A territorialização na Atenção Básica e o pensar estratégico na prevenção e promoção à saúde
Gianne Alves Costa
Mestre em Planejamento e Dinâmicas Territoriais no Semiárido pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte
Larissa da Silva Ferreira Alves
Doutora em Geografia; Professora do Departamento de Geografia e do Programa de Pós-Graduação em Planejamento e Dinâmicas Territoriais no Semiárido da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN)
Francisco do O' de Lima Júnior
Doutor em Desenvolvimento Econômico pela Universidade Estadual de Campinas. Professor do Departamento de Economia da Universidade Regional do Cariri e professor do Programa de Pós-Graduação em Planejamento e Dinâmicas Territoriais da UERN.
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1. Introdução
A Constituição Federal Brasileira de 1988, vigente até hoje, traz em seu texto o ordenamento de um novo modelo de política pública de saúde, a ser regida pelos princípios de universalidade, de integralidade e de equidade, passando a inovar os moldes de prover ações e serviços na saúde, que, até então, se davam apenas pela assistência médico-hospitalar (CARVALHO; PINHO; GARCIA, 2017). Com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), além de se garantir o acesso igualitário, passa a se defender um modelo de atenção mais próximo da população, orientado pela vigilância em saúde dentro do território, com a priorização das ações voltadas à promoção da saúde e de prevenção aos riscos e agravos (FINKELMAN et al. 2002).
Com o SUS, a saúde pública brasileira passa a ser implementada a partir de níveis atenção, que se orientam sob a perspectiva de organizar as ações e serviços, de forma a separar sua finalidade técnica de atuação, mas integrá-la dentro de um sistema maior de atendimento e gestão, garantindo a execução da prevenção e assistência. Estruturado por grau de complexidade, em territórios estrategicamente definidos, os níveis de atenção se organizam em: atenção primária ou atenção básica, atenção secundária ou de média complexidade e atenção terciária ou de alta complexidade. A primeira destas, a atenção básica, dedica-se à percepção dos problemas de saúde mais frequentes na população, adotando, para isto, um trabalho centrado na territorialidade das comunidades e com a oferta de serviços de cunho preventivo, curativo e de promoção da saúde, sendo considerada, assim, a porta de entrada da política pública de saúde brasileira, pois é reconhecida como o recurso inicial na área a ser buscado no território, além do caráter dos seus serviços, que é de estar próximo à população, para ser possível identificar e, principalmente, combater o adoecimento (STARFIELD, 2002).
Nos últimos anos, vem se consolidando no Brasil uma perspectiva de atenção primária mais completa em seu escopo de atuação dentro do sistema de saúde, que além de propor um maior conhecimento do território, para se compreender as problemáticas ambientais, sanitárias e sociais que geram situações de risco em saúde, ainda trouxe a importância da inserção de novas práticas profissionais e tecnologias organizativas, propiciando uma atenção mais completa e a identificação precoce de quadros do adoecimento individual e coletivo (OLIVEIRA, 2009).
Considerando a relevância da territorialização para as equipes da atenção básica, compreende-se que, para tornar os instrumentos de apreensão do território eficazes em seu propósito, é preciso expandir as categorias de percepção e de análise para, assim, permitir uma ampla apreensão da realidade, não se limitando apenas aos aspectos biológicos, mas também considerando os determinantes sociais de saúde, a demografia, a cultura, aspectos socioeconômicos, que também contribuem, direta e indiretamente, nas características da saúde da população e de sujeitos específicos, devendo por isto fazer parte da análise das equipes de saúde que se propõem a planejar e executar a prevenção e a promoção à saúde.
Neste aspecto, o presente estudo tem por objetivo refletir a importância da territorialização em saúde no planejamento dos serviços e ações da atenção básica, uma vez que compreende-se que a apreensão do território e suas especificidades é um eixo relevante para construção de estratégias de atuação dos serviços primários de saúde, pois se dando esta apreensão de variadas formas, desde levantamentos epidemiológicos a processamento de dados oriundos de Sistemas de Informação, corroboram para um planejamento eficaz e adoção de intervenções em saúde que alcancem as reais necessidades do público assistido (THOMAZ et al, 2015).
Trata-se de um artigo de revisão bibliográfica, de natureza exploratória de análise, por meio da revisão de produções científicas, em que se explana o pensar estratégico das equipes da atenção básica de saúde por meio da territorialização como método de planejamento para atuação, bem como as formas e técnicas para o mapeamento e análise das especificidades do território, visando a prevenção de quadros evitáveis de saúde e do agravamento de processos de doença. No estudo em questão, faz-se necessário destacar que o levantamento bibliográfico utilizado ocorreu por meio de livros e de artigos científicos, obtidos em diferentes periódicos, tendo alguns destes sido acessados, utilizando-se, como base, o Portal de Periódico Capes e o SciELO, além de legislações e publicações oficiais dos órgãos nacionais que regulamentam a política pública de saúde no Brasil.
Para a construção do levantamento bibliográfico, considerou-se publicações que abordassem a temática desde o período inicial de implementação do SUS até os últimos anos, considerando ser o SUS uma política pública ainda recente e em constante implementação, modificação e aprimoramento, o que torna importante os diversos debates e apontamentos produzidos ao longo destes anos, a fim de compreender seus avanços e sua atual organização.
2. O território e o trabalho de prevenção e promoção à saúde
As políticas públicas no Brasil, a partir do processo de redemocratização, passam a galgar novos rumos direcionados por uma visão coletiva de bem estar da sociedade, o que é confirmado pela Constituição Federal atual, a qual passa a garanti-las sob o norte da justiça social no qual o Estado, em conjunto com a sociedade, aprova e executa os serviços essenciais, firmando-se a compreensão de que as políticas públicas devem ser espaços de construção coletiva e democrática, que objetivam manter a sociedade dentro de um equilíbrio social (BRASIL, 2008).
Este novo entendimento acerca de garantir e implementar serviços que contemplem a coletividade vai exigir, aos estados e municípios, muito mais que apenas executar programas, projetos, serviços, sendo necessária a adoção de processos iniciais, pela adequação as realidades locais e permanentes através do planejamento. Este último, aponta Tancredi (1998, p. 7), se constitui como um elemento valoroso no apoio à implementação e aperfeiçoamento das organizações, principalmente, quando sua realização precede uma avaliação ou mapeamento da realidade, pois, conforme aponto o autor, “promover uma cultura institucional em que os agentes estão habituados a refletir sobre a finalidade das ações empreendidas é uma excelente forma de melhorar a qualidade e efetividade do trabalho”.
O planejamento é a ferramenta que nos possibilita alcançar um ponto desejado no futuro, atravessando um caminho desconhecido entre o presente e o momento almejado. Esse processo nos permite tornar concreto esse caminho, mediante a análise das nuances da atual situação, da avaliação dos recursos disponíveis, sejam políticos, econômicos ou cognitivos, e da nossa atitude em relação ao plano que os atores que dominam esses recursos fazem, seja de apoio, oposição ou indiferença. Essa análise deverá viabilizar o cálculo das ações mais adequadas para atingirmos nossos propósitos (TANCREDI, 1998, p 15).
Não diferente, no contexto da saúde, o planejamento também é compreendido como possibilidade de delinear, estudar e avaliar ações, para, além de intervir na superação de processos negativos de saúde já instalados, prevenir o surgimento de novas problemáticas (SENNA; ANDRADE, 2015). No cotidiano do trabalho em saúde será, também, mantido o entendimento dos sujeitos envolvidos nos processos como principais entes do planejamento, considerando ser este “[...] um processo político de busca dos pontos comuns das distintas visões de futuro e de acordos sobre as estratégias para alcançá-los”. (TANCREDI, 1998, p. 8, grifo do autor).
Em relação aos serviços da atenção primária em saúde, a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), considerando sua proposta de intervenção dentro da rede de atendimento, apresenta, em suas diretrizes, a necessidade de englobar o território no processo de planejamento, apontando que este deve ser bem compreendido pelas equipes da atenção básica, para, assim, ser possível implementar ações setoriais e intersetoriais que impactem nos quadros de doença identificados, bem como a descoberta das condições socioterritoriais que, de forma direta, condicionam e determinam a saúde da população pertencente aquele território (ENSP, 2012).
A atenção básica caracteriza-se por um conjunto de ações de saúde, no âmbito individual e coletivo, que abrange a promoção e a proteção da saúde, a prevenção de agravos, o diagnóstico, o tratamento, a reabilitação, a redução de danos e a manutenção da saúde com o objetivo de desenvolver uma atenção integral que impacte na situação de saúde e autonomia das pessoas e nos determinantes e condicionantes de saúde das coletividades. É desenvolvida por meio do exercício de práticas de cuidado e gestão, democráticas e participativas, sob forma de trabalho em equipe, dirigidas a populações de territórios definidos, pelas quais assume a responsabilidade sanitária, considerando a dinamicidade existente no território em que vivem essas populações (BRASIL, p. 10, 2012)
Assim, o planejamento com foco no território, seus indicadores e determinantes se apresenta como uma das metodologias capazes de operar mudanças no modelo assistencial e nas práticas sanitárias vigentes na atenção básica, pois auxilia no desenho de novas configurações loco-regional, baseado no reconhecimento e esquadrinhamento do território segundo a lógica das relações entre ambiente, condições de vida, situação de saúde e acesso às ações e serviços de saúde (TEIXEIRA et al, 1998).
O território se configura como um componente importante para o processo de trabalho da atenção básica e, consequentemente, das Estratégias de Saúde da Família (ESF) e, mesmo sendo um apontamento trazido desde as primeiras discussões que embasaram o surgimento da atual política pública de saúde, o que se observa é que o entendimento do conhecer o espaço físico de atuação e suas características sociais, culturais, sanitárias, ambientais e epidemiológicas nem sempre foi algo claro e conciso. Como aponta Faria e Bortolozzi (2016), tal inserção só passou a ocorrer com o fomento da municipalização do sistema de saúde, trazendo para a atenção básica a necessidade de se aprofundar no debate sobre territorialização, para, assim, ser possível criar os sistemas locais de saúde dentro do que preceitua o SUS.
Desde a década de 1990 colocava-se a questão de como planejar territorialmente a ABS do SUS. Compreendeu-se que toda a estrutura e o próprio modelo assistencial dependem não apenas de como são alocados os serviços, mas como são organizadas territorialmente suas ações, sobretudo as ações de prevenção e promoção. Por isso, era necessário mais do que apenas delimitar territórios para os serviços, devendo haver uma relação de vinculação e pertencimento entre a população e os serviços. (FARIAS, 2020)
A real compreensão da ligação entre território e a saúde ganhou mais notoriedade nas últimas décadas, principalmente, pela expansão da concepção do próprio termo que, até então, era visto apenas sob o viés do contexto geográfico, interligado às características climáticas e zoológicas. É percebido também que, nos últimos anos, as demais áreas de conhecimento foram se apropriando do termo para melhor compreenderem o papel que o território exerce sobre os sujeitos. Na saúde e, principalmente, na atenção básica, passou-se ao entendimento de que o trabalho de promoção à saúde só se tornará eficaz se existir uma apreensão correta do usuário no território em que ele habita (OLIVEIRA, 2009)
Cada território tem as suas particularidades, que configuram diferentes perfis demográficos, epidemiológicos, econômicos, sociais, culturais e políticos, os quais se encontram em constante transformação. Assim, a atuação das equipes de saúde sobre esse território tem de considerar esses perfis. Os profissionais de saúde que atuam na Atenção Básica devem se apropriar dessas características, precisam dialogar com os atores, para que tenham poder de atuação sobre a realidade onde atuam e à qual também pertencem (COLUSSI E PEREIRA, 2016, p 13)
Observa-se que, dentro do SUS, o debate de território e territorialização passam a contribuir diretamente na implementação dos serviços, mais especificamente nos que envolvem a atenção básica, que além de utilizá-la para a delimitação de seu espaço de atuação, ainda incorpora para a organização e direcionamento de suas ações (FARIAS, 2013). Para, além da organização dentro de um espaço delimitado, é percebido que a utilização do território no escopo do trabalho na saúde contribui para que o SUS concretize seus princípios e chegue ao cidadão dentro do seu espaço de vivência cotidiana, pois como destacam Moysés e Sá (2014, p 4.325):
O reconhecimento das características socioeconômicas, ambientais, organizativas, programáticas, bem como as potencialidades e prioridades locais do território são considerados aspectos chave para a atuação sobre os determinantes da saúde e a implementação de estratégias de vigilância em saúde.
Mas, para a política pública de saúde, além da importante compreensão do território como algo mais amplo que no social e no ambiental, é, ainda, produto do meio e produtor dos meios (BARCELLOS et al, 2002) é preciso também buscar formas de apreender com mais precisão os aspectos que circundam os espaços de vivência cotidiana para, assim, organizar as práticas e ações primárias em saúde, sendo preconizado pelo SUS para tal garantia o planejamento e avaliação por meio da territorialização da saúde.
A territorialização em saúde exerce um papel importante, por permitir um mapeamento contínuo dos riscos e agravos que permeiam o cotidiano dos sujeitos, assim como “o planejamento e o desenvolvimento de ações setoriais e intersetoriais com impacto na situação, nos condicionantes e nos determinantes da saúde das coletividades que constituem aquele território [...] (BRASIL, 2012, p.13)”.
Assim, Colussi e Pereira (2016, p. 29) conceituam a territorialização em saúde como “[...] uma prática, um modo de fazer, uma técnica que possibilita o reconhecimento do ambiente, das condições de vida e da situação de saúde da população de determinado território [...]”, ou seja, uma parte importante no processo de planejamento das equipes de saúde, no qual é possível acessar a população por meios diversos de apreensão da realidade que, após analisados sob a consideração de diversos aspectos, podem resultar em ações concretas de melhoria ou modificação da realidade.
Deste modo, não se pode restringir a territorialização em saúde apenas a uma técnica científica de conhecimento e observação para geração de diagnósticos, e este, de ações setoriais e pragmáticas sendo necessário observá-lo sob um olhar amplo, no qual é possível repensar a atuação da saúde em meio aos variados processos que condicionam o estado de saúde/doença para, assim, sensibilizar os sujeitos com vistas à mudança de atitudes hegemônicas que, negativamente, interfere em uma vida saudável (FARIA, 2013).
É possível identificar, ainda hoje, que, muitas vezes, o processo de territorialização em saúde é limitado apenas ao entendimento de organização geográfica de atuação dos serviços da atenção primária. É preciso, inclusive, ser claro a todos os entes envolvidos no processo de promoção e prevenção à saúde que, principalmente quando se trata de planejamento, a territorialização vai além de estabelecer limites, uma vez que conhecer, investigar, diagnosticar o território e seus sujeitos é subsidiar o controle e vigilância não apenas aos aspectos epidemiológicos, pois acredita-se que, conforme se analisa e intervém neste território, pode-se gerar mudanças em vários aspectos e áreas da vida.
Nesse contexto de discussão, conforme demonstra Tancredi (1998, p. 15) o planejamento deve inserir-se no cotidiano das equipes de saúde não como um produto, mas sim como um caminho a ser trilhado para resultados, uma vez que, nos atendimentos e ações diversas na área da saúde coletiva, “o objetivo não é as consultas produzidas, mas, sim o resultado que esses procedimentos terão sobre a saúde dos indivíduos e o impacto que as ações planejadas terão sobre os indicadores de saúde da população”.
O ato de planejar consiste em desenhar, executar e acompanhar um conjunto de propostas de ação com vistas à intervenção sobre um determinado recorte da realidade. O planejamento pode ser visto como um instrumento de racionalização da ação humana – ação realizada por atores sociais, orientada por um propósito relacionado com a manutenção ou a modificação de uma determinada situação (CONASS, p.138, 2011 apud TEIXEIRA, 2002).
Por fim, é preciso estar claro que a inserção do debate de território não deve ser confundida com o de territorialização, mas vistos como complemento e evolução da discussão, uma vez que a compreensão do território, para além dos conceitos geográficos, amplia e incorporam aos serviços e políticas da atenção básica de saúde a visão sobre as relações humanas com o espaço habitado, sua historicidade, relações de poder e contextos de saúde e doença. É notório que, em meio à expansão do trabalho desenvolvido na atenção básica de saúde ao longo dos anos, ainda há desafios decorrentes do modelo de saúde curativo mas, em muitos outros aspectos, se percebe os avanços e a abertura do próprio SUS ao processo constante de implementação e aperfeiçoamento.
3. O uso dos indicadores em saúde como ferramentas de mapeamento, análise e intervenção no território
Durante muito tempo, os estudos que discutiam os cuidados em saúde no território se pautaram, especificamente, nos aspectos biológicos para compreender a vivência dos sujeitos e também explicar as diferenças impostas pelo gênero, já que era considerado fator decisivo do comportamento humano. Todavia, com a ampliação do debate, outros aspectos como os Determinantes Sociais de Saúde (DSS) passaram a ser considerados na compreensão dos condicionantes epidemiológicos do processo de saúde-doença nos indivíduos e na coletividade (BUSS; FILHO, 2007).
Neste sentido, considerando que os aspectos que determinam as condições de saúde dos indivíduos podem decorrer tanto de variações ligadas ao biológico como ao social, diversas abordagens passam, também, a serem usadas como ferramentas de análise e problematização de políticas no território, permitindo, assim, explicar como a organização das relações socioculturais, dos papeis sociais, das atividades ocupacionais e laborais postos as sujeitos, determinam sua qualidade de vida no território, tipos de cuidado com a saúde, adoecimento e morte (AQUINO, 2006).
Seja nas políticas públicas de saúde direcionadas a grupos específicos ou em qualquer outra área da saúde individual ou coletiva, o levantamento de informações, por meio de indicadores diversos, é uma ferramenta estratégica importante para o direcionamento das intervenções na saúde, seja objetivando a modificação de quadros epidêmicos sazonais, os de caráter transitório ou os comuns a realidade cotidiana do território, devendo, tal método, permear todos os espaços da saúde pública, desde os setores de gestão como as equipes de atendimento ao usuário.
Nas políticas públicas, de forma geral, o conjunto de informações sobre dada realidade no território, sua sistematização e análise, viabiliza a definição das situações prioritárias a serem trabalhadas, o planejamento, o monitoramento e, posterior ou continuamente, a avaliação. No contexto da saúde pública, e em específico nos serviços de atenção primária, “[...] as informações geradas pelos Sistemas de Informação em Saúde são indispensáveis, uma vez que permitem uma reflexão sobre a situação de saúde, utilizando variáveis de tempo, espaço e pessoa (PERNAMBUCO, 2013, p 05)”.
A utilização dos sistemas de informação em saúde possibilita o mapeamento e a construção de perfis da situação epidemiológica que permeiam a coletividade ou grupos específicos, sendo, assim, um instrumento importante na territorialização das diversas políticas, programas e ações na área da saúde pública.
Por conseguinte, no processo de territorialização, o levantamento epidemiológico exerce um papel importante, pois, conforme apontam Soares, Andrade e Campos (2001, p 184):
[...] diferentemente da Clínica, que estuda o processo saúde-doença em indivíduos, com o objetivo de tratar e curar casos isolados, a Epidemiologia se preocupa com o processo de ocorrência de doenças, mortes, quaisquer outros agravos ou situações de risco à saúde na comunidade, ou em grupos dessa comunidade, com o objetivo de propor estratégias que melhorem o nível de saúde das pessoas que compõem essa comunidade.
Desta forma, compreende-se que, no processo de prevenir situações de risco e promover saúde nos serviços e ações da Estratégia de Saúde da Família, o levantamento epidemiológico, em consonância com certos aspectos demográficos, subsidiam, na territorialização, um rol de informações acerca das condições de saúde da população em geral e de grupos específicos, seus determinantes variados, bem como as demandas de uso dos serviços primários de saúde, os quais, quando analisados sobre aspectos socioculturais, comportamentais e econômicos, tornam-se essenciais para orientar as políticas de saúde que configuram o primeiro contato com a população usuária.
Soares, Andrade e Campos (2001, p 185) retratam que uma das primeiras fases de um desenho territorial epidemiológico é o conhecimento e análise dos quadros de saúde e/ou morte de acordo com três linhas de apreensão, que segundo os autores, seriam “pessoas, tempo e espaço, método este também conhecido como “epidemiologia descritiva” e que responde as perguntas quem?, quando? e onde?”.
Outro ponto precípuo a definir, na epidemiologia para a identificação e entendimento dos variados motivos e determinantes do adoecimento e agravos, é a escolha do modelo explicativo a ser adotado na territorialização que, concernente a apreensão acerca da saúde da população em geral e de grupos específico, acredita-se que seja o modelo sistêmico.
[...] o modelo sistêmico explica os processos de adoecimento de uma forma “orgânica”, articulando todas as dimensões dos indivíduos, desde as biológicas (ligadas ao organismo humano e suas funções) passando por aquelas ligadas à vida dos indivíduos e à família, até as mais gerais vinculadas à estrutura da sociedade. Baseia-se na suposição de que as causas das doenças estão em diferentes sistemas de organização, desde o celular até o social, passando por níveis intermediários, como órgãos e os indivíduos (REIS, 2017, p. 26, grifo do autor).
Dessa maneira, pensar formas, por meio da vigilância em saúde, de modificar quadros conhecidos e recorrentes de saúde coletiva ou individual exige um conhecimento detalhado dos sujeitos no território em que habitam. Assim, para resultados condizentes com a realidade e colaborativos no processo de territorialização, faz-se necessário, no estudo epidemiológico da saúde coletiva e/ou individual para a prevenção de riscos e agravos, a utilização, a nosso pensar, de sistemas de informações, para que, assim, seja possível construir indicadores de saúde, os quais deverão ser analisados considerando os determinantes sociais de saúde presentes no espaço de atuação, uma vez que são considerados “fatores sociais, econômicos, culturais, étnicos/raciais, psicológicos e comportamentais que influenciam a ocorrência de problemas de saúde e seus fatores de risco na população (BUSS e FILHO, 2007, p. 78)”.
Compreende-se que, para tornar os instrumentos de apreensão do território eficazes, em seu propósito, é preciso eleger categorias de análise que permitam uma percepção abrangente da realidade, pois muitos quadros de doenças, se somente analisados sob os aspectos biológicos, mostrariam apenas as doenças e as mortes prevalentes e suas possíveis causas epidemiológicas o que, a nosso ver, sem retirar sua importância, seria uma análise limitada, pois compreendemos que os determinantes sociais de saúde, como as relações socioculturais e a demografia, também contribuem, direta e indiretamente, nas características da saúde da população e dos sujeitos, devendo, por isto, fazer parte da análise dos estudos que se propõe a planejar e analisar a prevenção e a promoção a saúde.
Neste processo de mapeamento, considerar também os Determinantes Sociais em Saúde é refletir sobre as ligações entre as diversas vivências socioculturais e a saúde pública, tendo em vista que nos revelam o peso dos aspectos culturais, sociais, econômicos, no processo de adoecimento e morte nos territórios.
A distribuição dos eventos relativos à saúde – como as doenças, seus determinantes e o uso de serviços de saúde – não ocorre ao acaso entre as pessoas. Existem grupos da população que manifestam mais casos de determinado agravo, por exemplo, e outros que morrem mais por determinada doença. Isso acontece porque os fatores que influenciam o estado de saúde das pessoas se distribuem de maneira desigual na população, prejudicando mais alguns grupos do que outros (UFSC, 2016, p. 43 apud PEREIRA, 1995).
Em síntese, pensar o processo de territorialização como estratégia colaborativa na implementação dos eixos que norteiam a atenção básica, por meio do levantamento epidemiológico, formulação de indicadores de morbidade, mortalidade, demográficos do território e posterior análise considerando os determinantes sociais, é compreender a necessidade de uma política pública de saúde próxima as realidades do território trabalhado, para, assim, poder intervir, promover e prevenir nos quadros mais comuns e nos possíveis riscos existentes.
Para a implementação de um SUS alinhado a seus princípios de criação, faz-se necessário que os setores de gestão e os serviços de saúde no seu cotidiano, como prática de sua intervenção, estejam aptos a identificar conhecimentos, métodos, técnicas e instrumentos de trabalho que considerem as variadas condições e realidades vivenciadas no território para, assim, conduzir as políticas, programas, ações de saúde, e gerar modificações nos cenários identificados como insuficientes a saúde da coletividade ou sujeitos específicos.
4. Considerações finais
Discutir aspectos que terminam o quadro de saúde de indivíduos, ou da coletividade, pode se mostrar como um desafio, e, por isto, o pensar saúde como política pública e de acesso universal, igualitário, é pensar, precipuamente, em planejamento, gestão e formação continuada. Sob este viés, o estudo apresentado buscou evidenciar a importância da territorialização para as equipes de gestão e assistência da Atenção Básica de Saúde, como ferramenta estratégica para melhor compreender as realidades locais e, assim, possibilitar serviços e ações eficientes de promoção e prevenção à saúde.
Observa-se que, em quase três décadas da criação do SUS, muitos foram os avanços e garantias da política pública de saúde, mas ainda é preciso melhorar a execução de seus níveis de atenção, principalmente da atenção básica, responsável pelo primeiro contato com o usuário. E neste aspecto, a apreensão do território exerce função preponderante, devendo ser este compreendido e considerado não de forma fragmentada dos sujeitos que o habitam, mas sim dinâmico e integrado a variadas dimensões humanas, culturais, sociais, educacionais e econômicas, que variam de um território para outro.
Assim, sendo o SUS uma política social pública, é preciso pensar sua implementação dentro de métodos e estratégias que colaborem na melhor apreensão da realidade e, consequentemente, na eficiência dos serviços a serem executados. Na atenção básica em específico, é relevante enfatizar a necessidade de os serviços de saúde compreenderem os territórios no qual estão inseridos, bem como seus aspectos culturais, sociais, econômicos, sanitários, por meio do processo de territorialização contínua para, assim, possibilitar a formulação de estratégias de intervenção de acordo com a realidade. Para isso, apresenta-se também como os indicadores e os determinantes sociais em saúde como ferramentas de apreensão e análise, que colaboram no mapeamento do território, refletindo a realidade dentro de contexto e sob aspectos variados.
Na construção deste estudo, foi possível perceber que as reflexões teóricas e epidemiológicas acerca dos determinantes sociais em saúde, ainda se mostram de lenta incorporação, ainda mais nas categorias analíticas, mesmo sendo apontado há anos como categoria a ser considerada nos estudos de planejamento em saúde e vigilância epidemiológica. O foco da vigilância em saúde apenas nos aspectos biológicos, que são, sim, de grande importância, mas não suficientes, trazem dificuldades de compreensão da realidade pelos setores da política de saúde, assim como das demais políticas públicas existentes, que também podem fazer uso desta territorialização.
É preciso que as gestões e serviços existentes nos territórios, e os profissionais que nestes estão inseridos considerem a importância de avançar na análise de fatores relacionados epidemiológicos que englobem os determinantes sociais em saúde, pois é percebido que questões sociais, territoriais e de gênero podem estar associadas a riscos diferenciados de morte por causas evitáveis, além dos aspectos regionais, socioeconômicos e culturais. Considera-se ainda importante, diante dos variados determinantes e contextos, não somente a garantia do acesso aos serviços de saúde, mas também a garantia do acesso a uma assistência qualificada, uma vez que reduzir as desigualdades em saúde depende também de estratégias de conhecimento e reflexão da realidade do território para, assim, intervir e incorporar práticas que garantam a prevenção e promoção à saúde.
Logo, para a implementação de um SUS alinhado a seus princípios de criação, é necessário que os setores de gestão e os serviços de saúde, no seu cotidiano e como prática de sua intervenção, estejam aptos a identificar conhecimentos, métodos, técnicas e instrumentos de trabalho que identifiquem as variadas condições e realidades vivenciadas no território para, assim, conduzir as políticas, programas e ações de saúde e gerar modificações nos cenários identificados como prejudiciais à saúde da coletividade ou sujeitos específicos.