Condições habitacionais e Pesca artesanal: Uma análise dos municípios da Bacia de Campos-RJ
Ana Paula Serpa Nogueira de Arruda
Doutora em Sociologia Política (PGPS/UENF), Professora do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Regional e Gestão de Cidades, Universidade Cândido Mendes em Campos dos Goytacazes - RJ
Referências
AGIER, Michel. Antropologia da cidade: lugares, situações, movimentos. Editora Terceiro Nome, 2019..
BOURDIEU, Pierre. Espaço físico, espaço social e espaço físico apropriado. Estudos avançados, v. 27, p. 133-144, 2013.
BAUMAN, Z. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Trad. Plinio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
CAMPOS, Mauro Macedo; TIMÓTEO, Geraldo Márcio; ARRUDA, Ana Paula Serpa Nogueira de. A dinâmica da pesca artesanal na Bacia de Campos: organização social e práticas em economia solidária entre os pescadores artesanais. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 116, p. 71-102, 2018
CORAGGIO, José Luis. Una perspectiva alternativa para la economía social: de la economía popular a la economía del trabajo. In: CORAGGIO, José Luis, organizador, Política social y economia del trabajo. UNGS/Miño y Dávila Editores, Buenos Aires, 1999.
CORAGGIO, José Luis; ARANCIBIA, María Inés; DEUX, María Victoria. Guía para el mapeo y relevamiento de la economía popular solidaria en Latinoamérica y Caribe. Grupo Red de Economía Solidaria del Perú–GRESP, v. 15, p. 49-60, 2010.
COSTA, K. V; SILVA, P. P. Marisqueiras de Farol de São Thomé. In: TIMÓTEO, G. M. (org.). Pescarte: arte e vida, trabalho e poesia. Campos dos Goytacazes, RJ: EdUENF, 2019.
DIEGUES. Antonio Carlos. Socio-antropologia das comunidades de pescadores marítimos no Brasil. São Paulo Etnográfica.
FERREIRA, Ana Cristina. Família e Habitat: Dinâmicas socioeconômicas, valores e formas de apropriação do alojamento. Cidades – Comunidades e Territórios, nº 11, ISCTE/CET: Lisboa, dezembro de 2005.
HARVEY, David. The Right to the City. New Left Review, v.53: 23-40, 2008.
HARVEY, David et al. A liberdade da cidade. GEOUSP Espaço e Tempo (Online), v. 13, n. 2, p. 09-18, 2009.
HEIDEGGER, Martin. Construir, habitar e pensar. In conferencias e artículos, Serbal, Barcelona, 1994.
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Documentos, 1999.
MARTINS, Maria Lucia Refinetti. São Paulo, centro e periferia: a retórica ambiental e os limites da política urbana. Estudos Avançados, v. 25, p. 59-72, 2011.
MARICATO, Ermínia. Para entender a crise urbana. CaderNAU, v. 8, n. 1, p. 11-22, 2015.
POULANTZAS, Nicos. O Estado, o poder e o Socialismo Rio de Janeiro: GRAAL. 3ª. edição, 1981.
SASSEN, Saskia. Expulsões: brutalidade e complexidade na economia global. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 2020.
SENNETT, Richard. Construir e habitar: ética para uma cidade aberta. Editora Record, 2020.
SILVA. Catia Antonia da. Política Pública e território: passado e presente da efetivação de direitos dos pecadores artesanais no Brasil. Rio de Janeiro: Consequência, 2015.
SILVA, Catia Antonia da Silva e DE PAULA, Cristiano Quaresma. Brasil e Moçambique – Diálogos geográficos sobre a pesca artesanal. Rio de Janeiro: Ed. Consequência, 2016. 200p.
SOUZA E SILVA, J. de. “Por que uns e não outros?” Caminhada de jovens pobres para a universidade. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2003.
TEIXEIRA, Maria Cristina Villefort. Espaço projetado e espaço vivido na habitação social: os conjuntos Goiânia e Araguaia em Belo Horizonte. Tese apresentada ao Curso de Doutorado do Programa de Pós -Graduação em Planejamento Urbano, 2004.
VELHO, G. A utopia urbana um estudo de antropologia social. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2002
1. Introdução
O objetivo do presente trabalho é investigar as condições habitacionais e urbanísticas dos pescadores artesanais na Bacia de Campos – RJ[1], mais especificamente dos municípios de Campos dos Goytacazes, São João da Barra e Macaé. Localizados no norte fluminense, caracterizam-se pela economia petrolífera e portuária que tem efeitos importantes sobre a pesca artesanal.
Este estudo resulta de pesquisa financiada pelo Projeto de Educação Ambiental (PEA) que, como condicionante concedido pelo Licenciamento Ambiental Federal de Petróleo e Gás e projeto de educação ambiental e gerenciado pelo IBAMA, tem por objetivo promover o fortalecimento da organização comunitária da classe pesqueira, por meio da implementação de Projetos de Geração de Trabalho e Renda[2]. O projeto abarca, em sua atual fase, 10 municípios da Bacia de Campos: Arraial do Cabo, Cabo Frio, Macaé, Quissamã, São João da Barra, Campos dos Goytacazes, São Francisco de Itabapoana, Rio das Ostras, Carapebus e Armação dos Búzios.
Mapa dos municípios de atuação da terceira fase do PEA Pescarte
Fonte: Pescarte (2022)
Compondo o referido projeto, este estudo se propõe a entender como os pescadores artesanais e seus familiares se apropriam de suas moradias, comunidades e cidades, entendendo, de forma mais pesquisa se dedicado específica, a articulação deste grupo com o ambiente contruído, tendo esta etapa da a uma análise das condições habitacional. Neste sentido, o trabalho apresenta uma análise que procura compreender a relação entre o trabalhar e o morar na vida dos pescadores artesanais.
Como aponta Silva (2015), para isto é importante identificar e analisar a relação dos sujeitos com a moradia e a vida urbana. Neste contexto, é necessário considerar as origens tradicionais da pesca artesanal, expressas em formas de vínculos e sociabilidades particulares, porque podem resultar em cooperação específica que em alguns momentos interagem – e em outros se contrapõem – com o modo de vida urbano da atualidade.
Como problemática do atual estudo consideramos a expropriação de seus territórios tradicionais – de vida, trabalho, moradia e existência - como um dos aspectos enfrentados pelos pescadores artesanais, na atualidade, que coloca em risco a sustentabilidade deste modo de vida. O senso comum vê as comunidades pesqueiras com certo bucolismo, afastadas da cidade, isoladas da modernidade. Contudo, muitas das “comunidades” ou “vilas” pesqueiras foram tragadas pelas cidades, rompendo o seu isolamento com resultados ambíguos: se trouxe, em alguns casos, maior acesso a serviços e equipamentos urbanos, em outros teve por consequências efeitos perversos, como aumento de violência, custo de vida, quebra de costumes e laços sociais para estes grupos e expulsões das mais variadas formas.
Em decorrência, no caso da Bacia de Campos (BC), territórios tradicionalmente utilizados pela pesca artesanal têm sido ocupados por outras atividades econômicas tais como o turismo, a pesca industrial, e, especialmente, pela exploração do petróleo e atividades portuárias. Isto acarreta crises a sua base produtiva, reconfigurando seus lugares de trabalho e comunidades de vida coletiva. Como aponta Silva (2015, p.105), o “lado mais fraco da pesca, o dos pescadores artesanais, é marcado por uma série de conflitos e de dificuldade de acesso aos direitos sociais, direitos trabalhistas e políticas públicas”. A esta dificuldade de acesso a direitos pode se acrescentar questões relacionadas à moradia, serviços e equipamentos urbanos – a expropriação destes pescadores dos seus territórios de vida e de existência. Há, em relação à moradia, pressões, para parte deste grupo, do mercado imobiliário sobre estes territórios.
Um ponto comum entre os pescadores estudados nas áreas urbanas dos municípios é sua localização em bairros pobres e, por isso, com precariedades latentes no acesso a equipamentos e serviços. Da mesma forma, eles enfrentam os mesmos dilemas aos quais os outros moradores dos bairros em que estão localizados enfrentam, como dificuldade de acesso a serviços urbanos e políticas públicas.
Para conseguir enfrentar, neste estudo, a complexidade e a diversidade tanto dos sujeitos como dos municípios estudados, dirigimos nossa atenção a formas criativas e recursos que se desenvolvem nestes processos de reconfiguração da moradia e do urbano por meio dos dilemas entre a tradição e a “modernidade”, o passado e o presente: a vila de antes frente ao bairro de hoje - a vizinhança anterior - composta apenas por pescadores, abre espaço a novos sujeitos, destrói e reconstrói signos antes compartilhados e caros aos pescadores e seus familiares.
Enquanto triangulação metodológica foram usados dados qualitativos e quantitativos. Por meio de uma abordagem quantitativa analisou-se o Censo Pescarte, mais especificamente do bloco Acesso a Serviços Públicos. Na sua 1ª Fase, por meio do Censo PEA Pescarte[3] (20215-2017) foram identificadas 143 localidades, em 32 comunidades como locais de moradia desses pescadores em cada município. Ao fim do censo, com a aplicação de questionários, as equipes responsáveis de educadores socioambientais haviam entrevistado 4.331 pescadores em 3.478 famílias e cadastrados 10.082 pessoas que dependiam diretamente da pesca artesanal para seu sustento.
Além disto, realizamos também, nos anos de 2021 e 2022, entrevistas com pescadoras e pescadores artesanais, considerando que cada um destes sujeitos possui características diferentes quanto à apropriação, articulação e composição da identidade frente a moradia. Por sua vez, consideramos que, uma vez inseridos na cidade, o pescador e seus familiares a vivem, a apropriam e a consomem - seus bens e seus recursos - à medida isto se torna possível diante de seus costumes, tradições e oportunidades oferecidas por estes espaços.
2. O sentido e o direito do habitar
Uma moradia digna ainda é privilégio de uma minoria de pessoas em nosso país. Contudo, a no seu artigo 6º a Constituição Federal (BRASIL, 1989 afirma que ela constitui um direito social. Também o Estatuto da Cidade, aprovado em julho de 2001, certifica no seu artigo 2º “a garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços ao lazer, para as presentes e as futuras gerações (BRASIL, 2001).”
O ato de "habitar" está na base da construção do sentido da vida, nos modos de apropriação dos lugares da cidade, a partir da casa. Dessa forma, o ato do habitar produz a "pequena história", aquela construída nos lugares comuns, por sujeitos comuns, na vida diária e possui um sentido mais amplo e social. Não se resume apenas a um lugar para dormir, mas para permanecer e manter laços. Heidegger (1994) nos propõe a revisão do conceito de habitação, recorrendo à genealogia do termo e identificando a relação entre o significado de construir e habitar. “Construir significa habitar. Isto quer dizer: permanecer-se, deter-se”.
Ao contrário de poder ser “negligenciável”, Lefebvre (1999) considera o habitar, dentre os níveis do fenômeno urbano, “O essencial, o fundamento, os sentidos provêm do habitar”. A relação do ser humano com a natureza e com a sua própria natureza (ser) reside no habitar. Segundo Lefebvre:
Para reencontrar o habitar e seu sentido, para exprimi-los, é preciso utilizar conceitos e categorias capazes de ir aquém do vivido do habitante, em direção ao não conhecido e ao desconhecido da cotidianidade (...). A relação do ser humano com a natureza e com a sua própria natureza, como o “ser” e seu próprio ser, reside no habitar, nele se realiza e nele se lê. (...) O ser humano não pode deixar de edificar e morar, ou seja, ter uma morada onde vive sem algo a mais ou a menos que ele próprio: sua relação com o possível como com o imaginário. (...) A casa e a linguagem são os dois aspectos complementares do “ser humano”. (LEFEBVRE, 1999: 81)
A casa, a habitação, de acordo com Teixeira (2004), é o nosso canto no mundo, é o nosso primeiro universo. Muito além de abrigo e refúgio, a casa, o habitar, faz parte do que somos:
Muito mais do que um espaço feito de tijolo e cimento para abrigar e dar proteção às agressões da natureza e da sociedade, a casa é o lugar onde se realiza vida, onde se produz a identidade, onde a transformação contínua da existência define e efetiva a ressignificação desses espaços (TEIXEIRA, 2004: 19).
Para Teixeira, habitar não significa apenas ocupar um lote e possuir uma edificação, mas estar ligada a elementos que garantam qualidade de vida, dentre outras coisas, a existência de atividades econômicas, culturais, sistemas de transportes, comunicação e de abastecimento. Além disto, existe toda uma significação emocional no habitar, já que este é o local das interações e da construção da história de vida dos indivíduos. “É inegável que a habitação é o seu lugar físico, emocional, afetivo e cultural que permite interações mútuas. Portanto, ele a constrói física e afetivamente através de um processo coerente com a sua cultura e com a sua história de vida” (TEIXEIRA, 2004: p. 24).
Neste sentido, habitar vai além da aquisição de um mero espaço físico, mas envolve também a formação de uma coletividade que coloca homens e mulheres em um mesmo espaço organizado, o que vai identificar uma comunidade. E, desta forma, o habitar instaura uma dimensão de comunidade no sentido em que é comum a todos, a formação de um espaço tornado emblemático e, neste sentido, carregado de significados. O sentimento de vizinhança e de comunidade, profundamente enraizado na tradição e costumes locais exerce uma decisiva influência nas características dos seus habitantes gerando neles o sentido de pertencimento.
O pertencimento é um “processo de incorporação e exteriorização de atitudes que levam à constituição da identidade”, este constitui-se mais que um sentimento, já que se expressa em ações práticas que ressignificam a habitação. A moradia, sob esta condição, tem múltiplas faces que se intercalam por meio de fatores sociais e culturais pelos quais os indivíduos – neste caso, pescadores artesanais – vão constituindo ao longo da vida e de acordo com as suas experiências. (Souza e Silva, 2003)
De acordo com Maricato (2015), no Brasil, não há carência apenas de habitação, mas de cidades. Neste sentido, seria necessário convergir o direito à habitação (habitar) a democratização da cidade, inclusão, justiça territorial e social. Aprofundando a questão e partindo das peculiaridades da urbanização brasileira, marcada pela profunda desigualdade na distribuição de benefícios urbanos, o Estatuto das Cidades, aprovado em julho de 2001, trouxe como objetivo: “[...] garantir o direito à cidade como um dos direitos fundamentais da pessoa humana, para que todos tenham acesso às oportunidades que a vida urbana oferece”. O mesmo certifica no seu artigo 2º: “A garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços de lazer, para as presentes e as futuras gerações” (BRASIL, 2001). Estariam os pescadores e pescadoras artesanais com este direito garantido? Como aponta Rainha (2016):
Esses trabalhadores são como muitos outros pescadores urbanos brasileiros, invisíveis aos olhos do Estado, que anseia e fomenta com todas as suas forças estratégias que articulam a formação de um espaço moderno e excludente. Essa invisibilidade tem sido responsável por perpetuar e propagar pela sociedade urbana uma série de estigmas e rótulos pejorativos contidos nos discursos que tratam esta categoria de trabalho como sendo dispensável e incompatível com os desejos e os ideais propagados pela modernidade. (RAINHA, 2016, p.117)
Há que se pensar, neste sentido, formas democráticas, participativas e inclusivas de acesso e construção das cidades também para este grupo, pescadores e pescadoras artesanais. Como aponta Sennet (2018) uma cidade aberta requer que aqueles que nela vivem desenvolvam a capacidade de lidar com a complexidade da vida urbana e o desenvolvimento de suas múltiplas formas de sociabilidade.
Sobre tais conjunturas, é preciso reafirmar o papel do Estado, no que consiste o acesso ao direito à moradia e à cidade, preceitos constitucionais que devem ser expressos por meio de políticas públicas. Claramente, as condições de moradia e acesso a equipamentos e serviços urbanos dos pescadores e pescadoras artesanais a capacidade de atuação do Estado por meio de políticas públicas que cheguem a este grupo. Como temos acompanhado em nossa pesquisa, são muitas as necessidades apontadas por estes sujeitos: saneamento (acesso a água e esgoto), limpeza urbana, transporte – somada a pressão que dá sobre seus espaços de vida e existência, moradia e trabalho. É importante salientar o impacto ambiental que a poluição urbana tem ocasionado sobre espaços tradicionais das atividades da pesca artesanal. Temos nesta pesquisa uma máxima de que é impossível – na atualidade, desarticular a questão urbana da questão ambiental. Como apontado por Martins (2011)
Nesses termos, urge discutir o conceito e a especificidade do meio ambiente urbano, observando a tensão entre assentamento urbano e meio ambiente em todas as suas dimensões. Cumpre aprofundar-se no entendimento da relação entre o homem (sociedade) e a natureza, visando encontrar na teoria os fundamentos das normas e políticas públicas dicotomizadas entre “naturais” e “artificiais”, que passaram a entender as atividades humanas como necessariamente destrutivas da natureza. Dentro dessa análise se poderá explorar o papel que o “urbano” vem desempenhando na relação homem e natureza. É nesses termos que cabe aprofundar o debate sobre a forma da cidade do século XXI, densidade e condições ambientais do assentamento nas grandes concentrações urbanas, e desenvolver alternativas de desenho urbano que contemplem objetivos ambientais e sociais. (MARTINS, 2011, p. 60)
3. Moradia e pesca artesanal
Neste contexto, é essencial repensar o modelo de desenvolvimento econômico e seus impactos sobre o desenvolvimento urbano e ambiental e seu impacto sobre as áreas de pesca artesanal. Nesse processo de produção de desigualdades urbanas, temos o avanço sobre áreas ambientalmente sensíveis, associada a falta de oportunidades e de alternativas para a questão habitacional.
No caso da Pesca artesanal, ao mesmo tempo em que temos uma resignificação da cidade, antes tão distantes as vilas dos pescadores, agora a vemos próxima e por vezes ameaçadora. A “comunidade pesqueira” por vezes se posiciona como um exótico, o bucólico dentro do urbano. É engolida pela cidade, destoando de seu cenário, trazendo o íntimo e o rural para a sua paisagem. Tais comunidades são, por vezes, considerando a produção capitalista do espaço (HARVEY, 2008) e seus processos de acumulação – um entrave ao almejado desenvolvimento - ótica moderna de dominação global e financeirização do espaço. Temos assim, claramente, uma noção inapropriada de desenvolvimento, associado apenas a uma ótica econômica de vertente neoliberal – o que tem causado a estes grupos processos de expulsões (SASSEN, 2020)
Contrariamente, tais territórios são expressão de resistências, constituídas por uma rede de símbolos e significados que formam a identidade dos seus moradores que, por consequência, possuem as representações deste espaço vivido. É um lugar de pertencimento, chamado de comunidade, termo que exprime, segundo Bauman (2003), um lugar aconchegante, conhecido, de vivências coletivas. Também para Silva (2016):
A pesca artesanal, suas localidades, técnicas e embarcações, em contextos urbano-metropolitanos, são rugosidades, que só pelo fato de existirem impõem-se como formas de resistência às pressões e formas de modernização que varrem a história dos lugares. (SILVA, 2016, p. 26)
O urbano, a cidade, tem múltiplas faces e camadas analíticas que se intercalam por meio de fatores sociais, econômicos e culturais pelos quais os indivíduos – neste caso, pescadores e pescadoras artesanais - vão constituindo ao longo da vida e de acordo com as suas experiências. Assim, eles também representam a cidade, com toda a sua complexidade conceitual, e não podem ser invisíveis em sua constituição. Como aponta Agier (2019) para tal análise é necessário observar duas considerações: considerar a cidade pela visão de quem a vive, seus citadinos (e em nosso caso com a indagação de como os pescadores vivenciam essa experiência urbana); e compreender a cidade enquanto um processo, capturando as múltiplas formas e práticas do “fazer a cidade”, e desta forma observar a sua complexidade.
Enquanto os pescadores e seus familiares são tomados por desafios para se reconhecerem neste “moderno” espaço, aos jovens – filhos e filhas, se abrem caminhos a “novas possibilidades”: refazem suas amizades para além da “área pesqueira”, consomem novos espaços, como shopping, cinemas e praças e buscam outras possibilidades de emprego – para além da pesca artesanal - seduzidos ainda pelas oportunidades da indústria petrolífera e portuária. A composição familiar destes pescadores pode revelar que, para cada um deles, a cidade possui um significado muito particular. Como já aponta Velho (2002), habitamos em cidades complexas, diferenciadas, com diversos estilos de vida, anseios, costumes e tradições.
É pela moradia e sua conexão com a produção e o trabalho que também adentramos nossa análise. Como aponta Coraggio (1999) a base de grande parte da produção e da economia dos setores populares se encontra em unidades domésticas. Para o autor, esta é uma questão que precisa ser considerada uma vez que reprodução social e produção se confundem, em uma lógica própria de acumulação que perpassa a economia doméstica. Desta forma para o autor: “la economía popular no es una alternativa pobre para pobres, sino un subsistema orgánico de elementos socialmente heterogéneos, dotado de un dinamismo propio, competitivo y de alta calidad” (CORAGGIO, 1999).
Com este argumento este autor aponta uma intima relação entre economia popular solidária e a moradia. É a partir da economia existentes nas unidades domiciliares, e do transbordamentos destas relações solidarias para a vizinhança, a comunidade, a economia popular de produção, que se estabelece as bases para uma forma de produção mais justa e cooperativa:
La Economía Popular Solidaria es el conjunto de recursos, capacidades y actividades, y de instituciones que reglan, según principios de solidaridad, la apropiación y disposición de esos recursos en la realización de actividades de producción, distribución, circulación, financiamiento y consumo organizadas por los trabajadores y sus familias, mediante formas comunitarias o associativas autogestionarias. (...) Una característica distintiva es la asociación libre o la preexistencia de comunidades, es decir un nivel secundario de solidaridad que excede al del grupo doméstico. En consecuencia, ni emprendimientos individuales ni familiares se incluyen en esta definición, a menos que estén asociados solidariamente con otros similares. (CORAGGIO et ali, 2010, p.15)
A vivência da solidariedade, da criatividade e da cooperação parte, na percepção do autor, pela capacidade de resistência que se consolida nestas unidades domiciliares e que transborda para a vida comunitária. Tal aspecto pode ser observado no caso da pesca artesanal, como uma questão importante pois, a casa por vezes é extensão de um espaço de produção e reprodução social, especialmente pelo trabalho feminino na pesca artesanal.
Tais questões se evidenciam por exemplo, na comunidade do Terminal Pesqueiro, em Campos dos Goytacazes, em que as mulheres descreveram a atividade conhecida como “Fundo de Quintal”, cuja dinâmica já traduz os níveis de precarização vivenciados cotidianamente por essas mulheres no espaço doméstico. O “Fundo de Quintal” consiste na reunião de mulheres para o descasque do camarão e filetagem do pescado – geralmente na casa da dona do “quintal” e que também é a responsável pelo recebimento do pescado vindo do atravessador. O preço pago pelos atravessadores a essas mulheres vai de 0,30 R$ a 2,50R$[4] por quilo de pescado beneficiado. O trabalho rotinizado, intensificado e precarizado se manifesta em todos os municípios cobertos pelo Projeto PEA Pescarte. Este trabalho, vinculado a moradia, é fortemente marcado pela informalidade, criando dificuldades especialmente para que estas mulheres tenham acesso a direitos constituídos e assegurados pela legislação trabalhista brasileira (CAMPOS, TIMOTEO, ARRUDA, 2018).
4. Condições de moradia e Pesca artesanal: São João da Barra, Campos dos Goytacazes e Macaé.
Nesta seção trataremos de desenvolver uma análise das condições habitacionais de pescadores artesanais nos municípios de Campos dos Goytacazes e São João da Barra e Macaé. O objetivo desta etapa é comparar como estes municípios, afetados pela economia do petróleo e pelo desenvolvimento da economia portuária (Porto do Açu e Tepor), apresentaram com base nos dados do último Censo Pescarte, as condições habitacionais e urbanísticas dos Pescadores e pescadoras artesanais.
É necessário, portanto, analisar e apresentar as condições habitacionais desta população, pois, entende-se que elas são um dos aspectos que perpassam as várias dimensões das desigualdades sociais as quais estão acometidos. Esta vulnerabilidade habitacional tem duas dimensões: interna e externa. As condições habitacionais são um indicador importante para a análise da pobreza – a considerando como um fenômeno multidimensional - internamente pode ser medida pelo acesso aos bens, pelas condições de habitabilidade, pelas características físicas da moradia. Externamente diz respeito ao entorno, ao bairro e ao acesso a equipamentos e serviços públicos.
Em relação ao lugar, também se observa a interlocução deste grupo com o Estado, em seu papel como um agente modelador do espaço. Também é possível observar a organização dos pescadores – ou falta dela - enquanto um grupo de pressão por demandas coletivas que perpassam a dimensão habitacional e de seu entorno, considerando o papel de mediação relacional do Estado em um campo de forças (Poulantzas, 2000) entre o capital e a classe trabalhadora, o que tem rebatimentos importantes sobre o acesso a políticas públicas, serviços e equipamentos urbanos. Como aponta Silva (2015):
Não é possível compreender a dificuldade de acesso dos pescadores às políticas públicas e a luta por direitos trabalhistas e direitos sociais (moradia, educação, saúde, transporte seguridade) sem compreender os contextos das lutas, que têm seus marcos nas cidades... (SILVA, 2015: 59)
É nesse espaço, campo do cotidiano, nos quais as desigualdades são percebidas e vivenciadas. Também é nesse espaço, na escala do lugar, onde a dimensão da vida coletiva se desenvolve, na composição de uma sociabilidade própria marcada por vínculos, conflitos e cotidianidade.
Evidentemente, os obstáculos para a configuração de cidades mais justas, democráticas e inclusivas se expressam nos municípios de Campos dos Goytacazes, São João da Barra, e Macaé, objeto de estudo desta pesquisa. Por sua vez, estas dificuldades e dinâmicas espaciais atreladas a configuração de um modelo de urbanização desigual e segregador, acaba por alijar os grupos mais pauperizados e vulneráveis - dentre eles os pescadore(a)s artesanais - das oportunidades de acesso a cidade e as políticas públicas.
Tais aspectos ganham contornos ainda mais dramáticos quando aliados ao modelo econômico que que se instala nestes municípios, de Campos dos Goytacazes, Macaé e São João da Barra, sendo estes municípios receptores de grandes investimentos (GIs): a indústria de extração e exploração (E&P) do petróleo e gás na Bacia de Campos (BC), cuja base industrial foi instalada em Macaé a partir de 1977 e, mais recentemente, o município de São João da Barra começa a abrigar o Complexo do Porto do Açu, construção iniciada em 2007.
Claramente, estas duas economias têm impacto sobre as dinâmicas urbanas e condições habitacionais destes municípios, com rebatimentos sobre o preço do solo, sobre a especulação imobiliária, bem como sobre a configuração de um modelo de gestão pública que se alia a um ideário de empreendedorismo urbano, disposto a adequar sua ação as necessidades do setor privado. Além disto, estes municípios são receptores de rendas municipais diferenciadas, com acesso a receitas provenientes de Royalties e participações espaciais, embora estas não tenham sido historicamente revertidas em melhorias para a população, especialmente na configuração de políticas urbanas.
Conforme articulamos anteriormente, esta economia tem rebatimentos importantes sobre a atividade de pesca artesanal, e sobre a configuração de seus territórios de trabalho, moradia e existência. Diante desse quadro, estes municípios vivenciaram um processo de expansão urbana que, além da pressão sobre estes territórios, vem causando impactos ambientais que tornam a pesca artesanal ainda mais prejudicada. Por isto é essencial acompanhar estes pescadores artesanais na busca por diagnosticar a relação deles com seus territórios.
Neste contexto, buscamos identificar questões como titularidade, acesso a serviços e equipamentos urbanos, bem como acesso a bens. Sobre a condição da moradia, em Campos dos Goytacazes 78% dos respondentes à essa questão, possuem a casa própria e quitada, 10,2% casa cedida, 5,6% casa própria não quitada, e 4,9% possuem a residência alugada. Em São João da Barra 71,8% dos respondentes à essa questão, possuem a casa própria e quitada, 6,2% casa alugada, 5,7% moradia cedida. Macaé apresentou o maior percentual entre os três municípios de imóveis alugados: 17,1% dos entrevistados. Há ainda 72,8% com casa própria quitada, 3% com casa própria não quitada e 3,7% residindo em imóveis cedidos. É interessante e merece um acompanhamento qualitativo futuramente, o número de imóveis cedidos em Campos (10,2%).
Tabela 1 - Condição da Moradia (%) |
|||||||
|
Própria, |
Própria |
Cedida |
Alugada |
Compartilhada |
Outros |
Total |
São João da Barra |
71,8 |
1,7 |
15,3 |
7,4 |
1,7 |
2,1 |
100,0 |
Campos dos Goytacazes |
77,0 |
5,6 |
10,2 |
4,9 |
1,2 |
1,1 |
100,0 |
Macaé |
72,8 |
3,1 |
3,7 |
17,1 |
2,3 |
1,0 |
100,0 |
Fonte: Censo Pescarte (2016)
A Tabela 2 abaixo demonstra se a casa possui água canalizada em pelo menos um cômodo. Como se pode observar, em Campos dos Goytacazes, 87,2% das casas possuem água canalizada em um cômodo e 12,8% não possuem. Em São João da Barra 91,1% das casas possuem água canalizada em um cômodo e 8,9% não possuem. Em Macaé 91,6% possuem água canalizada. Podemos observar que ambos os municípios apresentaram um número significativo de habitações que possuem acesso a rede geral. Contudo, não basta ter acesso a Rede Geral, é importante saber se esta, em virtude de sua qualidade e frequência é a fonte principal de abastecimento.
Tabela 2 Água canalizada em pelos menos um cômodo ( |
|||
|
Sim |
Não |
Total |
São João da Barra |
91,1 |
8,9 |
100 |
Campos dos Goytacazes |
87,2 |
12,8 |
100 |
Macaé |
91,6 |
8,4 |
100 |
Fonte: Censo Pescarte (2016)
Neste quesito, em Campos dos Goytacazes 73,3% possuem suas casas abastecidas pela rede geral de distribuição, seguidos de 19,2% cuja principal fonte é proveniente de poço. Outras fontes de abastecimento somam 7,5% (Água cedida por vizinho, carro pipa, de rios, ou outras fontes). Em São João da Barra 81,8% possuem suas casas abastecidas pela rede geral de distribuição, seguidos de 15,5% cuja principal fonte é proveniente de poço. Outras fontes de abastecimento somam 2,8% (Água cedida por vizinho, carro pipa,). Em Macaé predomina o número de moradias com acesso a rede geral de Água (92,2%), seguido da utilização de poço (4,4%). Em Campos e SJB os municípios há um número importante de moradias cuja fonte principal é o poço.
Tabela 3 - Principal fonte de abastecimento de água (%) |
|||||||
Rede Geral |
Poço |
Carro |
Rios, |
Cedida |
Outros |
Total |
|
São João da Barra |
81,8 |
15,5 |
0,3 |
0 |
1,1 |
1,3 |
100 |
Campos dos Goytacazes |
73,3 |
19,2 |
3,4 |
1,9 |
0,2 |
2 |
100 |
Macaé |
92,2 |
4,4 |
1 |
0 |
1 |
1,4 |
100 |
Fonte: Censo Pescarte (2016)
É fato que um número significativo de entrevistados apontou dificuldades na frequência de acesso de agua via rede geral em suas residências. Especialmente no município de Macaé, 56% dos entrevistados afirmaram que a rede geral de abastecimento funciona de forma muito irregular, além de relatos de interrupções de acesso no verão.
Outro aspecto importante se refere ao tipo de esgotamento sanitário. Esta também é uma variável importante que deixa claro a vulnerabilidade na questão habitacional, dos pescadores e pescadoras destes municípios (vide Tabela 4).
Em Campos dos Goytacazes 50,9% dos entrevistados fazem uso de fossa rudimentar em suas moradias. Seguidamente, 23,6% utilizam fossa séptica. 17,6% das casas fazem uso da rede geral como destino do esgoto. Há ainda 5,1%, das residências que enviam seu esgoto diretamente para rios, lagos ou mar. Alternativas são apontadas por 2,8% dos entrevistados.
Tabela 4 - Tipo de Esgotamento sanitário |
|||||||
|
Rede Geral |
Fossa |
Fossa |
Direto em |
Esgoto à céu |
Outros |
Total |
São João da Barra |
15,3 |
66 |
11,9 |
4,9 |
1,3 |
0,6 |
100 |
Campos dos Goytacazes |
17,6 |
50,9 |
23,6 |
5,1 |
2,1 |
0,7 |
100 |
Macaé |
63,4 |
3,7 |
10,8 |
22,1 |
0 |
0 |
100 |
Fonte: Censo Pescarte (2016)
Moradias do Parque Aldeia, Campos dos Goytacazes
Fonte: própria autora
Em São João da Barra 66% dos entrevistados fazem uso de fossa rudimentar em suas moradias. Seguidamente, 15,3% das casas fazem uso da rede geral como destino do esgoto e 11,9% utilizam fossa séptica. Há ainda 4,9%, das residências que enviam seu esgoto diretamente. Sobre esta questão, temos o relato de uma pescadora de Campos dos Goytacazes:
“Estão falando que em 2022 virá um bairro legal pra cá. Eu ouvi dizer, mas não tenho muita esperança [...] aqui a principal dificuldade é com esgoto. Muita vala negra. E quando chove alaga tudo. A água fica na canela.” (Entrevista realizada em 2022)
Macaé, por sua vez, apresenta peculiares em relação ao acesso a rede geral de esgoto sanitário. De acordo com 63,4% dos entrevistados, suas residências possuem acesso a rede geral. Contudo, 22% lançam seu esgoto diretamente em rios, lagos ou mar. Há ainda 10,8% que fazem uso de fossa séptica e 3,7 de fossa rudimentar.
Outra questão que indagamos no Censo Pescarte foi sobre o acesso a bens, nos domicílios. Destacamos na tabela 5 abaixo o acesso a alguns bens, que podem ser indicativos de ampliação do consumo e renda.
Tabela 5 Acesso a bens
Fonte: Censo Pescarte (2019)
O acesso a carro está presente em 38,8% das casas dos entrevistados em Campos dos Goytacazes, e em 32,3% de São João da Barra. Apenas 25,6% dos entrevistados de Macaé apontaram ter acesso carro. Valores abaixo da média nacional, conforme dados da PNAD (2019), em que quase 50% dos domicílios possuem ao menos um carro.
Outra questão interessante é o acesso a geladeira com freezer. 58,6% dos domicílios em Campos afirmaram não ter acesso a este bem, enquanto em SJB este dado foi apontado por 59,3% dos entrevistados. Neste quesito há uma significativa melhora no municio de Macaé: 69,9% dos entrevistados apontaram ter em sua casa geladeira com freezer.
O ar condicionado estava presente em apenas 6% dos domicílios entrevistados em Campos, 6,8% em São João da Barra e 11% em Macaé. O acesso ao computador/notebook no domicílio foi apontado por 16,6% dos pescadores entrevistados em Campos e por 23,5% em SJB, e 39,9 em Macaé. Campos e SJB ficaram abaixo da média nacional, uma vez que a Pnad (2019) aponta a existência de microcomputador em 40,6% das residências brasileiras.
Comparativamente, podemos observar que os pescadores(as) entrevistados no município de Macaé apresentaram um maior acesso a bens como geladeira com freezer, ar condicionado, computador e máquina de lavar. Em relação a moto e carro, Macaé ficou abaixo dos municípios de Campos e SJB.
Tais dados são sintomáticos das inúmeras vulnerabilidades e dificuldades apontadas por estes sujeitos durante aplicação do Censo (2015-2016) e nas entrevistas realizadas. Estas dificuldades se expressam no acesso a bens domiciliares, bem como no acesso a equipamentos e serviços públicos. Revisitamos estes dados, acompanhando estes dois municípios, e norteando pontos a serem desenvolvidos em nossas entrevistas.
A tabela 6 abaixo expressa a avaliação dos pescadores quanto ao acesso e disposição de serviços e equipamentos públicos nas áreas de saúde, educação e Cultura/Lazer nos três municípios. Podemos observar, que nos serviços de saúde e educação, há uma aprovação maior pelos pescadores (as) entrevistados no município de São João da Barra e Macaé. Tal aspecto se confirmou em nossas entrevistas, que apontaram, especialmente no município de SJB, novas oportunidades e investimentos no campo educacional, associadas a chegada do Porto do Açu.
Tabela 6 – Serviços e equipamentos públicos
Fonte: Censo Pescarte - Organização da autora
Comparativamente, podemos observar que o município de Campos apresentou os maiores números de serviços com nota 0 (zero). O caso do acesso ao serviço de Saúde, por exemplo, foi dado a nota 0 por parte de 37% dos pescadores entrevistados (frente a 11,6% para Macaé e 12,8% para SJB).
No caso do acesso e existência de equipamentos de cultura e lazer, as avaliações de ambos os municípios foram significativamente negativas, especialmente em Campos do Goytacazes. Neste quesito, 56,8% dos entrevistados de Campos deram nota 0 para o acesso equipamentos de cultura e lazer. De fato, constatamos em nossa pesquisa de campos, a carência de equipamentos, bem como de política de incentivo à cultura em ambos os municípios. Como aponta uma entrevistada de São João da Barra:
Porque... outra coisa que aqui em São João da Barra e as pessoas têm que ir até Campos pra ir a um shopping, pra ir a um cinema. Então por que não faz atividades na rua, bota um telão para as pessoas vir, assistir filme, comer pipoca, tomar um refrigerante, acho que falta essas coisas. O pescador, o que que ele faz? Ele sai pra pescar, final de semana ele fecha o rastro, a mulher fica em casa, ele bebeu cerveja e essa rotina aí que não passa muito disso. (Entrevista realizada em 2021 – Google meet)
De acordo com um pescador:
Nada. Em questão disso (lazer), é praticamente zero. A gente aqui (Atafona), a gente sai com qualquer pessoa, vai a um lugar e tal. Vai à praia, toma um banho, faz um peixe assado, churrasco, mas não tem nada assim da Prefeitura que possa ser um incentivo. (Entrevista realizada em 2021 – Google meet)
Para um pescador de Campos dos Goytacazes:
Aqui (Coroa) a gente fica abandonado pela prefeitura. Em termos de política...é como se a gente não existisse. Então, se o pescador não ocupar esse local ele não tem voz.” (Entrevista realizada em 2022)
Macaé, em contrapartida, apresentou um score mais elevado no que consiste ao acesso e avaliação de equipamentos de cultura e lazer: 47,4% deram nota 7 a 10 para este serviço.
Como podemos observar, os desdobramentos da ausência de políticas públicas, e a configuração de novas práticas urbanas, já podem ser sentidos pelos pescadores. Acompanharemos nesta pesquisa os impactos destas transformações urbanas sobre a vida e espaço de existência dos pescadores e pescadoras de ambos os municípios.
Estamos falando de municípios que experimentaram um aporte significativo de recursos provenientes da economia petrolífera (royalties e participações especiais) mas que ao que parece, perdeu oportunidades importantes de investimentos em políticas que ampliassem o acesso a condições mais justas de moradia, bem como de serviços, equipamentos públicos e políticas públicas. Trata-se ainda de municípios, especialmente SJB, que vislumbram expectativas de crescimento com a economia portuária. Mas, como aponta um pescador entrevistado:
“Então, como em todo lugar que cresce, tem o lado positivo e o lado negativo. À medida que cresce a economia, aí vêm peões para trabalhar aqui, vêm pessoas de fora trabalhar aqui. E hoje em dia dizer que a droga não existe e querer radicalizar a droga é uma coisa que é um pensamento ignorante. porque é inevitável, se vem o crescimento num local, numa sociedade e ela vem junto.” (Entrevista realizada em 2021 – Google meet)
Estes aspectos analisados nos permitiram sumarizar algumas questões importantes na configuração das vulnerabilidades e possíveis macroimpactos a serem acompanhados nesta pesquisa. Em nosso escopo chegamos ao seguinte mapa analítico, que nos permitirá compreender tais macroimpactos sofridos por estes municípios:
- Especulação e expansão imobiliária;
- Favelização e precarização das condições habitacionais;
- Ausência de políticas públicas de investimento em infraestrutura urbana,
acesso a equipamentos e serviços públicos;
- Processos de expulsão/reassentamento de famílias da pesca artesanal;
Partimos do pressuposto de uma economia política – petrolífera e portuária - com consequências importantes sobre os territórios de vida, trabalho e existência das famílias de pescadores artesanais do Norte Fluminense e Região dos Lagos. É necessário compreender tais processos e conceituá-los a fim de que tais realidades sociais sejam cientificamente analisadas.
Sobre tais conjunturas - processos de configuração de vulnerabilidades habitacionais, expropriação e expulsões (SASSEN, 2018) - , é preciso reafirmar o papel do Estado, no que consiste o acesso ao direito à moradia e à cidade, preceitos constitucionais que devem ser expressos por meio de políticas públicas.
Neste sentido, a melhoria das condições de moradia e acesso a equipamentos e serviços urbanos dos pescadores e pescadoras artesanais se articula a capacidade de atuação do Estado por meio de políticas públicas que cheguem a este grupo em favor de suas demandas e particularidades. Como temos acompanhado em nossa pesquisa, são muitas as necessidades apontadas por estes sujeitos: saneamento (acesso a água e esgoto), limpeza urbana, transporte – somada a pressão que dá sobre seus espaços de vida e existência, moradia e trabalho. Ainda é preciso evidenciar o aprofundamento da pobreza especialmente pós-pandemia – aspectos já evidenciado em nossas entrevistas – e pelas demais pesquisas desenvolvidas pelo PEA Pescarte, - bem como aumento da precariedade do padrão de urbanização destes espaços, com baixa capacidade de soluções habitacionais (seja via mercado, seja por acesso à programas e políticas públicas.
5. Considerações finais
Finalmente, este trabalho visa fornecer aos pescadores e pescadoras um diagnóstico quanto às suas condições de moradia e de acesso à políticas públicas, seus equipamentos e serviços públicos. Entendemos que isto faz parte de um processo formativo de construção de demandas coletivas e de empoderamento destes sujeitos na luta por seus direitos, aspecto incentivado e acompanhado pela atuação do Pescarte.
Tratamos, desta forma, de possibilidade de reivindicação e intervenção na agenda pública, por meio da organização comunitária que cobre o direito à moradia, à cidade e a um ambiente espacial e social mais justo e igualitário que atenda as necessidades das comunidades tradicionais da Pesca artesanal.
Qualquer ação sobre estes espaços precisa ser pautada na emancipação destes atores, ou seja, na capacidade de a comunidade de pesca artesanal estabelecer uma articulação com o poder público. Isto, por sua vez, deveria começar desde o planejamento, envolvendo, divulgando e discutindo a intervenção propiciando, sobretudo, poder de decisão, através de parceria e de empowerment. Considera-se, assim, não somente os recursos materiais, econômicos e técnicos na elaboração de um projeto habitacionais e urbanísticos sobre comunidades de pesca artesanal, mas também, os culturais e os simbólicos, (Lima,2007), aspectos importantíssimos especialmente em intervenção com comunidades tradicionais.
[1] A bacia geológica de Campos é a segunda maior produtora de petróleo do País, se estende do sul da cidade de Vitória (ES) até o Município de Arraial do Cabo (RJ). A região é rica em petróleo, o que propiciou a instalação de várias empresas nas últimas décadas, principalmente ligadas a exploração de óleo e gás natural.
[2] O Pescarte está circunscrito no Programa de Educação Ambiental da Bacia de Campos (PEA-BC) e atua na Linha A – Organização comunitária - conforme estabelece as diretrizes que compõe a NOTA TÉCNICA CGPEG/DILIC/IBAMA 001/10 que propõe a organização comunitária para a participação na gestão ambiental, no âmbito do licenciamento, visando o desenvolvimento de processos formativos junto ao público prioritário definido pelas diretrizes pedagógicas do IBAMA e identificado a partir dos resultados do Diagnóstico Participativo do PEA-BC realizado entre 2011 e 2012.
[3]. A pesquisa censitária possibilitou obter o perfil da pesca artesanal na região Norte Fluminense. Através da análise das variáveis coletadas foi possível entender a atividade da pesca artesanal na bacia de Campos, principalmente no que diz respeito à: caracterização familiar, identificação socioeconômica, moradia e avaliação de serviços e equipamentos públicos, trabalho e trajetória profissional, caracterização da atividade pesqueira, gênero, educação ambiental e (in)segurança alimentar.
[4]Os valores variam segundo o município, a comunidade e o tipo de pescado que será beneficiado.