Políticas públicas de transporte urbano na metrópole do Rio de Janeiro e sua (das)articulação: análise do Plano Diretor de Transportes Urbanos de 2015
Gabriel Teixeira Barros
Doutorando em Geografia na UERJ, Técnico de Pesquisa do IBGE.
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1. Introdução
O presente trabalho procura discutir alguns elementos das políticas públicas de transporte urbano na metrópole do Rio de Janeiro e sua inserção e articulação em três escalas político-administrativas: como o planejamento do transporte na metrópole se insere nas determinações que, no início do novo século, foram criadas a nível federal em relação ao desenvolvimento urbano e como se articula, na hierarquia entre os níveis federativos, com planos e propostas em nível estadual e com alguns municípios membros da região metropolitana. Especificamente em relação ao transporte na metrópole do Rio de Janeiro, visa mostrar um exemplo da problemática de articulação entre diferentes níveis federativos. Ainda, possui como objetivo específico analisar a metodologia de seleção dos projetos de infraestrutura que integraram o Plano Diretor de Transportes Urbanos (PDTU) de 2015.
Os anos de 1990 marcam no planejamento urbano das metrópoles mundiais, após o noivado, o casamento entre os gestores públicos da cidade e os atores privados portadores do capital transnacional. Essa nova forma de gerir a cidade deu origem ao que foi chamado de Planejamento Estratégico das cidades, modus operandi este, não por coincidência, repleto de jargões importados do mundo dos negócios empresariais (business), como gestão e marketing. Na esteira da difusão das políticas neoliberais pelo mundo, esse processo tem, na América Latina, como importante marco o "Consenso de Washington" (BATISTA, 1994) e a transnacionalização do capital financeiro à procura de boas oportunidades de investimento no mundo semiperiférico. Essa nova forma de "fazer cidade", chamou-se cidade-empreendimento, que reúne os ideais estritamente burgueses da "pátria, empresa e mercadoria" (VAINER, 2000a).
Essa forma de planejamento urbano tem início nos Estados Unidos, mais precisamente na cidade de Baltimore, com os planos urbanísticos do empresário James Rouse para promover a Baltimore City Fair no início dos anos 1970. Porém, nos anos 1980, com o enfraquecimento do welfare state e o avanço do neoliberalismo estatal dos governos de Reagan - Thatcher (HALL, 2014), se fortalece mundialmente. Da união da elite financeira-empresarial com os servidores públicos encarregados do planejamento urbano surge a figura do "planejador-empreendedor", que ganha cada vez mais protagonismo à medida em que consegue promover a cidade-empreendimento (ARANTES, 2000, p. 22).
Para identificar alguns elementos das articulações entre os diferentes níveis de planejamento federativos e seus agentes (públicos ou privados) na formulação de políticas e planos metropolitanos, o presente artigo vai investigar as políticas públicas para o transporte urbano na Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ) por meio da análise do PDTU de 2015. Para isto será apresentado, a seguir, um breve levantamento histórico dos planos diretores antecedentes a este, com a devida contextualização histórica.
Para a posterior análise empírica do próprio PDTU será aplicada a metodologia elaborada por Marques da Costa e Antonello (2018) a respeito da avaliação dos níveis de comunalidade entre políticas públicas. O método consiste em classificar as diretrizes, princípios, objetivos gerais e específicos de cada plano em níveis correspondentes para, posteriormente, comparar a coerência externa entre eles. A comunalidade entre os níveis foi estabelecida de acordo com o modelo teórico de planejamento de políticas públicas sintetizado pelas supracitadas autoras que, por sua vez, tomam como base os critérios de análise estabelecidos pela Comissão Europeia (EC, 2008 [1999]). Neste trabalho, o foco será sobre o critério de coerência externa, que avalia as compatibilidades entre elementos de dois ou mais planos.
As comparações, no caso, serão realizadas entre a esfera federal, usando-se a Lei Federal 10.257, conhecida como Estatuto da Cidade (EC) (BRASIL, 2001); a esfera estadual, onde está localizado com o PDTU (2015), objeto da atual discussão, e a esfera municipal com Planos Diretores Municipais de alguns dos principais municípios que compõe a RMRJ, a saber: Rio de Janeiro (2011), Niterói (1992), São Gonçalo (2009), Duque de Caxias (2006) e Magé (2016).
Pretende-se, com essa discussão, contribuir para os estudos acerca do desenvolvimento de políticas públicas de transporte em grandes concentrações urbanas, e, principalmente, deixar registrada uma contribuição crítica sobre o atual PDTU da RMRJ.
2. Breves antecedentes dos Planos Diretores Urbanísticos e de Transportes no Rio de Janeiro
No Rio de Janeiro, a influência internacional a respeito do planejamento urbano se manifesta na execução do Plano Estratégico da Cidade do Rio de Janeiro (PECRJ) de 1994, promovido pelo então prefeito César Maia (1993-1997). Este contratou (importou) a receita de sucesso de "revitalização urbana" dos empresários-arquitetos catalães da Tecnologias Urbanas Barcelona S/A (TUBSA) que ficaram a cargo da Direção Executiva do Plano (VAINER, 2000b, p. 77; PIRES, 2010), entre eles Jordi Borja. A participação popular foi reduzida à participação no Conselho da Cidade, que era composto por uma miríade de entidades e consultores individuais que se encontraram completamente sujeitos ao previamente estipulado pelos catalães.
Esse episódio caracteriza-se pela forma autoritária da imposição do PECRJ ao substituir o Plano Diretor Decenal da Cidade do Rio de Janeiro que, promulgado pela Câmara Municipal apenas dois anos antes, em 1992, preconizava muito mais participação popular em todas as etapas do planejamento (PIRES, 2010).
Em 2001 na esfera federal, distinto da prática de políticas públicas urbanas até então executadas, e após uma discussão de décadas, foi promulgado o EC (BRASIL, 2001), que visa implementar mecanismos de regulação urbana na base das determinações da Constituição Federal (CF) de 1988.
Em 2005, na área dos transportes, foi publicado o PDTU da RMRJ, elaborado pela Secretaria de Estado de Transportes do Rio de Janeiro (SECTRAN) e coordenado pela Companhia Estadual de Engenharia de Transportes e Logística (CENTRAL).
Em 2009, com a justificativa de criar condições para os grandes eventos que viriam a ocorrer na cidade em 2014 (Copa do Mundo de Futebol da FIFA) e 2016 (Olimpíadas do Rio de Janeiro), o prefeito Eduardo Paes (2009-2017) cria o Plano Diretor da Prefeitura do Rio de Janeiro (PDPRJ) para o horizonte 2009-2012. Em termos de infraestrutura de transportes, este plano apenas priorizou as propostas da Prefeitura sem considerar o Plano Diretor vigente e qualquer consulta popular prévia. Previa, nos seus principais pontos:
- Racionalizar o sistema de transportes públicos através da reorganização e integração físico-tarifária desse sistema.
- Melhorar a fiscalização e a gestão dos sistemas de transporte público através do uso da tecnologia.
- Expandir e modernizar o sistema estrutural de transportes de alta capacidade, a partir da implantação de corredores expressos no modal rodoviário e de uma parceria com o governo estadual, visando a expansão da malha metroviária e a requalificação do sistema de trens urbanos. [...]
- Implantar até o final de 2012, em toda cidade, um sistema tarifário que permita ao cidadão pegar até 3 transportes públicos (metrô, trem, ônibus ou vans) num prazo de 2 horas com um único bilhete.
- Implantar o trecho Barra/Madureira do TransCarioca e o trecho Barra/Santa Cruz do TransOeste até o final de 2012 (RIO DE JANEIRO, 2009, p. 120-125).
Em 2015, a atualização do PDTU foi da responsabilidade de um consórcio, composto pelas empresas HALCROW, SINERGIA e SETEPLA, cujo contrato foi firmado em 2011 pela Companhia Estadual de Engenharia de Transportes e Logística (CENTRAL), vinculada à SETRANS, dois anos antes da aprovação do decreto 44.433, de 11 de outubro de 2013 do Governo do Estado do Rio de Janeiro. Em seu artigo 1º, o PDTU é indicado como norteador das políticas de transporte urbano na RMRJ, como se vê a seguir:
Art. 1º Fica instituído o Plano Diretor de Transportes Urbanos – PDTU e suas futuras atualizações, como documento orientador das definições políticas de investimento e gestão do sistema de transporte público metropolitano. (ALERJ, 2013).
Importante notar que, em 01.02.2011, foi aprovado o vigente Plano Diretor para o Município do Rio de Janeiro como Lei complementar, o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Sustentável (PDDUSMRJ). Em uma primeira análise, o PDDUSMRJ apresenta uma visão diretiva integrada aos preceitos do EC, porém relega para Leis Complementares posteriores as importantes tarefas de regulação do zoneamento urbano, uso-do-solo, parcelamento, código ambiental e de obras.
3. Investigação da coerência externa e dos níveis de comunalidade entre planos
Marques da Costa e Antonello (2018) elaboraram procedimentos metodológicos para avaliação de políticas públicas em diferentes esferas federativas, com base nos critérios de análise estabelecidos pela Comissão Europeia (EC, 2008 [1999]), que são: a “relevância”, a “coerência”, a “eficácia”, a “eficiência”, a “utilidade” e a “sustentabilidade” das políticas. Segundo as autoras, “esses critérios nortearam o ‘juízo de valor’ com o intuito de transformá-lo em um ‘juízo com utilidade’”, gerando nova informação qualitativa e quantitativa sobre as políticas públicas em tela (MARQUES DA COSTA et ANTONELLO, 2018, p. 31). As autoras apontam especialmente para a importância da verificação do critério de coerência entre políticas públicas, que é também o foco deste trabalho:
A verificação do critério coerência é fundamental. Este tem duas modalidades: a coerência interna, que corresponde à verificação do grau de articulação entre os vários objetivos específicos internos do plano ou do programa; e a coerência externa, que corresponde à verificação do grau de articulação entre os objetivos (e metas) de vários planos e programas, cujo âmbito de atuação se articula quer em termos setoriais, quer em termos territoriais (incluindo aqui a coerência entre objetivos de planos e programas de diferentes escalas, desde a local à internacional). Assim, a aplicação do critério coerência externa constitui o que garante que o plano ou programa elaborado, para além de responder aos objetivos a que se propõe, consiga articular-se com outros programas setoriais (por exemplo, verificar a articulação entre um programa territorial e a política de habitação) ou com outros planos ou programas de nível geográfico superior ou inferior (por exemplo, verificar a articulação entre um programa regional e um programa ou uma lei nacional). Essa coordenação entre os instrumentos permite potencializar a execução e os posteriores efeitos e impactos dos objetivos definidos em cada um dos planos ou programas envolvidos. (MARQUES DA COSTA et ANTONELLO, 2018, p. 34, grifo do autor).
Para isso, é necessária a aplicação de dois exercícios: 1) a identificação dos níveis de comunalidade nas seções de cada plano, que possibilite a comparação (p. ex.: diretrizes, objetivos gerais e objetivos específicos) e 2) a verificação da coerência entre esses níveis de comunalidade entre planos distintos. Tal verificação pode ocorrer entre elementos do mesmo nível de comunalidade, como fazem as supracitadas autoras, ou ainda, considerando planos de níveis territoriais hierárquicos distintos, pode-se utilizar para comparação o primeiro nível de comunalidade do de hierarquia superior e o segundo nível de comunalidade do de hierarquia inferior.
Ao considerar esses princípios norteadores e instrumentos expostos, serão aplicadas as etapas determinadas por Marques da Costa e Antonello (2018, p. 38) para identificar pontos em comum em relação aos planos de ordenamento territorial em dois níveis de comunalidade: um mais abrangente e outro mais específico. Porém, aqui reside um desafio que deve ser contornado pelo pesquisador no momento do exercício: como não há um padrão estabelecido para a elaboração de um plano, os conceitos atribuídos para cada seção de cada plano diferem e por vezes se confundem. Como referência, utilizamos os conceitos empregados por Magalhães e Yamashita (2009) que indicam que os planos possuem três níveis de ação:
1) Estratégico (O que fazer), que possui: Princípios, Problemas, Objetivos, Metas
2) Tático (Como fazer), que possui: Diretrizes, Estratégias, Programas
3) Operacional (Fazer), que possui: Ação, Fiscalização.
Porém, nada impede que um plano de natureza proeminentemente estratégica, como no caso dos planos diretores, possua diretrizes que atuem em nível tático, por exemplo. Sendo assim, optamos por realizar a classificação dos níveis de comunalidade baseando-se nos elementos que tivessem o nível de especificação menos e mais detalhado em cada plano, a fim de se aproximar o máximo possível dos “Princípios” (menor nível de detalhamento) e os “Objetivos”, “objetivos específicos” ou “Metas” (maior nível de detalhamento).
Figura 1 – Exemplo de Relações observadas entre as legislações de diferentes esferas: a CF 1988, o EC 2001 e o PDDUSMRJ (2011). Onde se encaixaria o PDTU 2015?
Fonte: O autor, 2018.
4. Identificação dos elementos do planejamento de transporte em três esferas federativas a partir da RMRJ
Como mencionado anteriormente, a referência político-administrativa para investigar os planos norteadores de políticas urbanas foi de três esferas: nacional, estadual/regional e municipal. O primeiro passo, portanto, é observar as determinações de natureza estratégica sobre transporte urbano a nível federal.
A CF de 1988, no capítulo II “da política urbana”, o artigo 182 versa sobre os objetivos principais das políticas urbanas, e onde consta que:
Art. 182 - A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes (BRASIL, 1988).
Institui o Plano Diretor – obrigatório para cidades com mais de 20 mil habitantes – como o instrumento por excelência do planejamento urbano. Como um regulamento do Capítulo II da CF 1988, o já antes mencionado EC “estabelece normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental” (BRASIL, 2001). Define os instrumentos jurídicos a serem utilizados na legislação de ordenamento territorial:
Art. 4º Para os fins desta Lei, serão utilizados, entre outros instrumentos:
I – planos nacionais, regionais e estaduais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social;
II – planejamento das regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões;
III – planejamento municipal, em especial. (BRASIL, 2001).
Em seu artigo 2º podem ser identificados objetivos ou diretrizes específicos ao transporte e sua promoção dentro do planejamento urbano:
Art. 2º A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais:
I – garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura (sic) urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações;
....
III – cooperação entre os governos, a iniciativa privada e os demais setores da sociedade no processo de urbanização, em atendimento ao interesse social;
...
V – oferta de equipamentos urbanos e comunitários, transporte e serviços públicos adequados aos interesses e necessidades da população e às características locais. [...]
Tomando a CF de 1988 e o EC como referências em nível nacional, se avança agora para identificar, a nível estadual, as características do PDTU (2015), originalmente formulado em 2005 e atualizado em 2015 (com ano base em 2012). Sobre o PDTU, avançaremos ainda sobre uma análise da metodologia utilizada para a determinação das obras e projetos de infraestrutura de transportes que seriam selecionados para compor a “Rede Ideal Desejada para 2021”.
Composto por 13 relatórios, os mais relevantes para a discussão neste artigo são o Relatório 4 (Diagnóstico da Situação Atual e Planejamento e Execução das Pesquisas) e o Relatório 7 (Plano de Transportes). Em seu diagnóstico, elenca os seguintes aspectos em relação a:
Infra-estrutura do transporte coletivo: inexistência de tratamento viário com prioridade ao transporte coletivo; poucos equipamentos físicos de integração;
Forte presença do transporte alternativo: 18% da demanda total e 20% da demanda do sistema ônibus, com deseconomia (sic) da ordem de 17%;
Deficiências na gestão: vários órgãos de gestão atuando isoladamente; inexistência de modelo institucional articulado e otimizado que oriente a ação desses órgãos;
Remuneração Operadores: Tarifa pelo custo – a arrecadação tarifária cobre todos os custos de operação e investimento em material rodante;
Subsídio: Subsídio interno atinge cerca de 22%;
Política Tarifária: tarifa única na maioria dos sistemas de ônibus municipais e nos sistemas metro-ferroviários; tarifa quilométrica no sistema de ônibus intermunicipal; tarifa por linha no sistema aquaviário (CENTRAL, 2005, on-line).
E recomenda, para o horizonte de 10 anos, as seguintes ações:
- Implantação dos modelos físico-operacional, tarifário e institucional
- Implantação da bilhetagem unificada
- Implantação dos equipamentos de integração e tratamento viário de priorização do transporte coletivo
- Atualização tecnológica dos ramais ferroviários
- Extensão da Linha 2 até a Praça XV, da Linha 1 até General Osório e da Linha 3 de Niterói a Itaboraí
- Complementação das intervenções previstas na alternativa de Investimento Mínimo (CENTRAL, 2005, on-line).
Em uma primeira análise do plano, uma diferença primordial entre os seus objetivos e os postulados no EC é a falta, no primeiro, de uma estrutura e uma definição de diretrizes clara. Sendo um instrumento puramente técnico - ou tecnocrático, o PDTU 2015 não apresenta princípios norteadores ou diretrizes para fazer menção às formas de planejamento. Ele parte da observação empírica para depois propor um planejamento baseado em modelos matemáticos que carecem de uma análise socioeconômica mais aguçada. Selecionamos para fins comparativos os objetivos retirados do Relatório 7 – Plano de transportes:
O PDTU atual tem como base um modelo matemático construído na plataforma INRO/Emme a partir das características físicas e operacionais principais da Rede de Referência, ano 2012, devidamente calibrado para simular alocações de tráfego que se aproximem satisfatoriamente da realidade levantada pelas pesquisas (ver Relatório 6). Este modelo captura a interação entre os padrões de geração de viagem e dados demográficos da região de estudo, podendo ser usado também para prever respostas comportamentais dos usuários dos sistemas de transportes em função de alterações físicas ou operacionais na rede, ou ainda alterações no uso do solo. Assim, o modelo pode ser usado para elaborar previsões de crescimento no total de viagens, em mudanças nos padrões de viagens, na escolha modal, bem como nas respectivas rotas escolhidas na rede de transporte coletivo e individual, auxiliando a busca de soluções estratégicas, sobretudo ampliações e implantação de novos sistemas de transportes. [...] é construído matematicamente de forma a disponibilizar recursos técnicos e variáveis relevantes ao planejamento de transportes e permite mensurar, de forma antecipada, impactos que mudanças socioeconômicas causarão na realização das viagens e no comportamento dos usuários. O modelo auxilia o estudo de alterações necessárias/ desejáveis na rede e sistemas, podendo deste modo subsidiar toda uma política de transporte a partir de simulações e análises técnicas. Devido as dimensões e complexidade da RMRJ, foi desenvolvido um modelo de transportes matematicamente sofisticado, a fim de contemplar todos os sistemas e representar de forma aproximada a realidade dos transportes na região, incluindo aspectos específicos ligados à operação e utilização dos sistemas pela população metropolitana. (PDTU – Relatório 7, 2015, p. 8-9, grifo do autor).
Como se observa no estudo elaborado pelo consórcio, pretende-se “disponibilizar variáveis relevantes ao planejamento de transportes”, porém não necessariamente se constituindo em um Plano de Transportes propriamente dito. O uso de modelos matemáticos para o planejamento de transportes, como feito no PDTU (2015), poderia até ser uma boa ferramenta auxiliar se usado de forma crítico. Mas, este por si só é pouco produtivo, contribuindo mais ainda para uma forma de planejamento tecnocrático, ou stricto sensu, onde o próprio planejamento se constitui como um fim em si próprio.
Durante a formulação dos modelos matemáticos é necessária a criação de diferentes cenários pautados em variáveis cuidadosamente selecionadas e distintas, contendo não só aspectos físicos do espaço, mas também socioculturais. Além disso, considera-se hoje, que a participação popular é indispensável durante todo o processo decisório do planejamento e de sua execução.
No tópico 3.3 “Definindo a rede futura: Rede 2021 Base” são colocados os seguintes argumentos:
Primeiramente, foi realizado um processo consultivo a especialistas de instituições diversas, incluindo órgãos públicos e privados, através do qual foi sugerido um conjunto de projetos estratégicos. Nesse processo de idealização, foram também considerados sistemas e trechos de redes de planos anteriores, tais como o Plano Doxiadis, de 1965, o Plano Integrado de Transporte do Metrô, da década de 1970 e diversos outros desenvolvidos na década de 1990, além do próprio PDTU, desenvolvido entre 2003 e 2005.
[...] A partir daí, foi empregado um método de análise multicriterial para ponderar as diversas sugestões entre si e obter uma seleção de projetos que comporiam a rede futura da RMRJ, por fim refinados no que se configurou uma proposta inicial de Rede 2021 Base (antes da modelagem computacional através do Emme). O Anexo A apresenta maiores detalhes do processo conduzido. (PDTU – Relatório 7, 2015, p. 13).
Ou seja, para a elaboração das diretrizes do planejamento foi sugerido um conjunto de projetos considerados estratégicos a especialistas de instituições diversas e de forma puramente consultiva.
Maiores esclarecimentos sobre o processo de definição da rede básica desejada para 2021 se encontram no documento “Anexo A”. Segundo tal documento, o consórcio contratante selecionou 32 especialistas (considerados assim pelas empresas) para responder e definir as prioridades da rede de transportes desejável para um futuro próximo.
Para construir a Rede 2021 Base (ou básica), foi realizado um processo participativo, no qual a Contratante, através da orientação e do material de referência fornecido pelo Consórcio, consultou a opinião de especialistas e representantes de órgãos públicos e privados atuantes no setor de transportes. Foi apresentado um elenco de projetos aos especialistas cuja atuação na área é considerada bastante relevante. Suas opiniões sobre cada um destes projetos foram coletadas, compiladas e utilizadas como insumos de um processo multicriterial para definir os projetos que comporiam a rede em questão (PDTU – Relatório 7, Anexo A, 2015, p. 5).
.
Na Lista 1 são indicados os números dos consultores envolvidos de cada um destes órgãos públicos e privados atuantes no setor de transportes.
Lista 1 - Distribuição de membros entre instituições consultados
1 |
GT/PDTU |
4 |
2 |
CF/PDTU |
3 |
3 |
SETRANS/MTU |
3 |
4 |
SEOBRAS |
1 |
5 |
Prefeitura do Rio de Janeiro – SMTR |
1 |
6 |
Prefeitura de Duque de Caxias |
1 |
7 |
Prefeitura de Niterói |
1 |
8 |
MetroRio |
1 |
9 |
CCR BARCAS |
1 |
10 |
FETRANSPOR |
1 |
11 |
IME |
1 |
12 |
BNDES |
1 |
13 |
Consultores Especiais |
2 |
|
TOTAL |
21 |
Fonte: PDTU – Relatório 7, Anexo A, 2015, p. 5)
A distribuição dos consultores mostra que a maioria pertence ao próprio grupo de trabalho de elaboração do PDTU e são servidores da SETRANS (ou SECTRAN), da Secretaria de Estado de Obras e Habitação (SEOBRAS) e de Prefeituras. Há ainda representantes de empresas concessionárias dos serviços de transporte, como a CCR Barcas, o MetroRio e a FETRANSPOR.
No processo da consulta foi apresentada aos participantes uma lista de projetos visando a expansão da malha de transportes na Região Metropolitana com a solicitação de cada participante preencher um questionário onde deve indicar suas prioridades para cada projeto de expansão. Os projetos que fossem caracterizados pelos participantes como “não estruturais” seriam então eliminados do planejamento, pois seriam “aqueles claramente locais e alimentadores” e que deveriam ficar a cargo dos municípios dentro de uma gestão compartilhada de transportes metropolitanos” e, portanto, não se enquadrariam no escopo do PDTU (2015, Relatório 7, Anexo A, p. 9).
O resultado deste processo encontra-se no Quadro 1, com a lista dos projetos apresentados aos participantes, suas posições em relação à sua prioridade, que aparece como “ranking” dos projetos indicados para a malha ideal 2021 (Coluna P) e os eliminados por serem considerados “não estruturais”, por ordem de eliminação (Coluna NE).
O Quadro 1 mostra a eleição de prioridades como resultado de uma análise multicritério de questionários aplicados aos especialistas convidados.
Quadro 1 - Lista de projetos apresentados na elaboração do plano, sua posição de prioridade na votação e posição de elenco em “sendo estrutural ou não”.[4]
Modal |
Projeto de Transporte |
P |
N |
E |
Metroviário |
Extensão da Linha 1 até o Méier |
13 |
|
|
Fechamento da Linha 1, Uruguai – Gávea |
2 |
- |
||
Linha 2B, Estácio - Praça XV |
1 |
- |
||
Complementação da Linha 3, Praça XV – Araribóia |
5 |
- |
||
Linha 4A, Ipanema - Praça Sachet |
- |
3 |
||
Linha 4B, Alvorada – Praça XV |
3 |
- |
||
Linha 5, Galeão – Santos Dumont |
- |
5 |
||
Linha 6 versão A, Alvorada – Madureira – Dutra – Caxias – Galeão |
- |
- |
||
Linha 6 versão B, Alvorada – Fundão |
7 |
- |
||
Ferroviário |
Santa Cruz – Itaguaí |
9 |
- |
|
Magé – Itaboraí |
- |
- |
||
Honório Gurgel – Caxias |
6 |
- |
||
Nova Iguaçu – Belford Roxo – São Bento |
4 |
- |
||
Costa Barros – Japeri |
11 |
- |
||
Hidroviário |
Praça Araribóia (Niterói) – Botafogo (Rio de Janeiro) |
- |
15 |
|
Charitas (Niterói) – Botafogo (Rio de Janeiro) |
- |
9, 14* |
||
Praça XV – Ilha do Fundão |
- |
10 |
||
Praça XV – Aeroporto Galeão |
- |
7 |
||
Barra (Rio de Janeiro) – Lagoa de Marapendi |
- |
1 |
||
Barra (Rio de Janeiro) – Lagoa de Jacarepaguá |
- |
2 |
||
Praça XV (Rio de Janeiro) – Ribeira (Ilha do Governador) |
- |
13 |
||
Praça XV (Rio de Janeiro) – Duque de Caxias |
- |
- |
||
Praça XV (Rio de Janeiro) – Itaipu (Niterói) |
- |
6 |
||
Praça Araribóia (Niterói) – Itaipu (Niterói) |
- |
- |
||
Praça XV (Rio de Janeiro) - Gradim (São Gonçalo) |
8 |
- |
||
Cocotá (Rio de Janeiro) - Gradim (São Gonçalo) |
16 |
4 |
||
Rodoviário |
Corredor Eixo – Rod. Pres. Dutra |
- |
- |
|
Corredor Eixo – Via Light |
- |
18 |
||
Corredor Eixo – Rod. Washington Luiz |
- |
17 |
||
TransBaixada |
- |
- |
||
Corredor Eixo – RJ 104 |
10 |
- |
||
Corredor Eixo – RJ 106 |
14 |
16 |
||
Transporte Público no Arco Metropolitano |
17 |
12 |
||
Extensão do TransCarioca |
12 |
11 |
||
Adequação do TransBrasil |
15 |
- |
Fonte: Adaptado de PDTU – Relatório 7, Anexo A, 2015, p. 7-10.
A partir dos resultados do questionário, os projetos foram elencados em duas categorias: “Prioridade do projeto” e “Grau de não-estruturalidade”. A partir de perguntas extraídas do questionário, como por exemplo se o especialista considerava aquele projeto de maior importância para o Estado ou para um Município, foi elaborado o “ranking” de não- estruturalidade, que serviu como um critério importante para desqualificar um projeto. A partir do quadro, é possível observar que grande parte dos projetos que foram classificados com algum grau de “não-estruturalidade” acabaram por ficar de fora da lista de prioridades, como é o caso da grande maioria das ligações hidroviárias/aquaviárias. As exceções ficam por conta das ligações rodoviárias “Corredor Eixo – RJ 106”, “Transporte público no Arco Metropolitano”, “Extensão do TransCarioca”; ligação hidroviária “Cocotá (Rio de Janeiro) – Gradim (São Gonçalo)”, que apesar de figurarem no ranking de “Não-estruturais” ainda aparecem com algum nível de prioridade.[5]
Em termos de modais, observamos no Quadro 1 que a maior parte das prioridades (1, 2, 3, 5 e 7) ficou atribuída às ligações intramunicipais metroviárias (Ligações Estácio x Praça XV, Uruguai – Gávea e Alvorada – Praça XV), seguidas das ligações ferroviárias intermunicipais (4, 6 e 9) que atendem em maior parte áreas da periferia metropolitana e, por fim, a prioridade 8 para o projeto de transporte aquaviário Praça XV (Rio de Janeiro) x Gradim (São Gonçalo).
As ligações metroviárias sugeridas – exceto a ligação Estácio x Praça XV, que é uma lacuna histórica na rede – parecem atender prioritariamente interesses de classes médias e altas e elites financeiras-empresariais. Esse fato é interessante à medida em que as ligações metroviárias são espacialmente limitadas à área do Município do Rio de Janeiro, o que corrobora com a proposição de que não deveriam ser priorizados por se tratarem de projetos de esfera intramunicipal, o que não ocorre. Não se trata aqui de contestar que as ligações metroviárias são de suma importância para o desenvolvimento da rede de transportes metropolitanos, porém nota-se uma evidente contradição metodológica nesse aspecto do PDTU. Explico: ao se questionar um suposto grau de “não-estruturalidade” na rede de transportes metropolitana como requisito para escolha de execução de um projeto em detrimento de outro, poderia uma ligação metroviária “Alvorada x Praça XV” ou “Uruguai x Gávea” figurar em maior posição prioritária do que uma ligação intermunicipal transversal ferroviária entre Rio de Janeiro e municípios da Baixada Fluminense? Ou ainda, entre o Rio de Janeiro e municípios do leste fluminense e Duque de Caxias, mesmo que por ligação hidroviária? Como estes poderiam ser considerados não-estruturais ao operar no cerne geográfico da referida região metropolitana?
A maioria das ligações hidroviárias, um modal historicamente desprezado pelos planejadores apesar de sua evidente aptidão geográfica para operar na RMRJ, foi descartada já nessa etapa, como as ligações Praça Araribóia – Botafogo, Itaipu – Botafogo, Praça XV – Duque de Caxias, Praça XV - Fundão e Praça XV – Galeão. No modelo da "Rede Desejada para 2021", as únicas ligações que sobraram foram Praça XV – Gradim e Cocotá x Gradim, mesmo esta tendo sido classificada como 4º lugar em questão de ser "não-estrutural"[6].
Ao comparar este processo de planejamento e seu resultado com o preconizado pelo EC, pode se chegar à conclusão de que há uma discrepância entre o método de diagnóstico de análise multicritério dos especialistas conjugado a modelos matemáticos abstratos, adotado no PDTU 2015, e os princípios elaborados pelo EC, que dão ênfase a um maior envolvimento e participação da população. Dessa forma, o planejamento se torna um fim em si mesmo ou meramente um instrumento para legitimar projetos considerados politicamente estratégicos, já previamente agendados na esfera de governo.
Ainda, quando houve a participação de entidades externas ao processo, não foi consultado nenhum órgão representante da sociedade civil, o que fere pressupostos do EC, que valoriza uma gestão democrática e participativa. A este respeito é interessante um posicionamento apresentado na “CPI dos Transportes” (ALERJ, 2018) em relação aos processos de planejamento:
A questão é como o sistema de transporte, pensado num processo de planejamento autocrático e centralizado na técnica e no pensamento único da cultura política vigente, se torna algo desprovido de maiores compromissos com a efetividade econômica e social de segmentos inteiros da população.
O descolamento entre o trabalho analítico da formulação de planos e propostas e a tomada de decisão objetiva precisa ser atacado sem tréguas e sua superação só poderá ser vislumbrada com a adoção de novos modelos institucionais que permitam tanto a integração entre o processo continuado de monitoramento dos diferentes sistemas, quanto destas regulações que perpassam o sistema, tais como os modelos de financiamento de investimentos e da operação dos diferentes modais, políticas tarifárias, aspectos sociais e, fundamentalmente, o controle público sobre as várias dimensões da política de transportes. Nesse sentido, a questão da transparência, a integração institucional dentro do governo do Estado e deste com demais entes federativos é fundamental (p. 79).
. A Figura 2, na página seguinte, mostra os projetos selecionados como resultado da aplicação da metodologia da citada análise multicritério.
Figura 2 - Projeção da rede de transportes desejada da RMRJ para 2021, segundo o PDTU (2015).
Fonte: SETRANS, 2014, p. 69.
Cabe ressaltar que, até 2022, poucos desses projetos foram efetivados, a saber: apenas a extensão da Linha 1 (chamada Linha 4) de Ipanema até a Barra da Tijuca e a abertura do Túnel Charitas – Cafubá, que permitiu a ligação de Niterói com a Região Oceânica deste município e Maricá. Este último fazia parte do projeto de implantação de um BRT no trecho, porém a Prefeitura de Niterói o substituiu por um outro sistema semelhante de controle de tráfego de ônibus chamado BHLS (Bus with High Level of Service), onde eles andam tanto em pista exclusiva como em pista compartilhada. Por fim, serão considerados agora os Planos Diretores dos municípios da RMRJ e sua classificação em níveis de comunalidade, começando pelo município do Rio de Janeiro.
O Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Sustentável do Município do Rio de Janeiro (PDDUSMRJ) foi instituído pela Lei Complementar nº 111, de 1 de fevereiro de 2011, e apresenta em seu Artigo 2º os princípios pelos quais a política urbana deve se nortear, que corresponde ao 1º nível de comunalidade com o EC e outros Planos Diretores Municipais. São eles:
I - desenvolvimento sustentável, de forma a promover o desenvolvimento econômico, a preservação ambiental e a equidade social;
II - função social da cidade e da propriedade urbana;
III - valorização, proteção e uso sustentável do meio ambiente, da paisagem e do patrimônio natural, cultural, histórico e arqueológico no processo de desenvolvimento da Cidade;
IV - universalização do acesso à infraestrutura e os serviços urbanos;
V - democracia participativa, de forma a se promover ampla participação social;
VI - universalização do acesso à terra e à moradia regular digna;
VII - a universalização a acessibilidade para pessoas com deficiência de qualquer natureza;
VIII - planejamento contínuo integrado das ações governamentais, visando a eficácia, a eficiência e a otimização dos serviços públicos, e o controle de gastos, utilizando-se os dados obtidos pela aplicação de uma política de informação;
IX - garantia de qualidade da ambiência urbana como resultado do processo de planejamento e ordenação do território municipal;
X - articulação de políticas públicas de ordenamento, planejamento e gestão territorial municipal;
XI - integração de políticas públicas municipais entendendo o município como cidade polo da região metropolitana;
XII - cooperação entre os governos nas suas diversas instâncias, a iniciativa privada e os demais setores da sociedade no processo de urbanização em atendimento ao interesse social (PDDUSMRJ, 2011).
Já o artigo 3º dispõe sobre diretrizes que a política urbana deve seguir no cumprimento da função social da cidade e, a partir do exercício de classificação realizado nesse estudo, indico corresponder ao 2º nível de comunalidade entre planos. Ao todo são 25 diretrizes, porém ressaltarei as mais relevantes à temática do transporte, notadamente as diretrizes VIII, IX e X. A fim de verificarmos se há relação entre as diretrizes, correlacionaremos aquelas estabelecidas pelo PDDUSMRJ com as diretrizes gerais do EC e com os projetos postos pelo PDTU para a rede de transportes base para 2021.
É importante observar no PDDUSMRJ, Art. 3 § 9, uma diretriz que concerne diretamente ao uso do transporte denominado “hidroviário”, ou aquaviário, que, como vimos, foi sumariamente deixado de lado no PDTU 2015. Como verificado anteriormente no PDTU, não há correlação direta entre estes planos, mesmo tendo sido elaborados em anos próximos. Ou seja, o PDDUSMRJ, que foi elaborado em 2011, antes do início dos trabalhos do consórcio que elaborou o PDTU 2015, claramente não foi levado em consideração por seus formuladores ou pelo Governo do Estado, que optou por uma classificação de prioridades baseada em projetos já antepostos e depois ratificados por modelos matemáticos.
De certo, não há uma obrigação direta do Plano Diretor Municipal se submeter a um plano regional, e vice-versa, porém certamente estes, em prol de uma coerência e maior eficácia, deveriam se complementar. Na falta desta complementação, o fato acima exposto se torna ainda mais nocivo ao planejamento de uma metrópole como o Rio de Janeiro.
Tendo exposto a análise feita sobre o PDDUSMRJ, prosseguimos com a análise da coerência externa entre o 1º nível de comunalidade do EC (2001) e o 2º nível de comunalidade dos Planos Diretores municipais de outros municípios importantes da RMRJ: Niterói (1992), Duque de Caxias (2006), São Gonçalo (2009) e Magé (2016), a fim de identificar se os objetivos desses municípios atendem ao que estipulam as diretrizes gerais do Estatuto, no que diz respeito ao transporte metropolitano, conforme as Figuras 3 e 4 nas páginas seguintes.
A partir da Figura 4, verificamos que apenas os Planos Diretores dos Municípios do Rio de Janeiro (PDDUSMRJ) e de Niterói atendem ao preconizado no EC no que diz respeito ao transporte, sendo que São Gonçalo e Magé apresentaram apenas um objetivo válido e Duque de Caxias não apresentou objetivos satisfatórios em vias de atender ao Estatuto.
É possível notar nesses planos uma forte inclinação ao desenvolvimento sustentável no âmbito dos transportes, com incentivo ao transporte coletivo de massa, não motorizado e de menor gasto energético e poluente. No objetivo/diretriz II do PD do Município de Niterói, é citada a necessidade de “fomentar novas alternativas de transporte entre os municípios vizinhos”. Porém, essas iniciativas não se verificam satisfatoriamente nos planos diretores dos outros municípios observados, e menos ainda no PDTU 2015, que se mostrou um instrumento atípico, sem orientação diretiva e desconexo das demais políticas de planejamento territorial vigentes.
Portanto, a partir da análise dos documentos acima, podemos concluir que apenas os Planos Diretores do Rio de Janeiro (PDDUSMRJ) e de Niterói atendem satisfatoriamente aos pressupostos sobre mobilidade urbana presentes no EC (2001). Porém, certamente a análise mais relevante diz respeito ao PDTU 2015, onde verificou-se não haver nenhuma relação entre ele e os Planos Diretores discutidos, nem com o EC (2001).
Segundo a metodologia de Marques da Costa e Antonello (2018), isso se constitui em um erro estrutural do sistema de políticas públicas, visto que é de suma importância que haja integração concomitante entre as diferentes esferas de poder (Municipal, Estadual, Federal) e as respectivas políticas de ordenamento territorial, em seus diferentes níveis escalares (Local, Regional e Nacional). Não há, portanto, articulação no planejamento para a rede de transportes urbanos da RMRJ, o que se constitui em um sério entrave para a execução de uma política de transportes metropolitanos adequada.
Figura 3 - Ligações entre as legislações de diferentes esferas e os planos diretores.
Legenda: O 2º nível de comunalidade dos PD municipais foi determinado pelos elementos operacionais (da escala de ação), enquanto o 1º nível de comunalidade pelos elementos estratégicos dos planos. Como o EC não possui elementos operacionais, optou-se pela comparação entre os elementos estratégicos do EC (1º niivel) com os operacionais dos PD municipais (2º nível).
Fonte: O autor, 2018.
Figura 4 – Classificação dos objetivos do 2º nível de comunalidade dos Planos Diretores de Rio de Janeiro (2011), Niterói (1992), São Gonçalo (2009), Duque de Caxias (2006) e Magé (2016), em termos de transporte, segundo seu grau de coerência em relação ao 1º nível de comunalidade do EC (2001).
Fonte: O autor, 2018.
Considerações Finais
A formulação de políticas públicas e sua execução são processos de alta complexidade que dependem de uma gama de condições que já foram e estão sendo objeto de investigações científicas (FIGUEIREDO et FIGUEIREDO, 1986; VASCONCELOS, 2001; MAGALHÃES & YAMASHITA, 2009; SILVA, 2015; MARQUES DA COSTA et ANTONELLO, 2018; LUFT, 2020). Exigências de racionalidade e coerência para assegurar sua eficácia já foram tantas vezes levantadas como não cumpridas. No presente trabalho essa complexidade ainda se multiplica quando se pretende identificar as “comunalidades” entre políticas (setoriais) voltadas para o mesmo objeto em níveis constitucionais diferentes, como proposto pela metodologia elaborada por Marques da Costa e Antonello (2018), exposta com maior detalhamento na seção 3.
Foi possível verificar, por meio da presente pesquisa, a total desarticulação entre o PDTU (2015) e as outras legislações urbanísticas vigentes, como o EC (2001) e os planos diretores dos municípios envolvidos na análise. O PDTU se distancia do PDDUSMRJ, que mesmo trazendo características de um plano-discurso – visto que seu lado sustentável não vem se consolidando desde sua publicação – deveria servir de base para um planejamento de transportes que envolva o Município do Rio de Janeiro.
É nítida a falta de coesão entre os princípios e diretrizes, norteadores dos planos em esfera federal (CF e EC), e os objetivos do PDTU, o que representa um forte retrocesso em vias de atender às necessidades básicas da sociedade no que concerne ao transporte.
Ocorre ainda a falta de continuidade entre políticas de mesma esfera, como é o caso da implantação, pelo Estado do Rio de Janeiro, do Plano Estratégico de Desenvolvimento Urbano Integrado (PDUI), financiado por empréstimo do Banco Mundial e que teve seu projeto iniciado ainda em 2015 e entregue em 2018. O plano, efetivado pelas empresas Quanta Consultoria e Jaime Lerner Arquitetos Associados, possui um capítulo dedicado à mobilidade urbana e sugere uma série de novas obras infraestruturais que passam ao largo do PDTU 2015, representando os novos interesses dos grupos que o financiaram e abandonam qualquer forma de coerência entre planos. Ainda, este plano acrescenta uma nova esfera de formulação de políticas territoriais, que é mais genérica, ou macro, e engloba diversos setores de ação socioespacial em políticas públicas urbanas. Esse ato se constitui em acrescentar mais um grau de complexidade em um processo que já se mostrava, como vimos neste artigo, bastante desarticulado, pois é necessário que as políticas urbanas estaduais guardem coerência com as políticas setoriais estaduais, com as políticas urbanas federais e municipais e com as políticas setoriais federais e municipais.
Ao observar o Relatório Final da CPI dos Transportes (ALERJ, 2018), enfatizo a crítica feita sobre a falta de um marco regulatório para os transportes públicos metropolitanos, e que foi notada já no diagnóstico feito pelo PDTU 2005:
O planejamento, por definição, é um processo dinâmico. Neste sentido, o planejamento de transportes precisa necessariamente ser acompanhado do planejamento urbano, que é atribuição dos municípios e, por consequência, demanda um enorme esforço de integração institucional entre os diferentes entes. [...] (p. 80)
Como foi demonstrado ao longo de todo este relatório, não apenas verifica-se um lapso regulatório geral, acerca da estrutura do governo do Estado para dar concretude às suas atribuições e responsabilidades sobre o sistema de transporte público, como uma série de furos, zonas de anomia, omissões deliberadas ou não, que impedem ou limitam a atuação dos diferentes órgãos. No primeiro caso, urge a necessidade de se colocar em debate uma Política Estadual de Mobilidade Urbana e Regional e a consequente criação de Sistema Estadual de Transporte Público e Mobilidade, indicando com mais clareza e objetividade os direitos e deveres de usuários, operadores, entes públicos e seus respectivos instrumentos (jurídicos, administrativos, financeiros etc.). Com isso, o Estado do Rio de Janeiro passaria a ter um marco regulatório estável, coeso, abrangente e integrado para conduzir o processo de reorganização do sistema de transportes, auxiliar o desenvolvimento institucional dos Municípios e regiões na questão da mobilidade e assumir, de uma vez por todas, o controle público dos fluxos financeiros e do padrão operacional dos diferentes modos de transporte (ALERJ, 2018, p. 384).
Conforme foi possível observar, a crítica contida no Relatório Final da CPI dos Transportes é extremamente coerente. É notória a falta de coesão entre as políticas públicas de transporte metropolitano, o que poderia ser sanado por meio da criação de uma entidade inteligente e articuladora, capaz de observar as diferentes diretrizes já existentes para o transporte ou até mesmo formular um novo plano por meio da legislação vigente.
Em sucessivos planos diretores elaborados para o Município do Rio de Janeiro e sua Região Metropolitana, vemos uma enorme discrepância entre o que é planejado e o que é executado, assim como observa Maricato (1997) sobre os Planos Urbanos desde os anos 1930, que dão origem ao "plano-discurso" e que tem a função de ocultar o verdadeiro planejamento orientado pelas e para as elites econômicas. Além da influência na decisão sobre investimentos e grandes obras viárias, é de se ressaltar que o poder estrutural dos empresários do setor de transportes da RMRJ reside hoje em sua hegemonia e domínio sobre os créditos financeiros do Sistema de Bilhetagem Eletrônica "RioCard" e na operação do Sistema BRT. Não só na guarda e aplicação desses créditos, mas também na falta de transparência em sua gestão, com a qual o Estado fluminense e os municípios pouco se importam. Em uma espécie de simbiose para drenagem da renda do espaço urbano, esses empresários se articulam com os empresários do setor imobiliário (por vezes até são os mesmos) para maximizar os seus lucros enquanto direcionam o investimento público na infraestrutura de transportes. Sem contar, é claro, com a anuência e participação dos prefeitos, os businessman da cidade-mercadoria.
A rede de transportes metropolitana, entendida como rede de circulação e rede de comunicação (RAFFESTIN, 1993), e portadora da racionalidade hegemônica global (SANTOS, 2002), é um agente modelador chave das relações socioespaciais no meio técnico-científico-informacional. Capturar a orientação de sua materialização é uma necessidade urgente para se alcançar maior equidade na cidade. Porém, os planos diretores são, ao mesmo tempo, produto e estrutura das relações de poder político no sistema capitalista e não é de se esperar que a classe dirigente faça, por si só, as concessões necessárias para se alcançar maior justiça social, como a história do planejamento urbano nos mostra por todo o século XX. Ao refletir sobre as redes, Santos (2002) expõe a sua relação intrínseca com a modernidade global e seu caráter de motor principal desses dinamismos, afirmando que "sua qualidade e quantidade distinguem as regiões e lugares, assegurando aos mais bem dotados uma posição relevante e deixando aos demais uma condição subordinada" (SANTOS, 2002, p. 82).
A insistência dos políticos fluminenses no investimento em modais rodoviários e de baixa capacidade, como o BRT, é fruto de pressões políticas da elite-empresarial e fundiária que se beneficia dessa política desde os anos 1960, quando se fez a opção em nível nacional pelo incentivo a esse tipo de modal, no governo de Juscelino Kubitschek. Porém, as relações de proximidade entre as decisões de investimento em infraestrutura e a elite empresarial no Rio de Janeiro remontam a períodos bem anteriores, como o processo de urbanização da Zona Sul carioca a partir do ano de 1870. Como exemplo, as relações entre as Cias. de Ferro-Carris, as Cias. de Urbanismo - responsáveis pelo loteamento e serviços urbanos - e a Prefeitura da então Capital, que atuava por meio de concessões, regulamentação e financiamento (ABREU, 2006, p. 47-48).
É urgente a criação de uma entidade institucional que possa articular as diferentes esferas de planejamento territorial para o transporte metropolitano, que seja formada não apenas por representantes da elite empresarial, mas também pelos devidos representantes da sociedade civil e de políticos de toda a esfera metropolitana, com a realização de audiências públicas, inclusive em instâncias decisórias. Essa proposta poderia soar utópica, porém experiências em orçamento participativo no Brasil, como a que ocorre na cidade de Porto Alegre desde 1988 (FEDOZZI et al., 2013), mostram que é possível proporcionar algum grau de autonomia deliberativo à população, cujos resultados benéficos podem inclusive suplantar aqueles dos planejadores de gabinete.
A execução das obras de infraestrutura na Metrópole deve estar submetida a um Plano Diretor de Transportes Metropolitano, que tenha ampla fundamentação no EC (2001) e que seja acompanhado por essa entidade pública responsável, composta por todos os atores sociais envolvidos. A Câmara Metropolitana do Rio de Janeiro e o Instituto Rio-Metrópole, órgão executivo da RMRJ, poderiam sanar essa lacuna, porém carecem ainda de representatividade, tanto na esfera popular quanto política, e de transparência sobre sua política de governança interna e financeira.
Ao entender as formas espaciais e as relações sociais como indissociáveis e partícipes do mesmo processo contínuo de transformação no contexto dos sistemas urbanos (HARVEY, 1993) vejo que não basta que se alterem apenas a forma e a materialidade da rede de transportes. Para alcançar objetivos satisfatórios de equidade urbana é preciso, além de capturar a orientação de sua materialidade, construir os elementos intangíveis que permitam a manutenção do progresso - sejam normativos jurídicos ou mecanismos econômicos, caso em que aparecem as economias solidárias e o orçamento participativo (SOUZA, 2011; MARICATO, 1997) com destaque no cenário recente. Ou seja, além de combater o aparecimento de materialidades da rede de transportes que promovam o controle e a divisão social (como as excludentes vias do BRT que chegam a separar bairros inteiros ao meio), é preciso promover novos arcos, que articulados com essas políticas sociais possam garantir um desenvolvimento urbano sustentável. Não podemos esquecer que não há somente a forma, mas seu conteúdo simbólico-cultural, que também é influenciado pela estética e pelo tempo. Ainda não está claro se esse processo pode se dar por pequenas conquistas em nível local ou se ainda é necessário uma grande mudança de cima para baixo, porém certamente é ímpar que os acadêmicos do planejamento urbano, arquitetos, geógrafos e cientistas sociais continuem a identificar essas iniciativas, expondo de forma crítica e científica os seus pontos fortes e fragilidades, a fim de se fazer uma metrópole com menos desigualdade social, fraturas sociais e fragmentação do tecido urbano, pobreza, violência e com mais justiça social.
[1] Vide também as outras contribuições de Arantes, Vainer e Maricato (2000) no livro "A cidade do pensamento único”;
[2] A “comunalidade” é a medida daquilo que tem a qualidade de ser “comunal”, ou seja, um determinado atributo que seja “comum” a duas ou mais entidades. Sua origem vem do latim communalis, acrescido do sufixo substantivador “dade”. (COMUNAL..., 2022).
[3] Jordi Borja era presidente da referida empresa e publicou, juntamente com Manuel Castells, diversos textos acadêmicos na década de 1990 disseminando o ideal de planejamento urbano aplicado na cidade de Barcelona.
[4] Por motivos não devidamente esclarecidos no plano, o projeto “Charitas (Niterói) – Botafogo (Rio de Janeiro)“ aparece em duas posições diferentes, 9 e 14, constando como eliminado por ser considerado não-estrutural.
[5] Uma nova tentativa de consulta ao documento realizada em 13/01/2020 mostrou que o referido Anexo A do Relatório 7 não se encontra mais disponível no site da Cia. Estadual de Engenharia de Transportes e Logística (CENTRAL), apesar de todos os outros documentos ainda estarem disponíveis.
[6] A ligação Cocotá – Gradim, consta nos projetos considerados não-estruturais, porém sobreviveu a esta etapa de seleção figurando como 16ª prioridade para 2021