Grandes projetos segundo Hirschman: O aprendizado com três rodovias e bancos multilaterais


Markus Erwin Brose
Doutor em Sociologia pela Universidade de Osnabrück/Alemanha, Professor do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional da UNISC

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1. Introdução

O debate sobre estradas e seu impacto no desenvolvimento tem tradição no país. Denominada “rodoviarismo” enquanto política de Estado, teve origem com a administração Washington Luís (1926 a 1930) conhecido como ‘Estradeiro’. Na campanha vencedora para governador de São Paulo anunciara que, “Governar é povoar; mas, não se povoa sem se abrir estradas, e de todas as espécies; governar é, pois, fazer estradas!” (DEAN, 1995; PEREIRA e LESSA, 2011).

Durante a presidência de Juscelino Kubitschek, o rodoviarismo alcançou novo patamar mediante a transferência da capital para Brasília. Agilizando o desmatamento do Cerrado para expansão da malha viária rumo ao Oeste, a “terra de ninguém” segundo Azevedo-Ramos et al. (2020). Incluindo a abertura das estradas Belém-Brasília (1.940 km) e Cuiabá-Porto Velho (1.460 km) em Floresta Amazônica. Para Accorsi (1996) e De Paula (2010), o rodoviarismo daquela época pode ser interpretado como um movimento que entusiasmava legisladores, servidores públicos, escritórios de engenharia, técnicos, entidades empresariais e setores militares. Esta coalização de interesses contribuiu para a consolidação do poder das empreiteiras na definição da infraestrutura no país. Em alguns casos, como Mato Grosso ou Rondônia, direcionando o desenvolvimento regional.

Como estratégia de crescimento econômico o rodoviarismo alcançou seu auge na ditadura. Em 1969, Eliseu Resende, diretor do Departamento Nacional de Estradas de Rodagem, coordenou os planos para integração da Amazônia à economia nacional (RESENDE, 1969; 1973) com o início das obras da Transamazônica (4.220 km) para interligar a Paraíba ao Acre.  Inconclusa, assim como outras megaobras planejadas por Resende (FSP, 7/3/93), a Transamazônica consumiu R$ 13 bilhões do tesouro federal (GUIMARÃES, 11/8/13). Foi seguida pela abertura das estradas Cuiabá-Santarém (1.780 km) e Porto Velho-Manaus (890 km). Megaprojetos que contribuíram ao genocídio indígena, a expulsão de populações tradicionais, a migração de trabalhadores rurais e o desmatamento (TORRES, 2005; COY et al., 2020; VALENTINI e SIMÕES, 2020). 

Esse histórico consolidou o entendimento de larga parcela da opinião pública, de que os benefícios do crescimento econômico se sobrepõem às externalidades negativas (FEARNSIDE, 1987; PFAFF et al., 2007; ALAMGIR et al., 2017). O que Amartya Sen (1997) denominou o enfoque de “sangue, suor e lágrimas”.

O presente ensaio segue Söderlund (2004) e Ika (2009), que entendem que o sucesso ou o fracasso de projetos são percebidos pelos atores sociais, entrelaçando interpretação e a experiência vivida. A análise do impacto de projetos estatais estaria enraizada no discurso, uma construção social que pode ser analisada mediante estudo de casos. Assim, se contrapondo a usual prioridade a ferramentas de gestão: “a adoção de métodos de gerenciamento no planejamento e início da implantação poderia contribuir para a qualidade dos estudos preliminares e a adequação dos processos de comunicação” (Coelho et al., 2019, p. 6).

Nesse sentido, o argumento aqui apresentado desloca o foco sobre mensuração do impacto de elementos metodológicos, ou da qualidade da gestão, para a questão: Quem define, e como, o sucesso ou o fracasso de mega-projetos? O artigo registra três casos de rodovias pavimentadas, entre os anos 1990 e 2010, para os quais depoimentos de técnicos e lideranças locais, bem como bancos multilaterais, não registram externalidades negativas significativas A partir de protestos e conflitos com organizações da sociedade civil, técnicos e gestores das grandes obras se viram compelidos a alterar, tanto cronograma, como o orçamento, para mitigar os impactos (Figura 1).

 

Figura 1 – localização das três rodovias construídas entre 1990-2010

Fonte: elaborado por Bruno Deprá/Núcleo de Gestão Pública - UNISC

O trabalho debate a hipótese de que a ampliação dos custos pode ser interpretada como contribuição à precificação das externalidades nos orçamentos irrealistas de megaprojetos, que demandam constantes aditivos (CARVALHO et al., 2017; LOPES, 2017). Consistente com auditoria pelo Tribunal de Contas da União (TCU), no Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes, que constatou generalizado “descompasso entre execução físico-financeira dos contratos das obras e dos contratos de supervisão e gerenciamento” (TCU, 2020).

Além dessa introdução, o ensaio está estruturado em quatro seções. A primeira situa o debate sobre o sucesso de projetos de desenvolvimento a partir do argumento por Hirschman (1969), bem como diante do conceito do Descaso Planejado. A segunda seção apresenta os casos de rodovias pavimentadas em biomas vulneráveis, que não contribuíram com externalidades negativas em grande escala segundo relatos por organizações locais. A terceira seção apresenta discussão dos elementos em comum dos casos, seguida pelas conclusões.

2. O debate acerca do impacto de grandes projetos 

Em 1964/65, Albert Hirschman visitou onze projetos financiados em diferentes países pelo Banco Mundial (HIRSCHMAN, 1969). Eram grandes obras, incluindo hidrelétricas, rodovias, perímetros de irrigação e ferrovia. O prefácio enfatiza, “os sucessos ou fracassos de tais projetos [...] exercerão importantes efeitos sobre as fases vindouras do desenvolvimento do país” (HIRSCHMAN, 1969, p. 7). O próprio autor registra na introdução que, “todos eles estiveram inçados de dificuldades” (p. 13), sendo seu estudo relevante “para explicar e prever os sucessos e fracassos” (p. 16). 

A obra encerra com a constatação, “muito resta ainda a ser feito para compreendermos as condições responsáveis pelo fracasso ou êxito dos projetos” (HIRSCHMAN, 1969, p. 194). Acerca da avaliação sobre os conflitos sociais que causam atrasos e custos imprevistos, o autor entende que:

Um possível evento desse tipo, por conseguinte, pode ser julgado benéfico em certa conjuntura e pernicioso em outra [...] o analista deve ser mais modesto [...] essa modéstia no tocante à avaliação e qualificação geral, constitui a contrapartida das grandes e irrealísticas ambições que se quer que os projetos cultivem e deem ao progresso uma contribuição que ultrapassa de longe as tarefas imediatas. (HIRSCHMAN, 1969, p. 193)

Para o autor depende, pois, do ponto de vista do analista a interpretação o quanto grandes obras geram, ou não, desenvolvimento. Por dedução, o mesmo argumento vale para avaliação acerca do papel do financiador dos projetos, os bancos estatais. Diferenciamos entre projetos para “promoção do desenvolvimento humano”, de “obras estatais de infraestrutura para o crescimento econômico”.

Os casos selecionados por Hirschman constituíam grandes obras para promover o crescimento. Mantendo dúvida se obtiveram sucesso em contribuir ao desenvolvimento humano, pois esse debate não está encerrado. A partir do caso emblemático da hidrelétrica de Itaparica, na bacia do rio São Francisco, Scott (1981; 2009) introduz o conceito do “Descaso Planejado” para caracterizar o planejamento tecnocrático estatal. O autor acompanhou a expulsão de 40 mil moradores das margens do Rio São Francisco e seu reassentamento compulsório financiado pelo Banco Mundial, nos anos 1980, que não contribuiu para o desenvolvimento humano. O autor define o Descaso Planejado, “é uma designação aqui empregada para descrever uma sensação diante de megaprojetos [...] projetos destas dimensões prejudicam quem reside próximo aos locais destinados para a sua implementação” (SCOTT, 2009, p. 9).

Mais cedo ou mais tarde os planejadores e administradores implementarão os seus projetos mobilizando contingentes de aliados que se aglutinam em torno das muitas oportunidades que tais projetos oferecem. E, via de regra, mais cedo ou mais tarde as populações que se encontram no caminho dos projetos terão que ceder a eles, por mais que consigam impor certas condições para, como dizem os planejadores, ‘mitigarem’ os impactos [...] a arma maior é uma multiplicidade de meios de obstruir, adiar ou, pelo menos, reconfigurar projetos. (SCOTT, 2009, p. 10).

 

Importa ressaltar as estratégias possíveis, conforme o autor: i) obstruir, ii) adiar, ou iii) reconfigurar, obras para o crescimento econômico. Enfatizamos a terceira opção: reconfigurar o projeto mediante pressão contra os planejadores e/ou os bancos.

Encerrada a execução de grandes obras em todo o país pelo Programa de Aceleração de Crescimento (PAC I e II), o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) foi encarregado pelo Ministério de Planejamento e Orçamento em avaliar a qualidade da gestão dos projetos (GOMIDE, 2015). Uma rede de pesquisadores de universidades federais analisou amostra de seis megaprojetos (LOTTA e FAVARETO, 2016; CARVALHO et al., 2017; DE PAULA et al., 2017; GOMIDE e PEREIRA, 2018).

Integrava essa amostra o Plano BR-163 Sustentável para mitigar externalidades pelo asfaltamento de 1.024 km da rodovia entre Guarantã do Norte e Santarém em meio à Floresta Amazônica (BRASIL, 2004), que acabou abandonado (PASTRE, 2018). Mesmo assim, as obras foram iniciadas, em 2008, com previsão até 2011, mas concluídas apenas em 2019, com oito anos de atraso. Cinco auditorias pelo TCU sobre essas obras (CARVALHO et al., 2017, p. 37), sintetizam o que podemos considerar o paradigma da construção de novas rodovias em biomas vulneráveis:

  • Superfaturamento;
  • Irregularidades graves no processo licitatório;
  • Liquidação irregular de despesas;
  • Alteração injustificada de quantitativos;
  • Execução de serviços com qualidade deficiente;
  • Fiscalização deficitária ou omissa;
  • Ineficiência e controle insuficiente na análise de projetos;
  • Pouca integração entre setores estatais;
  • Precário controle e acompanhamento das obras.

Porém, o estudo pelo IPEA sintetiza, “não houve percalços com a sociedade ou o meio ambiente” (CARVALHO et al., 2017, p. 40). O que condiz com o discurso adotado pelo governo federal na época sob o lema: Mais escoamento, mais desenvolvimento.

A pavimentação da BR-163 no trecho entre Sinop (MT) e Miritituba (PA) já começa a gerar efeitos positivos, em 2020, para toda a cadeia logística de escoamento da soja e do milho para o Norte do país. Tanto o setor produtivo quanto os próprios caminhoneiros já sentem os impactos da obra, inaugurada, nesta sexta-feira, pelo Presidente da República, pelo Ministro da Infraestrutura, e pelo diretor-geral do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes. (BRASIL, 14/02/20)

 

Discurso oficial que contradiz a constatação por organizações da sociedade civil, que desde o início das obras da BR-163 afirmam:

Gera revolta nos movimentos socioambientais e nas populações tradicionais que, apesar de quererem a trafegabilidade da estrada, têm convivido com o clima de violência e o conflito pela posse da terra e pela exploração descontrolada dos recursos naturais. O cenário é agravado pela situação fundiária indefinida, que facilita a grilagem de terras da União e a expulsão das populações tradicionais, e é facilitado pela inoperância e/ou cumplicidade das autoridades ambientais, fundiárias, policiais e indígenas. (ALENCAR, 2005, p. 2)

 

Diagnóstico mantido após a inauguração do trecho final da BR-163, uma década mais tarde, conforme registrado pela mídia nacional:

Nos três municípios cortados pela rodovia – Novo Progresso, Altamira e Trairão – perdeu-se uma área de floresta equivalente a dez cidades do Rio de Janeiro entre 2000 e 2018, segundo dados do Prodes, programa de monitoramento do desmatamento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Nem mesmo as Unidades de Conservação criadas ao longo da rodovia ficaram imunes ao avanço da pecuária, da soja e do garimpo [...] a cidade de Novo Progresso ganharia as manchetes dos jornais de todo mundo em 2019. Ali foi planejado o ‘Dia do Fogo’, quando fazendeiros, madeireiros e empresários combinaram de incendiar a floresta. (WENZEL, 14/02/20)

 

As interpretações diversas sobre o Plano BR-163 Sustentável possuem dupla relevância. Por um lado, esse projeto visava replicar em escala nacional o sucesso da mitigação na pavimentação da BR-364 no Acre. Conexão personificada por uma das lideranças do movimento dos seringueiros, Marina Silva, que exerceu mandato como deputada estadual no Acre, posteriormente como Ministra do Meio Ambiente.

Por outro lado, as divergências nos diferentes discursos quanto à interpretação do Plano BR-163 Sustentávelse enquadram na proposta por Hirschman (1969), de que sucesso ou fracasso de grandes obras depende do analista. “Quando chegamos à avaliação de projetos, as teorias, tão abundantes em outros aspectos da gerência de projetos, são ausentes [...] sem perguntar pelas razões de seu sucesso” (PACKENDORFF, 1995, p. 324). O autor propõe que diferentes tipos de projetos demandam teorias diferentes e que a pesquisa seja orientada pela comparação entre casos. Atualizando a afirmação de que necessitamos, “considerar o desenvolvimento do projeto como enraizado em características estruturais, e na interação entre elas e a sociedade em geral” (Hirschman, 1969, p. 16). 

3. As três dodovias - estudos de caso 

3.1 BA-001 Estrada Parque Ilhéus-Itacaré

A Costa do Cacau, localizada no litoral Sul da Bahia, tem a cidade de Ilhéus como polo dinâmico. Os turistas são atraídos para santuários ecológicos, quilômetros de praias com coqueirais integrados à Mata Atlântica e extensos manguezais. A lavoura do cacau constitui um sub-bosque, sombreado pela floresta remanescente. Esse cultivo contribuiu para a manutenção do Corredor Central da Mata Atlântica, mais de 8,5 milhões de hectares que se estendem pelo estado do Espírito Santo e o sul da Bahia, e abrange centros de endemismo para fauna e flora. Em estudo da Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira e do Jardim Botânico de New York em uma reserva privada no município de Uruçuca, foram encontradas 456 espécies de árvores em um hectare de floresta, recorde mundial de diversidade.

A queda do preço do cacau, nos anos 1990, estimulou a exploração de madeiras da Mata Atlântica, bem como a conversão em pastos ou cafezais. O desmatamento ilegal chegou a 200 mil hectares e diversas organizações nacionais e internacionais atuavam na região, buscando minimizar o desmatamento (BRASIL, 2006).

Da ação dos recém-eleitos governos estaduais do Nordeste, com o Banco do Nordeste (BNB) e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), resultou o Programa de Desenvolvimento do Turismo na Região Nordeste (PRODETUR/NE). A proposta foi apresentada ao BID, em 1992, o empréstimo contratado, em 1994, tendo como tomador o BNB. O programa tinha foco sobre deficiências da infraestrutura (OLIVEIRA, 2007).

Em 1995, foi anunciada a construção do trecho da BA-001 entre a cidade de Ilhéus e o porto histórico do município de Itacaré, com 65 km de traçado norte-sul ao longo de um dos mais belos cenários do litoral. A reação pelas organizações da sociedade civil foi mobilizada pelo Instituto de Estudos Socioambientais do Sul da Bahia (IESB), que detinha experiência em articulação com instituições como o Ministério do Meio Ambiente, Conservação Internacional, SOS Mata Atlântica e universidades.

Foram realizadas entrevistas na rádio, notas em jornal e reuniões com líderes comunitários. Representantes do governo do estado e do BID abriram negociação com a coalização de organizações da sociedade civil. Foi revisto o traçado das obras, criados o Parque Estadual Serra do Conduru, com 9 mil hectares, e a Área de Proteção Ambiental (APA) Costa de Itacaré-Serra Grande, com 63 mil hectares. Foram instaladas redes entre as copas de árvores, e manilhas por debaixo da rodovia, para a travessia da fauna. Visando qualificar a inovação junto à opinião pública foi nomeada como “Estrada Parque” e após atrasos a pavimentação da rodovia foi concluída, em 1998 (PALOMO, 2015). 

Entre 1999 e 2000, o IESB executou o Programa de Educação Ambiental e Turismo para informar os moradores, engaja-los no conselho gestor da APA, a implementação de trilhas de ecoturismo e uma associação de guias turísticos comunitários. A estratégia de comunicação incluía jornais mensais, cinema na praça e cartilhas para estudantes. Em 2000, foi criado o Projeto Floresta Viva com recursos do Fundo Brasileiro para a Biodiversidade (FUNBIO) e da Fundação Ford para orientação em agroecologia e ecoturismo para famílias impactadas pelas novas regras da APA. Com o sucesso da iniciativa, em 2003, se tornou uma organização própria.

Um ano após a obra, estudo conduzido pelo IESB, co-financiado pela Conservação Internacional e o Banco Mundial, registrou o discurso do sucesso: “Uma cooperação inovadora entre bancos de desenvolvimento, o governo da Bahia e grupos conservacionistas resultou na criação do Parque do Conduru, como forma de compensar o impacto ambiental causado pelo asfaltamento da estrada entre Ilhéus e Itacaré” (IESB, 2000, p. 21). Tese na Universidade Federal de Minas Gerais comparou os remanescentes de vegetação nativa entre as regiões constatado que, “a Região Litoral Sul foi a que apresentou maior percentagem de sua área coberta com florestas em estágio avançado de regeneração” (LANDAU, 2003).

O polo Litoral Sul de turismo recebeu investimentos diretos do BID que somam US$ 21,2 milhões, sendo que destes a pavimentação da Rodovia Ilhéus a Itacaré consumiu mais recursos: US$ 18 milhões, ou 77,5% do total. Quanto ao desempenho do programa como um todo, o TCU registrou impactos ambientais:

A avaliação dos impactos ambientais ocorridos nos pólos de turismo integrantes do PRODETUR é genérica, não fazendo distinção entre o passivo ambiental gerado pelos projetos da primeira fase do programa ou dos decorrentes dos demais investimentos atraídos [...] o passivo ambiental provocado diretamente pelo Prodetur I resulta do processo construtivo de projetos de engenharia – desmatamento, exploração de jazidas, geração de entulho de obras, consumo de recursos naturais. (TCU, 2004, p. 14)

Foi necessário readequar o planejamento para o PRODETUR II, buscando remediar o passivo ambiental da primeira fase. Quanto à contribuição ao crescimento econômico foi registrada a ausência de dados:

Destaca-se o comportamento favorável do turismo nordestino na geração de empregos com carteira de trabalho e ocupações por conta própria [...] todavia, em razão da inexistência de instrumentos de avaliação do programa não se pode afirmar que esse fenômeno seja resultado dos investimentos realizados na primeira fase do Prodetur/NE. (TCU, 2004, p. 13)

Uma década após a obra, diagnóstico encomendado pelo governo estadual registra entre os cinco principais atrativos turísticos da região:

Este processo teve como ator pioneiro a gestão de Unidades de Conservação, com o envolvimento sistemático da comunidade e da sociedade civil: Conselho Gestor da APA Itacaré-Serra Grande como palco do processo de discussões e orientações dos conflitos de interesse, monitoramento e controle do uso do solo e de capacidade de carga [...] com uma clara diminuição das pressões — desmatamentos, queimadas e uso de áreas protegidas — sobre as áreas naturais da região [...] o modelo projetado para a preservação e manutenção da qualidade ambiental e paisagística teve êxito, principalmente, na APA Itacaré-Serra Grande. (INEMA, 2009, p. 111)

O relatório comemorativo do Instituto Floresta Viva (IFV, 2010), destaca o sucesso no engajamento de moradores na proteção e restauração do corredor ecológico entre Ilhéus e Itacaré. Seus projetos foram apoiados por empresas locais, além de organizações como: SOS Mata Atlântica, FUNBIO, Fundação Boticário, Ministério do Meio Ambiente, Ministério Público Estadual, Instituto Arapyaú e BID.

Resumindo, na década após a pavimentação da BA-001, o discurso construído por organizações ambientalistas, pesquisadores e órgãos públicos estaduais não registra avanço do desmatamento, da grilagem de terras ou a expulsão da população local. Situação simbolizada pelo codinome de Estrada Parque conferido ao trecho da rodovia na época, apesar dessa categoria não constar na legislação brasileira.

3.2 RS-486 Rodovia Rota do Sol

A RS-486 faz a interligação da rodovia BR-101 na zona litorânea, partindo do município de Terra de Areia, até a localidade de Tainhas, no Planalto do estado do Rio Grande do Sul (RS). Permite a ligação da região serrana ao litoral gaúcho, vencendo um decline de 700 m a partir do planalto. 

O traçado mais crítico na serra, com 53 km, atravessa de leste a oeste o maior remanescente de Mata Atlântica do estado, que integra a Reserva da Biosfera da Mata Atlântica na sub-bacia do Rio Três Forquilhas. De acordo com o Zoneamento Ambiental para as Atividades de Silvicultura (RS, 2010), a região se caracteriza pela recuperação da floresta face ao êxodo rural e a redução do crescimento demográfico. Com predomínio de pequenas propriedades, as atividades agrícolas estão restritas às áreas de relevo mais plano, com lavouras de batata e pastagens de gado leiteiro. 

Devido à importância da área para a preservação da biodiversidade, a construção se estendeu por décadas. Foi interrompida várias vezes em diferentes governos, possibilitando melhorar seu traçado e incluir outras obras a fim de minimizar as externalidades negativas (RS, 2008). Em nota à imprensa, o governo estadual registra, “a história de 23 anos de construção da Rota do Sol marcada por interrupções, embargos judiciais, protestos de ambientalistas, falta de vontade política, insuficiência de recursos e frustração de milhares de gaúchos” (RS, 7/1/05). 

Estudos de engenharia e primeiras obras foram iniciados, em 1972. Entre 1987 e 1990, foi construído o trecho no planalto de Caxias a Lajeado Grande, cuja conclusão exigiu um plebiscito entre os moradores. De 1989 a 1996, foi iniciada a ligação entre Tainhas e Terra de Areia, mas, a obra esteve embargada no trecho mais crítico da Mata Atlântica. Em 1996, após redesenho do traçado, revisão do projeto e atendimento de condicionantes ambientais foi obtida a liberação da obra, permitindo a construção de um túnel e dois viadutos.

Entre as condicionantes, em 1997, foi criada a APA Rota do Sol, com 54 mil hectares, incluindo a Estação Ecológica de Aratinga, com 6 mil hectares. Como condicionante adicional, em 2008, foi criado o Laboratório de Gestão Ambiental e Negociação de Conflitos (GANECO) pela Universidade Estadual do Rio Grande do Sul, no campus de São Francisco de Paula ao lado da rodovia (PRINTES, 2012).

Depois de nova paralisação até 2002, as obras finais foram retomadas em 2003, incluindo a conclusão dos projetos relativos à mitigação do impacto da construção na descida da serra. De 2003 a 2006, foram construídos viadutos e túneis nos 4,5 km mais críticos. O orçamento elevado motivou o governo estadual a propor sua inclusão no empréstimo do PRODETUR/Sul, mas técnicos do BID em missão a Porto Alegre questionaram a viabilidade econômica do investimento (RS, 7/1/05). O governo utilizou recursos próprios para a conclusão e a rodovia foi entregue ao tráfego, em 2007.

Ao todo são 32 obras de arte em uma extensão total de 167 km na Serra. Na inauguração a governadora lembrou, “a conclusão da obra foi possível graças aos cortes de custeio [no orçamento estadual], pois ‘Apesar de cara, era uma obra estruturante e de suma importância para ligar São Borja ao Litoral’” (RS, 20/12/07). O investimento direto pelo governo estadual foi estimado em R$ 201 milhões, entre 2002 e 2007.

O plano de manejo da APA foi elaborado no âmbito do Programa de Conservação da Mata Atlântica, entre 2004 e 2009, em cooperação com o Governo da Alemanha. Registra como maior problema ambiental o uso de agrotóxicos nas lavouras de batata e os resíduos urbanos. Não registra expansão do desmatamento ou grilagem de terras, “apenas 29% da área possuem usos antropisados, restando, portanto, 71% de área preservada no interior da APA, realçando sua importância para a conservação” (RS, 2008, p. 136). Dois anos mais tarde, geólogos das Universidades Federais do Rio Grande do Sul e de Santa Maria não registraram impactos da rodovia na sub-bacia do hidrográfica do rio Três Forquilhas (MONGUILOTT et al., 2010).

A alternância do discurso sobre a rodovia refletia a baixa capacidade de coordenação e descontinuidade de objetivos. Em 2005, já uma década após início da obra, o Plano de Desenvolvimento Integrado do Turismo Sustentável do RS previa estudo para, “coletar dados para avaliar a viabilidade turística da rodovia [...] identificar o tráfego que poderia ser desviado após a sua pavimentação“ (RS, 2005, p. 220-243). Além de rota turística, a rodovia foi justificada como, “o grande anel do contorno da capital, desafogando seu trânsito pesado” (RS, 2005, p. 193); com o objetivo de “melhorar a trafegabilidade em fluxo de veículos previsto de mil caminhões por dia” (RS, 2008a, p. 67), integrando “transportes e sistemas logísticos” (RS, 2008b, p. 67). O impacto da estrada deveria contribuir para dinamização da logística até o porto de Imbituba/SC, o que acabou não se concretizando (Arruda, 9/6/17).

Representantes do empresariado da Região da Serra, por sua vez, asseguravam que a rodovia promoveria o desenvolvimento:

A conclusão da Rota do Sol resultou do esforço permanente da Câmara de Indústria, Comércio e Serviços (CIC) de Caxias do Sul [...] o projeto recebeu o impacto da Constituição de 1988, que exigiu estudos de impacto ambiental. O diretor da CIC [...] apresentou fatos para ilustrar a coerência com a realidade de um trecho embargado pelo órgão ambiental. Lembrou das roçadas surgidas nas décadas de 1920 a 1940. A construção de uma rodovia, focada no turismo litorâneo, seria para proteger o meio ambiente. (RIGON e VALTRICK, 17/1/18)

O Departamento Estadual de Estradas de Rodagem (DAER), por sua vez, produziu material de divulgação no qual adotou discurso ambientalista, nomeando a obra como “Caminho da Conservação” e registrando como sucesso, “marco na história do DAER e referência na construção de rodovias em harmonia com a natureza” (DAER, 2012). Registro por jornal local enfatiza:

Após décadas de esforço coletivo, obras complexas e caras, a Serra finalmente conquistou sua ligação com o Litoral [...] o fato de a rodovia cortar três áreas de preservação ambiental também exigiu delicadas negociações com organizações não governamentais (ONGs) e órgãos ligados à área. De quilômetro em quilômetro, porém, cada obstáculo foi sendo superado em um esforço que envolvia até mesmo formas de viabilizar a entrega do dinheiro já disponível para a obra. (FRONZA e FIEDLER, 10/6/17)

            Resumindo, na década após conclusão do projeto, o discurso junto à opinião pública por representantes do empresariado incorporou a memória da “luta” a favor da obra e da limitação de recursos no orçamento estadual. A mitigação de danos ambientais passou a ser apregoada como diferencial da rodovia descrita como Caminho da Conservação, as novas unidades de conservação são listadas como benefícios relevantes.

3.4 BR-364 Trecho Final Sena Madureira-Cruzeiro do Sul

No estado do Acre, a rodovia interliga a capital à segunda maior cidade, Cruzeiro do Sul, além de passar por seis das principais cidades do estado, antigamente acessíveis apenas pelos rios, somente nos meses de cheia. A estrada original permanecia fechada ao tráfego de cargas durante os meses de chuva, com apenas quatro meses secos disponíveis para o asfaltamento que se estendeu por anos. 

A pavimentação da rodovia integrou segmentos previamente construídos e foi dividida em três trechos. Em 2003, o primeiro trecho a partir de Cruzeiro do Sul, concluído em 2008, até município de Tarauacá, extensão de 124 km; o segundo, de 46 km, lote único entre Tarauacá e Feijó. O terceiro trecho, de 215 km entre as cidades de Feijó e Sena Madureira, de maior complexidade devido ao solo argiloso, concluído em 2011. O valor dos investimentos variou ao longo de vários governos, somando R$ 1,5 bilhões de investimento pelo tesouro federal (TCU, 2015).

Nos anos 1980, a experiência traumática de pavimentação da BR-364 pelo projeto Polonoroeste em Rondônia alertou a sociedade civil do Acre no intuito de não permitir a ‘rondonização’ do estado. A pavimentação da BR-364 colocava em risco 5 milhões de hectares de Floresta Amazônica:

Para evitar que o Acre se torne a nova região brasileira perseguida pela ideia fixa dos que não desistem de encontrar o Eldorado, o governo do estado já largou na frente. Os projetos de Zoneamento Agroecológico e Ocupação do Estado são executados pela EMBRAPA e a FUNTAC, com base no monitoramento da cobertura florestal e uso atual da terra, além do estudo sobre a viabilidade da rodovia [...] com a migração que fatalmente acontecerá após a pavimentação da estrada, teme-se que ocorra nova distribuição de títulos a apadrinhados do poder, ameaçando o bom andamento dos projetos de preservação e crescimento ordenado. Para os 10 mil índios do Acre, a pavimentação da estrada só deverá acontecer após as 25 reservas indígenas estarem demarcadas. (JUNGES, 1991, p. 31)

Uma década antes, sob a liderança de Wilson Pinheiro, presidente do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Brasiléia, os seringueiros criaram os “empates às derrubadas”. Reuniam suas famílias para se posicionar frente à área para desmatamento, desmontavam os acampamentos dos peões e paravam as motoserras. Em decorrência desse movimento de resistência, em 1980, Wilson Pinheiro foi assassinado dentro do sindicato. O movimento se expandiu sob a liderança de Chico Mendes, por sua vez, assassinado em 1988.

            Mas, a proposta de desenvolvimento com manutenção da floresta em pé, denominada Florestania, foi incorporada ao plano de governo que, em outubro de 1992, venceu as eleições para prefeitura da capital. E venceu novamente, em outubro de 1998, as eleições para o governo estadual. Assim, por duas décadas as administrações estaduais incorporaram o conceito da manutenção da floresta em pé às políticas públicas.

            Esse o contexto para o esforço empreendido pelo governo estadual para mitigar os impactos do asfaltamento do trecho final da BR-364. Em 2001, foi sancionada a Política Florestal do Acre. Foi criado o Instituto de Terras do Acre que passou a mapear e regularizar as propriedades ao longo do traçado das estradas. Dada a ausência de representação do DNIT no estado, o Departamento de Estradas do Acre teve sua capacidade ampliada para coordenar as obras.

Adicionalmente aos recursos do governo federal para a pavimentação, o governo estadual acessou empréstimo do BID de USD 64,8 milhões para o Programa de Desenvolvimento Sustentável do Acre, em 2002. O programa contribuiu para a demarcação de unidades de proteção, o Mosaico de Florestas Estaduais do Rio Gregório, com 486 mil hectares; a Floresta Estadual Antimary, com 47 mil hectares; a Área de Relevante Interesse Ecológico Japiim-Pentecoste, com 25 mil hectares; e as Reservas Extrativistas do Riozinho da Liberdade, com 325 mil hectares e Cazumbá-Iracema, com 755 mil hectares.

Além disso, ao longo da rodovia foram concedidos mais de 6 mil títulos de propriedade; em parceria com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária foram emitidos títulos definitivos para 9,5 mil famílias assentadas; foram conduzidos projetos de resgate da cultura em cinco terras indígenas; realizado projeto de recuperação de pastagens degradadas; foram firmados mais de 3 mil contratos de concessão de uso florestal para 107 comunidades rurais; foi expandida a eletrificação rural, em comunidades isoladas foram instalados painéis solares; foi instalada rede de internet a cabo ao longo da estrada.

O WWF-Brasil participou da certificação de agricultores familiares ao longo da BR-364, complementando a política estadual de fomento ao extrativismo para manutenção da floresta em pé. Como pagamento por serviços ambientais, produtores de açaí nativo do município de Feijó receberam bônus para valorização do produto e foi instalado viveiro para expansão do plantio de palmeira de açaí (TAITSON, 28/6/11).

O Centro Internacional de Agricultura Tropical coordenou estudo quanto ao padrão do desmatamento ao longo da BR-364, comparando o trecho em Rondônia, pavimentado nos anos 1980, com a pavimentação do trecho final no Acre (CIAT, 2012). No Acre o desmatamento teve média de 19,5 mil hectares/ano, em Rondônia foi de 80 mil hectares/ano. No Acre esteve concentrado nos 10 km laterais da rodovia, indicando abertura de pastagens e lavouras, enquanto em Rondônia se estende até 50 km nas laterais da rodovia, incluindo Unidades de Conservação (UCs), indicando atividade madeireira ilegal contribuindo para o Descaso Planejado em Rondônia.

Estudo pelo BID constatou, “a experiência com financiamentos relativamente bem-sucedidos com estradas no Acre, constitui valiosa oportunidade de aprendizado para o banco [...] o fenômeno que ocorreu em décadas prévias em Rondônia não se repetiu no Acre” (REDWOOD, 2012, p. 2-20). Estudo subsequente, sobre o desempenho do programa constatou, “a forte mobilização social através de cooperativas, bem como movimentos sociais e ambientalistas, contribuiu para a inibição da especulação de terras nas áreas do programa” (DENGEL e HORTON, 2011, p. 5).

4. Discussão e comparação dos três casos

i) Adoção do discurso do sucesso no desenvolvimento humano

O registro dos três casos ocorreu mediante diálogo mantido com moradores, lideranças comunitárias, pesquisadores e técnicos ambientalistas que acompanharam os projetos e os descreveram como sucesso. Contribuindo para fortalecer a afirmação de Hirschman (1969) de que o discurso sobre fracasso ou sucesso de um projeto de desenvolvimento depende da interpretação do observador. Como não houve registro sistemático dessas conversas pessoais, a revisão da bibliografia possibilitou compilar os dados necessários para validar a opção pelo enfoque de Hirschman como modelo interpretativo desses megaprojetos.

ii) Ausência da gestão de conhecimento

Esses casos apresentados como exceção positiva ressaltam o planejamento usualmente autoritário de rodovias no país, sem outra preocupação que não seja a realização da obra. Os projetos não incluem os povos tradicionais ou a população local, nem se ocupam dos impactos na vegetação ou no regime hídrico, esses tópicos passam a ser problema e custo da sociedade civil. A práxis evidencia que ferramentas de gestão, como o licenciamento ambiental e as consultas públicas, são insuficientes para mitigar externalidades graves. Tradição mantida dos tempos do Estradismo até os dias atuais, naquele tempo justificada como povoamento, hoje denominado “dinamismo da fronteira agrícola”. Nesse entendimento, “o sangue, o suor e as lágrimas” decorrentes da obra seriam o preço a ser pago pelas benfeitorias. Mesmo a experiência acumulada em duas décadas com esses três casos positivos não foi incorporada à construção de outras rodovias no país, constatação realçada pelo insucesso do Plano BR-163 Sustentável.

iii) Atrasos e a imprevisibilidade do cronograma

O planejamento da construção de rodovias se concentra nas obras de infraestrutura, não interpreta a rodovia como intervenção no tecido social do território. Os planejadores das empreiteiras e dos órgãos estatais elaboram um cronograma que considera as necessidades da engenharia, do ritmo das obras e da secagem do concreto, sem levar em conta o meio ambiente ou a população que teoricamente será beneficiada. “A palavra implementação subestima a complexidade de executar-se projetos prejudicados por alto grau de ignorância e incerteza iniciais” (HIRSCHMAN, 1969, p. 46). Os projetos originais ficam defasados, os estudos de viabilidade econômica incompletos, dado o longo período entre a tomada de decisão inicial e a conclusão das obras.

iv) Imprevisibilidade dos custos

Os projetos das três rodovias contratados pelo Estado eram esboços, ou mesmo peças de ficção, por estudos de viabilidade econômico-financeira incompletos. Além disso, as empreiteiras não tinham clareza dos desafios sociais e políticos, portanto dos seus custos, que iriam enfrentar quando o início das obras. O que não constitui novidade, “Nenhuma das pessoas que moram ao longo do futuro traçado da estrada sabe dizer que resultados econômicos concretos podem ser esperados da estrada, além do vago e automático fator de penetração que ela representa” (PINTO, 1973, p. 39). No caso mais extremo da RS-486, foram necessárias duas décadas para mitigação das externalidades. Nesse caso, o corpo técnico do BID questionou os elevados custos das obras de arte especiais e o tesouro estadual teve que arcar com o investimento mediante corte em outros itens do orçamento. A decisão pela realização das obras ocorre na esfera política, por uma aliança de atores privados e estatais, em geral com apoio da mídia regional.

v) O custo de novas instituições estatais

A mitigação dos impactos das três rodovias demandou criar novas instituições com volume de recursos não previstos no estudo de viabilidade econômica ou no orçamento original. No caso da RS-486, a criação do centro de pesquisa GANECO, no caso da BR-364 o laboratório de geoprocessamento do IMAC, bem como o ITERACRE. Uma vez criadas, essas instituições prestam serviços públicos mais amplos que apenas na rodovia, porém, passam a custo permanente pelo orçamento estadual.

vi As unidades de conservação como “paper parks”

Nos três casos foi necessária a criação de UCs. Uma característica usual desses parques consiste da ausência de previsão orçamentaria para as desapropriações e sua proteção, contribuindo para conflitos socio-ambientais permanentes. De população tradicional, os moradores do território passam a infratores ambientais, envolvendo questões sobre propriedade ou posse da terra, ativos territoriais, o uso do solo e da água. “A maior parte destes problemas está relacionada ao fato de que o Estado cria legalmente, mas não indeniza, não regulariza em termos fundiários, são os paper parks” (PRINTES, 2012, p. 152).

vii) Limites da articulação externa

A população local se vê dividida ante ao dilema de desejar os benefícios da mobilidade, porém, não necessariamente concorda com a perda do seu modo de vida mediante a construção da rodovia. Organizações da sociedade civil, representando a parcela da população receosa dos impactos, se veem obrigadas a investir escassos recursos para liderar o processo de oposição, demandando através da ação direta e dos operadores da justiça o cumprimento da legislação e a garantia dos direitos difusos. Para tanto, necessitam de apoio técnico e financeiro externo para qualificar suas ações, o que inclui parcerias com ONGs, universidades e agências estatais de cooperação internacional. Um estoque de capital social do qual a maioria das regiões do país não dispõe.

viii) Orçamento de projeto e precificação das externalidades

O custo completo dessas rodovias não pode ser estimado a partir dos documentos oficiais. Mesmo mediante soma das obras parciais, bem como atualização do poder de compra da moeda, esta recuperação ex post do custo reflete apenas o investimento direto. O orçamento não incluiu gastos como: criação e custeio de novas organizações estatais; auditorias pelo TCU e ações judiciais daí decorrentes; tempo investido por pessoas físicas e jurídicas em reuniões, assembleias, protestos, marchas e demonstrações; mobilização policial para reprimir protestos; custos de oportunidade pelas interrupções das obras; juros do financiamento externo, para mencionar alguns. O que permite questionar o conceito de orçamentação do projeto no campo de estudos da gerência de projetos, usualmente restrito às obras físicas. E permite apresentar a hipótese, de que soma dos custos previstos e imprevistos dessas rodovias constitui o preço para a mitigação das externalidades.

ix) Formação da licença social

O ponto em comum dos três casos reside na lenta e gradual construção de uma licença social para a rodovia. Essa licença não representa unanimidade, nem necessita ser ilimitado, ou seja, pode mudar com tempo. Constitui um processo social e político enraizado no território, não planejado linearmente nos termos restritos de um projeto. Depende de um processo continuado de diálogo, de mediação de conflitos, de compromissos temporários que dependem de confiança e conhecimentos compartilhados, bem como, de vantagens econômicas palpáveis aos atores locais. 

x) Indicadores de sucesso de projetos de desenvolvimento

Os casos aqui apresentados contribuem para o entendimento de que o sucesso de uma rodovia na contribuição ao desenvolvimento humano não depende dos critérios tradicionais de mensuração, qual seja a conclusão no prazo previsto, dentro do orçamento original e de acordo com as especificações de engenharia civil. Enfatizamos que o sucesso de uma rodovia em Mata Atlântica ou Floresta Amazônica deve ser mensurado por eliminar a especulação com terras, a expulsão da população local e a expansão do desmatamento ilegal.

5. Considerações finais 

            Argumentamos que os projetos dessas três rodovias constituem obras de promoção do crescimento econômico. Foram transformadas em projetos que contribuíram para a melhoria da qualidade de vida da população local, bem como da minimização dos impactos ambientais, mediante reação das organizações da sociedade civil em aliança com órgãos ambientais que enfrentaram o Descaso Planejado das estatais de infraestrutura rodoviária. No caso mais extremo, da BR-364, técnicos engajados com as organizações da sociedade civil assumiram a gestão dos órgãos públicos para evitar a ‘rondonização’ do Acre.

            Uma vez formada uma coalizão de interesses entre grupos políticos, gestores públicos, empreiteiras e lideranças locais para pavimentação de uma rodovia, esta decisão é praticamente irreversível. Resta aos grupos opositores, sejam empresários locais, agricultores ou organizações da sociedade civil, formar coalização de enfrentamento ao investimento. Nesse contexto, as audiências públicas obrigatórias em processos de licenciamento são quase irrelevantes, pois não preveem um cenário do planeamento no qual o projeto seja cancelado.

            Para o campo de conhecimento da gerência de projetos, importa reforçar que, se a conclusão dessas rodovias tivesse ocorrido de acordo com os critérios usuais para definição do sucesso de um projeto: dentro do prazo, dentro do orçamento e de acordo com as especificações do contratante, essas rodovias provavelmente teriam fomentado a destruição ambiental e social. O que Pinto (1973) já criticava como “a pressa” do planejamento em rodovias em biomas vulneráveis. Pelo fato de não terem atendido aos planos autoritários do Descaso Planejado, as rodovias puderam ser avaliadas por agentes econômicos presentes na Mata Atlântica e na Floresta Amazônica como um sucesso, mesmo que parcial ou temporário.

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