Alterações sociais na agricultura familiar catarinense a partir do PRONAF
Juliano Luiz Fossá
Doutor em Administração pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); Professor na Faculdade Empresarial de Chapecó (UCEFF).
Lauro Francisco Mattei
Doutor em Ciência Econômica pela Universidade Estadual de Campinas, Prof. do Programa de Pós-Graduação de Administração da UFSC
Alessandra Matte
Doutora em Desenvolvimento Rural pelo Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural (PGDR),UFRGS; Profa. no Programa de Pós-Graduação em Agroecossistemas (PPGSIS), Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR)
Arlene Renk
Doutora em Antropologia pelo Museu Nacional, UFRJ; Professora titular da Unochapecó; Docente Permanente do Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais
REFERÊNCIAS
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1. Introdução
A agricultura do estado de Santa Catarina, fundamentalmente, é estruturada pelo modelo familiar. Os dados censitários da agropecuária confirmam que mais de 85,0% dos estabelecimentos rurais catarinenses se enquadram nos termos da Lei 11.326/2011. Como uma das consequências desta predominância da agricultura familiar, Santa Catarina se coloca desde a implantação do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) em 1996 como um dos estados com maior participação tanto no número de contratos como no volume financeiro (FOSSÁ, 2021).
Ao considerar este cenário histórico, o objetivo deste artigo constitui-se em identificar e caracterizar as alterações sociais ocorridas entre os agricultores familiares catarinenses a partir da implantação do PRONAF. A luz das alterações de uma política pública, consideramos de fundamental importância a compreensão da sua de proporcionar melhorias ao seu público alvo.
Ao longo da trajetória de seus 25 anos, o acesso aos recursos do PRONAF contribuiu para que alterações significativas ocorressem na agricultura familiar catarinense. Tanto as mudanças na estruturação produtiva e no processo do trabalho como no nível de renda provenientes do acesso aos financiamentos geraram as condições para que uma série de alterações sociais (acesso à bens e serviços) se materializasse no âmbito destas famílias de agricultores familiares.
Este artigo está estruturado a partir de quatro seções, além desta introdução. Na segunda seção é desenvolvido uma revisão teórica relacionada ao PRONAF enquanto política pública de financiamento rural específica ao segmento da agricultura familiar. Na sequência, são apresentados os procedimentos metodológicos do campo da pesquisa utilizados para o alcance dos objetivos de pesquisa. Na quarta seção discorridos os dados e os resultados coletados na pesquisa de campo, bem como é realizada a análise e a discussão teórica de tais informações. Por fim, na quinta seção são tecidas as considerações finais com as principais conclusões do estudo, bem como são realizadas proposições para estudos futuros.
2. A trejetória do PRONAF
O PRONAF é criado em 1996 por meio do Decreto Presidencial n. 1.946/1996 de 28 julho de 1996[1]. A partir do PRONAF, os agricultores familiares passam a ter acesso a linhas de financiamento com taxas de juros abaixo do que tradicionalmente praticava o mercado financeiro tradicional, com prazos maiores, subsídios e, também, assegurando condições de pagamento adequadas à realidade da agricultura familiar (CARNEIRO, 1997).
Para Schneider, Cazella e Mattei (2004, 2021), a implementação do PRONAF significou o reconhecimento e a legitimação pelo Estado das especificidades de toda uma nova categoria social representada pelos agricultores familiares. Na concepção de Gazolla e Schneider (2013), o PRONAF é tido como um marco na intervenção do Estado, por ser uma política pública específica para agricultura familiar, que em outros momentos históricos esteve em segundo plano em relação ao acesso a recursos financeiros.
O PRONAF marca um novo momento nas relações do Estado com o segmento da agricultura familiar que vão muito além da criação de uma linha de financiamento exclusiva à categoria. Sobre isto, Mattei (2014, p. 75) afirma que o “[...] PRONAF se tornou um instrumento fundamental para discussão do desenvolvimento rural no país, pois seu significado para definição das estratégias de reprodução social dos agricultores familiares.”
Inicialmente, o programa foi estruturado a partir das seguintes diretrizes:
a) melhorar a qualidade de vida no segmento da agricultura familiar, mediante promoção do desenvolvimento rural de forma sustentada, aumento de sua capacidade produtiva e abertura de novas oportunidades de emprego e renda;
b) proporcionar o aprimoramento das tecnologias empregadas, mediante estímulos à pesquisa, desenvolvimento e difusão de técnicas adequadas à agricultura familiar, com vistas ao aumento da produtividade do trabalho agrícola, conjugado com a proteção do meio ambiente;
c) fomentar o aprimoramento profissional do agricultor familiar, proporcionando-lhe novos padrões tecnológicos e gerenciais;
d) adequar e implantar a infraestrutura física e social necessária ao melhor desempenho produtivo dos agricultores familiares, fortalecendo os serviços de apoio à implementação de seus projetos, à obtenção de financiamento em volume suficiente e oportuno dentro do calendário agrícola e o seu acesso e permanência no mercado, em condições competitivas;
e) atuar em função das demandas estabelecidas nos níveis municipal, estadual e federal pelos agricultores familiares e suas organizações;
f) agilizar os processos administrativos, de modo a permitir que os benefícios proporcionados pelo Programa sejam rapidamente absorvidos pelos agricultores familiares e suas organizações;
g) buscar a participação dos agricultores familiares e de seus representantes nas decisões e iniciativas do Programa;
h) promover parcerias entre os poderes públicos e o setor privado para o desenvolvimento das ações previstas, como forma de se obter apoio e fomentar processos autenticamente participativos e descentralizados;
i) estimular e potencializar as experiências de desenvolvimento, que estejam sendo executadas pelos agricultores familiares e suas organizações, nas áreas de educação, formação, pesquisas e produção, entre outras (BRASIL, 1996).
Para cumprir estes diretrizes e seus objetivos, o PRONAF foi organizado operacionalmente em quatro áreas distintas, que em conjunto visavam o fortalecimento do segmento. A primeira área dizia respeito à negociação e articulação em torno da política pública, ou seja, toda uma estrutura de participação social, em nível local, regional e nacional. A segunda está ligada à instalação e melhoria destas no âmbito dos municípios, e a terceira está ligada ao financiamento das atividades produtivas, o crédito propriamente dito nas modalidades de custeio e investimento. Por fim, a quarta área diz respeito à orientação e capacitação técnica de agricultores familiares e suas organizações por meio de pesquisa e extensão (AQUINO; SCHNEIDER, 2015; MATTEI, 2015).
Contudo, devido à restrição de acesso ao crédito rural por parte do segmento familiar e o elevado custo como principal entrave à época ao considerar às limitações para implementação do programa em sua totalidade, nas palavras de Aquino e Schneider (2015, p. 58): “O governo elegeu o ‘financiamento da produção’ ou melhor, o PRONAF-Crédito como principal instrumento a ser utilizado para promover ‘um novo padrão de desenvolvimento sustentável’ no campo.”
O programa estabeleceu critérios específicos para que os agricultores familiares fossem enquadrados como público alvo do programa. Tais critérios se constituíram em:
i) possuir, pelo menos, 80% da renda familiar originária da atividade agropecuária;
ii) deter ou explorar estabelecimentos com área de até quatro módulos fiscais;
iii) explorar a terra na condição de proprietário, meeiro, parceiro ou arrendatário;
iv) utilizar mão de obra de predominância familiar, podendo, manter até dois empregados permanentes (SCHNEIDER; CAZELLA; MATTEI, 2004, 2021; BRASIL, 1996).
Apesar disso, em seus primeiros anos o PRONAF discriminou entre faixas de seu público alvo, priorizando aqueles com maior nível de renda monetária como comprovam as operações do PRONAF, que em média foram destinadas em mais de 70,0% somente à região Sul do País entre 1996 e 1998. Em complemento, o estado de Santa Catarina no primeiro ano do programa (1996) foi o segundo estado brasileiro com maior volume de crédito contratado, ficando naquele ano apenas atrás do estado do Rio Grande do Sul. Além disso, a maior parte dos contratos efetivados na região Sul se concentraram em poucas culturas ligadas às cadeias produtivas do agronegócio.
Ao longo dos anos, o PRONAF passou por diversas alterações das regras de funcionamento, bem como do estabelecimento de novos grupos e/ou categorias. Segundo Mattei (2015), entre 1996 e 1999, havia pequenas modificações do programa que tiveram como objetivo ampliar o quadro de agricultores familiares postulantes ao programa como a redução da taxa de juros dos financiamentos, que passou de 12% ao ano em 1996 para 6,75% ao ano em 1999. Outros dois aspectos na trajetória do PRONAF neste período são importantes como, primeiro, em relação ao financiamento em grupos de cinco ou mais agricultores com corresponsabilidade entre os mesmos em relação ao pagamento do financiamento, ou seja, os agricultores pertencentes ao mesmo grupo eram responsáveis em conjunto pelo compromisso financeiro de todos[2].
O segundo aspecto está relacionado à criação de linhas de financiamento por estratificação dos beneficiários, os quais foram classificados pelo nível de renda familiar (SCHNEIDER; CAZELLA; MATTEI, 2004;2021). Já para Mattei (2015), essas alterações buscaram adequar o programa à realidade da agricultura familiar brasileira. Em relação às categorias beneficiadas no interior da agricultura familiar com o PRONAF, estas foram definidas pela Resolução do Banco Central do Brasil n. 2.629, de 10 de agosto de 1999, a qual classificou os beneficiários do crédito PRONAF em seis estratos, conforme a seguir.
Quadro 1 – Categorias beneficiárias do PRONAF segundo resolução 2.629/1999
Grupo |
Descrição |
Grupo A |
Agricultores familiares assentados pelo Programa Nacional de Reforma Agrária que não contrataram operação de investimento no limite individual permitido pelo Programa de Crédito Especial para a Reforma Agrária (PROCERA). |
Grupo B |
Agricultores familiares e trabalhadores rurais que explorem parcela de terra na condição de proprietário, posseiro, arrendatário, parceiro ou concessionário do Programa Nacional de Reforma Agrária; residem na propriedade ou em aglomerado urbano ou rural próximos; não dispõem, a qualquer título, de área superior a quatro módulos fiscais, quantificados segundo a legislação em vigor; obtêm renda familiar oriunda da exploração agropecuária ou não agropecuária do estabelecimento; tem o trabalho familiar como base na exploração do estabelecimento. |
Grupo C |
Agricultores familiares e trabalhadores rurais que explorem parcela de terra na condição de proprietário, posseiro, arrendatário, parceiro ou concessionário do Programa Nacional de Reforma Agrária; residem na propriedade ou em aglomerado urbano ou rural próximos; não dispõem, a qualquer título, de área superior a quatro módulos fiscais, quantificados segundo a legislação em vigor; obtêm, no mínimo, 80% da renda familiar da exploração agropecuária e não agropecuária do estabelecimento; têm o trabalho familiar como predominante na exploração do estabelecimento, utilizando apenas eventualmente o trabalho assalariado, de acordo com as exigências sazonais da atividade agropecuária. |
Grupo A/C |
Agricultores familiares oriundos do processo de reforma agrária e que passam a receber o primeiro crédito de custeio após terem obtido o crédito de investimento inicial que substituiu o antigo programa de apoio aos assentados. |
Grupo D |
Agricultores familiares e trabalhadores rurais que explorem parcela de terra na condição de proprietário, posseiro, arrendatário, parceiro ou concessionário do Programa Nacional de Reforma Agrária; residem na propriedade ou em aglomerado urbano ou rural próximos; não dispõem, a qualquer título, de área superior a quatro módulos fiscais, quantificados segundo a legislação em vigor; obtêm, no mínimo, 80% da renda familiar da exploração agropecuária e não agropecuária do estabelecimento. |
Grupo E |
Agricultores Familiares com renda bruta anual entre R$ 40.000,00 a 60.000,00. Os limites de financiamento para custeio são de R$ 28.000,00, com juros de 7,25% ao ano e prazo de pagamento de dois anos. Já para investimento, o limite de financiamento é de R$ 36.000,00, com juros idênticos ao crédito de custeio e prazo de pagamento de até 8 anos, com 3 são de carência, sem previsão de descontos* |
* Valores referentes ao ano da resolução (1999).
Fonte: elaboração do autor (2021), a partir de Brasil (1999).
Segundo Mattei (2015), o estabelecimento do Grupo B significou a contemplação de agricultores familiares e remanescentes de quilombos, trabalhadores rurais e indígenas. Outro elemento em prol desse público que chama atenção é a criação ainda em 1997 do “Pronafinho” (Grupo C), linha de financiamento criada também para atender o conjunto de agricultores familiares em situação de maior vulnerabilidade social. Contudo, Cazella et al. (2016) apontam que os resultados alcançados por meio do Grupo B e outras iniciativas não foram expressivos e pouco contribuíram para superação da pobreza de seu público alvo.
Ainda no ano de 1999, o PRONAF passa, com a criação do Ministrério do Desenvolvimento Agrário (MDA) para este ministério e deixa de ser gerido pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA). É importante ressaltar que, assim como o PRONAF, as demais estruturas ligadas à agricultura familiar passaram a integrar o novo ministério, como também a reforma agrária. Com isto, os assuntos e interesses da agricultura familiar e, consequentemente, o PRONAF ganharam força e legitimidade no âmbito do Governo Federal.
Já em 2003, no Governo Lula, ocorre uma transferência do PRONAF – Infraestrutura que atuava no âmbito dos municípios para a então recém-criada Secretaria de Desenvolvimento Territorial (SDT) que, a partir de então, iria desenvolver via Programa Nacional de Desenvolvimento dos Territórios Sustentáveis (PRONAT) a noção de desenvolvimento territorial, tanto rural como urbano. Apesar disso, de acordo com a visão de Mattei (2015), as ações desta nova estrutura institucional continuariam vinculadas ao fomento e apoio à agricultura familiar.
Com o passar dos anos, especialmente a partir do segundo mandato do Governo FHC e principalmente nos dois mandatos do presidente Lula, o programa ganha capilaridade nacional, expandindo-se para todas as regiões do País, com maior destaque para a região Nordeste. Essa expansão se expressa, primeiro, na publicação da Resolução n. 2.766/2000 do Banco Central, a qual possibilitou que as taxas de juros do programa fossem fixadas e progressivamente reduzidas, chegando em algumas operações a ser de 1,0% ao ano. Além disso, os prazos de pagamento dos financiamentos foram expandidos possibilitando melhores condições e/ou condições adequadas ao conjunto da agricultura familiar brasileira.
O crescimento significativo do sistema bancário brasileiro atuante nas operações do PRONAF representa o segundo aspecto da expansão. Ele ocorre sistematicamente via Banco do Brasil, mas, sobretudo, principalmente via cooperativas de crédito rural, que após sua consolidação nas regiões Sul e Sudeste se expandem para as demais regiões brasileiras. Para o PRONAF, tais cooperativas se colocam como determinantes na cobertura do programa em todo território nacional no decorrer da primeira década do século XXI.
Em continuidade, segundo Schneider, Cazella e Mattei (2004, 2021), ainda no Plano Safra 2003/2004 novas linhas de financiamento com fins e públicos específicos no interior da agricultura familiar fpram criadas. As novas modalidades, como também são conhecidas, criadas no referido Plano Safra foram:
i) PRONAF Alimentos, com o objetivo de estimular a produção de cinco alimentos básicos (arroz, feijão, milho, mandioca e trigo);
ii) PRONAF Pesca, com o objetivo de apoiar os pescadores artesanais;
iii) PRONAF Agroecologia, com o objetivo de apoiar a produção agroecológica e os agricultores em transição;
iv) PRONAF Turismo Rural, com o objetivo de apoiar a implantação de atividades turísticas nas propriedades rurais; iv) PRONAF Mulher;
v) PRONAF Jovem Rural; vi) PRONAF Semiárido;
vii) PRONAF Máquinas e equipamentos (SCHNEIDER; CAZELLA; MATTEI, 2004, p. 7).
Contudo, estas modalidades não conseguiram atingir um amplo desenvolvimento no interior da agricultura familiar brasileira. Aquino, Gazolla e Schneider (2017) classificam o desempenho das linhas do PRONAF voltadas ao desenvolvimento sustentável como baixo e irregular ao se considerar a trajetória das concessões de crédito PRONAF com este fim.
A acima referida expansão se dá tanto em número de contratos como em volume de recursos acessados, isto porque o montante distribuído pelo PRONAF passou de R$ 2,10 bilhões no Ano-Safra 1999/2000 para R$ 13,3 bilhões no Ano-Safra 2010/2011. Já o número de contratos passou de aproximadamente 791 mil em 1999 para algo em torno de 1,6 milhão de contratos em 2010. O ano de 2006 registra o maior número de contratações do PRONAF em toda a história do programa, onde foram efetivados aproximadamente 2,5 milhões de contratos em todo o Brasil. Uma das possíveis explicações para este fenômeno foi a garantia por parte do Governo Federal que iria honrar os agentes financeiros em caso de inadimplência dos contratos de linhas direcionadas a agricultores mais fragilizados.
No ano de 2008 foram extintas as categorias e/ou grupos C, D e E; os agricultores destas categorias passaram a ser enquadrados genericamente como agricultores familiares. Em conjunto a isto, as taxas de juros passaram a ser discriminadas pelo valor do financiamento contratado. Contudo, o acesso aos financiamentos, tanto de custeio quanto de investimentos, passou a ser organizado de acordo com o rendimento do grupo familiar nos últimos 12 meses anteriores a contratação do crédito. Já as categorias A, B e A/C permaneceram inalteradas quanto ao seu enquadramento funcional ao PRONAF (Quadro 3).
Ainda no decorrer da primeira década dos anos 2000, especificamente como uma das estratégias de enfrentamento da crise internacional no ano de 2009, o Governo Federal lança o PRONAF Mais Alimentos[3] com o objetivo financiar investimentos em infraestrutura produtiva da propriedade familiar e, consequentemente, criar e/ou ampliar as condições necessárias para o aumento da produção e da produtividade no País. Os financiamentos para a linha Mais Alimentos podem ocorrer tanto na forma individual quanto de maneira coletiva e as taxas de juros variam ao ano, de acordo com as especificidades de cada Plano/Safra.
A linha de financiamento do PRONAF Mais Alimentos exige por parte do agricultor familiar um projeto de viabilidade no qual conste às finalidades na qual se pretende realizar o investimento requerido via o programa. Além do projeto, naturalmente a DAP se coloca como outro requisito para acesso aos recursos do PRONAF Mais Alimentos. Rambo (2014, p. 72) aponta que a linha do PRONAF Mais Alimentos permite ao agricultor familiar o financiamento de praticamente “[...] todas as atividades relacionadas à agricultura, servindo como mecanismo de crédito para aquisição desde animais até veículos para transporte da produção ou ainda softwares para gerenciamento da propriedade.”
Os financiamentos via PRONAF Mais Alimentos ficaram marcados pela ampla aquisição por parte do conjunto de agricultores familiares por um modelo de trator de pequeno porte disponível no mercado para este fim e ainda pela compra de automóveis com caçamba (Pick-Up). Contudo, em uma perspectiva crítica, Aquino e Schneider (2015) apontam que o PRONAF Mais Alimentos reforçou um novo quadro de modernização desigual no interior da agricultura familiar, concentrando suas operações e recursos principalmente nos agricultores familiares consolidados das regiões Sul e Sudeste do País.
Atualmente, os financiamentos do PRONAF suscetíveis à financiamento por parte dos agricultores familiares estão distribuídas em 12 linhas conforme descrito no Quadro 3.
Quadro 2 – Linhas de financiamento do PRONAF em funcionamento
Linha de Crédito |
Descrição |
PRONAF Custeio |
Destina-se ao financiamento das atividades agropecuárias e de beneficiamento ou industrialização e comercialização de produção própria ou de terceiros enquadrados no PRONAF. |
PRONAF Mais Alimentos – Investimento |
Destinado ao financiamento da implantação, ampliação ou modernização da infraestrutura de produção e serviços, agropecuários ou não agropecuários, no estabelecimento rural ou em áreas comunitárias rurais próximas. |
PRONAF Agroindústria |
Linha para o financiamento de investimentos, inclusive em infraestrutura, que visam o beneficiamento, o processamento e a comercialização da produção agropecuária e não agropecuária, de produtos florestais e do extrativismo, ou de produtos artesanais e a exploração de turismo rural. |
PRONAF Agroecologia |
Linha para o financiamento de investimentos dos sistemas de produção agroecológicos ou orgânicos, incluindo-se os custos relativos à implantação e manutenção do empreendimento. |
PRONAF Eco |
Linha para o financiamento de investimentos em técnicas que minimizam o impacto da atividade rural ao meio ambiente, bem como, permitam ao agricultor melhor convívio com o bioma em que sua propriedade está inserida. |
PRONAF Floresta |
Financiamento de investimentos em projetos para sistemas agroflorestais; exploração extrativista ecologicamente sustentável, plano de manejo florestal, recomposição e manutenção de áreas de preservação permanente e reserva legal e recuperação de áreas degradadas. |
PRONAF Semiárido |
Linha para o financiamento de investimentos em projetos de convivência com o semiárido, focados na sustentabilidade dos agroecossistemas, priorizando infraestrutura hídrica e implantação, ampliação, recuperação ou modernização das demais infraestruturas, inclusive aquelas relacionadas com projetos de produção e serviços agropecuários e não agropecuários, de acordo com a realidade das famílias agricultoras da região Semiárida. |
PRONAF Mulher |
Linha para o financiamento de investimentos de propostas de crédito da mulher agricultora. |
PRONAF Jovem |
Financiamento de investimentos de propostas de crédito de jovens agricultores e agricultoras. |
PRONAF Custeio e Comerc. de Agroindústrias Familiares |
Destinada aos agricultores e suas cooperativas ou associações para que financiem as necessidades de custeio do beneficiamento e industrialização da produção própria e/ou de terceiros. |
PRONAF Cota-Parte |
Financiamento de investimentos para a integralização de cotas-partes dos agricultores familiares filiados a cooperativas de produção ou para aplicação em capital de giro, custeio ou investimento. |
Microcrédito Rural |
Destinado aos agricultores de mais baixa renda, permite o financiamento das atividades agropecuárias e não agropecuárias, podendo os créditos cobrirem qualquer demanda que possa gerar renda para a família atendida. Créditos para agricultores familiares enquadrados no Grupo B e agricultoras integrantes das unidades familiares de produção enquadradas nos Grupos A ou A/C[4]. |
Fonte: elaboração do autor (2020), a partir de Brasil (2016).
No que se refere à taxa de juros do PRONAF, entre 2012 e 2015, o valor de 4,0% ao ano foi o maior percentual praticado pelo programa. A partir do plano Safra 2015/2016, esse percentual máximo foi reajustado para 5,5% ao ano e vem sendo praticado nestes patamares desde então nos Planos Safras posteriores até 2020/2021. Em contrapartida, à taxa de juros para as contratações do PRONAF Custeio, observados alguns requisitos, se mantiveram em 2,5% ao ano[5]. Contudo, nas operações do Microcrédito Grupo B e PRONAF Mulher Grupo B, a taxa de juros se manteve estabelecida em 0,5% ao ano, com limite de concessão estabelecido em R$ 15 mil anuais e com bônus para os agricultores familiares que se mantiveram adimplentes com seus compromissos junto ao programa PRONAF. As demais linhas de crédito do PRONAF constantes no Quadro 3 possuem suas taxas fixadas em 2,5% e 5,0% ao ano, conforme especificação realizada anualmente em cada Plano/Safra.
No Plano/Safra 2019/2020 ficou estabelecido que as taxas de juros das operações do PRONAF podem variar e 2,5% ao ano até 4,6% ao ano de acordo com a especificidade da operação de crédito. A taxa de juros de 2,5% ao ano foi destinada às operações de financiamento do cultivo de feijão, arroz, trigo, mandioca, batata-doce, tomate, cebola, alho, laranja, banana e abacaxi. A mesma taxa de juros foi para os sistemas de produção de base agroecológica ou em transição para sistemas de base agroecológica e para o custeio pecuário destinado à apicultura, bovinocultura de leite, piscicultura, ovinos, caprinos e plantio de milho até o valor de R$ 20 mil. As operações com valores superiores a R$ 20 mil a taxa de juros são de 4,6% ao ano. Com relação ao Plano/Safra 2020/2021, lançado em junho de 2020, foi disponibilizado à agricultura familiar via PRONAF o montante de R$ 33 bilhões para financiamento com juros de 2,75% e 4% ao ano. Houve a continuidade da linha de crédito para habitação rural na ordem de 500 milhões de reais.
Ainda segundo o referido documento, estão aptos a acessar o programa agricultores familiares com renda de até R$ 415 mil com limite de R$ 250 mil nas operações de custeio e de R$ 330 mil para o PRONAF Investimento nas atividades de suinocultura, avicultura, aquicultura, carcinicultura e fruticultura, para os demais empreendimentos e finalidades o limite da linha de financiamento de investimento ficou estabelecido em até R$ 165 mil.
Em relação a este aspecto, uma das principais críticas realizadas pelos representantes do segmento é a comparação da taxa de juros do PRONAF com a taxa Selic, que por sua vez apresentou redução, passando de 10,4% ao ano em 2012 para algo em torno de 2,25% ao ano em 2020. Em termos comparativos, a taxa de juros do PRONAF se tornou mais elevada nominalmente quando comparada a taxa Selic, a qual é taxa de juros referência da política monetária executada pelo Governo Federal.
Ao longo do tempo, houve modificações na compreensão dos gestores públicos da importância do PRONAF enquanto política pública de apoio ao segmento da agricultura familiar tanto no entendimento de Mattei (2015) como no de Aquino e Schneider (2010). Nas palavras de Aquino e Schneider (2010, p. 2), tais ajustes no PRONAF foram necessários para: “Combater as desigualdades sociais e regionais que marcaram as políticas estatais tradicionais voltadas para estimular a modernização tecnológica da agricultura brasileira.” Apesar disso, há de se considerar a segmentação e seletividade ocorrida nos últimos anos, especialmente quanto à redução do número de contratos.
Em termos de evolução dos recursos do PRONAF, tanto no âmbito de Santa Catarina quanto em nível de Brasil houve expressivos aumentos ao considerar toda a trajetória do programa. No País, os valores passaram de R$ 2,1 bilhões em 1996 para mais de R$ 25,8 bilhões em 2019, e em Santa Catarina de R$ 544 milhões para R$ 3,4 bilhões no comparativo 1996/2019[6]. Em relação ao número de contratos, em nível nacional a evolução passou de pouco mais de trezentas mil operações em 1996 para aproximadamente 1,2 milhão de operações em 2019. No estado de Santa Catarina, o número de contratos apresentou pequena redução no período, alterando de aproximadamente 98,2 mil operações no primeiro ano do programa para aproximadamente 84 mil contratos em 2019.
Ao se considerar especificamente o cenário catarinense, percebe-se que cada vez mais o agricultor familiar necessita acessar maiores montantes de financiamentos para viabilizar suas atividades produtivas. Por outro lado, o número de contratos descresse ano após ano, especialmente a partir de 2015. Em uma suposição simplória, verifica-se que aproximadamente apenas 53,5% dos agricultores familiares catarinenses acessaram o programa no ano de 2018. Ora, tal afirmação é complexa, pois os dados disponibilizados pelo BACEN quantificam contratos e não agricultores familiares, considerando ainda que uma mesma família pode efetivar mais de um contrato para sua unidade produtiva em um único ano, certamente, a cobertura do PRONAF em Santa Catarina é inferior ao percentual mencionado acima.
Contudo, é necessário ressaltar que o PRONAF, apesar de todas as críticas tecidas ao programa, se constitui em uma política pública importante aos agricultores familiares que acessaram tais financiamentos ao longo dos anos. Os agricultores familiares “Pronafianos” em estudo anterior sobre a região Oeste consideram o programa como um divisor de águas em sua trajetória enquanto agricultor familiar. É neste sentido que a questão central desta tese se constitui em analisar as alterações ocorridas na agricultura familiar catarinense a partir da implementação do PRONAF em 1996.
Estas alterações possuem abrangência de caráter amplo, ou seja, nas perspectivas econômicas, sociais, culturais, ambientais e tecnológicas que permeiam a inserção e as relações da agricultura familiar. Além disto, compreende-se que a política pública do PRONAF exclusiva no segmento, ao ser executada isoladamente ou em conjunto com outras políticas, buscam o fortalecimento e geram alterações no conjunto da agricultura familiar.
3. O formato da pesquisa, a realização das entrevistas e a construção de categorias analíticas
Dentro dos conjuntos de procedimentos sistemáticos para a produção de conhecimento científico[7], na presente pesquisa optou-se, em termos metodológicos, por uma abordagem qualitativa, especialmente por adequar-se aos objetivos propostos a este estudo. As análises qualitativas contemplam a complexidade do problema de pesquisa, buscando nos sentidos e significados dos sujeitos sociais envolvidos a compreensão em maior profundidade das problemáticas investigadas (CRESWELL; 2010; MARCONI; LAKATOS, 2017b).
A escolha de atores sociais comtemplou agricultores familiares e outros ligados à categoria da agricultura familiar de Santa Catarina. A este respeito buscou-se informações junto a dirigentes sindicais associados à FETAESC e/ou FETRAF/SC, técnicos extensionistas da EPAGRI, secretários municipais responsáveis pela pasta da agricultura e/ou representantes do poder executivo municipal, bem como representantes do comércio local, vinculados às associações comerciais e/ou à Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL) de cada município.
A escolha de municípios participantes da pesquisa de campo ocorreu de forma intencional por opção do proponente com o auxílio de dois informantes-chave quando à aproximação com o campo e se deu pelo cumprimento de quatro requisitos:
i) a existência de agricultores familiares com ampla experiência em acesso ao PRONAF;
ii) estrutura e diversificação produtiva;
iii) atores sociais definidos para realização das entrevistas;
iv) conhecimento do campo/indicação de informantes-chave/articulador do campo de
pesquisa.
A opção pelos municípios, além de critérios mencionados, levou em consideração a contemplação de três mesorregiões do estado de Santa Catarina com grande representatividade no conjunto da agricultura familiar catarinense. Outro aspecto determinante para escolha destas unidades municipais, foi a garantia de condições estruturais para o pesquisador, especialmente em termos da logística de realização da pesquisa de campo. Isto posto, foram selecionados os seguintes municípios para realização da pesquisa de campo: i) região oeste: Dionísio Cerqueira, Saudades e Seara; ii) região norte: Irineópolis e Porto União; iii) Vale do Itajaí: Pouso Redondo e Rio do Campo.
Em cada município foram entrevistados quatro agricultores familiares (com exceção de Porto União onde foram realizadas três entrevistas), um representante do poder municipal, com preferência ao secretário municipal responsável pela agricultura. Em complemento, foram realizadas entrevistas com um dirigente sindical (FETAESC ou FETRAF/SC), um técnico da Epagri, e um representante da associação comercial e/ou da Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL).
Anteriormente à realização das entrevistas, foram organizados dois momentos de pré-teste do roteiro. Esse procedimento teve como objetivo corrigir possíveis falhas de comunicação do instrumento, bem como orientar o pesquisador em relação à forma de intervenção com os entrevistados. Para cada segmento de entrevistados foi elaborado um roteiro de entrevista, visando adequar as particularidades dos atores sociais delimitados para a pesquisa de campo.
Em relação aos entrevistados, tanto os próprios agricultores familiares quanto os demais atores sociais tiveram como requisito possuir experiência junto ao PRONAF, para possibilitar, de forma significativa, que os relatos e os significados desses relatos fossem expressos a partir dos conhecimentos, experiências e vivências com referência ao objeto de estudo. O critério utilizado para escolha dos entrevistados foi diferente para cada segmento de atores sociais. Para os agricultores familiares, o requisito estabelecido foi que os entrevistados tivessem experiência de acesso de pelo menos cinco anos em financiamentos no crédito de custeio, investimento ou ambos. Os demais atores sociais, deveriam possuir experiência profissional vinculada à agricultura familiar e, preferencialmente, envolvimento e participação em processos de gestão, articulação e acompanhamento no âmbito do programa PRONAF.
No que diz respeito ao número de entrevistados, esse não foi determinado ex ante, mas no decorrer do desenvolvimento da pesquisa de campo, pois, ao se tratar de uma abordagem qualitativa, consideramos uma amostra não probabilística. No total foram realizadas 55 entrevistas, isto porque a delimitação em torno desse número se deu pelo princípio da saturação, ou seja, a repetição de argumentos comuns por parte do conjunto de sujeitos entrevistados. Em apoio a esse argumento, Bauer e Gaskell (2008) e Minayo (2017) afirmam que o princípio da saturação se refere ao momento que novos dados não trariam mais esclarecimentos para o objeto estudado.
As entrevistas ocorreram entre os meses de outubro de 2019 e fevereiro de 2020 nos sete municípios selecionados para realização da pesquisa. A este respeito, foram necessários dois dias de trabalho para realização das entrevistas em cada município selecionado. O agendamento ocorreu com antecedência mínima de 15 dias com objetivo de assegurar a participação dos atores sociais selecionados, sendo o aplicativo de aparelho celular WhatsApp como a principal ferramenta de comunicação entre o pesquisador, articuladores de campo e os entrevistados.
O instrumento de coleta de dados se deu por meio do roteiro de entrevista semiestruturado, o qual permitiu um certo nível de flexibilidade ao pesquisador quanto à captação de informações de acordo com o andamento de cada momento de entrevista. O diário de campo foi outra ferramenta utilizada, pois o instrumento permitiu ao pesquisador o registro de informações importantes no desenrolar das entrevistas.
Para análise dos dados coletados no campo da pesquisa, optou-se pela realização da análise de conteúdo. Numa primeira etapa, as entrevistas foram transcritas para documento de texto. Após essa etapa, passou-se para a tarefa de redução, categorização e interpretação dos dados que pode ser caracterizada como o início do uso da técnica de análise de conteúdo. Para Vergara (2015), a análise do conteúdo pode ser considerada como uma técnica para o tratamento de dados brutos, bem como identificar e classificar por categoria o que está dito sobre determinado tema.
A organização da análise dos dados baseou-se nos três momentos cronológicos apontados por Bardin (2016): a pré-análise, a exploração do material e o tratamento dos resultados (interpretação). Além desses três procedimentos, foi realizado um processo de categorização. Ainda na perspectiva de Bardin (2016, p. 147), as categorias são “[...] rubricas ou classes, as quais reúnem um grupo de elementos sob um título genérico, agrupamento esse efetuado em razão das características comuns destes elementos”.
Neste momento, buscou-se construir um conjunto de categorias a partir de um reagrupamento progressivo com a finalidade de obter a construção de categorias com as seguintes qualidades:
i) a exclusão mútua: cada elemento não pode existir em mais de uma divisão;
ii) a homogeneidade: funcionamento com um único registro e uma única dimensão;
iii) pertinência: quando a categoria está de acordo ao material de análise e ao suporte teórico;
iv) objetividade e fidelidade: todo o material deve ser classificado com objetividade e manter a fidelidade ao inserir um elemento em determinada categoria;
v) produtividade: quantidade adequada de categorias que possam fornecer resultados férteis ao campo de análise (BARDIN, 2016).
Como apoio à análise de conteúdo, fez-se o uso do software ATLAS.ti, versão 8.4.22.0, o qual se coloca como ferramenta de apoio às pesquisas qualitativas. De acordo com Bandeira de Mello (2006), o ATLAS.ti é um software de análise de dados qualitativos, também conhecido como Computer-Assisted Qualitative Data Analysis Software (CAQDAS).
As categorias de análise foram construídas e desenvolvidas no decorrer da pesquisa de campo, como resultado da análise dos dados e das informações qualitativas, resultantes da coleta de dados. Contudo, cabe a ressalva que a priori se estabeleceram algumas pré-categorias as quais se esperava fossem emergir da pesquisa de campo e outras foram definidas a partir da leitura flutuante nos termos de Bardin (2016).
A partir da definição das categorias analíticas foi realizado o trabalho de codificação das entrevistas em dois momentos. No primeiro, foram registradas as citações a partir de leitura e codificação individual de cada entrevista. O segundo momento consistiu em uma análise mais aprofundada, por meio de relatório emitido no software ATLAS.ti de cada categoria analítica. Após as codificações, procedeu-se a emissão dos relatórios de cada categoria analítica para subsídio e apoio na elaboração da análise de conteúdo e construção textual dos resultados, os quais serão expostos no próximo capítulo. As compilações qualitativas permitiram a elaboração e exposição dos resultados quanto as alterações sociais promovidas na agricultura catarinense a partir da política pública do PRONAF.
4. Identificação das alterações sociais (acesso a bens e serviços) de agricultores familiares e sua interpretação
Os resultados e análises discutidos nesta pesquisa dizem respeito às percepções sobre as alterações sociais (acesso a bens e serviços) de agricultores familiares a partir do acesso aos financiamentos do PRONAF. Os referidos bens e serviços entende-se são no sentido amplo, ou seja, desde melhorias nas condições de moradia, aquisição de bens domésticos e de lazer, tal como acesso a serviços, como educação, internet, entre outros.
Recorrentemente, foi observado que a prioridade dos agricultores familiares entrevistados foi de garantir a questão produtiva num primeiro momento e, num segundo, as atenções se voltaram para o conforto da família e o acesso a bens e serviços.
Apesar das alterações sociais (acesso a bens e serviços) terem sido efetivadas em momento posterior, a pesquisa de campo demostrou que de fato houve alterações significativas a este respeito conforme descrição do conjunto de atores sociais entrevistados.
4.1 A análise de conteúdo das entrevistas realizadas na pesquisa
A Entrevista 05 concede ao PRONAF tais alterações ao afirmar que: “Ele [o programa] deu a condição de que as pessoas pudessem estruturar suas propriedades e consequentemente melhorar a qualidade de vida [...]” e ao mencionar o acesso a bens e serviços: “Nós avançamos nas condições das pessoas terem acesso a algumas coisas e o PRONAF possibilitou isso na agricultura familiar.” (ENTREVISTA 05).
A questão principal levantada está em torno das condições sociais que se alteraram está relacionado ao ambiente da moradia dos agricultores familiares, ou seja, o local do espaço de vida. A mudança assume significados de dignidade e bem-estar como foi declarado na Entrevista 41: “Uma vez a gente tinha que se esconder, tinha vergonha de falar que era agricultor, porque o pessoal da cidade tinha todo aquele conforto e nós não, hoje não, tanto o pessoal da cidade como no interior tem o mesmo conforto.”
A mesma percepção é exposta pela Entrevista 30 ao mencionar que a: “Casa que era de madeira, eles [os agricultores] fizeram da casa um ranchinho e do lado construíram uma casa de material.” E complementa: “Eles conseguiram um sonho, o cara morar 30 anos numa casa de madeira e ter uma patente que tem que ir de noite lá fora, depois ter uma casa de material, é mudança.” (ENTREVISTA 30).
Nos termos da Entrevista 15, esta melhoria nas condições sociais possibilita “[...] melhorar a dignidade dessas famílias”, pois, conforme a Entrevista 02, o PRONAF possibilitou: “Uma casa boa, em que a gente se sente feliz em receber os amigos.” Nesta perspectiva, os relatos das Entrevistas 22 e 23 proporcionam novos exemplos a este respeito. “Foi melhorando, foi acontecendo na vida de todos, então o PRONAF teve um papel fundamental.” (ENTREVISTA 22); “Teve alterações, a gente sente em todos os setores, desde dentro de casa, como no bem-estar, teve uma boa diferença.” (ENTREVISTA 23).
Essa estruturação permitiu esse tipo de coisa, de melhoria, das pessoas, as famílias se sentirem parte, de ter autoestima de receber os parentes e as visitas, das pessoas estarem felizes no espaço, no período dos anos de 1980 e 1980 as famílias ficaram por não ter condição de sair, hoje elas ficam por visualizarem uma oportunidade [...]. (ENTREVISTA 06).
Anos atrás a gente dizia que tinha percepção do povo urbano, achavam, como posso dizer, diminuíam o agricultor por causa da sua condição de vida, geralmente era uma casa simples, vida um pouco difícil, não tinha aquele conforto, trabalhava muito. Hoje a gente vê que os agricultores possuem bens, uma casa muito boa, condições de moradia infraestrutura, carro bom, tem seu dinheiro para sair, viajar. (ENTREVISTA 36).
Outras interpretações de outras entrevistas se encontram no Diagrama ! na página seguinte.
Diagrama 1 – Outras citações quanto à melhoria das condições sociais relacionadas à moradia
Fonte: pesquisa de campo, elaboração do autor através do software ATLAS.ti (2020).
O acesso a bens para um melhor conforto e de qualidade de vida foi apontado como uma das alterações alcançadas, pois, segundo a Entrevista 33: “Melhorou bastante, compramos o carro, uma televisão, sofá e uma mesa nova.” Já o relato da Entrevista 24 demonstra uma satisfação pessoal ao afirmar que: “Eu tenho três climatizadores dentro de casa, é um luxo só.” Estes depoimentos ressignificam o papel e a importância da política pública do PRONAF, pois alcança consequências que não estavam diretamente previstas em seu desenho inicial.
É uma consequência indireta entre estes alcances no âmbito social quanto ao acesso de bens e serviços e o PRONAF, fato este que também é considerado no âmbito da Entrevista 24: “Eu não consegui o PRONAF para comprar os climatizadores, mas a partir do PRONAF eu consegui renda para comprar, o mesmo com a casa da filha, com o carro novo, olha, eu andava de Fusca.” Essas conquistas individuais significam ao agricultor familiar um ganho de autoestima, de valorização enquanto ser humano que através do seu trabalho é capaz de melhorar suas condições sociais (ENTREVISTA 26).
A melhoria do nível de renda foi determinante para que o acesso aos bens e serviços também pudessem ser acessados por parte do conjunto de agricultores familiares. Os dados da pesquisa de campo revelaram também alterações no sentido de acesso ao lazer e momentos em família, como destacado respectivamente nas Entrevistas 07 e 24: “Quando a gente resolve comer pizza, aqui dá vinte quilômetros da cidade, a gente pega e vai lá com a família, antigamente não tinha como.”
Antigamente eu fazia conta para sair de casa, bah eu não posso sair, não posso gastar! Não posso gastar tanto na festa! Daí hoje não! Fui domingo à festinha, lá gastei R$ 300,00, nem estava preocupado se tinha gastado, foi R$ 400 na roleta e coisa. É tipo, você está fazendo dinheiro todo dia, a nossa vida está melhorando muito. (ENTREVISTA 24).
Em continuidade, na própria Entrevista 24 há outra citação complementar que exemplifica essa melhoria do acesso a bens e serviços, pois o simples fato de realizar uma refeição fora de casa, que no passado era impensado, a partir destas alterações promovidas se torna um momento especial para toda a família, “Sempre apliquei o PRONAF no lugar certo, e a renda de lá eu consegui comprar o meu bem-estar, viver melhor, e lá fora [na cidade] eu nunca tinha feito isso, fazer um lanche, hoje vamos ao culto à noite e depois vamos fazer um lanche fora.”
Em continuidade a isso, a Entrevista 03 retrata bem a mudança ocorrida e as dificuldades para até de realizar uma refeição fora de casa no passado: “Eu lembro que muitas vezes a gente ia para cidade e ficava o dia inteiro e não tinha dinheiro nem para almoçar, hoje não, vai lá tu como e não pensa se vai faltar dinheiro, digo a mesma coisa em festas das comunidades.”
Foi uma mudança gradual ao longo dos anos, como muito bem foi colocado na Entrevista 19, que considera que: “Com esses projetos, devagarinho a gente vai conseguindo melhorar a vida.” O projeto referido é o PRONAF, que por sua vez foi o instrumento para que essas alterações para melhor fossem possíveis conforme a pesquisa de campo nos apontou.
O acesso ao ensino superior pago é outro aspecto que emergiu no decorrer da realização das entrevistas, relacionado também as alterações proporcionadas a partir do acesso ao crédito PRONAF: “Eu não conseguiria ter feito uma faculdade se nós tivéssemos naquele sistema antigo sabe, então graças ao que a gente cresceu nesse tempo, você consegue fazer uma sobra para ter um investimento pessoal.” (ENTREVISTA 07). A Entrevista 43 também registra o acesso dos filhos à universidade, o entrevistado registra que foi por meio do PRONAF que conseguiram: “Casa, carro, as piazadas na escola, condições para roupa, a primeira filha fez faculdade e agora o outro começou a fazer agronomia.”
O depoimento constante na Entrevista 23 ajuda a justificar este movimento amplo de alterações sociais: “A gente sente em todos os setores, desde dentro de casa, como na educação, como no bem-estar, então ele [o PRONAF] dá uma boa diferença.” A Entrevista 33 complementa e exemplifica essa melhora, pois: “Melhorou bastante, compramos o carro, uma televisão nova, sofá, mesa, cama foi trocada, quando a gente começou não tinha nada.”
Para um dos agricultores familiares entrevistados hoje em dia há muitas “regalias” ao se referir dos itens de um melhor conforto tanto para casa como um automóvel para sua locomoção: “Melhorou muito, hoje temos mais regalias em casa como se diz, nós temos as coisas temos um carro, antigamente eu andava a pé, de bicicleta.” (ENTREVISTA 34). Sobre o acesso a um automóvel, a Entrevista 45 compara os momentos históricos afirmando que: “A maioria das pessoas vinham da nossa região aqui perto de Pinhalzinho de ônibus, carona, se organizam em um Fusquinha, de Brasília, e assim por diante, hoje estamos quase dizendo que na agricultura estamos na era das caminhonetes.”
Os dados apresentados quanto às alterações sociais mensuradas a partir do acesso de bens e serviços demonstram que houve alterações de melhoria considerando a delimitação da pesquisa. Em síntese, os agricultores familiares catarinenses, a partir da política pública do PRONAF, de fato puderam alcançar um maior nível de acesso à bens e serviços, condição esta que está diretamente associada a um maior nível de renda, pois, conforme já mostramos anteriormente nos resultados de campo, inicialmente o PRONAF gerou as condições de melhoria estruturação produtiva e, posteriormente, gerou as possibilidades para as melhorias nas condições sociais.
4.2 As alterações sociais quanto ao acesso de bens e serviços
As afirmações foram registradas na seção anterior vão desde a participação na festa em comunidade, compra de utensílios domésticos, eletrodomésticos e móveis para o conforto no ambiente da casa, e até o acesso dos filhos em instituições de ensino superior (privadas) e/ou a manutenção dos filhos em universidades públicas em outras cidades/estados. Assim, atribuímos ao PRONAF consequências que não estavam diretamente associadas às finalidades primeiras do programa, mas sim de uma forma geral embutida no tão propagado termo “fortalecimento”. Desta forma, consideremos que os resultados evidenciados quanto acesso aos bens e serviços junto aos agricultores entrevistados são expressivos e de fato representam alterações ao longo dos anos.
A este respeito, e quando exitosos em seus projetos de sustentação financeira via PRONAF, temos como resultado um maior nível de acesso aos bens de consumo e serviços. No caso de Santa Catarina, podem ser relacionados estes resultados nos termos de Ploeg (2016), como efeito do mercado em que tais agricultores estão inseridos. A estrutura produtiva do estado “puxou” via mecanismo do PRONAF o aumento da produção entre os beneficiários do programa, estes por sua vez conseguiram ao longo dos anos aumentar seu nível de renda e consequentemente alcançar um maior nível no acesso aos bens de consumo e serviços.
Os resultados aqui apresentados de algum modo justificam e ampliam a visão do desempenho do PRONAF no estado sob a ótica do volume de crédito apontados por Grisa, Wesz Junior e Buchweitz (2014). Isto porque, em nossa análise, demonstramos que a destinação dos recursos do PRONAF foi efetivo ao contribuir para que houvesse alterações sociais positivas no interior da agricultura familiar catarinense. Estas mudanças, como já demonstramos, são de caráter produtivo, de trabalho renda e, em destaque neste momento, os avanços no acesso a bens e serviços por parte dos agricultores familiares catarinenses a partir do PRONAF.
Este acesso a bens e serviços a partir do programa já foram evidenciados em estudos que contemplam outros territórios no País. Silva, Ponciano e Souza (2021) em pesquisa realizada nos municípios de Nova Venécia e de Rio Bananal, no norte do estado do Espírito Santo, identificaram entre as mulheres beneficiárias do PRONAF, que estas priorizam a partir do aumento da renda o acesso de bens para melhoria da qualidade de vida da família. Na mesma linha analítica, em estudo realizado no Território da Cidadania Médio Alto Uruguai no Rio Grande do Sul, Spanevello et al. (2021) reforçam os entendimentos do direcionamento dos ganhos do PRONAF para melhorar a condição de vida da família.
Azevedo e Pessôa (2011), ao analisarem os dados do acesso ao programa entre 2002 e 2007 em âmbito nacional, identificaram que o PRONAF havia provocado mudanças de melhorias no espaço rural brasileiro. Esta afirmação dialoga proximamente aos resultados encontrados em nossa pesquisa de campo, e que identificou profundas alterações acerca da disponibilidade de bens e serviços de uso por parte destes agricultores familiares catarinenses entrevistados.
Roge Batista e Neder Dantas (2014), em estudo relacionado aos efeitos do PRONAF sobre a pobreza rural em âmbito nacional, compreenderam que o programa colabora para redução da pobreza e também para a redução da desigualdade, por sua vez, coaduna com os resultados e também com a nossa análise sobre as alterações sociais em que o PRONAF enquanto política pública foi capaz de contribuir, resultado que aparece também em pesquisa realizada em municípios do estado de Tocantins. Pereira e Nascimento (2014) igualmente perceberam as contribuições do programa PRONAF para o fortalecimento social da agricultura nos municípios estudados. O que ressaltamos aqui é que apesar da enorme diferenciação social existente na agricultura familiar brasileira, ou seja, nas distintas características tanto do ponto de vista econômico, social e espacial, os financiamentos via PRONAF se colocam como um instrumento capaz de dinamização e, também de alterações, para melhor, das condições dos agricultores familiares.
Na sua análise Grisa e Schneider (2015) reconheceram os avanços proporcionados no interior da agricultura familiar brasileira a este respeito, com a constituição das políticas públicas específicas a partir de meados da década de 1990. Contudo, não se pode negar que há muito que se avançar a respeito desta questão, Guanziroli (2007) e Aquino e Schneider (2010) diagnosticaram desafios enormes do programa quanto aos avanços nas questões sociais.
Em decorrência do acesso, parte das famílias na realidade da agricultura catarinense conseguiu melhorar suas condições sociais e de conforto ao ponto de equiparação aos residentes em centros urbanos. Esta questão nos coloca frente a uma discussão sociológica, pois, há algumas décadas as estruturas no interior do espaço de Santa Catarina eram mais fragilizadas ao ponto de que os próprios agricultores familiares não se sentiam confortáveis em receber visitas de parentes e dos amigos.
Foi um depoimento recorrente na pesquisa de campo, que esta nova realidade significa uma reconfiguração especialmente das condições de moradia e das casas; pois, estes tais agricultores(as) se sentem bem em receber suas visitas, e mais do que isso, a partir do trabalho familiar conseguiram condições dignas e confortáveis para se viver. Nos termos de Wanderley (2015), compreendemos que em certo ponto legitima-se a condição do espaço rural como um lugar da vida e não apenas um território voltado aos aspectos da produção. As nossas considerações a este respeito se aproximam das constantes transformações no território rural de Santa Catarina apontadas por Paulilo e Schmidt (2003), que em suas análises consideram que o segmento no estado assume significativa capacidade de resistir, inovar e encontrar alternativas para sua continuidade.
A pesquisa de campo demonstra que é a partir do PRONAF, que agricultores(as) do estado de Santa Catarina têm encontrado saídas para melhorar sua condição de vida, que entre outros aspectos significa o acesso e/ou a ampliação de bens e serviços. Isto porque, baseado nos apontamentos de Ribeiro (2016) sobre os modos de vida, a agricultura familiar brasileira apresenta uma gama de estratégias para enfrentar as suas dificuldades quanto às técnicas de produção, aos mercados e o relacionamento com as políticas públicas.
5, Considerações finais
Em nossa compreensão, o PRONAF se constitui na principal política de apoio ao segmento da agricultura familiar do país. Não restam dúvidas que o programa, no horizonte futuro enquanto política pública, enfrentará inúmeras necessidades e desafios quanto a melhorias em sua execução. Contudo, há muitos resultados expressivos que ao longo de sua trajetória contribuíram para o fortalecimento da categoria.
Ao relacionar os resultados do programa aos nossos propósitos e objetivos de pesquisa, consideramos que, no âmbito da agricultura familiar de Santa Catarina, o PRONAF tem gerado resultados positivos em relação a alterações sociais referentes a acesso à bens e serviços. Os dados da nossa pesquisa de campo foram suficientemente capazes de responder nossa questão problema, pois, o acesso aos recursos financeiros ao longo dos anos foi capaz de promover tais alterações.
Em termos analíticos, estas alterações são de caráter amplo, variam desde à melhoria das condições estruturais das moradias, de um melhor conforto, a partir da possibilidade de compra de móveis, eletrodomésticos e de equipamentos eletrônicos. Além disso, se revelou melhores condições para algumas atividades de lazer, como o poder a ir às festas da comunidade ou na cidade, sair com a família para uma refeição “fora de casa” e até mesmo a possibilidade de garantir o acesso e a manutenção dos filhos no ensino superior. Possuir atualmente um automóvel e/ou um automóvel “melhor” é outro aspecto que os dados revelaram como uma alteração bem significativa entre os entrevistados.
Por fim, resgatamos que as alterações sociais no âmbito da agricultura familiar catarinense a partir do PRONAF se deram de forma gradual e como consequência da estruturação produtiva e do aumento do nível de renda das famílias dos atores sociais entrevistados que acessaram o PRONAF ao longo dos anos. Contudo, reforçamos a necessidade contínua de estudos e pesquisa que possam contribuir com o entendimento sobre políticas, especialmente àquelas que se propõem a compreender as transformações da agricultura familiar catarinense.
[1] No contexto histórico é importante ressaltar a elaboração do PLANAF em 1995.
[2] Acerca das percepções sobre a participação dos agricultores familiares nos “grupinhos”, ver Fossá (2015).
[3] Em contrapartida, a linha de financiamento também visava o incentivo à indústria nacional
[4] As condições de financiamento das linhas de crédito constam nas informações de cada Plano/Safra, disponível em: <http://www.mda.gov.br/sitemda/secretaria/saf-creditorural/linhas-de-cr%C3%A9dito>.
[5] Tais requisitos estão disponíveis no Plano/Safra, sendo que podem ocorrer alterações nestes requisitos de ano para ano.
[6] Valores deflacionados para o ano de 2019 de acordo com o INPC.
[7] Vide p.ex. MARCONI; LAKATOS, 2017 a , b