Agrofinanceirização do setor sucroenergético no Brasil: Uma análise geográfica


Daniel Féo Castro de Araújo
Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade de Brasília (UnB).

Fernando Luiz Araújo Sobrinho
Doutor em Geografia da Universidade Federal de Uberlândia, Prof. em Geografia da Universidade de Brasília

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1. Introdução

O presente estudo almeja examinar, profundamente, as dinâmicas da agrofinanceirização no âmbito do setor sucroenergético no Brasil, sob uma perspectiva geográfica. O objetivo primordial é estabelecer uma conceituação precisa das intricadas contradições oriundas da financeirização nesse setor específico, mediante uma análise refinada da agrofinanceirização. Sua hipótese consiste em entender como a agrofinanceirização tem afetado o setor sucroenergético e como essas contradições se relacionam com a modernização agrícola, sendo que é preciso analisar as principais contradições geradas como a financeirização do agronegócio e a intensificação da modernização agrícola, e como elas se relacionam com o contexto mais amplo da globalização e da reestruturação produtiva.

Diante desse contexto, questionamos: Qual é a lacuna teórica na geografia agrária no que concerne à aproximação entre as temáticas da mundialização e internacionalização dos capitais e o desenvolvimento do conceito de agrofinanceirização, visando uma análise geográfica mais precisa e abrangente, notadamente no contexto do setor sucroenergético? Como a agrofinanceirização se insere no contexto da internacionalização crescente da produção no setor sucroenergético? Quais são as principais dimensões interligadas de natureza econômica, política e geográfica que compõem a agrofinanceirização no setor sucroenergético?

Agrofinanceirização é um conceito que emerge do contexto de reflexão sobre o movimento do capital e as configurações do capitalismo na contemporaneidade, especialmente influenciado pela produção teórica do economista francês François Chesnais (1996, 2010, 1998). Ao abordar o capitalismo sob a perspectiva da mundialização do capital, Chesnais (2010) destaca aspectos da internacionalização de capitais, incluindo os âmbitos produtivo, comercial e financeiro, bem como a ascensão do capital financeiro e especulativo sobre o capital produtivo. Ele enfatiza a centralidade do capital financeiro na acumulação, a configuração dos mercados e da economia mundial, e discute a crise contemporânea do capital como resultado de sua mundialização.

Para Chesnais, (1998) a mundialização capitalista representa um novo contexto histórico, caracterizado por profundas transformações e contradições do capital. Essas mudanças não apontam necessariamente para a constituição de uma sociedade pós-capitalista ou pós-industrial, mas sim abrem uma nova fase no desenvolvimento do sistema produtor de mercadorias. Nesse cenário, o conceito de agrofinanceirização ganha destaque ao analisar a inserção financeira e especulativos no setor agrícola e agroindustrial, enfatizando as relações internacionais e internas que moldam a vida social em suas diversas dimensões econômicas e não econômicas. A agrofinanceirização é um fenômeno complexo e interligado à mundialização do capital (ARAÚJO, 2023), que influencia e reconfigura as dinâmicas do agronegócio na contemporaneidade.

Para compreender a estratégia da financeirização do agronegócio, é importante considerar as transformações ocorridas no modo de produção capitalista a partir da década de 1970 (HIRST; THOMPSON, 1996). Nesse período, o modelo fordista de produção entrou em crise e foi substituído por um modelo flexível de acumulação, baseado na hipermobilidade do capital em suas diferentes formas (HARVEY, 1990). Esse modelo requer um meio geográfico densamente equipado com tecnologia, ciência e informação (SANTOS, 2009), que é resultado da relação dialética entre forma e conteúdo nas transformações sociais. Essas mudanças foram fundamentais para a expansão do capital financeiro na agricultura brasileira, que se beneficiou diretamente do conjunto de instrumentos financeiros disponíveis, incluindo políticas de crédito rural com elevados montantes de recursos e generosos subsídios. No entanto, nos últimos anos, as práticas financeiras que regem o sistema agronegócio têm sofrido mudanças quantitativas e qualitativas substanciais, evidenciando uma dinâmica mais profundo e complexo de financeirização (ARAÚJO, 2023).

As operações financeiras, como a securitização de dívidas agrícolas, a especulação com commodities e a criação de derivativos ligados a produtos agropecuários, passam a exercer uma influência cada vez mais abrangente sobre as atividades produtivas e comerciais do agronegócio (ARAÚJO; ARAUJO SOBRINHO 2021). Nesse contexto, instituições financeiras, fundos de investimento e outros agentes do mercado encontram no setor agroindustrial uma nova e atrativa arena para alocação de capitais (ARAÚJO, 2023). A busca por lucros rápidos e atraentes acaba por impulsionar a circulação de recursos entre o mercado financeiro e o agronegócio, estabelecendo um ciclo dinâmico de interações. Esse ciclo, contudo, não é isento de tensões e desequilíbrios, podendo gerar concentração de terras e de poder econômico, bem como alterar padrões produtivos, muitas vezes comprometendo a sustentabilidade ambiental e social do setor (ARAÚJO, 2023).

Diante disso, agrofinanceirização promove reconfigurações no uso da terra e na distribuição das atividades produtivas no espaço geográfico rural. As decisões sobre o que e como produzir passam a ser influenciadas por lógicas financeiras, priorizando commodities de maior rentabilidade no curto prazo, muitas vezes em detrimento da diversificação e da segurança alimentar. Essa situação acentua as desigualdades sociais, uma vez que produtores de pequena escala podem se tornar vulneráveis às oscilações do mercado financeiro, enfrentando dificuldades para acessar crédito e inovações tecnológicas.

Nesse contexto, a expansão geográfica do capital no setor sucroenergético encontra-se estreitamente interligada à imposição de padrões produtivos e tecnológicos, cujo desiderato é a amplificação da produtividade e a maximização dos rendimentos, tudo isso aproveitando-se das generosas subvenções e dos incentivos fiscais alocados pelos governos locais (ARAÚJO, 2023). Essa imposição de padrões é mediada por corporações multinacionais que, através de suas subsidiárias, exercem controle absoluto sobre a produção e os mercados em escala global, imprimindo uma lógica produtiva que primordialmente reverbera a acumulação de capital, negligenciando, entretanto, as fundamentais preocupações com a sustentabilidade ambiental e a equidade social (HEIDRICH, 2008). Destarte, emerge com destaque a mobilidade dos capitais financeiros e das mercadorias no âmbito do setor sucroenergético, cuja fluidez se coloca como uma das marcantes características inerentes da agrofinanceirização.

A metodologia da atual investigação é caracterizada por uma abordagem rigorosa e sistemática para entender a temática da agrofinanceirização no setor sucroenergético. Inicialmente, conduzimos uma revisão bibliográfica abrangente, selecionando fontes acadêmicas relevantes, como livros, artigos, dissertações e teses, que abordam direta ou indiretamente o fenômeno da agrofinanceirização. A coleta de dados bibliográficos ocorreu por meio de pesquisas em bibliotecas físicas e digitais, assim como em bancos de dados especializados, garantindo uma ampla gama de informações e perspectivas teóricas para embasar nossa análise. A pesquisa se fundamentou em fontes conceituais que discutem os fenômenos da mundialização, internacionalização e agrofinanceirização, a fim de construir uma base sólida para o desenvolvimento do referencial teórico.

A primeira seção apresentará os elementos conceituais fundamentais para a análise geográfica da agrofinanceirização, considerando as interconexões entre território, financeirização e mundialização. Para tanto, serão discutidos os conceitos de território e sua relação com a produção agrícola, bem como a crescente financeirização da economia global e sua influência na agricultura. Também serão abordados os fenômenos da mundialização e internacionalização dos capitais, que têm impactos profundos na ordem social, política, econômica e financeira dos espaços de produção. Por fim, será apresentado o conceito de agrofinanceirização, que representa a crescente financeirização da agricultura e a integração entre os mercados financeiros e agrícolas, e que são o objeto de estudo desta pesquisa.

A segunda sessão analisará a relação entre a esfera territorial e a mundialização no contexto da agrofinanceirização do setor sucroenergético. Mais especificamente, a sessão busca examinar como a financeirização tem afetado a organização do espaço geográfico no qual a produção de açúcar e etanol está inserida, considerando as múltiplas dimensões desse fenômeno e as perspectivas dos diversos atores envolvidos. Para isso, são discutidos temas como a concentração de terras e recursos naturais nas mãos de grandes empresas e investidores, a intensificação da seletividade de usos do território, a expansão da monocultura em detrimento de outras atividades econômicas, a formação de redes de produção e distribuição globalizadas e a influência de fatores políticos e econômicos na configuração do espaço geográfico.

Assim, o artigo apresenta diversas contribuições relevantes para a ciência geográfica. Em primeiro lugar, ele amplia o entendimento dos mecanismos de agrofinanceirização que têm transformado significativamente o setor sucroenergético brasileiro, o que é essencial para a compreensão das dinâmicas econômicas e territoriais contemporâneas. Em segundo lugar, o artigo propõe uma conceituação precisa das intricadas contradições oriundas da financeirização no setor sucroenergético, mediante uma análise refinada da agrofinanceirização. Identificar as principais dimensões interligadas da agrofinanceirização no setor sucroenergético, tais como a financeirização da produção, a financeirização da comercialização, a financeirização da terra e a financeirização da gestão. Por fim, o artigo aponta para a necessidade de se desenvolver uma abordagem crítica e reflexiva sobre a agrofinanceirização, que leve em conta as implicações socioeconômicas e territoriais desse fenômeno, bem como as possibilidades de resistência e transformação.

2. Os processos de agrofinanceirização no setor sucroenergético: Estratégias e implicações 

A mundialização, a financeirização e o neoliberalismo são processos interdependentes e interconectados que afetam o uso do território. A hegemonização da racionalidade neoliberal (DARDOT; LAVAL, 2016) estabelece uma relação dialética com a mundialização financeira (CHESNAIS, 1998), e a normatização da liberalização financeira e da globalização interfere na vida de todos os agentes sociais que fazem parte do território (SANTOS, 2014). Essas transformações incluem novos sistemas de objetos e novas técnicas produtivas, bem como mudanças políticas e ideológicas que permitem o estabelecimento de novos sistemas de ações. A hipermobilidade do capital, a flexibilidade da produção e a possibilidade de atuação transnacional das firmas multinacionais são possíveis através de um meio geográfico denso em técnica, ciência e informação (o meio técnico-científico-informacional) que é, segundo (SANTOS 2012), a aparência geográfica da globalização. Essas transformações das formas geográficas materiais (sistemas de objetos) e da dinâmica das ações no conjunto das sociedades (sistemas de ações) são intrinsicamente relacionadas com mudanças estruturais do próprio modo de produção capitalista e, consequentemente, das formas de uso do território.

De acordo com Alves (1999), o período em que a mundialização se instaura como forma dominante de acumulação é a partir da recessão de 1974 a 1975, aliada às políticas neoliberais incentivadas por Estados capitalistas e materializadas em ações de desregulamentação econômica, privatização e liberalização de mercados. A partir da década de 1970, a mundialização se tornou um fenômeno cada vez mais presente na economia mundial, marcando uma nova fase de desenvolvimento do sistema econômico, caracterizado pelo predomínio da dimensão que ultrapassa o quadro nacional e vai além da dimensão internacional tradicional (Furtado, 1999).

Para Santos (2004, 2009), o motor único é a mundialização, que se realiza nos lugares graças à unicidade das técnicas produtivas. Esse motor único é possível graças a um conjunto de internacionalizações dentro da mundialização que acirra a competividade como nunca antes visto, na qual os que não têm poder de concorrência acabam sendo engolidos e extinguidos. A unicidade técnica é possível pela convergência dos momentos, que se efetiva pela possibilidade de conhecimento e integração entre os lugares produtivos e os lugares de comando e consumo. Ou seja, o motor único é a globalização econômica, que se baseia na padronização das técnicas produtivas e na criação de padrões de produção e consumo difundidos em escala global para dar legitimidade a superprodução do sistema capitalista, que coloca em competitividade as economias nacionais, imperando a lógica das empresas: a lucratividade.

Segundo a perspectiva de Furtado (1999), a mundialização é um processo histórico que se iniciou com a expansão europeia no século XV e que se intensificou a partir do século XIX com a revolução industrial e a formação do sistema capitalista mundial. Para Furtado (1999), a mundialização é uma integração econômica e cultural que se dá em escala global e que tem como principal característica a interdependência entre as nações e regiões do mundo. Furtado (1999) argumenta que a mundialização é contraditória, que gera tanto benefícios como desigualdades e conflitos. Por um lado, a mundialização levar a um aumento da produtividade, da eficiência e da inovação tecnológica, além de possibilitar a difusão de valores e culturas entre os povos. Por outro lado, a mundialização gerar desigualdades econômicas e sociais, concentrando poder e riqueza nas mãos de poucos países e empresas, além de gerar conflitos culturais e políticos entre as nações. Assim, para Furtado (1999), a mundialização é complexa e contraditório que deve ser analisado de forma crítica, levando em consideração tanto seus aspectos positivos como negativos, e buscando formas de promover uma integração mais justa e equilibrada entre as nações e regiões do mundo.

Na concepção de Benko (1996), a mundialização é um método de acumulação flexível que se caracteriza pela hipermobilidade do capital, tendendo a uma existência nomádica, e pela integração flexível de uma pluralidade irredutível de estratégias de exploração e de modos de dominação que põe em concorrência os assalariados, no seio de uma imensa jornada de trabalho em escala planetária. Segundo Benko, a mundialização compreende quatro dimensões espaciais: a mobilidade de capital, a formação e relação entre blocos econômicos, a transnacionalização da economia e do comércio, e o papel intervencionista do Estado no território. Essas dimensões estão interligadas e se reforçam mutuamente, criando um sistema econômico globalizado que se baseia na lógica do capitalismo e na busca por maximização dos lucros por meio da exploração de recursos naturais, da produção de bens e serviços e da circulação de mercadorias em escala global.

Chesnais (1996), a expressão "globalização" foi cunhada nas escolas de administração de empresas norte-americanas e amplamente difundida pelas multinacionais, a partir dos anos 1980. Essa expressão é impregnada de ideologias e transmite a ideia de homogeneização dos lugares e o fim das fronteiras, discurso que dentro da ideologia política do neoliberalismo faz todo o sentido. Nessa lógica, a expressão "global" remete à estratégia traçada por grandes empresas, em especial as detentoras de monopólios, em que sua atuação se pauta em responder as seguintes questões: qual parte do globo me é possível explorar? Em que parte do globo posso expandir meu mercado? Por outro lado, a expressão "mundialização" expressa um complexo de integração seletiva de frações do território com delimitações estabelecidas a partir da possibilidade concreta de acumulação, que de modo geral, mas não exclusivo, ocorre com a exploração da força de trabalho. Assim, a diferença entre mundialização e globalização, segundo (CHESNAIS, 1996) está na forma como esses termos são utilizados. Enquanto a globalização é uma expressão que remete à estratégia das grandes empresas de explorar e expandir seus mercados em escala global, a mundialização é mais ampla e complexa de integração seletiva de frações do território com delimitações estabelecidas a partir da possibilidade concreta de acumulação.

Em Heidrich (2008), a configuração da mundialização impulsiona o espaço global está relacionada a transnacionalização das economias. Isso se refere à crescente interconexão e interdependência entre as economias nacionais, que se dá por meio da expansão das empresas transnacionais e da intensificação dos fluxos de comércio, investimento e tecnologia entre os países. A transnacionalização das economias é um fenômeno antigo, mas que ganha novos contornos na atual fase da mundialização.

O que se deve, segundo Heidrich, (2008), em grande parte às políticas de regulação criadas pela Organização Mundial do Comércio (OMC) e outras instituições internacionais, que têm incentivado a liberalização dos mercados e a abertura das economias nacionais ao comércio e ao investimento estrangeiro. A transnacionalização das economias tem implicações significativas para os países e regiões do mundo, especialmente para aqueles que são mais vulneráveis aos impactos da competição global.

As relações internacionais entre as nações se dão de diversas formas, dependendo do poderio econômico e político de cada país e da dinâmica do Sistema de Estados Nacionais e do Sistema de Economias Internacionais. Esses dois sistemas se desenvolvem de forma complementar e contraditória, o que gera uma série de desafios e conflitos para as nações e regiões do mundo. O Sistema de Estados Nacionais se refere ao conjunto de países que se organizam em torno de um Estado soberano, que detém o poder político e territorial sobre um determinado território. Cada Estado Nacional tem suas próprias leis, instituições e políticas, que são voltadas para a promoção do bem-estar e da segurança de seus cidadãos. Por outro lado, o Sistema de Economias Internacionais se refere ao conjunto de relações econômicas que se estabelecem entre os países e regiões do mundo, por meio do comércio, do investimento, da tecnologia e dos fluxos financeiros.

Esse sistema é caracterizado pela interdependência econômica entre as nações, que buscam ampliar seus mercados e reduzir seus custos por meio da produção e do comércio em escala global. Assim, o Sistema de Estados Nacionais e o Sistema de Economias Internacionais se desenvolvem de forma complementar, na medida em que a circulação de capitais entre os Estados é necessária para a mundialização da economia. No entanto, eles também se desenvolvem de forma contraditória, na medida em que as relações econômicas muitas vezes geram desigualdades e conflitos entre as nações, além de desafiar a soberania e a autonomia dos Estados Nacionais. Dessa forma, o cenário mundial é marcado pela tensão entre esses dois sistemas, que buscam conciliar a integração econômica global com a preservação da identidade e da autonomia dos Estados Nacionais. Essa tensão é um dos principais desafios da mundialização, que exige uma reflexão crítica sobre as formas de promover uma integração mais justa e equilibrada entre as nações e regiões do mundo.

As relações internacionais ocorrem (HEIDRICH, 2008) em geral de duas formas: numa relação de simetria comercial entre países de semelhante poderio econômico; e numa relação de assimetria financeira em que países de elevada envergadura econômica exploram os recursos primários de países emergentes e, posteriormente, fazem-nos consumidores de produtos manufaturados. Essas relações muitas vezes geram desigualdades e conflitos entre as nações, na medida em que alguns países se beneficiam mais do que outros da integração econômica global. As relações internacionais também são influenciadas por fatores políticos, culturais e ideológicos, que podem gerar tensões e conflitos entre as nações. No entanto, as relações internacionais também podem ser marcadas pela cooperação e pelo diálogo entre as nações, na busca de soluções conjuntas para problemas globais como a mudança climática, a pobreza e a desigualdade. Nesse sentido, as relações internacionais podem ser vistas como um espaço de negociação e construção de consensos entre as nações, visando a promoção do bem-estar e da segurança de todos os povos.

Conforme Heidrich (2008), as empresas multinacionais são um dos principais atores da mundialização, na medida em que elas têm a capacidade de se expandir geograficamente e de se integrar em diferentes mercados e cadeias produtivas em escala global pela sua capacidade de produzir e comercializar bens e serviços em diferentes países e regiões do mundo, por meio da criação de filiais, subsidiárias e alianças estratégicas com outras empresas. No contexto da mundialização, as empresas multinacionais são influenciadas por uma série de fatores, como a intensificação da competição global, a ampliação dos mercados financeiros, a transnacionalização das economias e a evolução das tecnologias de informação e comunicação. Esses fatores têm impulsionado a expansão das empresas multinacionais em escala global, gerando uma série de desafios e oportunidades para as nações e regiões do mundo.

Por outro lado, segundo Michalet (1984), as empresas multinacionais, ao influenciarem as políticas econômicas e sociais dos países em que atuam, são agentes principais da mundialização por meio da sua capacidade de investimento, produção e comércio em escala global. Assim, as empresas multinacionais são um dos principais atores da mundialização, que têm impulsionado a expansão das economias nacionais e regionais em escala global, gerando uma série de desafios e oportunidades para as nações e regiões do mundo. No entanto, as empresas multinacionais também podem gerar desigualdades econômicas e sociais, concentrando poder e riqueza nas mãos de poucas empresas e países, e ampliando a competição entre as economias nacionais e regionais.

A mobilidade do capital é um elemento central na compreensão da mundialização contemporânea, pois permite que o capital circule livremente pelo mundo, buscando as melhores oportunidades de investimento e maximizando os lucros das empresas e dos investidores. Esse fenômeno é impulsionado pela transnacionalização das economias e pela evolução das tecnologias de informação e comunicação, que permitem que as empresas e os investidores tenham acesso a informações em tempo real sobre os mercados e as oportunidades de investimento em todo o mundo. A mobilidade do capital é facilitada pela liberalização dos mercados financeiros e pela criação de novos instrumentos financeiros, que permitem a gestão mais eficiente dos riscos e das oportunidades de investimento.

Harvey (2012) chama de "acumulação flexível" a mobilidade do capital na mundialização contemporânea. Assim, apoia-se na flexibilidade do trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo, e é caracterizado pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional.

Segundo Chesnais (1996), A financeirização da economia constitui como uma das dimensões da mundialização financeira. Segundo Chesnais (1996), a financeirização da economia é caracteriza pela crescente importância do setor financeiro na economia global, em detrimento dos setores produtivos e da economia real. A partir dos anos 1970, com a crise do sistema monetário internacional e a adoção de políticas neoliberais que incentivaram a desregulamentação financeira e a liberalização dos mercados de capitais. A partir desse momento, os fluxos financeiros internacionais se intensificaram, criando uma rede global de interdependência financeira que se tornou cada vez mais complexa e sofisticada.

Assim, essa interconexão é resultado da intensificação dos fluxos financeiros internacionais, que se tornaram cada vez mais complexos e sofisticados, envolvendo uma ampla gama de instrumentos financeiros, como ações, títulos, derivativos, entre outros. A financeirização da economia está relacionada à crescente importância dos investidores financeiros na economia global, que passaram a ter um papel cada vez mais central na alocação de recursos e na tomada de decisões estratégicas das empresas. Isso tem levado a uma maior concentração de poder nas mãos dos investidores financeiros e a uma maior fragilização dos Estados nacionais, que têm cada vez menos capacidade de regular e controlar os fluxos financeiros internacionais.

Conforme Chesnais (2010, p. 105), as instituições financeiras atuam com base em aplicações financeiras com ganhos futuros, o que promove uma acumulação de capital fictício. Esse termo se refere aos títulos que foram emitidos no momento dos empréstimos em dinheiro a entidades públicas ou a empresas, ou como expressão da participação dos primeiros participantes no financiamento do capital de uma empresa. Para seus detentores, esses títulos, ações e obrigações representam um "capital" do qual eles esperam um rendimento regular sob a forma de juros e dividendos (uma "capitalização") e que eles desejam poder vender em um espaço de tempo muito curto, seja em caso de necessidade de dinheiro, seja para o aplicar de maneira ainda mais rentável.

Essas instituições financeiras, como fundos de investimento, seguradoras, corretoras de títulos e capitais, bancos e outras instituições financeiras, atuam como intermediárias entre os investidores e os tomadores de empréstimos, permitindo que os investidores possam aplicar seu dinheiro em diferentes tipos de títulos e ativos financeiros, como ações, obrigações e certificados. Esses investimentos geram ganhos futuros para os investidores, que esperam obter um retorno financeiro sobre o capital investido. Por sua vez, os tomadores de empréstimos utilizam esses recursos para financiar suas atividades produtivas, como a produção de bens e serviços, o que contribui para o desenvolvimento econômico.

A consolidação do mercado de bolsa de valores, como mencionado no Chesnais (2010), contribui para a aceleração da concentração e centralização do capital, pois permite que grandes investidores possam adquirir grandes quantidades de ações e outros ativos financeiros, concentrando assim o capital em poucas mãos. A especulação financeira leva a uma valorização artificial dos ativos financeiros, o que gerar bolhas especulativas e crises financeiras. Dessa forma, o capital fictício é uma forma de capital que se descola da economia real e gera instabilidade financeira. A relação entre o capital fictício e a consolidação do mercado de bolsa de valores é importante para entender como a especulação financeira contribui para a concentração e centralização do capital.

A agrofinanceirização ganhou força com a globalização e a financeirização da economia, impactando diretamente a agricultura. De tal modo, caracteriza pela crescente influência do setor financeiro na agricultura, em detrimento dos setores produtivos e da economia real. A partir dos anos 1980, com a adoção de políticas neoliberais que promoveram a desregulamentação financeira e a liberalização dos mercados agrícolas, os fluxos financeiros internacionais aumentaram, criando uma complexa rede de interdependência financeira em escala global (ARAÚJO, 2023). A agrofinanceirização é uma das dimensões da financeirização da economia, pois está diretamente ligada à interconexão dos mercados financeiros globais. Essa interconexão envolve diversos instrumentos financeiros, como ações, títulos e derivativos, tornando-se cada vez mais complexa. A agrofinanceirização tem levado a uma reorganização do espaço agrícola, com a concentração de terras e recursos nas mãos de grandes empresas agrícolas e investidores financeiros, o que tem impactos significativos no território e na vida das populações rurais e urbanas.

A partir desses pressupostos teóricos acreditamos ter mostrado que a agrofinanceirização é a escala de análise mais pertinente para análise do setor sucroenergético em termos de: 

1. Contextualização do setor sucroenergético: apresentação do histórico e das características do setor sucroenergético, incluindo a sua importância econômica e social, os principais agentes envolvidos e as dinâmicas de produção e comercialização. 

2. Identificação dos artifícios de agrofinanceirização: análise dos procedimentos de agrofinanceirização presentes no setor sucroenergético, incluindo a utilização de instrumentos financeiros, a concentração de terras e recursos naturais nas mãos de grandes empresas e investidores, a intensificação da seletividade de usos do território e a busca por soluções mercadológicas para as implicações ambientais do modo de produção capitalista. 

3. Análise dos impactos da agrofinanceirização: avaliação dos impactos da agrofinanceirização no setor sucroenergético, incluindo os impactos econômicos, sociais e ambientais. Entre os impactos econômicos, podem ser considerados o aumento da concentração e centralização do capital, a redução da participação de pequenos produtores e a intensificação da competição entre os agentes do setor. Entre os impactos sociais, podem ser considerados a exclusão de grupos sociais menos favorecidos e a perda de autonomia dos produtores rurais. Entre os impactos ambientais, podem ser considerados a intensificação do uso de agrotóxicos, a degradação dos solos e a redução da biodiversidade. 

4. Identificação de alternativas à agrofinanceirização: apresentação de alternativas à agrofinanceirização no setor sucroenergético, incluindo a valorização da agricultura familiar, a promoção da agroecologia e da produção orgânica, a diversificação das atividades produtivas e a busca por soluções coletivas e participativas para os desafios enfrentados pelo setor. 

5. Conclusões e recomendações: apresentação das principais conclusões da análise e das recomendações para a promoção de um setor sucroenergético mais justo, sustentável e democrático, que leve em consideração os interesses dos diversos agentes envolvidos, incluindo produtores, trabalhadores, consumidores e comunidades locais. As recomendações podem incluir a promoção de políticas públicas que incentivem a agricultura familiar e a produção sustentável, a regulação dos mercados financeiros e a promoção da transparência e da participação social nas decisões relacionadas ao setor sucroenergético. É importante destacar a necessidade de uma abordagem interdisciplinar e participativa para a análise da agrofinanceirização no setor sucroenergético, que leve em consideração as múltiplas dimensões do fenômeno e as perspectivas dos diversos atores envolvidos.

Assim, apresentamos uma abordagem metodológica qualitativa e interdisciplinar para a análise da agrofinanceirização no setor sucroenergético. A partir de análise geográfica que permite analisar a interdependência espacial e territorial das dinâmicas envolvidas na financeirização da produção, bem como avaliar as consequências socioeconômicas e ambientais. Adotamos uma abordagem participativa que leva em consideração as perspectivas dos diversos atores envolvidos no setor sucroenergético, incluindo produtores, empresas, investidores, governos e sociedade civil. A abordagem metodológica que adotamos permite uma análise aprofundada e crítica da agrofinanceirização no setor sucroenergético, considerando suas múltiplas dimensões e perspectivas. A análise geográfica e a abordagem participativa são ferramentas valiosas para meditar a complexidade e interdependência das dinâmicas envolvidas na financeirização da produção e para promover uma produção mais justa, sustentável e inclusiva.

3. As relações de poder e conflito na esfera territorial do setor sucroenergético 

A análise da agrofinanceirização no setor sucroenergético requer uma abordagem interdisciplinar e participativa que considere as múltiplas dimensões do fenômeno e as perspectivas dos diversos atores envolvidos. Isso significa que é necessário adotar uma visão ampla e integrada que leve em conta tanto os aspectos econômicos e financeiros quanto os sociais, políticos e geográficos envolvidos na produção sucroenergética. É imprescindível destacar que a agrofinanceirização está inserida em um contexto mais amplo de mundialização e reestruturação produtiva, o que implica em uma conexão entre as dinâmicas locais e globais. Logo, a análise da agrofinanceirização no setor sucroenergético deve considerar tanto as particularidades locais quanto as influências globais, a fim de abarcar de forma mais precisa e abrangente as contradições provocadas por essa dinâmica.

O território desempenha uma função na lógica da internacionalização, pois é a partir dele que se estabelecem as relações econômicas e políticas entre os diferentes agentes envolvidos no procedimento. A internacionalização da produção, por exemplo, implica na expansão das áreas de produção, seja com a criação de novas unidades produtivas ou na fragmentação da produção, na compra de matérias-primas e insumos de fornecedores cada vez mais distantes e da formação dos mercados consumidores em escala mundial. Ademais, a mobilidade dos capitais e das unidades produtivas é importante para a viabilidade econômica das firmas internacionais a induzir à migração desses capitais para outras áreas que atendam os critérios fisiográficos, fiscais e produtivos para se instalarem por mais um curto período. Por outro lado, a normatização da produção e a facilitação das barreiras de entrada fazem com que o território seja disputado por interesses internacionais pautados na minimização dos custos e nos baixos riscos financeiros, elementos que não coadunam com os interesses locais de apropriação e uso do território, visto como abrigo para pequenos produtores e empresas familiares. Assim sendo, o território é um elemento central na lógica da internacionalização, pois é a partir dele que se estabelecem as relações econômicas e políticas que moldam as dinâmicas territoriais contemporâneas.

Milton Santos, em sua obra "Por uma Geografia Nova" (1986), propôs uma abordagem crítica da esfera territorial, buscando entender como as relações de poder se manifestam no espaço e como essas relações podem gerar desigualdades e conflitos. Segundo Santos (1986), a esfera territorial é evocada para garantir a acumulação de capital, ou seja, para garantir que determinados grupos tenham vantagens em relação a seus concorrentes. Essas vantagens podem ser geográficas, corporativas, tecnológicas, culturais, entre outras, e são utilizadas para maximizar os lucros das empresas e dos investidores. 

Deste modo, a dinâmica territorial do setor sucroenergético é influenciada por fatores externos, como as políticas públicas, as demandas do mercado internacional e as mudanças climáticas. Por isso, podemos perceber que a dinâmica territorial do setor sucroenergético envolve diferentes atores sociais que estabelecem relações de poder e conflito em torno do uso e da ocupação do espaço, o que provoca impactos socioambientais negativos e desigualdades territoriais. Nesse sentido, é importante que as políticas públicas e as ações coletivas busquem promover uma gestão territorial mais justa e sustentável, que leve em conta as diferentes dimensões sociais, econômicas e ambientais envolvidas na produção sucroenergética. Dessa forma, será possível construir um território mais equilibrado e democrático, que atenda às necessidades e demandas dos diferentes atores sociais envolvidos na dinâmica territorial do setor sucroenergético.

Por sua vez, de acordo com Raffestin (1993), o território é entendido como um espaço geográfico que é apropriado e organizado por um grupo social ou político, que estabelece regras e normas de uso e ocupação do espaço, e que constrói uma identidade territorial baseada em suas atividades e relações sociais. Por sua vez, o setor sucroenergético, se apropria e organiza o espaço geográfico por meio da produção de cana-de-açúcar e da fabricação de açúcar, etanol e outros subprodutos. Essa apropriação e organização do espaço envolve a construção de infraestruturas, como estradas, usinas e armazéns, a delimitação de áreas de plantio e produção, a definição de regras e normas de uso e ocupação do solo, e a imposição de uma identidade territorial baseada na produção sucroenergética. Consequentemente, podemos incluir a partir do autor que o setor sucroenergético em se apropria e organiza o espaço geográfico por meio da produção de cana-de-açúcar e da fabricação de açúcar, etanol e outros subprodutos, estabelecendo regras e normas de uso e ocupação do espaço e construindo uma identidade territorial baseada na produção sucroenergética.

No setor sucroenergético, essas concepções territoriais permitem abarcar as diferentes relações de poder e conflito estabelecidas entre os atores sociais envolvidos na produção sucroenergética, bem como as diferentes identidades territoriais construídas por esses atores e as regras e normas de uso e ocupação do espaço estabelecidas por eles. Dessa forma, a análise do território no setor sucroenergético deve levar em consideração as diferentes relações de poder e conflito estabelecidas entre os produtores de cana-de-açúcar, as usinas de processamento, os trabalhadores rurais, as comunidades locais e o Estado, bem como as diferentes identidades territoriais construídas por esses atores e as regras e normas de uso e ocupação do espaço estabelecidas por eles.

Haesbaert (2004) apresenta uma definição do conceito de território a partir da multiterritorialidade, que envolve três aspectos: político, simbólico e econômico podem ser aplicados ao setor sucroenergético de diversas maneiras. No aspecto político, o território pode ser visto como um espaço delimitado e controlado pelo Estado, que estabelece políticas públicas para o setor sucroenergético, como incentivos fiscais e investimentos em infraestrutura. Já no aspecto simbólico, o território pode ser entendido como produto da apropriação subjetiva do imaginário, ou seja, como as representações culturais e sociais que as pessoas têm sobre o setor sucroenergético e sua relação com o espaço, como a identidade regional e a memória coletiva. Por fim, no aspecto econômico, o território pode ser visto como fonte de recursos no embate entre classes sociais e na relação capital-trabalho, ou seja, como o setor sucroenergético se insere na divisão territorial do trabalho e como as relações econômicas afetam o espaço em que ele se desenvolve, como a concentração de terras e a exploração do trabalho.

De acordo com Michalet (2003), a soberania territorial nacional é subjugada por uma soberania econômica mundial na medida em que as relações econômicas internacionais são dominadas por um pequeno grupo de países desenvolvidos, que controlam os fluxos de comércio, investimento e tecnologia em escala global. Essa dominação econômica induze à perda de autonomia e poder decisório dos países periféricos, que ficam sujeitos às imposições e interesses dos países centrais. No caso do setor sucroenergético, essa dinâmica territorial envolve diferentes atores sociais, como os produtores rurais, as usinas de processamento, as empresas exportadoras, os consumidores finais e o Estado, que estabelecem relações de poder e conflito em torno da produção, do comércio e da regulação do setor.

No entanto, essas relações de poder e conflito também são influenciadas por fatores externos, como as políticas públicas, as demandas do mercado internacional e as mudanças climáticas, que podem afetar a dinâmica territorial do setor sucroenergético em escala global. Por exemplo, podemos considerar a influência das políticas públicas e das demandas do mercado internacional na produção e no comércio de biocombustíveis, como o etanol, que é um dos principais produtos do setor sucroenergético. Essas políticas e demandas podem levar à concentração de renda e poder em alguns países produtores, em detrimento de outros países periféricos, que ficam sujeitos às imposições e interesses dos países centrais.

Estado brasileiro, em suas escalas político-administrativas (federal, estadual e municipal), sempre teve uma presença muito forte no desenvolvimento do setor sucroenergético. Desde o segundo período de desenvolvimento do setor (1930-1990), com os diversos programas de fomento (PLANALSUCAR, Programa de Racionalização da Agroindústria Açucareira, PROASAL, PROALCOOL) e outras formas de intervenção, os agentes públicos estabeleceram círculos de cooperação com as empresas por meio de várias políticas que proporcionaram a consolidação do capital, a modernização produtiva e o fomento de sua competitividade nos mercados de açúcar, de etanol e, recentemente, de bioeletricidade (ARAÚJO; ARAÚJO SOBRINHO, 2020).

Assim, as políticas estatais que mais contribuem para a competitividade do setor sucroenergético (e de todo o agronegócio) são as de natureza fiscal, como a concessão de incentivos fiscais às empresas na forma de descontos ou desonerações de tributos e impostos. Essas medidas têm como objetivo reduzir os custos produtivos e estimular o consumo de algum bem ou serviço, como é o caso do açúcar, etanol e bioeletricidade. Dessa forma, o Estado brasileiro tem um papel importante na criação de políticas públicas favoráveis aos agentes produtivos, incluindo políticas fiscais que reduzem os custos produtivos e estimulam o consumo de produtos do setor, contribuindo para a competitividade do mercado sucroenergético brasileiro.

As políticas normativo-institucionais implementadas pelo Estado brasileiro a partir da década de 2000 estabelecer regras e normas que regulamentem o mercado sucroenergético e fomentem a produção e comercialização de produtos do setor, contribuindo para a competitividade do mercado (ARAÚJO; ARAÚJO SOBRINHO, 2021). Ao longo de décadas, o Estado estabeleceu vários regulamentos, leis e normas que objetivaram fomentar o mercado de açúcar, etanol e bioeletricidade e regular as relações entre os agentes do circuito espacial produtivo sucroenergético (produtores rurais, usinas, distribuidoras de combustíveis, tradings agrícolas etc.). Ademais, isso inclui políticas de incentivo à produção e ao consumo desses produtos, como a criação de linhas de crédito específicas para o setor, a concessão de incentivos fiscais e a criação de programas de pesquisa e desenvolvimento de tecnologias para a produção de biocombustíveis. (ARAÚJO; ARAÚJO SOBRINHO, 2020). Dessa forma, as políticas normativo-institucionais contribuem para a competitividade do mercado sucroenergético brasileiro, garantindo a segurança jurídica e a estabilidade do mercado e promovendo a produção e comercialização de produtos do setor.

A estratégia de internacionalização da produção é uma forma das empresas se manterem competitivas no mercado global. Com a ampliação da circulação de mercadorias, graças aos avanços técnicos das redes de comunicação e informação, as empresas perceberam que necessitavam de uma atuação para além da área de localização em seus países de origem. A internacionalização da produção permite que as empresas possam replicar suas competências produtivas e organizacionais em outros países, aumentando sua presença global e sua capacidade de competir com outras empresas no mercado internacional (ARAÚJO; ARAÚJO SOBRINHO, 2021). Isso pode ser feito através da criação de novas unidades produtivas, da fragmentação da produção, da compra de matérias-primas e insumos de fornecedores cada vez mais distantes e da formação de mercados consumidores em escala mundial. A internacionalização da produção é uma estratégia importante para as empresas que buscam aumentar sua eficiência, reduzir custos e aumentar sua capacidade de competir em um mercado global cada vez mais competitivo (ARAÚJO; ARAÚJO SOBRINHO, 2021)..

As internacionalizações das firmas podem ocorrer de diferentes maneiras, dependendo do nível de capitalização, produto, concorrência e das políticas de internacionalização do país de origem, bem como das políticas desenvolvidas como barreiras de entrada por parte dos países de expansão (ARAÚJO; ARAÚJO SOBRINHO, 2021). Johanson e Vahlne (1977) destacam que a internacionalização ocorrer sem a necessidade da instalação de bases físicas, ou seja, filiais, por parte das empresas. Em vista disso, ocorre uma tipologia da instalação que perpassa a implantação de bases produtivas filiadas, as parcerias entre firmas, por meio da transferência de tecnologia e capitais e por meio da exportação de mercadorias. Esse tipo de internacionalização não ocorre de modo único, as firmas podem desenvolver tipos combinados de atuação internacional, a depender das condições específicas de cada empresa e do mercado em que atuam.

Os valores dos Investimentos Estrangeiros Diretos (IED) movimentam vultosas somas de capitais e estão associados à tipologia ou modelos de internacionalização existentes, incentivando os espaços nacionais a se especializarem em determinados ramos produtivos (agrícolas ou industriais) dentro de uma divisão internacional do trabalho na qual se ampara a economia mundial e o intercâmbio entre empresas pelos territórios nacionais. Os Investimentos Estrangeiros Diretos (IED) têm um papel importante na dinâmica do território e sua relação com o setor sucroenergético. A migração do capital externo, dos grupos estrangeiros adentrando o setor, é uma das mudanças que ocorreram no setor sucroenergético ao longo dos anos. Essa entrada de capital externo afeta a estrutura produtiva do setor, bem como as relações de trabalho e a distribuição de renda no território em que ele se insere. Os IEDs podem influenciar as políticas públicas voltadas para o setor sucroenergético, como incentivos fiscais e investimentos em infraestrutura, e podem gerar impactos ambientais e sociais significativos, como a concentração de terras e a exploração do trabalho. Desta maneira, é importante considerar o papel dos IEDs na dinâmica do território e sua relação com o setor sucroenergético ao analisar as transformações ocorridas nesse setor, bem como seus impactos socioeconômicos e ambientais.

Diante deste contexto de Investimentos Estrangeiros Diretos (IED), só foi possível permitir, através da desregulamentação do setor, maior liberdade para as empresas atuarem no mercado, enquanto o pacto da economia política do agronegócio estabeleceu uma aliança entre os setores público e privado para promover o desenvolvimento do setor.  Diante disso, houve um aumento das Fusões, Aquisições & Associações (joint-ventures) de grupos nacionais e transnacionais com agroindústrias sucroenergéticas e tradings. Esse movimento chamamos de concentração e centralização do capital tem sido observado especialmente após a crise econômica e financeira internacional de 2007-2008 com resultado temos a oligopolização e financeirização do setor sucroenergético que estão relacionadas ao paradigma produtivo da agricultura científica globalizada, no qual as grandes corporações utilizam estrategicamente o território para suas atividades e consequentemente o aumento da demanda por bens agrícolas e matéria-prima, por sua vez, foi impulsionado pelo crescimento econômico global e pela urbanização em países emergentes (ARAÚJO, 2023). A valorização do etanol na política energética nacional foi resultado da busca por fontes de energia renovável e menos poluentes, enquanto a emergência da preocupação ambiental refletiu a crescente consciência sobre os impactos ambientais da produção de combustíveis fósseis (ARAÚJO; ARAÚJO SOBRINHO, 2020)

De tal modo, os Investimentos Estrangeiros Diretos (IED) desempenhar um papel importante na agrofinanceirização, que se refere a financeirização do setor agropecuário. Isso ocorre por meio da entrada de capital estrangeiro no setor, que leva à concentração de terras, à intensificação produtiva e à adoção de práticas financeirizadas de gestão. Por exemplo, os IED podem ser utilizados para aquisição de terras em países em desenvolvimento, o que leva à concentração fundiária e à expulsão de pequenos produtores rurais. Os investimentos estrangeiros também podem ser direcionados para a modernização e intensificação produtiva, com a adoção de tecnologias avançadas e práticas financeirizadas de gestão, como a utilização de contratos futuros e a securitização de recebíveis.

A crescente financeirização do agronegócio, transformando a produção agrícola em um ativo financeiro que pode ser negociado no mercado e um dos aspectos da agrofinanceirização. Esse procedimento tem como consequência a intensificação da concentração de terras e a expulsão de pequenos produtores rurais, além de gerar impactos socioambientais negativos. Deste modo, a territorialização, na medida em que envolve a apropriação e a delimitação de um espaço geográfico por um grupo social ou político, no caso, os grandes produtores rurais e as empresas do agronegócio. Assim, envolvendo a construção de fronteiras simbólicas e materiais, a definição de regras e normas de uso e ocupação do espaço, e a imposição de uma identidade territorial baseada na produção agropecuária.

Outro elemento da agrofinanceirização está relacionada à reestruturação produtiva do setor agropecuário, que tem como consequência a precarização do trabalho e a intensificação da exploração dos recursos naturais. As implicações afetam diretamente as comunidades rurais e as populações tradicionais, que são expulsas de suas terras e perdem seus meios de subsistência. Por consequência, a agrofinanceirização é compreendida como uma forma de territorialização que envolve a concentração de terras, a expulsão de pequenos produtores rurais e a intensificação da exploração dos recursos naturais, afetando diretamente as comunidades rurais e as populações tradicionais.

 

4. Considerações finais

Ao considerar os objetivos propostos no início deste artigo, pode-se inferir que a agrofinanceirização é um fenômeno complexo e multifacetado que tem afetado profundamente o setor sucroenergético no Brasil. A análise dos impactos econômicos, sociais e ambientais revela que a concentração e centralização do capital, a exclusão de grupos sociais menos favorecidos e a intensificação do uso de agrotóxicos são apenas algumas das consequências negativas da financeirização da produção de açúcar e etanol. A pesquisa evidencia que a agrofinanceirização está intimamente ligada à mundialização da produção, que impõe uma série de imperativos econômicos, políticos e geográficos aos atores envolvidos no setor sucroenergético. 

Diante desse cenário, é indispensável que sejam desenvolvidas estratégias que visem a reduzir os impactos negativos da agrofinanceirização e a promover uma produção mais justa, sustentável e inclusiva. Nesse sentido, é preciso fortalecer a participação dos pequenos produtores e das comunidades locais na gestão dos recursos naturais e na definição das políticas públicas relacionadas ao setor sucroenergético. É necessário investir em tecnologias e práticas agrícolas mais sustentáveis, que reduzam o uso de agrotóxicos e promovam a diversificação das culturas. 

Ainda, é fundamental que sejam estabelecidos mecanismos de regulação e controle da financeirização da produção, que garantam a transparência e a responsabilidade social e ambiental das empresas e dos investidores envolvidos no setor sucroenergético. Por fim, concluímos que a agrofinanceirização não é um fenômeno restrito ao setor sucroenergético, mas sim uma tendência global que afeta diversos setores da economia. Portanto, as estratégias propostas para reduzir os impactos negativos da financeirização da produção devem ser aplicadas de forma ampla e abrangente, considerando as particularidades de cada setor e região. É indispensável que sejam estabelecidos diálogos e parcerias entre os diversos atores envolvidos na produção agrícola, incluindo produtores, empresas, investidores, governos e sociedade civil, a fim de promover uma produção mais justa, sustentável e inclusiva. Somente assim será possível enfrentar os desafios impostos pela agrofinanceirização e construir um futuro mais equitativo e sustentável para todos.

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