Em 28 de julho de 2010 a Resolução A/RES/64/292 da Organização das Nações Unidas (ONU) reconheceu formalmente o direito à água potável e limpa e ao saneamento como essenciais para a concretização de todos os direitos humanos. O direito humano à água potável determina que esta seja, necessariamente, financeiramente acessível, aceitável e de qualidade para todos sem qualquer tipo de discriminação. Também obriga os Estados a eliminarem progressivamente as desigualdades de acesso entre populações rurais ou urbanas, formais ou informais, ricas ou pobres (ONU, 2019).
Em 2007, foi promulgada a Lei Nacional de Saneamento Básico (Lei n° 11.445/07) atualizada pela Lei n° 14.026/20. A Lei 14.026/20 mantém o objetivo de universalização dos serviços que compõem o saneamento básico trazida pela Lei 11.445/07 e a qualidade do atendimento à população. Também obriga a empresa prestadora dos serviços de saneamento, seja de caráter público ou privado, a prestar serviços de forma segura, com regularidade e continuidade, e a ser regulada por entidade delegada. Ainda, para que o serviço prestado esteja em conformidade com os padrões legais, a empresa prestadora de serviços precisa cumprir as metas e resultados estabelecidos pelos planos municipais ou regionais de saneamento, elaborados pelos titulares do serviço – seja município ou consórcio intermunicipal (BRASIL, 2020).
No entanto, entende-se que na atualização da lei, a questão do planejamento na esfera municipal é pouco valorizada em relação à versão anterior: os planos municipais podem ser substituídos pelo plano regional de saneamento básico na medida em que as disposições dos planos regionais prevaleçam sobre aquelas dos planos municipais, quando existirem. Além disso, serão considerados planos de saneamento básico os estudos que fundamentem a concessão ou a privatização, desde que contenham os requisitos legais necessários.
Ademais, estudos recentes demonstram que os serviços públicos de saneamento no na metrópole do Rio de Janeiro ainda estão longe de serem universalizados, apresentando grandes contrastes. Há uma polarização do serviço de melhor qualidade nos municípios centrais (Rio de Janeiro e Niterói) e de qualidade inferior nos municípios da periferia metropolitana - dentre estes últimos, encontra-se o município de São Gonçalo (BRITTO et al., 2016; PDUI, 2019; QUINTSLR, 2018).
As desigualdades no acesso à água são objeto de muitos estudos no campo da ecologia política da água, entre os quais destacamos aqueles que evocam o termo “ciclo hidrossocial” (BAKKER, 2002; LINTON E BUDDS, 2014; LOFTUS, 2007; SWYNGEDOUW,1999; 2004a). Nem apenas natural, nem apenas social, a água tem simultaneamente e inseparavelmente as duas características, tornando-se, portanto, um híbrido social-natural (PERREAULT, 2014; SWYNGEDOUW, 2009). Ela pode ser considerada, como afirma Swyngedouw (2004a), uma coisa “híbrida”, visto que consegue capturar e incorporar processos materiais, discursivos e simbólicos simultaneamente. Nessa linha, é possível formular o conceito de escassez hidrossocial como a escassez de água para pessoas pobres ou não detentoras de influência econômica, política e social em determinados centros urbanos, que não se dá por razões geográficas ou hidrológicas, mas por questões construídas socialmente dentro das lógicas locais da gestão dos serviços públicos de abastecimento, configurando-se em uma “escassez socialmente produzida” ou “escassez hidrossocial” (SWYNGEDOUW, 2004a; 2004b; 2009).
Este artigo visa caracterizar a situação do abastecimento de água do município de São Gonçalo, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, em termos de desigualdade de acesso aos serviços públicos de saneamento básico à luz do conceito da escassez hidrossocial. Para tal, serão utilizados dados censitários do IBGE, informações do Plano Municipal de Saneamento Básico e informações obtidas em entrevistas in loco em dois distritos com baixos índices socioeconômicos.
São Gonçalo foi escolhido pelo seu porte, com a segunda maior população do estado do Rio de Janeiro, estimada em 1.091.737 habitantes pelo IBGE em 2020, mas também pela sua importância na economia estadual, com um PIB de cerca de R$ 16 bilhões no ano de 2015 (IBGE, 2020).
O serviço público de abastecimento de água tratada no município é realizado por meio do Sistema Imunana-Laranjal, gerido pela Companhia Estadual de Águas e Esgotos – CEDAE que abastece também os municípios de Niterói, São Gonçalo, Ilha de Paquetá e Itaboraí – o último, apenas com água bruta. Atualmente, o Sistema Imunana-Laranjal opera com um déficit de 2,2 m³/s de sua capacidade de produção de água tratada, em decorrência de escassez de recursos hídricos no seu manancial de abastecimento (rios Guapiaçu e Macacu) (INEA, 2014). Seu sistema de distribuição é composto por sete reservatórios de água, mas apenas cinco deles estão em funcionamento (ENCIBRA, 2014a). Segundo o Plano Municipal de Saneamento Básico, estes dois reservatórios inoperantes destinam-se a bairros afastados do centro, ocasionando uma cobertura insuficiente do serviço, principalmente em bairros mais vulneráveis do ponto de vista social e econômico do município (Ibid).
Como consequência da ineficiência do abastecimento público de água, o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), identificou 208 mil habitantes (19% da população municipal), em 2018, sem acesso ao serviço, que são obrigados a recorrer a formas alternativas de abastecimento.
Nesse contexto, este estudo pretende contribuir para as pesquisas que aferem a universalização do direito à água potável na Metrópole do Rio de Janeiro, ao demonstrar que, em alguns casos, os déficits na cobertura e na qualidade do serviço estão diretamente relacionados às questões socioeconômicas da localidade analisada.
2. Ciclo hidrossocial & escassez hidrossocial – apontamentos conceituais
O ciclo hidrossocial parte do pressuposto de uma interação entre o ciclo hidrológico natural da água e o homem na sociedade. O homem social ao interferir no ciclo da água, cria um novo ciclo ou hidrossocial, no qual ele é parte integrante e as relações da sociedade são refletidas. Desta forma, cada tipo de organização socioambiental irá produzir um determinado território hidrossocial (BOELENS et al., 2016).
Logo, o conceito hidrossocial, prevê a circulação da água como um processo físico e social combinado, de maneira que funde a natureza e a sociedade de formas inseparáveis. Assim, não se pode considerar o ciclo da água por meio de uma visão tradicional fragmentada e cartesiana, pois, ao se tornarem inseparáveis, o social e o físico, criam novas configurações hidrossociais, de forma que, apenas podem ser compreendidas se inserido o homem no centro deste processo (SWYNGEDOUW, 2009; BOELENS et al., 2016).
Portanto, a relação social e econômica criada com a água, que transpassa as relações ecológicas e da própria necessidade física deste elemento, acarreta nas cidades capitalistas – ou, ao menos nas cidades em que as formas de troca se estabeleçam sobretudo pelas relações de mercado - que a circulação da água, ou o ciclo hídrico, também faça parte da circulação de dinheiro e capital, e seja determinado pela estrutura das relações sociais, caracterizando o ciclo hidrossocial (SWYNGEDOUW, 2004a; BOELENS et al., 2016).
Para Guy et al. (2010) as infraestruturas de produção e distribuição de água para o abastecimento da população não são somente instrumentos técnicos, mas também, arranjos institucionais e organizacionais, com lógicas socioculturais próprias, que representam um sistema sociotécnico complexo. Consequentemente, as escolhas técnicas e tecnológicas empregadas na estrutura do abastecimento de água irão refletir as relações sociais, as condições políticas, econômicas, culturais e geográficas, de cada lugar, que permearão sua instalação, operação e aproveitamento.
No geral, os residentes de grandes metrópoles usufruem de serviços públicos de abastecimento de água e esgotamento sanitário caracterizados por: infraestruturas centralizadas e organizadas na esfera metropolitana em macrossistemas supramunicipais; serviços técnicos e decisões burocráticas com alto grau de centralização e pouco adaptáveis; padrões de água potável uniformes para todos os usos; tarifas quase sempre relacionadas em função do volume consumido pelo usuário final, não refletindo a situação hídrica momentânea; e a dependência de infraestruturas existentes, muitas vezes inadequadas e obsoletas (GUY et al., 2010; BRITTO et al., 2016).
Para que nesses sistemas seja alcançada uma oferta de serviços de qualidade, nas zonas urbanas, é necessário um investimento significativo em longo prazo. O lucro não se torna um fator garantido, principalmente em setores urbanos de baixos níveis econômicos. Assim, exemplos atuais no mundo têm identificado a existência da preferência de companhias privadas de água em ofertar o serviço somente nas regiões que lhe proporcionarão retorno financeiro, ou seja, essas companhias consideram apenas as grandes cidades aptas a usufruírem de um serviço de qualidade.
Constata-se assim que, em face da sociedade capitalista, uma nova lógica é criada. Lógica que segmenta as oportunidades de utilização dos recursos hídricos em função da disponibilidade de capital, fomentando uma nova vertente do ciclo hidrossocial que condiciona a participação do homem no ciclo hidrológico à sua renda (SWYNGEDOWN, 2004b; BOELENS et al., 2016). Como exemplo, há o grande capital (financeiro e tecnológico) utilizado para se transportar água de uma determinada região para outra, desprovida hidricamente – como para grandes cidades e polos industriais – mas dotada de representatividade econômica.
Os novos arranjos assim criados na sociedade para a água definirão os atores sociais que terão acesso, ou não, ao recurso hídrico. Portanto, grupos influenciadores da sociedade capitalista, decidirão, em última instância, as relações que toda a sociedade terá com a água e com outros recursos disponíveis no meio ambiente (SWYNGEDOUW, 2009).
Logo, em relação à água, a escassez desse bem, vai muito além da disponibilidade relacionada a questões geográficas, geomorfológicas ou hidrológicas; mas, sobretudo, é relacionada a questões econômicas, políticas, culturais e sociais, que irão produzir a disponibilidade ou a escassez hídrica para um determinado grupo socioespacial.
Chega-se, portanto, ao conceito de escassez hidrossocial: este conceito considera a circulação da água, nos espaços urbanos, como uma simbiose entre os aspectos físico e social (SWYNGEDOUW, 2004b, BAKKER, 2002). Ou seja, grupos sociais com menor capacidade de defender seus interesses, como a população às margens do poderio econômico, social e político estão mais sujeitos a serem afetados pela escassez hídrica. Dessa forma, a exclusão ou a escassez ao acesso do serviço público de abastecimento de água tratada, pela população de menor renda e não detentora de algum tipo de influência nas tomadas de decisão em sociedade se concretiza em uma exclusão socialmente construída, denominada de “escassez hidrossocial” (SWYNGEDOUW, 2004a).
3. Abastecimento de água no município de São Gonçalo/RJ
São Gonçalo, a 20 minutos da capital, possui uma área total de 247,7 Km², correspondente a 5% da área total da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Seus limites territoriais fronteiam os municípios de Itaboraí, Maricá, Niterói e Baía de Guanabara, como mostra a Figura 1 na página seguinte.
O município é o segundo mais populoso do estado do Rio de Janeiro com 1.091.737 habitantes, distribuídos em 325.882 domicílios permanentes, sendo 29.907 destes localizados em assentamentos precários. Utilizando como critério o PIB, São Gonçalo ocupou o 6° lugar no ranking estadual entre municípios no ano de 2015. Contudo, há grandes desigualdades sociais e econômicas entre seus distritos administrativos: em 2010, o índice de pobreza municipal era de 24,8%, com 80.043 habitantes da população – 8,2% do total – com renda domiciliar per capita inferior a R$ 140,00 (IBGE, 2020)
Figura 1. Localização do Município de São Gonçalo no Estado do Rio de Janeiro e no Brasil
Fonte: As autoras, 2020.
Na Figura 2 é mostrado que o município é dividido administrativamente em 05 distritos: São Gonçalo (sede), Ipiíba, Monjolos, Neves e Sete Pontes, totalizando 90 bairros (SÍTIO DA PREFEITURA, 2020).
Figura 2. Distritos Administrativos
Fonte: GOUVEIA, 2017.
O sistema de água que abastece o município é denominado Imunana-Laranjal, operado pela CEDAE. Além de São Gonçalo, o Imunana-Laranjal abastece os municípios de Niterói, Ilha de Paquetá e Itaboraí – este último, apenas com água bruta–, totalizando uma população de 1.701.973 habitantes no ano de 2010 (ano do último censo demográfico). Atualmente, o Sistema opera com um déficit de 2,2 m³/s de sua capacidade de tratamento, em função da indisponibilidade de água bruta do manancial de abastecimento, o rio Guapi-Macacu. Segundo o Plano Estadual de Recursos Hídricos o Sistema Imunana-Laranjal não possui uma separação física entre adução e distribuição ocasionando a flutuação no abastecimento de água em relação à variação da demanda, principalmente em São Gonçalo (INEA, 2014).
A distribuição municipal de água tratada é composta por sete reservatórios, sendo dois inoperantes (nos bairros de Santa Izabel e Tribobó), seis elevatórias e 1.687 km de extensão (SNIS, 2018). Atualmente, a reservação de água opera com um déficit de 74.488 m³, volume superior ao próprio volume reservado (ENCIBRA, 2014b). A falta da universalização no acesso ao serviço público de abastecimento de água atingia, em 2015, o número de 60.210 domicílios (20,3%) que ainda utilizavam formas inadequadas de abastecimento de água, seja: por utilizarem rede, poços ou nascentes sem canalização interna; por consumirem água fora dos padrões de potabilidade; por sofrerem com intermitência prolongada ou racionamentos; por utilizarem cisternas para água de chuva, sem segurança sanitária e/ou em quantidade insuficiente para a proteção à saúde; ou, por serem abastecidos por carros-pipa (TCE/RJ, 2015). Com relação ao total da população com acesso a rede de distribuição de água, o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) aponta que mais de 208.930 habitantes (em torno de 19% da população municipal), em 2018, não tinham acesso ao serviço, recorrendo a formas alternativas de abastecimento como por poços ou carros-pipa (SNIS, 2018).
Outro grande problema encontrado no município é a falta de hidrometração. Ainda no ano de 2018, o sistema contava com 270.610 economias ativas, sendo 243.308 residenciais, e, apenas 169.602 com micromedição por hidrômetros. Ou seja, o município possuía 101.008 (37,3%) economias sem hidrometração, medidas por consumo presumido. Esta situação gera um alto consumo de água médio per capita de 220 l/hab/dia (SNIS, 2018), o que acaba por produzir uma pressão maior da demanda por água tratada nas regiões assistidas pelo serviço público de abastecimento.
4. A situação econômica e de abastecimento de água em distritos selecionados do município
O objeto deste estudo de caso é o abastecimento de água no município de São Gonçalo/RJ. Ao investigar a existência da escassez hidrossocial no município, a investigação está dividida, metodologicamente, em duas etapas:
- a primeira, de caráter descritivo com base documental,teve a finalidade de caracterizar a atual situação econômica e do abasteciemnto de água no município;
- a segunda, caracterizada como um momento exploratório, de caráter qualitativo, foi realizada por meio de uma pesquisa de campo em bairros de baixos indicadores sociais e econômicos do município para verificar a qualidade do serviço prestado.
Na primeira etapa foram realizados mapeamentos do abastecimento de água e de indicadores de renda em São Gonçalo por meio de dados em nível dos setores censitários municipais do Censo Demográfico do IBGE no ano de 2010. As informações obtidas foram organizadas em cartas temáticas, com utilização do software ArcGis 10.1, o que permitiu a análise sistemática global da situação observada. Para corroborar com estes resultados, também foram coletadas algumas informações referentes ao abastecimento de água municipal disponibilizadas no Plano Municipal de Saneamento Básico de São Gonçalo (PMSSG).
Para a realização da segunda fase, foi selecionado o distrito de Monjolo que compreende 17 bairros e 216.157 habitantes na porção nordeste municipal e possui baixos índices sociais e econômicos e a pior cobertura do serviço público de abastecimento de água tratada. Nele, a pesquisa de campo se concentrou em dois bairros: Jardim Catarina (73.493 habitantes) e Bom Retiro (24.878 habitantes). Além da sua representatividade no contingente populacional municipal, os bairros descritos foram selecionados devido a sua importância social e histórica, respectivamente, para o município:
- O loteamento do bairro do Jardim Catarina iniciou-se ainda na década de 1950, intensificando-se ao longo dos anos 70 e 80. Atualmente, o bairro é considerado um dos maiores loteamentos populares da América Latina, com 25 mil lotes e 73.042 habitantes (IBGE, 2010). Somente após 40 anos da construção da Estação de Tratamento de Água (ETA) Laranjal, no mesmo bairro, foi iniciado o processo de conexão de suas residências ao sistema de abastecimento público. Contudo, ainda permanecem algumas áreas, mais recentemente ocupadas no bairro, despossuídas de redes gerais de abastecimento, enquanto outras, mesmo ligadas ao sistema, encontram-se submetidas à intermitência (BRITTO et al., 2017).
- O bairro do Bom Retiro pertence a uma das primeiras áreas ocupadas em São Gonçalo, ainda nos anos 1500. A partir da década de 1980 sofreu um esvaziamento populacional devido à crise da cultura agrícola da região. Posteriormente, seguiu a mesma tendência de expansão populacional de todo o município: rápida, sem planejamento e sem investimentos por parte do Poder Público, baseada na dinâmica de loteamentos populares (BEZERRA; FRANCISCO, 2003).
A pesquisa de campo foi realizada em um setor censitário de cada bairro e teve por finalidade aferir tanto a qualidade do serviço público de água prestado em um bairro com baixos índices socioeconômicos (Jardim Catarina), quanto aferir às condições do abastecimento de água de cunho alternativo e individual - por poços - em um bairro desprovido do serviço público (Bom Retiro). As entrevistas foram realizadas em 10% (dez por cento) das residências de cada setor, com a aplicação de questionários semi-estruturados, entre os meses de setembro e outubro de 2016. A tabela 1 apresenta uma síntese das características dos setores selecionados.
Tabela 1. Características dos setores entrevistados
Fonte: As autoras, 2020.
5. Características da escassez hidrossocial em São Gonçalo
Ao aplicar a forma de investigação proposta, as seguintes sessões demonstram como a escassez hidrossocial no município de São Gonçalo se desenvolve, tanto em termos de dados oficiais quanto em fenômenos encontrados por meio da pesquisa in loco.
5.1. A escassez hidrossocial em São Gonçalo segundo dados oficiais
Através dos dados obtidos, observou-se que os melhores níveis de renda da população concentram-se na porção geográfica central do município, principalmente na sede municipal, onde o índice de renda mensal atinge valores próximos a 10 salários mínimos (Figura 3). Em contraste, há a concentração dos menores índices econômicos nas áreas mais afastadas do centro municipal, cenário que pode ser explicado pelo processo da expansão loteadora iniciado na década de 1960.
Figura 3. Renda média mensal dos domicílios
Fonte: Elaborado a partir do Censo do IBGE, 2010.
O processo de loteamento em São Gonçalo propiciou a segregação e a concentração da pobreza em alguns bairros, como: Boaçu; Boa Vista; Guaxindiba; Salgueiro; Água Mineral, Engenho Pequeno, Jardim Catarina, bairro das Palmeiras, Itaoca, entre outros às margens da Baía de Guanabara (MENDONÇA, 2007). Estas áreas pertencem, no geral, aos distritos do Centro, Neves e Sete Pontes, culminando em uma concentração de renda municipal, diferenciada da média do município, em torno de bairros como Zé Garoto, Centro, Estrela do Norte, São Miguel, Trindade, Mutondo, Nova Cidade, Parada 40, Galo Branco, Rocha, entre outros.
Quanto ao abastecimento de água, a forma predominante no Município é por rede geral de distribuição (Figura 4). O censo do IBGE (2010) declarou a existência do total de 258.290 domicílios com abastecimento público nas áreas urbanizadas.
Figura 4. Abastecimento de água por rede de distribuição
Fonte: GOUVEIA, 2017.
Entretanto, este abastecimento se concentra no Centro e na parte Oeste do município, em alguns pontos da região Sudoeste e também Noroeste. Essas áreas abrigam quase que totalmente os distritos de Neves e Sete Pontes, mais próximos, com poucas exceções, à Niterói e à Baía de Guanabara; e, também, o distrito do Centro, excluídos alguns pontos ao Norte do Distrito. Nestes distritos, o índice de cobertura do abastecimento de água predominante é de 75% a 100%, com raras variações que não ultrapassam o limite mínimo de 25% a 50% de cobertura. Nota-se que, quão mais próximas as áreas à região central do território municipal, os índices se tornam mais altos até alcançarem a totalidade de cobertura (100%) no ponto central do distrito Centro.
A segunda forma de abastecimento de água de maior significância no município é por poço ou nascente (Figura 5). Um fator interessante é que esta forma de acesso à água predomina quase todo o distrito de Monjolo, se intensificando em direção a Itaboraí. Também, esta forma de abastecimento é predominante em alguns pontos ao Noroeste do distrito do Centro - em bairros como Itaoca, Salgueiro, Porto do Rosa, Fazenda dos Mineiros, entre outros; em parte considerável do distrito Sete Pontes; e, no distrito de Ipiíba.
Figura 5. Abastecimento de água por poço
Fonte: GOUVEIA, 2017.
O Plano Municipal de Saneamento Básico do Município indica que os setores pertencentes aos bairros do Rio do Ouro, Engenho do Roçado, Ipiíba, Santa Izabel e Largo da Ideia, no distrito de Ipiíba (não apresentados nos resultados desta pesquisa, por serem considerados “zonas rurais” pelo IBGE) possuem percentuais altos de abastecimento de água por poço, em sua maioria, com valores que variam de 75% a 100% do total dos domicílios existentes nestes bairros (ENCIBRA, 2014b).
O abastecimento por cisterna de água de chuva possui pouca representatividade e apresenta-se em áreas fora do eixo central municipal (Figura 6). Já “outras formas de abastecimento”, compostas, entre outros, por abastecimento de água por carros-pipa, apresentam indicadores mais elevados (Figura 7). Há setores com até 100% dos domicílios existentes abastecidos dessa forma distribuídos em todos os distritos, sobretudo, nas regiões mais próximas dos limites do Município.
Figura 6. Abastecimento de água por cisterna
Fonte: GOUVEIA, 2017.
Figura 7. Abastecimento de água por outras formas de abastecimento
Fonte: GOUVEIA, 2017.
Cruzando-se os resultados de abastecimento de água por rede de distribuição com os resultados de renda (Figura 8), é possível observar que a maior parte da infraestrutura pública de distribuição de água encontra-se precisamente nos mesmos distritos que contam com os melhores níveis de renda da população. Ou seja, os distritos que apresentaram os melhores índices de renda média mensal são completamente assistidos pelo serviço.
Figura 8. Renda média mensal x Abastecimento de água por rede de distribuição
Fonte: Elaborado a partir do Censo do IBGE, 2010.
À medida que os valores de renda média da população decaem, os níveis de cobertura do serviço público de abastecimento de água tratada também se tornam mais incipientes. , Em localidades com predominância da renda média domiciliar mensal em torno de um salário mínimo, se encontra um comportamento inverso no acesso aos serviços de abastecimento de água tratada, com índices que diminuem até a faixa de 0 a 10% de cobertura, principalmente nos distritos de Monjolo e Ipiíba.
Em suma, por meio da sobreposição dos cartogramas de renda e abastecimento de água por rede de distribuição, percebe-se que há uma estreita relação entre o indicador de renda e o indicador de abastecimento público de água. Essa tendência expressa-se na concentração da infraestrutura de abastecimento público de água nas zonas Central e Leste do município, áreas com melhores indicadores econômicos; e, ao contrário, aumenta a ausência ou presença de forma incipiente de cobertura da infraestrutura de abastecimento público de água nas áreas mais afastadas desse eixo – regiões mais próximas aos limites de Itaboraí e Maricá.
A lógica da disposição da infraestrutura de distribuição de água tratada no município de São Gonçalo pode ser explicada, em parte, pela lógica de urbanização e ocupação do solo, na qual estas áreas menos assistidas pertencem, em sua grande parte, às áreas cuja ocupação se deu a partir da década de 1960 pelo processo de loteamentos. Todavia, há bairros, como Guaxindiba e Bom Retiro, no distrito de Monjolo, pertencentes a áreas primeiramente ocupadas no Município ainda nos séculos XVI, XVII e XVIII, que ainda não são atendidos por serviços públicos de abastecimento de água e/ou por rede coletora de esgotamento sanitário.
Logo, argumentos que atribuem à falta de infraestrutura urbanística e de serviços públicos à rápida e desordenada ocupação do solo em grandes cidades urbanas não se adequam ao caso de São Gonçalo, já que vários bairros de importância histórica ao município ainda não possuem rede pública de água.
Portanto, pode-se chegar à conclusão que além dos fatores que contribuíram para a expansão urbana desordenada no município, há fatores que mantém esta configuração de exclusão nos serviços públicos de abastecimento de água a determinadas regiões com menor importância social e econômica.
Corroborando com esta lógica, BRITTO et al. (2016) e Formiga-Johnsson e Britto (2020) ressaltam em seus estudos sobre o abastecimento público da Região Metropolitana do Rio de Janeiro que há problemas de acessibilidade à distribuição de água tratada, principalmente nos municípios da periferia metropolitana. Essa situação é observada tanto no leste metropolitano, abastecido pelo Sistema Imunana-Laranjal, quanto no oeste metropolitano, abastecido pelo Sistema Guandu/Lajes/Acari[1].
As autoras denominam este cenário como o resultado da escassez hidrossocial produzida por uma “escassez estrutural” decorrente da não completude dos sistemas de abastecimento público e do modo de gestão dos serviços, que, até hoje, não conseguiram implantar sistemas de abastecimento completos e eficientes nos municípios da periferia urbana. Por conseguinte, a escassez hidrossocial se materializa na metrópole do Rio de Janeiro, para as autoras, na medida em que a falta acesso aos serviços públicos de abastecimento de água ocorre em áreas periféricas da metrópole; enquanto, os núcleos metropolitanos, Niterói e Rio de Janeiro, pertencentes aos sistemas Imunana-Laranjal e Guandu/Lages/Acari, respectivamente, possuem quase 100% dos seus domicílios abastecidos pelos referidos sistemas.
5.2. Escassez Hidrossocial ‘in loco’: entrevistas com a população local
Por meio das entrevistas no setor pesquisado do bairro do Jardim Catarina, aferiu-se que somente 16% dos entrevistados utilizavam o serviço público de abastecimento de água tratada como única forma de provisão de água. A mesma porcentagem (16,6%) nunca utilizava a rede de distribuição de água; e, a maior parcela dos entrevistados (66,8%) utilizava formas combinadas para o suprimento de água em suas residências, associando: rede de distribuição, cisternas e poços.
Quanto à qualidade do serviço público de abastecimento de água, mais da metade dos entrevistados (55,5%) informaram que este abastecimento ocorria uma única vez na semana, no período noturno (83,3%) e com uma pressão considerada fraca (89,9%). Outro problema encontrado foi a falta de regularidade nos dias da distribuição da água, dificultando a criação de uma logística para o melhor aproveitamento da mesma. Desta forma, 61% consideraram a quantidade de água disponível em suas casas como insuficiente para a realização das suas tarefas diárias.
Quanto à tarifa da água, a grande maioria (77,8%) não pagava suas contas por motivos diversos, como: não receberem a fatura em suas residências; não concordarem com a tarifa cobrada; não receberem um serviço de qualidade; e já possuírem outra forma de abastecimento de água (poço) e não temerem o corte do serviço pela CEDAE. Constatou-se que em mais de 83% das residências entrevistadas não foram instalados hidrômetros, e, na metade dos entrevistados, o valor cobrado é por consumo estimado.
O setor, apesar de ter recebido obras de urbanização, possuía 11,1% dos domicílios entrevistados sem rede de coleta, lançando, portanto, seus esgotos sanitários in natura em um rio local (Figura 9). Dos moradores ligados à rede coletora de esgotamento sanitário operado pela CEDAE, mais de 33,3% declararam que a mesma funcionava de maneira precária, com galerias inacabadas – expondo os dejetos ao ar livre, e, com incapacidade de suportar dias chuvosos, promovendo o extravasamento de esgoto em suas ruas e até mesmo em suas propriedades (Figura 10).
Figuras 9 e 10. Rio receptor de esgotos sanitários e galeria inacabada
Fonte: GOUVEIA, 2017.
Um fenômeno relevante, observado nas entrevistas no bairro do Jardim Catarina, foi a proximidade de poucas ruas com a Estação de Tratamento de Água do Laranjal e uma revendedora de água por meio de carros-pipa (Figura 11).
Figura 11. Localização das ruas entrevistadas
Fonte: GOUVEIA, 2017.
Pelo relato de alguns moradores, eles adquirem também água por carros-pipa, enquanto essa seria a única forma de provisão de água em outro setor próximo. Salienta-se que, em janeiro de 2017, o valor pago pela água por este tipo de abastecimento atingia R$ 220,00 por 10.000 litros (10 m³). Ao mesmo tempo, a tarifa para este volume de água pelo abastecimento por rede domiciliar em São Gonçalo era de R$ 27,10 por 10m³. Ou seja, confirma-se assim, que moradores que precisam adquirir água através de carro-pipa no seu bairro têm um custo muito superior em relação a moradores atendidos pela rede de distribuição de água.
Nas entrevistas realizadas no setor do bairro do Bom Retiro, que não dispunha de serviço público de abastecimento de água, as formas de abastecimento de água encontradas foram as seguintes: 83,4% por poço (raso ou artesiano); e, 16,6% por carros-pipa ou pela utilização de água de poços de vizinhos – sendo que este último grupo não possuía nenhum tipo de provisão de água independente. Um importante ponto a ser destacado é que o setor não havia sido contemplado com obras de urbanização; a época, não possuía asfaltamento em suas ruas, nem galerias de águas pluviais, nem sistema de água ou esgoto por rede geral.
Ao considerar todas as formas de obtenção de água relatadas, 80% da população julgam a quantidade de água disponível suficiente para a realização da sua rotina doméstica diária; os restantes 20% que consideraram a água como insuficiente não possuíam poços em suas propriedades, ou, possuíam poços rasos, sujeitos a variação da oferta de água em determinados períodos sazonais.
Quanto à qualidade da água, 13,3% dos entrevistados afirmaram obter a água de seus poços com a aparência turva, ou seja, com acúmulo de sedimentos do próprio poço. Ainda assim, 30% destes declararam utilizar somente a água oriunda de poços, sem submetê-la a nenhum tipo de tratamento (filtragem ou fervura) antes de consumi-la. Um fator que agrava a falta de tratamento da água captada nos poços do setor é a simultânea inexistência de uma rede coletora de esgotamento sanitário o que aumenta o risco de contaminações cruzadas esgoto/água. Casos relatados de ocorrência de virose e diarreia em 20% e 3,3% das entrevistas, respectivas, podem ser uma possível consequência desta falta de tratamento da água para o consumo.
Em relação às formas de disposição dos esgotos domiciliares na comunidade do setor estudado, se obteve que mais da metade (53,3%) utilizavam fossa ou sumidouro; 3,3% vala exposta; e, 40% utilizavam um sistema comunitário construído pelos próprios moradores (Figuras 12 e 13).
Figuras 12 e 13. Sistema comunitário interligando sumidouros e extravasamento de esgoto
Fonte: GOUVEIA, 2017.
Em relação ao desempenho dessas “soluções” adotadas, 36,7% declararam que elas funcionavam de forma precária, pois apresentavam: problemas de umidade de muros e solos, nos quais atribuíram à presença de sumidouros; a presença de “línguas negras” e “brejos de esgoto” mesmo em dias ensolarados; entupimentos regulares no sistema comunitário; mau cheiro; e, transbordamentos de esgoto em dias chuvosos – nas áreas comuns e em alguns quintais de propriedades. Assim, 26,7% das pessoas entrevistadas afirmaram que, as mesmas ou familiares, já contraíram doenças de pele, diarreia e/ou dengue.
6. São Gonçalo e o ciclo hidrosocial excludente
A pesquisa e as entrevistas realizadas em São Gonçalo mostram, claramente, um descumprimento do direito humano ao acesso à água potável e mesmo dos princípios fundamentais já presentes na Lei de Saneamento Básico (Lei 11.445/07) que foram ratificados no Novo Marco do Saneamento Básico da 14.026/20. Falta de cumprimento, sobretudo, no que tange à universalização do acesso e efetiva prestação do serviço; ao abastecimento de água de forma adequada à saúde pública e à proteção do meio ambiente; e ainda, à segurança, qualidade, regularidade e continuidade.
Ainda que toda a infraestrutura urbanística do município de São Gonçalo tenha resquícios do seu processo de ocupação do solo e urbanização – nos quais, bairros mais ao Leste e ao Sul foram posteriormente ocupados – observa-se que o direcionamento recente das políticas públicas de infraestrutura urbana terá como consequência manutenção e perpetuação da segregação socioespacial. Enquanto áreas próximas ao Centro, com melhores indicadores econômicos, recebem obras e manutenção urbana, outras áreas mais afastadas nunca receberam obras de pavimentação – caso de alguns pontos dos bairros do distrito de Monjolo, por exemplo.
No ano de 2008 foi renovado o contrato de concessão entre o município e a CEDAE para a prestação dos serviços públicos de abastecimento água e de esgotamento sanitário por mais 20 anos. Como uma das suas cláusulas, previa o investimento de até R$ 140 milhões, até seu término, para a ampliação e aumento da eficiência nos serviços, que deveriam ser ampliados para 90% dos domicílios. No entanro, no decorrer do ano de 2019, ainda permaneciam ações projetadas a serem concluídas inicialmente em 2014, em fase de relicitação: como a construção de reservatórios e a ampliação do sistema de distribuição que beneficiariam a população do distrito de Monjolo (CEDAE, 2019).
A manutenção do quadro de desigualdade no acesso à água deve-se também ao Poder Público municipal responsável, até então, pela regulação e fiscalização dos serviços públicos de saneamento básico. Segundo o Artigo 25 da Lei 11.445/07, vigente ainda na época da pesquisa, o poder municipal deveria exigir do prestador de serviço “todos os dados e informações necessários para o desempenho de suas atividades, na forma das normas legais, regulamentares e contratuais” (BRASIL, 2007). Dessa forma, era de responsabilidade integral do governo municipal fiscalizar o andamento e cumprimento de todas os compromissos acordados em contrato com a CEDAE, bem como, exigir que otimização do sistema e universalização do serviço fossem cumpridas em sua plenitude. Ressaltando que, a maior parte das ações acordadas tinham sido direcionadas às populações dos bairros mais vulneráveis do município.
Ao utilizar o conceito do ciclo hidrossocial como fundamento balizador da interpretação do contexto hídrico urbano de São Gonçalo, segue a premissa do fluxo de água ser resultado não apenas de uma condição natural, mas do produto da reordenação socionatural, no qual, este mesmo fluxo, reflete as projeções econômicas, políticas, simbólicas e sociais atribuídos ao espaço urbano. A circulação da água urbana expressa, mais do que o seu ciclo hidrológico em condição de abundância ou escassez, todas as relações de dominação e subordinação no espaço urbano, de acesso ou exclusão aos benefícios ambientais, da emancipação ou sujeição do capital ou da falta dele.
Apesar de várias áreas do distrito de Monjolo serem mais espacialmente próximas dos pontos de tratamento e distribuição de água, o distrito possui os menores percentuais de cobertura do serviço. Nos domicílios entrevistados atendidos do Jardim Catarina, observou-se o fornecimento da água com qualidade insatisfatória, intensa irregularidade no abastecimento e com períodos de até 144 horas sem água. Os horários de abastecimento às residências eram poucos viáveis para o seu aproveitamento, geralmente tarde da noite o que gerou insegurança aos moradores e a sensação de que “nunca se vê a água”. Como tentativa de minimizar a lacuna deixada pelo desabastecimento de água, a maioria dos entrevistados do bairro possuíam poços para complementar a sua demanda hídrica domiciliar, porém, com água de qualidade duvidosa e ocorrências de doenças relacionadas à água. Os moradores que utilizavam carros-pipa para o complemento de sua demanda tinham custos até oito vezes mais onerosos pelos mesmos volumes de água fornecidos pela companhia de abastecimento CEDAE.
No Bom Retiro, a ausência da rede de distribuição de água, obrigava os moradores a se utilizarem de provisões de cunho alternativo. Todos os entrevistados captavam água em poços próprios ou cedidos. Relatos afirmaram que a flutuação no volume e a má qualidade da água consumida (geralmente de poços rasos com custo de implantação menos onerosos), em alguns momentos, causavam a inviabilidade de sua captação e consumo devido ao maior teor de turbidez. Entretanto, mesmo na captação da água por poços artesianos, foram relatadas ocorrências de doenças de veiculação hídrica, provavelmente, por também não haver rede coletora de esgotamento sanitário, obrigando o uso de fossas e sumidouros próximos aos poços de captação dentro das propriedades.
Portanto, limitações de uso e ocupação do solo, por si só, não explicam a escassez hídrica vivenciada por moradores de tais regiões. O distrito de Monjolo é seio do sistema de tratamento e distribuição de água tratada para toda a população de São Gonçalo, Paquetá e Niterói, porém abriga muitos pontos de escassez. O setor com domicílios entrevistados no Jardim Catarina, por exemplo, possui toda a infraestrutura necessária do tronco de distribuição até as ligações prediais, porém, o período em que o abastecimento é realizado o faz parecer uma região que sofre de crise hídrica.
Monjolo e Ipiíba possuem ao mesmo tempo os piores indicadores de cobertura do serviço público de abastecimento de água tratada e os piores níveis de renda de São Gonçalo. Logo, o conceito de escassez hidrossocial se aplica adequadamente ao contexto hídrico urbano municipal. A água tratada, segundo os resultados obtidos, está presente onde há melhores indicadores socioeconômicos e a certeza de retornos financeiros por meio do pagamento adimplente das tarifas cobradas. Ainda, a escassez produzida se perpetua nos moldes instaurados na medida em que ações direcionadas para a inclusão ou melhoria do acesso nas áreas periféricas são preteridas e constantemente adiadas, revelando a falta de prioridade e comprometimento com estas questões pelo titular do serviço. A premissa da exclusão da água socialmente produzida se fortalece, na constatação fornecida pelos resultados de que pontos mais afastados do início de linha tronco de distribuição, porém, mais próximos ao eixo do centro municipal e ao próprio município de Niterói, possuem os melhores índices de cobertura concomitantemente com a maior importância produtiva e econômica do município.
7. Considerações finais
A discussão no item anterior sobre a interpretação do abastecimento público de água em São Gonçalo por meio do ciclo mostrou elementos que permitem defender a hipótese que o abastecimento no município excluiu do acesso à água tratada a população mais pobre, residente em áreas mais vulneráveis. Como se viu, áreas próximas ao eixo central do município possuem os melhores percentuais de cobertura enquanto as áreas periféricas, onde predominam os piores índices socioeconômicos, possuem baixos índices de cobertura e qualidade insatisfatória dos serviços de água. Portanto, a população de menor renda é tanto excluída dos serviços públicos de água quanto é penalizada por pertencer às classes de níveis econômicos mais baixos. Ou seja, exclui-se o cidadão do acesso à água segura ao mesmo tempo em que a falta de água exclui o cidadão.
Através dos resultados obtidos, constatou-se também que o argumento comumente atribuído à falta de universalização do saneamento básico em cidades brasileiras em decorrência da rápida e desorganizada ocupação do solo, não se aplica ao caso de São Gonçalo. Alguns bairros de importância histórica e pioneiros na ocupação territorial, como o bairro do Bom Retiro, não possuem abastecimento de água e nenhum outro tipo de obra urbanística como pavimentação, galerias de drenagem pluvial e rede coletora de esgotamento sanitário.
Cabe salientar que a escassez socialmente produzida também pode ser agravada com a escassez da água bruta. No caso de São Gonçalo, a situação vulnerável do Sistema Imunana-Laranjal pode efetivamente agravar a escassez hidrossocial, principalmente para os distritos de Monjolo e Ipiíba.
Em julho de 2020, após dez anos do acesso à água e ao saneamento serem considerados como um direito humano fundamental pela ONU, o Brasil atualizou seu dispositivo legal do setor. Contudo, o Novo Marco Legal do Saneamento traz consigo uma grande abertura para que empresas privadas assumam a prestação dos serviços de saneamento ao estimular a livre concorrência e a competitividade no setor.
Cabe destacar que, no fim do mês de abril de 2021, após forte pressão para a privatização da CEDAE iniciada no ano de 2017 após o Estado do Rio de Janeiro entrar no Regime de Recuperação Fiscal com o Governo Federal, a companhia foi leiloada. Esta tendência privatista se fortaleceu com a expectativa de que o valor arrecadado serviria para o pagamento do acordo fiscal firmado. No leilão, 03 dos 04 blocos de municípios formados a partir de uma modelagem realizada pelo BNDES foram arrematados. Dentre estes, encontra-se o bloco 01 no qual São Gonçalo foi agregado à parte do município do Rio de Janeiro e a mais 17 municípios. O bloco foi arrematado pelo valor de R$ 8,2 bilhões pelo Consórcio Aegea. Por esta nova modelagem, a CEDAE continuará a captar e a tratar a água e a Aegea distribuirá por todo o bloco.
Chega-se, portanto, como conclusão deste estudo, que o futuro das áreas vulneráveis do ponto de vista social e econômico, sem acesso ao serviço público de abastecimento de água no município, é incerto. Ações que estão em andamento para reduzir as desigualdades no acesso, principalmente em áreas mais pobres, poderão não ser mais concluídas nesta nova configuração do serviço no município. Ainda que por critério legal tais áreas devam estar incluídas nas metas de contrato, a universalização nestas regiões requer grandes investimentos com retorno em longo prazo, e, que poderá não ser garantido, considerando o modelo de concessão firmado. Este estudo demonstrou por meio da pesquisa de campo no setor assistido por rede geral de água, grande índice de inadimplência no pagamento do serviço, dentre outros, motivada pela falta de capacidade financeira para tal. Será que uma empresa que visa à obtenção de lucros para seus acionistas, investirá em áreas que poderão resultar em mais prejuízos do que benefícios do ponto de vista financeiro?
Logo, considera-se que para que se possa realizar uma análise crítica dos avanços no direito a água tratada nos municípios brasileiros, incluindo o município de São Gonçalo, é fundamental conhecer a situação real de acesso ao serviço para as populações vulneráveis, sendo que o trabalho ora apresentado busca contribuir nesse sentido.
[1] Dos 18 municípios da RMRJ, somente três são abastecidos por sistemas isolados.