Relação global-local e transformação urbana no 4º distrito de Porto Alegre


Vanessa Marx
Doutora em Ciência Política e Administração - Universidad Autonoma de Barcelona; Professora de Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

Gabrielle Oliveira de Araújo
Mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e pesquisadora no Grupo de Pesquisa Sociologia Urbana e Internacionalização de Cidades (PPGS/UFRGS).

Vitoria Gonzatti de Souza
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PROPUR/UFRGS

REVISTA POLÍTICA E PLANEJAMENTO REGIONAL – RPPR – Rio de Janeiro, Vol. 8, No. 2, maio a agosto de 2021, p. 273 - 296   ISBN 2358-4556

Submetido em 30.07.2020; aprovado em 30.06.2021

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1. Introdução 

O denominado 4º Distrito é uma região de Porto Alegre que se desenvolveu ao norte do Centro Histórico da cidade, a partir da ocupação de imigrantes no início do século XIX. Uma das características marcantes do seu passado é ter abrigado o distrito industrial do município, sendo o principal centro econômico até meados do século XX. Essa especificidade tem sido referenciada nos projetos urbanos que objetivam ações para revitalizar a área, particularmente, a partir dos anos de 1990. Na atualidade, a elaboração de projetos para o 4º Distrito vem sendo uma das prioridades na agenda do governo local e influenciada pelos interesses do capital nacional e transnacional. Na perspectiva do poder público local, de elaborar um plano de revitalização econômica e urbana para o 4º Distrito, o território é percebido como local degradado e abandonado, com o potencial de voltar a ser uma das principais centralidades para a inovação, o empreendedorismo e negócios na cidade. Contudo, aponta-se que o 4º Distrito também contém uma diversidade de atores sociais que, em grande medida, são invisibilizados nesse processo. Diante disso, o 4º Distrito apresenta-se como um território da cidade permeado por diversas forças políticas, econômicas e sociais que apontam para um planejamento urbano fundamentado na estratégia global-local com influência direta do capital transnacional. Assim, partindo da descrição da dinâmica de ocupação territorial e posteriores intervenções socioeconômicas, políticas e urbanísticas, serão discutidas as influências que o 4º Distrito vem sofrendo a partir de projetos internacionais vinculados a interesses locais visando a sua transformação.

Nos anos 1990 já se vislumbrava que o território do 4º Distrito apresentava semelhanças com o Distrito 22@ de Barcelona[1], tanto em relação aos seus cemitérios industriais onde poderiam se instalar indústrias limpas ou de novas tecnologias, como no estabelecimento de um tecido urbano permeado por centros culturais, artistas e empreendimentos de economia criativa. A cultura como álibi, como expõe Otília Arantes (2012), neste caso também se transforma em uma porta de entrada para a revitalização e atração de investimentos privados. Barcelona sempre foi uma cidade que exportou seus modelos que nem sempre poderiam ser adaptados pelas cidades latino-americanas através do denominado planejamento estratégico, onde a cidade ou uma parte dela se transforma em mercadoria (VAINER, 2002). Nos anos 2000 começa uma nova investida de atores internacionais neste território, resultando na criação de um escritório de resiliência, demonstrando como seria operada a estratégia global em nível local. A internacionalização, neste caso, vem sendo operada por agentes internacionais como a Fundação Rockefeller e o Banco Mundial em aliança com os agentes locais públicos e privados. 

No tocante ao planejamento territorial de Porto Alegre, o 4º Distrito vem sendo apresentado nos Planos Diretores enquanto uma área para renovação, porém com margem aberta para a disputa de distintos projetos. O Plano Diretor de 1999, que foi elaborado com um amplo processo participativo desde o início da década de 1990, passou por uma revisão e sua nova versão foi aprovada em 2010. As mudanças observadas no Plano Diretor entre 1999 e 2010 se referem à ampliação do limite de alturas em uma área que abrange três bairros desse território, e à inclusão específica do 4º Distrito como uma área destinada à Operação Urbana Consorciada (OUC). A OUC é um instrumento que pode provocar uma mudança no território que signifique a desapropriação e expulsão das populações ali residentes (FIX, 2004), principalmente por se tratar de uma área próxima ao centro e identificada como “corredor de urbanidade”. Aproximando-se de um novo momento de revisão do plano, em 2017 as leis municipais referentes às Parcerias Público-Privadas (PPPs) foram modificadas, sendo criada uma estrutura administrativa própria para operacionalizar essa estratégia. Ainda, em convênio com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em 2016 foi desenvolvido um plano específico para o 4º Distrito denominado “Masterplan”.

Neste artigo, a primeira sessão apresenta a influência internacional e a transferência de modelos, indicando a operação de uma estratégia global-local na cidade de Porto Alegre com a influência de atores internacionais e do setor privado. Em um segundo momento, são demonstradas as modificações nas leis de PPPs e no Plano Diretor Municipal, convergindo para a elucidação das estratégias transcorridas e que estão direcionando a transformação do território em nível local. Na terceira parte, o artigo enfoca o caso do 4º Distrito, retomando seu período histórico contemporâneo, permitindo identificar no seu desenvolvimento a chegada das influências internacionais, e a sua complexidade de atores. 

Na apresentação do caso do 4º Distrito, serão resgatados os elementos da ocupação territorial imigrante e da sua formação como distrito industrial e bairro operário, demonstrando o seu caráter de localização estratégica, por estar ao lado do aeroporto e rodoviária, e relevância para a realização de projetos urbanos de revitalização do território. Esses são identificados a partir de dois momentos históricos distintos: nos anos de 1990, a estratégia de Porto Alegre Tecnópole; e nos anos 2000, a estratégia relacionada ao novo Plano de Urbanização do 4º Distrito, o Programa Porto Alegre Resiliente e a elaboração do Plano Masterplan. Além disso, descrevemos a presença da sociedade civil, movimentos sociais e outros atores que estão presentes no território. Por fim, as conclusões arrematam os principais pontos da discussão da relação global-local no caso apresentado.  

2. A transferência de modelos a partir da influência global 

A influência global nas cidades se produz no marco no qual estão sendo reorganizadas as noções e funções do Estado e das unidades territoriais subnacionais. Com isso, destaca-se a relevância de identificar e refletir sobre os impactos que os processos de globalização e de transnacionalização estão produzindo nos governos locais e que políticas inovadoras estão sendo implementadas para resolver estes impactos sociais, econômicos ou culturais. Assim sendo, como proporcionar uma mudança das políticas locais pensando no contexto internacional e, ao mesmo tempo, uma maior descentralização das políticas e dos recursos dos governos centrais e supranacionais? Esta dialética é produzida quando consideramos a cidade como ator no sistema internacional.

A cidade internacionalizada pode apresentar duas faces: a de um território atravessado pelas forças transnacionais e a outra a de formação de redes internacionais solidárias que podem reforçar as lutas políticas de inovação democrática, inclusão e direito à cidade no plano internacional através de fóruns e organismos internacionais (MARX, 2008). Estas duas faces da internacionalização vêm influenciando a política territorial para pensar o planejamento urbano na cidade de Porto Alegre.

Um marco contemporâneo importante nessa discussão foi o pacto mundial que resultou na Nova Agenda Urbana (NAU), acordada entre 170 países membros das Nações Unidas, em 2016, na cidade de Quito, no Equador. O documento político é resultado da 3º Conferência das Nações Unidas para a Moradia e o Desenvolvimento Urbano Sustentável (Habitat III) e tem como objetivo ser um guia para estratégias globais em torno da urbanização sustentável, para os próximos 20 anos.

A problemática da urbanização em escala mundial vem sendo debatida no âmbito das Nações Unidas desde 1976, momento em que ocorreu a Habitat I[2], no entanto, a NAU se dá num novo contexto global, que se caracteriza pela consolidação do paradigma da urbanização do mundo. Depois de 40 anos, o mundo deixou de ser rural. Hoje, mais de 50% da população mundial vive em cidades e as previsões apontam para um contínuo aumento deste processo[3]. Desde a Habitat II (1996), ocorrida em Istambul, as conferências das Nações Unidas têm aberto espaço à participação dos atores para além dos Estados-membros, englobando governos locais e organizações sociais (GALINDO e MONTEIRO, 2016).  A NAU expressa a ampliação e fortalecimento do papel dos governos locais no envolvimento direto das ações frente à problemática urbana em nível internacional.

Galindo e Monteiro (2016) citam, em particular no caso brasileiro, as mudanças legislativas que resultaram na inclusão do direito à moradia adequada para todos e a formalização do Estatuto da Cidade. Considerando o contexto do Habitat III, uma das principais conquistas dos movimentos sociais foi a incorporação do conceito de “Direito à Cidade” no texto final da NAU. A adoção do conceito não foi um processo simples e foi resultado de negociações entre países membros[4].

As atividades paralelas ao fórum oficial da ONU foram marcadas também pelo lançamento do Documento de Quito (Quito paper’s), um contraponto intelectual a NAU. O documento escrito pelos sociólogos Saskia Sassen e Richard Sennett, o urbanista Ricky Burdett, e o ex-prefeito de Barcelona, Joan Clos, é um manifesto crítico aos princípios da Carta de Atenas (1930), a qual influenciou fortemente o planejamento urbano pós-guerra na América do Norte e Europa, e continua a ser influente no mundo em desenvolvimento (CITISCOPE, 2016). Os intelectuais propõem uma perspectiva alternativa em que as cidades são concebidas como sistemas abertos e incompletos, porosas, complexas e sincrônicas. Para eles, as cidades são produtos de interação, diversidade, política e de interesses em conflitos.

A NAU e o Manifesto de Quito demarcam o debate global acerca da importância cada vez maior das cidades para o futuro das sociedades humanas, ao mesmo tempo em que expressam as divergências existentes na forma de concebê-las e consequentemente nas formas de agir a partir e sobre elas. Evidenciam, assim, as tramas complexas e diversas de atores que concorrem, disputam e/ou cooperam na definição de agendas urbanas nas distintas escalas - internacional, nacional e local e que conformam uma arena urbana global. Em particular, a NAU e o Documento de Quito, ao trazerem a questão das cidades para o centro do debate, o fazem expressando as tensões entre uma ideologia dominante neoliberal e uma perspectiva contra-hegemônica fundamentada no direito à cidade. Tais questões influenciam direta e indiretamente a elaboração e efetivação de políticas públicas urbanas executadas pelos governos locais.  

A centralidade das cidades frente aos desafios urbanos globais do século XXI e a crescente importância dos governos locais como atores no sistema internacional pode ser considerada também a partir do programa “100 Cidades Resilientes”, uma iniciativa da filantropia internacional, do qual a cidade de Porto Alegre faz parte. O programa, lançado no ano de 2013 e gerenciado pela Fundação Rockefeller, propõe-se a financiar 100 cidades ao redor do mundo interessadas em desenvolver um plano estratégico (“Estratégia de Resiliência”) para orientar as políticas urbanas locais. A adesão ao Programa filantrópico também implica na participação em uma rede global de cidades resilientes para o compartilhamento de soluções inovadoras em políticas urbanas.  

O debate sobre resiliência urbana tem ganhado destaque nas arenas internacionais, sendo incorporado em projetos de cooperação de diversas agências de desenvolvimento internacional, como a ONU e o Banco Mundial, e entidades filantrópicas como a Fundação Rockefeller. A relevância da noção de resiliência é justificada pela capacidade de fundamentar políticas inovadoras no âmbito local para solucionar situações relacionadas à interface de problemas ambientais, sociais e econômicos. De modo geral, a resiliência urbana expressa a ideia de que as cidades são cada vez mais o lugar do risco, ou seja, onde impactos diversos da globalização, urbanização e mudanças climáticas, se materializam, e, ao mesmo tempo, o lugar de onde emanam as principais iniciativas para resolvê-los.  

Tierney (2015) argumenta que a abordagem da resiliência nas políticas norte-americanas de redução de riscos de desastres possui ressonâncias com os discursos e práticas do projeto neoliberal, sendo um exemplo a diminuição do papel do Estado que é substituído por parcerias público-privadas e contratos. Na análise realizada acerca da abordagem da resiliência e o projeto neoliberal, a autora cita ainda o Programa “100 Cidades Resilientes”, problematizando quais os atores considerados protagonistas na construção da resiliência urbana. Uma das fontes de recursos disponibilizada pela Fundação Rockefeller para as cidades que aderiram ao programa é o acesso a uma plataforma de parceiros especializados, a partir da qual os governos locais acessam serviços e ferramentas para orientar o plano de ação de suas políticas urbanas. A análise de Tierney (2015) demonstra que o desenvolvimento da estratégia de resiliência se inclina para o setor com fins lucrativos e empresas corporativas norte-americanas globais, deixando de fora as instituições do sul global, na medida em que a plataforma é composta basicamente pelos primeiros atores. 

Porto Alegre se inseriu nessa rede internacional de cidades resilientes no ano de 2013, a partir de um processo de candidatura que envolveu uma rede entre o poder público, entidades privadas e sociedade civil organizada. A experiência foi concluída em 2016, sendo considerada a primeira da América Latina junto ao programa. Uma das estratégias principais contidas no plano de ações é a Revitalização do 4º Distrito. A transformação da região é concebida como estratégica no fortalecimento e diversificação da economia na cidade. Conforme o texto final da Estratégia de Resiliência, a revitalização da área deve “representar o piloto para uma cidade que desejamos para toda Porto Alegre” (DESAFIO PORTO ALEGRE RESILIENTE, 2016, p.21). Dentre as metas apresentadas, destacamos o desenvolvimento de cluster de saúde como inovação para a região, com o potencial de atrair novos investimentos que melhorem a economia global da cidade; a atração de grandes empresas para a região; e a implementação de um centro de pesquisa e desenvolvimento em parceria com as duas maiores universidades do estado.  

A partir da formação do 4º Distrito Resiliente, surgiu a demanda de elaboração de um plano de revitalização da área, que foi denominado de Masterplan, elaborado em 2016, em parceria do Governo Municipal de Porto Alegre com o Núcleo de Tecnologia Urbana da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Além de ter como base estudos e projetos locais, o planejamento de cidades costuma ser inspirado por outras cidades - casos considerados “modelos”. Ao longo de sua história o 4º Distrito foi alvo de ensaio de um modelo comparativo com outros modelos que despontavam no mundo como ideais de revitalização, tais como o modelo 22@ de Barcelona. No ano de 2000 a Prefeitura de Barcelona aprovou novas regras para uma antiga área industrial situada no Poblenou com fábricas que estavam abandonadas ou fechadas e sem uso. O objetivo desta iniciativa era de renovar a área mantendo a atividade econômica. O 4º Distrito, como zona de potencial tecnológico, tinha características semelhantes ao 22@ de Barcelona. Pareceria ser que, apesar da semelhança nas características do território, Porto Alegre sempre teve dificuldades de avançar em um projeto como o 22@, pois nunca teve uma estratégia clara e constante para o que se pretendia para a área. O projeto 22@ também passou por períodos críticos com risco de gentrificação da área, pela proximidade com a zona olímpica em detrimento de investimento em equipamento e moradia pública. A diferença central nestes dois projetos é que o governo da cidade de Barcelona sempre teve capacidade de regular as ações no território com uma estratégia clara de 10% para zona verde, 10% para equipamento urbano e 10% para moradia pública. No ano de 2017 a Prefeitura de Barcelona começou um processo de participação chamado “Repensem 22@”[5] este processo tinha como principal objetivo estabelecer uma nova proposta estratégica de forma compartilhada com a cidadania para a zona de abrangência do 22@. 

A cidade de Barcelona e o 22@ têm inspirado a renovação do 4º Distrito, mas outros modelos poderiam ser aplicados e também têm sido pensados pelos planejadores urbanos, promotores culturais, empresas nacionais e transnacionais. Como descreve Arantes (2002, p.31) “rentabilidade e patrimônio arquitetônico-cultural se dão as mãos, nesse processo de revalorização urbana” e para que esta renovação globalizante possa operar, o contexto local tem que ser mudado e uma nova estratégia deve ser implementada, o que passa pela alteração dos regimes urbanos, como será tratado a seguir.  

3. Discutindo o âmbito local a partir das mudanças na estrutura legislativa

Neste ponto busca-se explicitar as alterações que ocorreram na legislação referente às Parcerias Público-Privadas na cidade de Porto Alegre, bem como a evolução do tratamento conferido à área do 4º Distrito no Plano Diretor, apontando para uma convergência que sugere a viabilidade do uso de estratégias que envolvem a cooperação com o setor privado no referido território. As Parcerias Público Privadas são um instrumento recente no plano legal do Brasil. A lei Federal 11.079 de 2004 e, no caso de Porto Alegre, a lei municipal Nº 9.875/2005 instituem as Parcerias Público-Privadas (PPPs). Contudo, foi a partir de 2017, com a entrada de um governo cuja estratégia principal focava em formas de cooperação com o setor privado, que as PPPs passaram a integrar a agenda do governo e foram regulamentadas a partir de decretos e leis complementares. 

A Secretaria Municipal de Parcerias Estratégicas (SMPE) foi criada com a Lei Complementar Nº 810/2017, que reordenou a estrutura administrativa da Prefeitura. Logo após a criação da SMPE a Prefeitura transferiu para tal Secretaria todos os chamamentos públicos e estudos relativos à contratação de obras e serviços por meio de concessões, parcerias público-privadas e contratos de gestão (decreto 19.666/2017) e criou o Programa de Parcerias do Município de Porto Alegre (PROPAR/POA) e seu Conselho Gestor (CGP) (decreto 19.736/2017). Assim, verifica-se na gestão que assumiu a prefeitura a partir de 2017 uma postura voltada para o uso de parcerias com empresas privadas e outras instituições não-governamentais. Ainda, tal postura manteve-se, mesmo com a troca de governo a partir de 2021, tendo sido mantida esta estrutura e renomeada para Secretaria de Parcerias.

No Portal de Parcerias, constam espaços e serviços disponíveis para o estabelecimento de parcerias com o setor privado (PREFEITURA, 2018). Estão listados, por exemplo, projetos de parcerias para prestação de serviços urbanos, dentre elas, a operação da rede de água e de esgoto e drenagem pluvial. Há também projetos de concessão para manutenção e gestão de equipamentos de espaços públicos, como paradas de ônibus. 

O caso do 4º Distrito já foi apontado em meio de comunicação oficial da Prefeitura como um possível foco de parceria público-privada, ainda que não conste informações sobre a área entre os projetos do Portal de Parcerias. De acordo com a prefeitura, o Vice-prefeito da gestão 2017-2020 já havia buscado investimentos externos para o plano econômico do 4º distrito (FREITAS, 2017). Assim, alegando uma situação financeira precária e com isso a necessidade de captar investimentos da iniciativa privada, a gestão anterior da prefeitura de Porto Alegre defendia o uso de PPPs para a “revitalização” desta área da cidade (CORREIO DO POVO, 2017). Esta estratégia relaciona-se com um novo instrumento de planejamento urbano chamado de city-marketing (SANCHEZ 1999): a cidade como uma mercadoria a ser exposta de forma a atrair os investidores, principalmente os internacionais (VAINER 2002). Isto relaciona-se à ideia da transferência de modelos, tendo em vista que, em meio a um cenário de competição das cidades pela atração dos investimentos, os governos locais acabam adotando planos muito semelhantes entre si, pois visam atrair as atenções dos mesmos atores que têm, logo, os mesmos interesses.

Olhando especificamente para os planos diretores, identifica-se que o 4º Distrito vem sendo designado pela prefeitura como um espaço de interesse cultural, econômico e tecnológico, demarcado como área de revitalização desde a década de 1990. Observa-se a partir das mudanças da abordagem sobre a área nos planos, que a estratégia de revitalização foi se desenvolvendo. No Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental (PDDUA) de 1999, partes do território do 4º Distrito aparecem entre as áreas de interesse cultural e como um “corredor de urbanidade” (PORTO ALEGRE, 2000). Além disso, o 4º Distrito é apontado como uma área para revitalização econômica para incentivo à criação de empresas de base tecnológica. Ainda no mesmo plano destacavam-se as áreas que mereceriam ser alvo de projetos especiais em função do tamanho dos terrenos e da localização em áreas importantes para a organização da cidade (PORTO ALEGRE, 2000). Uma parte da região do 4º Distrito figurava como zona de projetos especiais, com os seguintes atores listados: Setor privado, Porto, RFFSA (Rede Ferroviária Federal S.A.), Trensurb e Rodoviária, e com as seguintes estratégias: comércio, serviços, indústria, lazer, habitação, hotéis, cultura (PORTO ALEGRE, 2000). 

Na versão comentada do Plano Diretor, publicada pela prefeitura em 2000, o 4º Distrito já passava a ser mencionado como um exemplo de “área de revitalização” que, de acordo com os Arts. 81 e 82, são áreas de relevância para a cidade que poderão ter normas específicas com o objetivo de otimizar o seu aproveitamento e realizar sua reinserção na estrutura urbana, devendo ser instituídas por lei (PORTO ALEGRE, 2000). Portanto, desde antes da possibilidade das OUCs, consolidada pela publicação do Estatuto da Cidade (BRASIL, 2001), o Plano Diretor de 1999 já admitia a possibilidade de um plano diferenciado para áreas específicas da cidade incluindo o 4º Distrito como uma dessas áreas. 

Avançando uma década, observa-se que na versão revisada do PDDUA, de 2010, o 4º Distrito foi novamente incluído na relação de áreas para revitalização, contudo, a indicação dos limites do que se inclui na área de revitalização é vaga:

V – 4º Distrito – compreende parte dos Bairros Floresta, São Geraldo, Navegantes e Humaitá, destacado nas estratégias do PDDUA de estruturação urbana, qualificação ambiental, promoção econômica e produção da Cidade como espaço de revitalização urbana com reconversão econômica; (PORTO ALEGRE, 2010, Art. 83). 

A continuidade de sua previsão no Plano Diretor como área de revitalização indica que a prefeitura seguiu pautando a região como um território destinado à transformação. Em 2010 a prefeitura demarcou o 4º Distrito como área de OUC, permitindo que a pretendida “revitalização urbana com reconversão econômica” ocorra com regramentos diferenciados com relação aos estabelecidos no Plano Diretor, pois as OUCs necessitam ser aprovadas em lei específica. Ainda, seria importante pontuar que as PPPs são um dos instrumentos de viabilização das OUCs (PROGRAMA..., 2019), o que aponta para a convergência na evolução da legislação de PPPs neste ponto. Conforme determina o atual Plano Diretor:

Em prazo exequível, o Executivo Municipal apresentará Projeto Especial de Impacto Urbano de 3º Grau – Operação Urbana Consorciada – para a revitalização do 4º Distrito, visando à obtenção de recursos (PORTO ALEGRE, 2010, Art. 153).

 

Neste sentido, Fix (2004) problematiza o aparente consenso que há em torno das OUCs, a partir da ideia de que embora as operações urbanas estejam referendadas no Estatuto da Cidade, este é um instrumento que exige cuidado em sua aplicação para que não acabe favorecendo a especulação imobiliária e deixando de atender ao seu propósito original - a promoção da justiça social. Seria necessário ter atenção especialmente quando as propostas se concentram em áreas consideradas “novas centralidades” ou áreas de expansão imobiliária, como no caso do 4º Distrito em Porto Alegre. Neste modelo de cooperação entre o setor público e o privado, pode-se questionar se a ideia do autofinanciamento da OUC não acabaria por criar mais desigualdade devido a concentração de investimentos e de valorização imobiliária em uma região, levando em consideração que o governo costuma ser o agente de desbloqueio do potencial da área da OUC, realizando os investimentos iniciais (FIX, 2004). 

Em relação ao regime volumétrico definido para a região no Plano Diretor, observa-se uma possível tentativa de densificar o território: desde o PDDUA de 1999 o limite de alturas é máximo e contínuo uma em parte da área do 4º Distrito, abarcando trechos dos bairros Floresta, São Geraldo e Navegantes (Figura 1a, maior área em amarelo), contudo, o limite desta área foi ampliado de 45m para 52m na versão do plano de 2010 - (Figura 1b, área em vermelho) -  (TITTON, 2012), sendo esta a única mancha contínua de limite máximo de altura, pois no restante da macrozona 1 (área colorida nas figuras 1a e 1b) a altura de 52m se restringe ao contorno de grandes avenidas. Podemos observar também que de 1999 para 2010 aumentaram os limites de altura para outras partes do 4º Distrito, em que áreas com limite de 12,5m e 27m passaram a poder construir até 39m e áreas com limite de 33m passaram para 42m. 

Figura 1a. Limites de altura estipulados pelo PDDUA em 1999.

 

Fonte: adaptado de Titton (2012, p. 218)

 

Figura 1b. Limites de altura estipulados pelo PDDUA em 2010.

 

Fonte: adaptado de Titton (2012, p. 218).

Diante do exposto, o Masterplan do 4º Distrito, associado aos novos instrumentos como as OUCs e as PPPs, estaria, portanto, na agenda de ação do governo municipal. Este se apresenta como uma estratégia recente, inserido dentro de uma agenda maior e internacional, ainda que o território já tenha sido identificado como uma área potencial para transformações urbanas pelos atores locais pelo menos desde a década de 1990. Atualmente, com uma legislação e uma estrutura administrativa municipal receptiva às parcerias com o setor privado, é possível visualizar que a janela de oportunidade para a concretização dessas transformações está aberta no caso do 4º Distrito de Porto Alegre.

4. A estratégia global-local e o caso do 4º distrito de Porto Alegre

Desde as suas origens, a região do 4º Distrito tem sido marcada por influências internacionais. A ocupação territorial, datada de 1824, iniciou-se com a chegada de imigrantes alemães no Rio Grande do Sul e em Porto Alegre. Estes eram artesãos, comerciantes e profissionais liberais e foram, em grande medida, os responsáveis pelo surgimento de pequenas, médias e grandes indústrias na cidade (ARENDT, WITT e WEIMER, 2018). Tais imigrantes se instalaram ao norte do principal conglomerado que existia no município, nas proximidades do Rio Guaíba, dando origem, posteriormente, aos atuais bairros Navegantes, São Geraldo e Floresta. 

Com a instalação de diversas indústrias, principalmente do setor têxtil, a região tornou-se o centro econômico da cidade entre o final do século XIX e meados do século XX. Esse processo de industrialização foi responsável por atrair outros imigrantes. 

Por volta do final dos anos de 1960, a prosperidade do distrito industrial começa a declinar. Por fatores de ordem econômica, mas também ambientais – a proximidade ao Rio Guaíba resulta num histórico de enchentes e inundações -, as indústrias passaram a migrar para as cidades vizinhas, na Região Metropolitana de Porto Alegre. Assim, ao longo das décadas de 1970 e 1980, o 4º Distrito passou por um processo de ruptura como centralidade econômica e urbana do município.

O processo de ocupação territorial e a construção da região como distrito industrial da cidade relacionam-se estreitamente com a localização geográfica do território, considerada estratégica em decorrência das conexões viárias com as cidades vizinhas que originaram a região metropolitana da cidade (SILVA, 2019).  Conforme Mattar (2010, p.54):   

O 4º. Distrito, por seu perfil e vocação de área inserida no encontro das conexões da cidade e por suas características físicas de zona baixa, próxima aos cursos d’água (limitado em duas faces pelo Guaíba e pelo Gravataí) possuía os requisitos ambientais fundamentais para a atração de um complexo industrial, potencializados através da proximidade com a estrada de ferro, cujo traçado e linhas foram definidos considerando os atributos das condições topográficas e geográficas da área. Em 1923, a Brigada Militar decidiu criar o Serviço de Aviação, prosseguindo no ano seguinte com o estabelecimento do “Parque de Aviação”, o que, agregado aos transportes fluvial e terrestre já existentes, consolidaram sua vocação de local dos principais acessos da cidade, que até hoje permanece.

O desenvolvimento econômico e socioespacial do 4º Distrito legou à cidade de Porto Alegre uma região dotada de grandes eixos viários com oferta de equipamentos e serviços públicos e privados, bem como um patrimônio histórico diversificado. Tais elementos - de localização, infraestrutura e patrimônio - são referências importantes para o contexto mais recente deste território, que se caracteriza por um novo momento de proposições públicas de revitalização urbana. Para aprofundar esta discussão, primeiramente são apresentados os contornos geográficos atuais dessa região. 

O 4º distrito situa-se ao norte da cidade, fazendo a conexão entre o Centro Histórico e a Região Metropolitana de Porto Alegre. Nesse percurso, situam-se, num extremo a Estação Rodoviária (centro) e no outro o Aeroporto Internacional Salgado Filho (extremo norte). É considerada a região de “entrada e saída” da cidade, pela qual circula um intenso fluxo de bens e pessoas. 

Esta extensão territorial abrange cinco bairros: Floresta (Região Centro), São Geraldo, Navegantes, Humaitá e Farrapos (Região Humaitá/Navegantes). Ao longo deste traçado situam-se grandes avenidas, equipamentos urbanos, serviços e edificações tombadas como patrimônio histórico da cidade. Como mencionado, estes elementos urbanos aparecem como centrais nas propostas de revitalização econômica e urbana, sendo identificados como fatores potenciais para o dinamismo econômico da região e da urbe como um todo. Contudo, os bairros não são homogêneos na sua composição, apresentando características demográficas, sociais, econômicas e urbanísticas diversificadas, bem como projetos estratégicos distintos, variando em centralidade conforme o período histórico analisado.

Figura 2. Mapa com a delimitação do 4º Distrito da Cidade de Porto Alegre.

 

Fonte: Elaboração própria.

Tabela 1 - Dados sobre os bairros do 4º Distrito.

 

Bairros

Habitantes

Área (km2)

Densidade demográfica (hab/km2)

Taxa de Analfabetismo

Rendimento Médio

Floresta

16.085

2,19

7.344,75

1,24%

6 salários mínimos

São Geraldo

8.706

1,89

4.606,35

0,85%

4,31 salários mínimos

Navegantes

4.011

2,2

1.823,18

1,03%

3,54 salários mínimos

Humaitá

11.404

4,16

2.741,35

1,84%

3,9 salários mínimos

Farrapos

18.986

1,65

11.506,67

4,31%

2,03 salários mínimos

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados do Observa POA (2021).

 

 

A retomada do 4º Distrito como tema da agenda pública pode ser identificada em meados dos anos de 1990, passando a ser (re)considerado um importante lócus de revitalização econômica e reestruturação urbana da cidade. Neste novo ciclo de ações da política de desenvolvimento urbano de Porto Alegre, dois momentos são centrais, marcados por projetos e atores distintos:  1º) o período que vai de 1995 a 2004, com o Programa Porto Alegre Tecnópole; e, 2º) o período entre 2006 e 2018, com a criação do Grupo de Trabalho do 4º Distrito, a vinculação com o Programa Porto Alegre Resiliente e a elaboração do Plano Masterplan.   

O Programa Porto Alegre Tecnópole (PAT) foi formulado no âmbito da gestão do prefeito Tarso Genro (Partido dos Trabalhadores - PT), num contexto de descentralização do poder local e do fomento à democracia participativa. Este foi implementado em 1995, trazendo para o debate urbano o papel da tecnologia “como ferramenta de desenvolvimento urbanístico”, resultando “na ideia de desenvolver o Parque Tecnológico do 4º Distrito” (PIQUE, 2017, p.8). O PAT, neste sentido, esteve vinculado às estratégias e ações da cidade, e sua região metropolitana, para fazer frente aos desafios relacionados à emergência de uma nova economia, baseada no conhecimento e na inovação (HAUSSER, 2016, p. 12). Uma das características centrais deste Programa foi o objetivo de articular nas ações de desenvolvimento urbano diversas instituições públicas, setores da iniciativa privada e setores vinculados à universidade e à sociedade civil. Ademais, passou a integrar o Acordo de Cooperação Técnica entre Brasil e França no subprograma tecnópoles (HAUSER, 2016). 

No âmbito do PAT a região do 4º Distrito foi identificada como uma das zonas estratégicas para a intervenção econômica, vindo a compor as denominadas Regiões de Potencial Tecnológicos (REPOTs). Estas são regiões caracterizadas pela presença de infraestrutura consideradas “com possibilidades de aproveitamento e melhora das condições locais em favor da geração e transferência de conhecimento e tecnologias”, por parte de empresas de base tecnológicas, instituições e profissionais de tecnologia (MOREIRA, 1999, p.58). Neste contexto particular, o potencial tecnológico do 4º Distrito foi identificado com o bairro Navegantes, caracterizado por concentrar setor de negócios de tecnologias, como informática e eletrônica. Nesta área foi projetada “a implantação de um condomínio de empresas de base tecnológica, com aproximadamente 15 empresas, aproveitando um antigo prédio industrial” (PORTO ALEGRE TECNÓPOLE, 1999 apud MOREIRA, 1999, p.61). 

Em 2004, o Parque Tecnológico do 4º Distrito foi desativado, em uma conjuntura de mudanças institucionais em Porto Alegre. Encerraram-se 16 anos de gestão pública municipal vinculada ao PT, assumindo uma nova coalizão política (PPS-PTB). A finalização do PAT pôs fim, “ao que foi um dos mais importantes projetos públicos para a recuperação do 4º Distrito e de mais longa duração”, conforme Piqué (2017, p.8). Contudo, surge um novo projeto de revitalização que, embora tenha como legado parte das discussões e ações do PAT, apresenta aspectos distintos, vinculando-se a uma estratégia de internacionalização da cidade ligada fortemente às parcerias público-privadas e ao capital transnacional que complexifica o jogo de forças no território. Destaca-se que foi no âmbito desta nova administração que ocorreram as mudanças mencionadas na revisão do Plano Diretor - alteração de alturas e operação urbana consorciada - bem como a instituição da lei municipal de Parcerias Público-Privadas. Assim, estes instrumentos institucionais acabam sendo importantes para a concretização da estratégia global-local que passa a ser configurada neste novo período.  

 A nova proposta de revitalização tem como marco a criação, pela Secretaria Municipal de Planejamento, do Grupo de Trabalho do 4º Distrito (GT 4ºD), no final de 2006. Este passou a ser responsável pela formulação de estudos e projetos específicos para esta região que englobassem ações de caráter público e privado. Na narrativa institucional[6], a iniciativa aparece vinculada a um contexto local de grandes investimentos públicos em infraestrutura, moradias e avenidas e de ações do setor privado, particularmente no setor imobiliário. No âmbito do GT 4ºD foi elaborado o Plano de Revitalização Urbana do 4ºD para 2010, ação que integrava o Programa Porto do Futuro, alinhado com o Plano Estratégico do Governo Municipal (2010-2013). 

Dentre o conjunto de iniciativas do GT 4ºD, estiveram presentes os estudos para as obras da Copa do Mundo FIFA, megaevento esportivo realizado em 2014 no Brasil, no qual Porto Alegre foi uma das sedes dos jogos. O principal projeto urbano do poder público neste contexto foi a duplicação da Rua Voluntários da Pátria, eixo viário que conecta o Centro Histórico ao aeroporto internacional, sendo importante para toda a região do 4º Distrito e contribuindo para incrementar a centralidade da Zona Norte (XAVIER, 2013). Ademais, foi construído no extremo norte, no bairro Humaitá, um estádio de futebol, a Arena do Grêmio, como parte do planejamento estratégico do GT 4ºD (XAVIER, 2013). Desse modo, a realização do megaevento esportivo foi utilizada como mecanismo para impulsionar os projetos de revitalização urbana na cidade, atraindo fluxo de capital nacional e internacional.  

No final do ano de 2013, às ações de Revitalização do 4º Distrito passaram a ser vinculadas a agenda do Programa Porto Alegre Resiliente, um projeto urbano internacional da Fundação Rockefeller no qual a cidade tornou-se parceira. Este envolveu aportes financeiros e técnicos ao poder municipal para a elaboração de um plano de desenvolvimento urbano orientado por um enfoque de resiliência urbana, denominado de Estratégia de Resiliência. O programa que durou cerca de dois anos resultou na conformação de uma rede transnacional com a participação de atores locais do setor público, privado, sociedade civil e universidade, articulados com especialistas e consultores internacionais. No conjunto de iniciativas desenhadas, a região do 4º Distrito foi definida como a principal área para intervenções. Particularmente, criou-se o GT Diversificação da Economia, no qual foram elaboradas ações para um 4º distrito resiliente. Nesse processo foi central a atuação de pesquisadores acadêmicos na proposição de políticas públicas territoriais na cidade, surgindo a parceria entre prefeitura, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) na elaboração de um plano para a região que incluísse a questão da resiliência (BENITES, 2015). Neste contexto de estratégias urbanas entre o local e o global, é construído também o Plano denominado de Masterplan, com o lema de transformar o 4º Distrito no lugar mais inovador da América Latina (OLIVEIRA, 2017). 

Como demonstrado, desde os anos de 1990, a região do 4º Distrito de Porto Alegre tem sido alvo de intervenções públicas com o intuito de recuperá-la como uma centralidade urbana e econômica da cidade. Em ambos os períodos retratados, as transformações para o território do 4ºD aparecem associadas à atração de investimentos e ao estabelecimento de parcerias com atores internacionais, atrelados ao desenvolvimento tecnológico e à inovação.

 Contudo, a descrição aponta para elementos contextuais específicos que denotam a existência de projetos distintos. Neste sentido, destaca-se que, nos anos de 1990, as ações concentram-se em um único projeto (Porto Alegre Tecnópole), o qual embora desativado apresenta-se como uma janela de oportunidades para o conjunto de planos e ações que passam a ser propostos a partir do ano de 2004. Estes últimos indicam a intensificação da presença de agentes e modelos internacionais no sentido do planejamento estratégico, empreendedorismo e marketing urbano, apontando para uma estratégia global-local direcionada para um tipo de internacionalização de cidades que prioriza as relações com o setor privado e o capital transnacional. Assim, entre as movimentações mais recentes dos atores sobre este território, destaca-se que em 2021 foi criada uma Frente Parlamentar na Câmara de Vereadores, focada no 4º Distrito, que tem realizado reuniões e movimentado o debate para pautar projetos que envolvam incentivos à transformação do 4°D. Entre os vereadores que estão compondo esta frente parlamentar, o sentimento expressado é de um desejo de realizar ações práticas e de dar velocidade ao andamento dos projetos, diferentemente da frente parlamentar da gestão passada (CÂMARA…, 2021). Além disso, no mesmo ano, o projeto de requalificação de um trecho de 5km da Avenida Farrapos (uma das três avenidas principais no 4º Distrito) foi selecionado pela Agência Espanhola de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento (AECID) para receber um investimento de aproximadamente R$ 1,3 milhão, podendo ser a primeira obra urbanística concretizada no 4º Distrito (PREFEITURA…, 2021). Ainda não há divulgação do projeto a ser executado. Também está prevista a mudança de sede da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico e Turismo (SMDET) para dentro do edifício do Instituto Caldeira, um hub de inovação fundado pela união de 39 empresas, localizado no 4°D. Esta mudança é vista pela prefeitura como uma atitude simbólica de estar tomando a frente de um processo de transformação, mas também uma atitude prática, de estar mais perto das empresas e em um ambiente de inovação e empreendedorismo (APPEL, 2021). Adicionalmente, a atual gestão estima que um projeto de alteração urbanística para o 4° Distrito vá para apreciação na Câmara de Vereadores antes e separadamente da revisão do Plano Diretor. Este projeto deverá ter como base os estudos já realizados para a região, os quais a prefeitura afirma estar reunindo, com o objetivo de iniciar a realização de mudanças no território ainda nesta gestão, conforme estão articulando os Gabinetes do Prefeito e do Vice-Prefeito (SUPTITZ, 2021). Desta forma, a opção mais provável é que seja lançada uma Operação Urbana Consorciada, tal como está estipulado no Plano Diretor. Portanto, estas ações recentes apontam para uma aceleração das movimentações do poder público local em torno da agenda de implementação de mudanças no 4º Distrito, consolidando o que vinha sendo gestado no âmbito de influências globais e locais.

Para além da atuação do poder municipal, e suas parcerias com a iniciativa privada, entidades internacionais e capital transnacional, outro aspecto importante na configuração contemporânea das ações de revitalização para o 4º Distrito é a atuação da sociedade civil. Conforme Piqué (2017), desde o ano de 2012 ocorre uma retomada da questão do 4º Distrito, com maior peso da sociedade civil, deslocando o eixo do bairro Navegantes para o bairro Floresta, no qual surgem dois empreendimentos: o Vila Flores e o Hostel Boutiques. Ao mesmo tempo, passaram a ocorrer reuniões de moradores (grupo denominado Refloresta), que se organizaram para reivindicar demandas do bairro. Desse cenário, criou-se, em 2013, o Projeto Distrito Criativo de Porto Alegre chamado Distrito C, pela agência de design social Urbs Nova Porto Alegre.

Em relação à atuação da sociedade civil e seus impactos no debate sobre a renovação do 4º distrito, destaca-se a importância da criação da Associação Cultural Vila Flores. Inserida na discussão sobre Patrimônio Histórico, a Associação é resultado de uma iniciativa familiar de restaurar um conjunto de dois prédios históricos operários de sua propriedade para a construção de um espaço cultural, abrigando grupos vinculados a iniciativas de economia criativa. O espaço é hoje referência no território, possuindo forte atuação no bairro Floresta e realizando atividades culturais que mobilizam diversas pessoas na cidade. O Vila Flores, as iniciativas culturais e de economia criativa fazem com que o Floresta e o 4º Distrito se modifiquem paulatinamente. Assim, isto pode ser indicador de um processo intermediário para atrair investimentos locais e internacionais para transformação deste território e consequentemente projetar Porto Alegre internacionalmente. Em outras palavras, induz à reflexão sobre o papel da cultura nos processos de transformação da cidade onde ela não pode ser vista como um instrumento neutro e poderia ser decisiva para o mundo dos negócios (ARANTES, 2002) e também sobre o tipo de internacionalização de cidade, com uma projeção mais focada nos interesses econômicos e atração de investimentos internacionais (MARX, 2008) que poderia estar se materializando na cidade de Porto Alegre.

Figura 3. Associação Cultural Vila Flores.

 

Fonte: acervo de pesquisa de campo do Grupo de Pesquisa Sociologia Urbana e Internacionalização das Cidades (GPSUIC), 2019. 

Outro ator importante a ser destacado no bairro Floresta é o Movimento Nacional de Luta por Moradia (MNLM), a partir do Assentamento 20 de Novembro, no qual também são realizados diversos eventos políticos, sociais e artísticos. O Assentamento é fruto da ocupação de um prédio vazio, pertencente à União, em 2007, trazendo para o debate da cidade a relação entre moradia social e áreas centrais de Porto Alegre (MARX e ARAÚJO, 2016). Em 2018, o MNLM conquistou o direito de uso para habitação de interesse social, garantindo o direito à moradia de cerca de 18 famílias. O Assentamento conta com um Projeto de Revitalização sustentável que prevê a criação de espaços multidisciplinares para geração de renda, lazer e, inclusive, educação infantil (FLECK, 2018[7]). A presença desse ator no território do 4º Distrito indica a existência de outros projetos (populares) em curso que tensionam a estratégia global-local apresentada a partir de uma perspectiva do desenvolvimento urbano vinculada ao direito à cidade.  

Figura 4. Assentamento 20 de Novembro.

  

Fonte: acervo de pesquisa de campo do Grupo de Pesquisa Sociologia Urbana e Internacionalização das Cidades (GPSUIC), 2019. 

Ainda, nessa mesma direção, destacamos a presença de outro ator central no bairro Floresta, a Associação de Reciclagem Ecológica da Vila dos Papeleiros (Arevipa), a qual  atua a partir da Santa Terezinha, um loteamento popular. Este é resultante de uma política municipal de reassentamento, em 2006, de famílias de catadores da antiga Vila dos Papeleiros - a qual se constituiu nos anos de 1980 na região do 4º Distrito. O loteamento   localiza-se na Rua Voluntários da Pátria, nas proximidades da Rodoviária e do Centro-Histórico de Porto Alegre. Assim, seria importante mencionar que, embora os catadores sejam uma presença histórica e tenham uma atuação importante no território, nos projetos atuais de revitalização estes estão ausentes, tanto em termos das alianças priorizadas pelo poder público municipal quanto em relação aos objetivos das iniciativas propostas. 

Figura 5. Vila Santa Terezinha.         

  

Fonte: adaptado de Santos (2018)

Portanto, estes atores sociais representam a complexidade das demandas e conflitos existentes no território do 4º Distrito, apontando a existência de desafios na mediação de interesses em disputa diante das estratégias globais que demonstram estar sendo implementadas localmente e que poderiam apontar para uma possível gentrificação do bairro. Com isto, a existência de contradições no território e a importância de incorporar suas demandas e agendas nos planos para a região são visíveis.

5. Conclusão

O 4º Distrito se constitui como uma área antiga de interesse em Porto Alegre e que atualmente volta a ser tema da pauta de uma nova estratégia de internacionalização da cidade, a partir da transformação desse território. As disputas que existem sobre esta área estabelecem desafios, levantando questões sobre como lidar com a complexidade de atores e conflitos, considerando o risco de gentrificação e de segregação que pairam sobre a renovação desta região. Assim, é possível observar que o 4º Distrito tornou-se ao longo dos anos uma das regiões mais visadas da cidade, com a criação de estruturas institucionais exclusivas para a elaboração de planos para a área- inclusive de caráter internacional - e de sua previsão no PDDUA atual como área de Operação Urbana Consorciada (OUC).

O 4º Distrito já vinha sendo considerado como um território para projetos diferenciados visando renovações, desde o PDDUA de 1999. Em 2010 ele foi incluído como área para OUC, respaldado pelo Estatuto da Cidade. Porém, há de se ter atenção ao uso da OUC, considerando a atratividade do território em função da sua localização próxima à área central da cidade e integrada à região metropolitana, além da existência de população em situação de vulnerabilidade que reside e trabalha no 4º Distrito. Apesar das operações urbanas terem se consolidado como uma ideia consensual entre diferentes atores na constituição do Estatuto da Cidade, elas demonstraram não ser instrumentos eficazes na busca pela justa distribuição dos ônus e bônus das transformações urbanas (FIX, 2004). Ainda, a mudança para permissão de maiores alturas para parte da área merece atenção, especialmente considerando a proximidade de nova revisão no Plano Diretor e novas possibilidades de transformações urbanísticas, como por exemplo a requalificação da Av. Farrapos, recentemente contemplada com financiamento internacional. 

A escolha de Porto Alegre para compor a rede de cidades resilientes da Fundação Rockefeller, o surgimento da Associação Cultural Vila Flores que participou da 15a. Bienal de Arquitetura de Veneza, em 2016 (CAU/RS, 2016), tornando-se a referência para melhorias no bairro Floresta, só aceleraram este processo. O avanço de iniciativas culturais e empreendimentos de economia criativa pareceriam mostrar que a cultura provoca transformações pontuais no território e sendo um atrativo para os investimentos privados locais e internacionais. Após 2017, as especulações sobre o território do 4º Distrito convergem para a estratégia global-local, com a abertura para parcerias público-privadas visando investidores nacionais e estrangeiros, considerando que a cidade está inserida em uma rede global de cidades resilientes e que o 4º Distrito seria o principal projeto de Porto Alegre. 

A existência de um novo projeto para o território, considerando a dinâmica que constitui a história do 4º Distrito, a Resiliência e o Masterplan pareceriam ser um atrativo para investimentos e plano de negócios. Caberia ressaltar ainda o papel das universidades como agentes de elaboração de conhecimento e proponentes de planos para área a partir de uma aliança com o poder local, nos dois períodos, tanto no Porto Alegre Tecnópole (Plano Diretor de 1999) como no Masterplan de 2016 (Plano Diretor de 2010).

O caso do 4º Distrito vem nos mostrando a existência de conflitos no território, onde atores sociais aqui mencionados parecem estar excluídos do processo de mudança que vem sendo pensado entre governo e iniciativa privada para a área. Existe o risco do avanço do empreendedorismo urbano e da gentrificação da região. Nesse sentido, alianças entre o poder público local e hub de empresas e a desvinculação e antecipação do projeto para o 4° Distrito com relação ao processo de revisão do Plano Diretor - e, consequentemente, dos processos participativos que são garantidos na revisão - são indicativos da priorização de determinados agentes. Assim, a exclusão de moradores, movimentos sociais urbanos e população vulnerável mostra que os planos locais, com incentivos internacionais, estão sendo pensados à margem de uma parcela da população que vive na região.

Portanto, a estratégia global-local pensada para esta área apresenta um desafio para os atores sociais que estão excluídos do processo, de forma que estes devem pensar em formas de articulação para resistir. As tendências aqui expostas mostram que o projeto de revitalização do 4º Distrito poderia estar atrelado a forças transnacionais e iniciativas privadas locais que poderão ser avassaladoras, imprimindo um ritmo veloz de transformação com exclusão nesta região nos próximos anos na cidade de Porto Alegre.

 

[1] Veja a apresentação em http://www.redbcm.com.br/arquivos/cidadescriativas/barcelona.pdf

[2] A Habitat I correspondeu ao primeiro ciclo de Conferências, organizado pela Organização das Nações Unidas (ONU), para discutir a problemática da urbanização mundial.

[3] As previsões, conforme relatório da ONU-Habitat, é de que até a metade do século 66% da população mundial viverá em áreas urbanas e 80% do PIB será produzido pelas cidades (INSTITUTO PÓLIS, 2016).

[4] Nos debates iniciais da NAU, Canadá, União Européia, Japão, Rússia e Estados Unidos se opuseram à inclusão do conceito no documento, fato revertido em decorrência da campanha liderada pelo Brasil e Equador (MORENO, 2016).

[5] Documento Procés participatiu “Repensem el 22@”. Districte de Sant Martí Direcció de Democràcia Activa i descentralització. Ajuntament de Barcelona, 2017.

 

[6] As informações foram retiradas do site oficial da Prefeitura de Porto Alegre, na sessão da Secretaria de Urbanismo. Disponível em: http://www2.portoalegre.rs.gov.br/spm/default.php?p_secao=150 [acessado em novembro de 2018]

[7]https://www.sul21.com.br/cidades/2018/05/e-possivel-familias-de-baixa-renda-morarem-no-centro-comeca-reforma-do-assentamento-20-de-novembro/

 

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