Práticas de planejamento e gestão territorial diante da formação de assentimentos precários e áreas de riscos enquanto simultaneidades urbanas


Caroline Barros de Sales
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Planejamento e Gestão do Território, da Universidade Federal do ABC (PPGPGT/UFABC)

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1. Introdução

As cidades brasileiras, sobretudo as metrópoles, historicamente vêm sendo marcadas pelo surgimento de assentamento precários e pela relação do Estado com os mesmos (apresentando fases de repressão, tolerância, subordinação, reconhecimento e legitimação) assumindo, nos últimos 30 anos, uma das questões urbanas a ser amplamente discutida cientificamente no campo das ciências sociais e, ainda, considerada demanda territorial e social para a gestão pública brasileira.

Como Denaldi (2003, p. 2) inicia sua discussão acerca da temática de urbanização de favelas, partimos da afirmação de que “a cidade ilegal assume proporções sempre crescentes”. No Brasil, durante o século XX, houve um aumento considerável de populações habitando em assentamentos precários, especialmente em favelas, em determinados casos de municípios chegando a ser a forma de moradia predominante. A autora associa o crescimento da população de favelas ao surgimento de novas favelas, extensão física das existentes e principalmente adensamento delas e de suas unidades domiciliares, em detrimento do aumento do preço e escassez da terra, falta de acesso ao mercado imobiliário formal, do empobrecimento da população e dos deslocamentos intrametropolitanos.

Em 2010, segundo o IBGE (2010), a população brasileira vivendo em aglomerados subnormais[1] registrava cerca de 11,4 milhões de habitantes, aproximadamente 7% da população urbana total, os quais concentravam-se majoritariamente nas regiões metropolitanas.  Já em 2015, registrou-se  22,3% da população urbana brasileira residindo em favelas (UN-HABITAT, 2015 apud CARVALHO, 2020). Em metrópoles como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Salvador, Recife, Fortaleza, entre 20% e 50% da população total reside em assentamentos precários (DENALDI, 2010). 

Em termos de extensão territorial, dados mais recentes divulgados pela plataforma Projeto MapBiomas (2021), resultados de levantamento sobre áreas urbanizadas feito a partir de imagens de satélite captadas entre 1985 e 2020, constam que a área total de favelas no Brasil dobrou entre esse período, avançando de 2,1 milhões de hectares para 4,1 milhões de hectares.

Diante de dados e estudos sobre a problemática dos assentamentos precários em cidades brasileiras, se afirma que atualmente há milhões de habitantes residindo neles e que os mesmos, predominantemente, surgiram e estão estabelecidos em áreas ambientalmente sensíveis e inapropriadas à ocupação, e/ou protegidas por leis, em regiões metropolitanas. Trata-se simultaneamente do também surgimento e estabelecimento das condições e de áreas de riscos de desastres. Tal realidade é considerada por Denaldi e Ferrara (2018) expressão da desigualdade socioambiental.

Nas últimas três décadas diversos autores vêm discutindo que as condições de riscos de desastres se apresentam na sociedade brasileira como reflexo do histórico processo de urbanização e de gestão pública, sobretudo à medida que, geralmente, diante da exclusão territorial, novas alternativas de moradia popular surgem em terrenos pouco ou não adequados à ocupação humana, se aliando a determinadas condições físicas do meio marcadas naturalmente por fragilidades. Além disso, formam-se áreas marcadas por inadequações infraestruturais e por condições sociais precárias que corroboram para que tornem as populações mais vulneráveis, gerando, espacialmente, um cenário cujos elementos são justamente característicos e suficientes para virem expor tais áreas a riscos de desastres (SALES, 2020).

Se reconhece, portanto, que as condições de riscos de desastres existentes na sociedade brasileira, em diversos municípios, são consequências das profundas desigualdades econômicas, sociais e ambientais que marcam a formação territorial brasileira, ou seja, podem ser consideradas heranças históricas do padrão de desenvolvimento urbano e regional e dos modelos de planejamento e gestão territorial. Sendo assim, ressalta-se que os assentamentos precários, a pobreza urbana e as áreas de riscos, não são consequências apenas do grande crescimento demográfico, mas devem ser encarados como resultado do escopo e atuação de políticas e leis urbanas, dos sistemas de provisão habitacional, bem como das demais políticas nacionais e municipais (como política ambiental e de proteção e defesa civil) (UN-HABITAT, 2010). 

As problemáticas e conflitos refletidos nas chamadas áreas de riscos de desastres, sobretudo no âmbito urbano, atualmente são consideradas uma das diversas demandas sociais e territoriais para a gestão pública brasileira, em todas as suas esferas (federal, estadual e municipal) (SALES, 2023). Tratam-se de demandas que imprimem a complexidade das agendas, por envolver, questões históricas, ambientais, estruturais, habitacionais, econômicas, educacionais, institucionais, políticas e questões de saúde e segurança, todas associadas. Isso quer dizer que, em termos de gestão territorial, a leitura da realidade das condições de riscos existentes em diversas áreas e convividas pelas populações, bem como a forma de lidar institucionalmente e tecnicamente por meio de políticas, ações e projetos que exprimem tentativas de enfrentar e solucionar os problemas, também refletem complexidades e a necessidade de enfoques integradores e sistêmicos, os quais levem em consideração todas as questões. 

Desse modo, a complexidade da problemática dos riscos em assentamentos precários requer, para seu enfrentamento, o reconhecimento dos conflitos socioambientais e a adoção de abordagem articulada, tanto nos estudos científicos, como nos projetos de intervenção, ou seja, visando a qualificação urbana, ambiental e de riscos, de maneira a buscar garantir o direito à moradia, controle ambiental, proteção e defesa civil. 

Frente à problemática, as “soluções” mais praticadas passam a ser a urbanização e a gestão de riscos de desastres, geralmente de forma totalmente desarticulada, tendo como principal protagonista o ente municipal. Desde a década de 1990, porém com mais ênfase somente a partir de 2010, a implementação de políticas públicas de urbanização de favelas, mais precisamente de alguns projetos e programas que previam simultaneamente a execução de obras voltadas à urbanização, ao tratamento de riscos e à precariedade, vem tentando lidar com esses conflitos urbanísticos através de intervenções físicas baseadas em projetos urbanos e de infraestrutura (CARVALHO, 2020), embora haja muitas limitações e, em muitos casos, não se alcance os objetivos pretendidos.

Urbanizar uma favela passou a significar a sua qualificação, atrelada às múltiplas qualificações (moradia, ambiente, segurança) e ainda articulada com o contexto e com o restante da cidade (FIORI, 2014, p. 53): “urbanizar uma favela deveria ser o equilíbrio entre a dotação de melhorias urbanas e a preservação do ambiente urbano das favelas”. Sustenta-se, então, que os assentamentos precários não devem ser tratados apenas no âmbito da provisão habitacional, e sim deve-se considerar a dimensão ambiental e as demais, visto que, como coloca Denaldi (2010), estamos tratando de problemas que são resultados de uma exclusão multidimensional e, portanto, é preciso transpor a abordagem setorial para tratar a realidade.

Quanto ao conceito de urbanização de favelas, consideramos o utilizado pelo Ministério das Cidades (2010) sendo as intervenções que buscam o estabelecimento de padrões de habitabilidade e ainda a integração do assentamento à cidade, mediante o aproveitamento dos investimentos já feitos pelos moradores, ou seja, implicando na adaptação da configuração já existente, de maneira a viabilizar a implantação e funcionamento das redes de infraestrutura básica, melhorar as condições de acesso e circulação e eliminar situações de risco (BRASIL, 2010a, p.35). 

Com essa apresentação inicial, questiona-se: a) A formação de assentamentos precários e de áreas de riscos nas cidades brasileiras podem ser consideradas simultaneidades urbanas ou tratam-se de contextos desconexos?; e b) Quais são os avanços e limitações referentes às práticas de planejamento e gestão territorial para enfrentamento dessas problemáticas e quais suas implicações no desenvolvimento de uma nova práxis? Há convergências?

O artigo tem como objetivo discutir a relação existente entre a formação de assentamentos precários e de áreas de riscos nas cidades brasileiras, além de identificar os avanços e limitações, bem como as convergências referentes às práticas de planejamento e gestão territorial para enfrentamento dessas problemáticas, refletindo as implicações no desenvolvimento de uma nova práxis.

Defende-se a hipótese de que historicamente a formação de assentamentos precários e de áreas de riscos nas cidades brasileiras refletem um mesmo contexto, podendo ser consideradas simultaneidades urbanas e que, tratando-se de práticas de planejamento e gestão territorial para enfrentamento dessas problemáticas, apesar dos reconhecidos avanços nos âmbitos jurídico, institucional e científico do planejamento urbano e ambiental, limitações ainda persistem e se destacam de maneira que uma nova e necessária práxis ainda não foi desenvolvida efetivamente.

Discute-se a dimensão ambiental e o tratamento de riscos[2] no âmbito da urbanização de assentamentos precários, inicialmente partindo da compreensão de áreas de riscos e assentamentos precários enquanto simultaneidades urbanas, em seguida focando nos avanços e limitações da urbanização e da gestão de riscos de desastres nesse contexto, por fim refletindo sobre as convergências e lacunas ainda necessárias de serem abordadas por estudos. Para tanto, tomamos como base parte da literatura existente sobre o tema no Brasil, que foi desenvolvida e publicada nas últimas duas décadas, e estudos que avaliaram as experiências realizadas em metrópoles brasileiras.

2. Assentamentos precários e áreas de risco: simultaneidades urbanas

Os assentamentos precários podem ser definidos como porções heterogêneas do território urbano, que são habitadas por famílias de baixa renda em condições de moradia caracterizadas, segundo a Secretaria Nacional de Habitação do Ministério das Cidades (2010b, p. 9), por “irregularidade fundiária, ausência de infraestrutura de saneamento ambiental, localização em áreas mal servidas por sistema de transporte e equipamentos sociais, terrenos alagadiços e sujeitos a riscos geotécnicos, adensamento excessivo, insalubridade e deficiências construtivas da unidade habitacional”. 

Denaldi (2010) e Cardoso (2016) consideram que assentamentos precários podem apresentar várias configurações e tipologias, como favelas, cortiços, loteamentos irregulares de moradores de baixa renda, conjuntos habitacionais (produzidos pelo poder público) que se encontram degradados, dentre outras. Tais tipologias podem ser agrupadas em dois subconjuntos: cortiços localizados em áreas centrais e consolidadas da cidade, com problemas de permanência e expulsão e com demandas de melhoria das condições de habitabilidade e provisão de novas moradias sociais nessas mesmas localizações; e assentamentos precários que demandam ações de urbanização abrangendo o universo formado por favelas, loteamentos irregulares, conjuntos habitacionais degradados, e assemelhados, caracterizados pela ausência ou precariedade de infraestrutura urbana, irregularidade fundiária, inadequação das unidades habitacionais e dos terrenos onde estão implantadas (DENALDI, 2010). 

Destacando aqui as favelas, essas são consideradas territórios de ilegalidade fundiária, exclusão e desigualdade social. Bueno (2000, p.17) define as favelas como “aglomerados urbanos em áreas públicas ou privadas, ocupadas por não-proprietários, sobre as quais os moradores edificam casas à margem dos códigos legais de parcelamento e edificação”. 

Para o IBGE (2019) favela e seus assemelhados (aglomerados subnormais) são a “forma de ocupação irregular de terrenos de propriedade alheia – públicos ou privados – para fins de habitação em áreas urbanas e, em geral, caracterizados por um padrão urbanístico irregular, carência de serviços públicos essenciais e localização em áreas com restrição à ocupação”.

Somando às definições, o UN-HABITAT (apud DENALDI, 2003, p. 42), considera que favelas são “assentamentos que carecem de direitos de propriedade, e constituem aglomerações de moradias de uma qualidade abaixo da média. Sofrem carências de infra-estrutura, serviços urbanos e equipamentos sociais e/ou estão situadas em áreas geologicamente inadequadas ou ambientalmente sensíveis”.

Inúmeros autores, como Denaldi (2003), Cardoso (2007), Petrarolli (2015), Zuquim et al. (2016), Denaldi e Ferrara (2018) e Carvalho (2020), já vêm tratando em seus estudos a problemática habitacional brasileira como intrinsecamente vinculada à questão urbana, revelando sua natureza de caráter estrutural. Historicamente, o surgimento dos assentamentos precários em cidades do Brasil tem suas raízes ainda no século XIX, mais precisamente nas duas últimas décadas, quando, diante de mudanças como desenvolvimento da economia cafeeira, início da industrialização, crescimento demográfico, libertação dos escravos e migração, cortiços eram a forma de moradia predominante entre as camadas mais pobres:

“Por volta de 1880, a maioria dos prestadores de serviços manuais, escravos ou trabalhadores livres, moravam nos locais de trabalho e não chegava a ter moradia própria. Na cidade imperial, os escravos viviam com os seus proprietários, habitando os porões dos sobrados e os fundos das casas térreas [...] Com a emergência do trabalho livre, se assegurou que a propriedade fosse transformada em mercadoria e a atividade empresarial imobiliária regulamentada. Em 1850, a Lei de Terras (Lei n.º 601, de 18 de setembro) foi instituída, deixando de ser permitido o acesso à terra pelas vias da ocupação e cessão pública [...] Os trabalhadores livres, afastados da possibilidade de tornarem-se proprietários de terra, sem acesso ao mercado livre de habitação, são levados a ocupar morros e várzeas e a habitar os cortiços” (DENALDI, 2003, p. 9).

Com a expansão dos cortiços, principalmente no Rio de Janeiro e São Paulo, diversos problemas sociais e ambientais passaram a surgir, dentre eles destaca-se o agravamento das condições sanitárias, passando a exigir a intervenção do Estado. Estamos nos referindo a origem da intervenção estatal no controle da produção do espaço urbano e habitação na cidade moderna brasileira, que, segundo Denaldi (2003), aponta o Estado o protagonista que, por meio de legislação, passou a “eliminar” os problemas habitacionais implantando medidas de controle e eliminação de cortiços, o que representou um mecanismo de expulsão da população pobre das áreas centrais e provocou a invasão de morros, várzeas e áreas periféricas.

Assim, deu-se início ao surgimento das favelas, como alternativa para a população mais pobre, que durante as décadas do século XX foi se intensificando de diferentes formas, processos e temporalidades: em Belo Horizonte o surgimento se deu por volta de 1895, na fase de construção da cidade; em Salvador na década de 1940, com grandes invasões coletivas de terra; em São Paulo também na década de 1940 com a eliminação dos cortiços, se intensificando na a partir da década de 1970; e no Rio de Janeiro proliferam-se desde a década de 1940 (TASCHNER, 1997). 

Cardoso (2007) discute sobre a relação entre o modelo de desenvolvimento do país, a partir da década de 1940, pobreza e desigualdade social e acesso ao mercado formal de moradia, estruturando o padrão que marcou a “favelização” das cidades no Brasil:

“O modelo de desenvolvimento do país levou à constituição de um padrão que associava um razoável grau de crescimento econômico (principalmente entre os anos 40 e 70 do século XX) com alto nível de desigualdade e com uma parcela significativa da população situada abaixo da linha de pobreza. A pobreza e desigualdade, características estruturais que acompanham o desenvolvimento brasileiro, estiveram associadas, nos 25 últimos anos, com um processo de crescente precarização e informalização das relações de trabalho. Com isso, parcela significativa da população apresenta insuficiência ou insegurança de renda, o que limita enormemente as suas possibilidades de endividamento, limitando, portanto, as possibilidades de acesso ao mercado formal de moradia” (CARDOSO, 2007, p. 222).

Maricato (2001) já apontava que a chamada “favelização” das cidades está relacionada com as características excludentes do mercado imobiliário formal e com a urbanização desigual da metrópole. Especificando a questão dos salários para exemplificar um dos pontos da exclusão, Denaldi (2003) coloca que no Brasil, assim como em outros países periféricos, não houve incorporação dos gastos com a moradia aos salários pagos pela indústria e nem assumidos pelo Estado, fato que condicionou parcela da população à invasão de terras e à autoprodução de moradias. 

Portanto, considera-se que “o Estado assistiu ao espantoso crescimento da ‘cidade oculta’ sem intervir com uma política habitacional que atendesse a população excluída [...] O crescimento das favelas é, portanto, resultado também da ausência e conivência do Estado”. (DENALDI, 2003, p. 3). Isto é, o Estado por muito tempo, diante do crescimento das favelas, não interviu com uma política habitacional e urbana abrangente que atendesse a população moradora e promovesse sua inclusão na cidade. Desafio que já foi reconhecido politicamente, mas que segue entre avanços e limitações.

O crescimento das cidades brasileiras, especialmente das metrópoles, foi e vem sendo acompanhado pelo surgimento e crescimento de assentamentos precários, enquanto viável e única alternativa habitacional para a população mais pobre e historicamente excluída do mercado imobiliário formal, a qual passa a ocupar áreas desprezadas pelo mesmo. A exemplo dessas áreas podemos citar: leitos de rios e córregos, áreas de mananciais, antigas lagoas aterradas, fundos de vale, encostas, reservas florestais, áreas de proteção ambiental, áreas de preservação permanente, áreas próximas a lixões ou até mesmo antigos lixões (hoje aterrados).

As ocupações nessas áreas, sobretudo autoconstruídas e sem infraestrutura adequada, registram simultaneamente a condição de risco, tanto para a segurança física dos moradores, como também para seus bens materiais e, ainda,  a integridade ambiental, que passam a ficarem expostos aos perigos, durante ou após a deflagração de eventos hidrogeológicos, assumindo diferentes escalas, temporalidades e consequências. Estamos nos referindo aos riscos de desastres, induzidos ainda pela vulnerabilidade social.[3]

Carvalho (2020) dialoga com Beck (1992) e Thouret (2007), autores que, em décadas e séculos diferentes, convergem em relação às conexões entre riscos de desastres e vulnerabilidade social. A autora chega a afirmar que: “numa pirâmide de distribuição de riscos por renda, os mais pobres seriam a base da figura enquanto que a riqueza estaria no topo. Os pobres costumam viver em lugares precários, não por causa de alguma preferência pelo risco, mas por falta de outras possibilidades” (CARVALHO, 2020, p. 28).

Aprofundando no entendimento acerca dos riscos de desastres, vejamos alguns aspectos conceituais importantes e entendamos a relação direta com os assentamentos precários.

Segundo United Nations Office for Disaster Risk Reduction – UNDRR (2016), risco de desastre está relacionado à probabilidade da ocorrência de um determinado fenômeno que venha a causar danos e prejuízos das mais diversas ordens (danos à saúde, vida, propriedade, bens, economia, ambiente, entre outros) e até potencial perda de vidas, que podem ocorrer a um sistema, sociedade ou comunidade num período específico de tempo, determinado probabilisticamente em função do perigo, exposição, vulnerabilidade e capacidade.  

Entende-se por perigo um processo, fenômeno natural ou atividade humana que pode causar perda de vidas, ferimentos ou outros impactos na saúde, danos materiais, perturbações sociais e econômicas ou degradação ambiental. Os perigos podem ser de origem natural, antrópica ou socionatural (UNDRR, 2016). Smith (2001) esclarece que o perigo é uma ameaça potencial para as pessoas e seus bens, enquanto o risco é a probabilidade da ocorrência de um perigo e de gerar perdas. Aliado ao conceito de perigo está o conceito de exposição que, segundo UNDRR (2016) e Oliveira (2018), se refere a situação das pessoas, infraestruturas, habitações e outros ativos humanos tangíveis localizados em áreas propensas a perigos, ou seja, operacionalmente é um elemento indispensável para avaliação de riscos. Metodologicamente, a exposição pode ser avaliada ao observar a suscetibilidade que é a predisposição do terreno, ocupado pelo assentamento, de ser afetado por inundações, enchentes, movimentos de massa e erosão. 

Tratando-se do conceito de vulnerabilidade, ela resulta das interações entre as condições ambientais e a sociedade: é um efeito combinado da exposição ao risco, da fragilidade dos diferentes componentes do território e da sociedade, além dos níveis de capacidade ou falta de resiliência (CARDONA et al., 2011). Seguindo essa perspectiva, Phillips e Fordham (2009, apud BIRKMANN et al., 2013) destacam que a vulnerabilidade a desastres é impulsionada pela desigualdade social e está profundamente enraizada nas estruturas sociais. A vulnerabilidade, portanto, reúne características determinadas por fatores ou processos físicos, sociais, econômicos e ambientais que aumentam a suscetibilidade de um indivíduo, uma comunidade, ativos ou sistemas aos impactos dos perigos (UNDRR, 2016).

Já a capacidade refere-se a todos os pontos fortes, atributos e recursos disponíveis numa comunidade, organização ou sociedade para gerir e reduzir os riscos de desastres e fortalecer a resiliência (UNDRR, 2016).

Tratar da dimensão ambiental e dos riscos, sobretudo na urbanização de assentamentos precários, é reconhecer que o risco é uma construção social, resultado das características excludentes do mercado imobiliário formal, da urbanização desigual da metrópole, das condições de precariedades, associadas às condições ambientais suscetíveis às ameaças.  E ainda, reconhecer a vulnerabilidade social como elemento indispensável para a análise dos riscos “permitiu entender por que os mesmos processos físicos causam danos mais amplos e consequências mais profundas nos territórios mais pobres e menos organizados socialmente” (SULAIMAN et al., 2021).

O então quadro dos riscos e suas condicionantes em assentamentos precários, afirma o engendramento das desigualdades ambientais e apontam para a necessidade de justiça ambiental (ACSELRAD, 2009; MARICATO, 2010). Porém, o que se tem visto nas últimas três décadas é o uso do discurso ambiental e da problemática de riscos pela sociedade, setores governamentais e judiciário, com intuito de manter ou promover a segregação e atender aos interesses do mercado imobiliário; muito se usa o discurso da existência de riscos para promover a remoção de assentamentos precários. “A prática evidencia que a narrativa da defesa do meio ambiente efetiva-se de modo contraditório na implementação dos programas de urbanização de favelas, pois estes nem sempre garantem o pleno direito à moradia ou alcançam a qualidade ambiental e urbanística adequada” (DENALDI e FERRARA, 2018, p. 4).

Do ponto de vista da urbanização de assentamentos precários, a dimensão ambiental e o tratamento de riscos devem entrar como uns dos aspectos a serem contemplados, além da acessibilidade e conectividade com o entorno próximo, com outras áreas da cidade através da mobilidade, qualidade aos espaços coletivos, promoção de equipamentos e serviços públicos, implementação de saneamento, de maneira a promover a qualidade de vida urbana nestes territórios, como defende Carvalho (2020). 

Sendo assim, atualmente - após décadas de estudos, pesquisas, debates e práticas - se reconhece a importância e necessidade da articulação entre as dimensões urbana, ambiental e de riscos. Constata-se ainda que por mais que avanços já tenham sido registrados, no que tange à urbanização de assentamentos precários e à gestão de riscos, limitações seguem refletindo na remanescência da irregularidade, precariedade e das condições de risco, mesmo pós-urbanização de favelas e/ou com suposta gestão de riscos de desastres institucionalizada. 

3. Avanços e Limitações: urbanização de assentamentos precários

Nesta seção são apresentados os avanços e limitações no âmbito da urbanização de assentamentos precários. A discussão foi sistematizada partindo de duas perspectivas: I) Histórica e Política; II) Aspectos gerais. 

3.1 Perspectiva Histórica e Política

Iniciando pela primeira perspectiva, autores, ao exporem a linha histórica da relação entre Estado e existência de assentamentos precários, ressaltam avanços e limitações que refletem até hoje.

Como já mencionado, os assentamentos precários, especialmente as favelas, surgiram no início do século XX, a partir das práticas de expulsão da população moradora de cortiços em áreas centrais, por parte do Estado, pautados pelos estabelecimentos de leis. Denaldi (2003) cita como exemplos: Recife, em 1934, contava com o Decreto n.º 268 que proibia a construção ou reconstrução de mocambos no perímetro urbano da cidade (FINEP/GAP, 1983); no Rio de Janeiro, em 1937, o Código de Obras da cidade previa a eliminação de favelas, proibia a construção de novas e a execução de qualquer melhoria nas existentes (PARISSE, 1969). 

Nesse período, as favelas eram vistas pelos governos como doença social, ambiente de provável disseminação comunista, problema migratório e, ainda, como potencial eleitoral; os programas oficiais de governo não atendiam a população das favelas e a erradicação foi a alternativa mais defendida até a década de 1960 (DENALDI, 2003). A crítica ao processo de remoção de favelas, já em 1980, se fazia presente e representava certo avanço: segundo Valladares (1980), pesquisas chegavam a mostrar o impacto da remoção na desestruturação das condições de vida da população afetada, com queda da renda familiar por aumento dos gastos com transportes e com habitação, e com elevação dos níveis de desemprego, devido a distância entre os locais de moradia e de trabalho. Vale salientar que esta crítica segue em debate ainda nos dias atuais, frente às tentativas de erradicação de favelas ou de parcela delas.

Ressalta-se, porém, que há exceções no que tange à erradicação, visto que existem registros de que algumas experiências de urbanização foram realizadas com o apoio de instituições não-governamentais, principalmente ligadas à Igreja católica, mas que não alteraram as estruturas e diretrizes institucionais relacionadas com a favela, como afirma Denaldi (2003, p. 14) e exemplifica o caso do Rio de Janeiro, em 1947, onde houve a criação da “Fundação Leão XIII a partir de um acordo entre a Igreja e o Governo Federal, com o objetivo de assistir à população moradora em favelas e, em 1955, a Igreja Católica criou a Cruzada São Sebastião, órgão não governamental que apoiou projetos de urbanização e remoção de favelas”. 

Na década de 1960, destaca-se a criação do Banco Nacional de Habitação - BNH, mais precisamente em 1964, que financiou obras de habitação, saneamento básico e urbano, e projetos regionais e nacionais das áreas de transporte e energia. Até o início da década de 1970, a linha de atuação do BNH para favelas permanecia sendo a erradicação, contando com programas de remoção de moradores e reassentamento em loteamentos ou conjuntos habitacionais localizados na periferia das cidades (DENALDI, 2003).

 Na segunda metade da década de 1970, o BNH, que por um momento concentrou esforços e investimentos em obras urbanas, retoma a ideia inicial de voltar-se para a população de baixa renda, diante da crise de 1974, da pressão da indústria de materiais de construção, e da pressão popular (MARICATO, 1987). 

É a década 1970 que marca a atuação do Estado admitindo a urbanização de favelas, por meio dos primeiros programas de pequena abrangência no âmbito do Governo Federal, ainda desligados do eixo estrutural da política habitacional e das estruturas institucionais: em 1975 foi criado o PROFILURB, que visava viabilizar a criação de lotes urbanizados e embriões habitacionais destinados à população com renda de 0 a 3 salários mínimos; em 1979 foi criado o PROMORAR, considerado o primeiro programa habitacional a admitir a consolidação da ocupação de favelas; ambos discutidos por Denaldi (2003).

Todavia, Cardoso (2007) destaca que a experiência do BNH (1964-1986) ao mesmo tempo que apresentou avanços, também apresentou limitações: mobilizou o maior volume de recursos, mas foi ineficaz em vários níveis, marcado pela insustentabilidade do modelo financeiro adotado. Sobre isso, Denaldi (2003) também aponta que 48,8% das unidades financiadas foi destinada aos setores de classe média, não atingindo, como deveria, a população de renda mais baixa.

            A década de 1980 é marcada pelo pioneirismo da institucionalização das políticas de urbanização de favelas, na esfera municipal, como parte integrante da política municipal de habitação, mais um avanço registrado para a época. As iniciativas pioneiras de urbanização de favelas e de regularização inauguradas passam a ir além de projetos alternativos ou de experiências isoladas, diferente das décadas anteriores, embora ainda houvesse a prática da remoção em alguns casos (DENALDI, 2003). Dentre as iniciativas, podemos citar: Plano de Regularização das Zonas Especiais de Interesse Social - PREZEIS, em Recife; Programa Municipal de Regularização de Favelas - PROFAVELA, em Belo Horizonte; Programa Mutirão no Rio de Janeiro; e a política de urbanização de favelas do município de Diadema (DENALDI, 2003; PETRAROLLI, 2015). 

Sobre esse quadro da instituição e adequação de vários programas visando atender a população de favelas, Denaldi (2003) ressalta que, mesmo representando avanço, por outro lado refletia limitação, visto que o volume dos recursos alocados, assim como a regulamentação para sua utilização, não permitia serem estes os motores da urbanização de favelas no país. 

Outra limitação nesse período era a pouca valorização da dimensão ambiental, a qual não costumava ser contemplada pelas iniciativas e suas intervenções, que, em sua grande maioria, agravaram os problemas ambientais e consolidaram condições inadequadas de moradia (DENALDI e FERRARA, 2018). Denaldi (2003) cita alguns exemplos de práticas: no município de Diadema era comum abrir o viário principal em cima do córrego canalizado e nele despejar o esgoto; nesse mesmo município, na favela Nações muitas intervenções não consideraram as características morfológicas do terreno, lotes e moradias foram consolidados sobre linhas de drenagem, resultando no represamento das águas e na deflagração de inundações nos períodos de chuva. 

Na década de 1990, década marcada pelo debate internacional em torno do Meio Ambiente, houve o impulsionamento do movimento de institucionalização de políticas de urbanização de favelas articuladas com a dimensão ambiental, por parte de grupos que criticavam o modelo de desenvolvimento econômico, defensores do campo dos direitos, idealizadores da modernização ecológica do capitalismo brasileiro (ACSELRAD, 2010).

Assim, mais um avanço é registrado: a dimensão ambiental começa a ser considerada em diversos programas de urbanização de favela, aos projetos incorpora-se a requalificação ambiental como um de seus componentes, e recomenda-se a adoção da bacia hidrográfica como unidade de planejamento e gestão das intervenções, em determinados casos (DENALDI e FERRARA, 2018). 

Autores como Bueno (2000), Maricato (2001) e Denaldi (2003), já defendiam a articulação com a dimensão ambiental e até mesmo com o tratamento de riscos, colocando que os programas de urbanização devem promover, além da melhoria das condições de habitação nas áreas degradadas, a recuperação ambientalmente e eliminação de situações de risco (quando for o caso), para assim promover a urbanização ou reurbanização. 

Outro grande avanço foi o estabelecimento de programas que financiam e priorizam a urbanização de favelas, provendo-a e considerando-a alternativa para solucionar o problema habitacional da população de favelas. Denaldi (2003) indica alguns fatos que compõem esse avanço:

●      Contrato de empréstimo com o BID para desenvolvimento do Programa Habitar Brasil/BID, voltado para promover a melhoria das condições de habitação em favelas; importante instrumento de política urbana apresentado pelo governo;

●      Exigência do Governo Federal, por meio do programa Habitar Brasil/BID, para que os municípios elaborem o Plano Estratégico Municipal de Assentamentos Subnormais - PEMAS;

●      Exigência do Governo Federal, por meio do programa Habitar Brasil/BID, para que os municípios desenvolvam o subprograma Desenvolvimento Institucional - DI, objetivando capacitar o município para o desenvolvimento e implementação de sua política habitacional (e de urbanização de favelas) abrangente.

●      As agências internacionais propõem a ampliação da escala dos projetos (Upscaling Slum Upgrading);

●      Associação do Banco Mundial a outras agências, como HABITAT e PGU, e lançamento do programa City Development Strategy - CDS, com o objetivo de estimular a elaboração de planos para a diminuição da pobreza e o desenvolvimento econômico;

●      Criação da agência Cities Alliance - CA para implementar o CDS, com o objetivo central de aprimorar e ampliar a escala dos programas de urbanização de favelas e contribuir para o desenvolvimento de planos estratégicos de desenvolvimento local; 

Porém, a autora destaca uma limitação nesse contexto que foi o fato da maioria dos municípios não terem conseguido ampliar a escala de intervenção, não terem melhorado as capacidades institucionais e, por consequência, terem enfrentado dificuldades para realizar uma recuperação urbanística e ambiental adequada, problemas que seguem presentes até os dias de hoje em muitos municípios do país. 

Alguns municípios conseguiram superar essas limitações e avançaram na direção da implementação de intervenções consideradas mais complexas e integradas em favelas, passando os seus programas municipais de urbanização de favelas a serem referências nacional e internacional, como o Programa Favela Bairro, desenvolvido no Rio de Janeiro e o Programa Integrado de Inclusão Social, desenvolvido no município de Santo André. (PETRAROLLI, 2015).

O início da década de 2000 é marcado pela proposta de uma nova agenda para a atuação dos governos subnacionais em habitação de interesse social, por parte da Secretaria Nacional de Habitação com a criação do Ministério das Cidades em 2003. Estruturou-se uma linha de atuação denominada como “urbanização e integração de assentamentos precários”, incluindo os loteamentos populares, os conjuntos habitacionais degradados e, principalmente, as favelas (CARDOSO e DENALDI, 2018). 

Em 2007 foi lançado o Programa de Aceleração do Crescimento - PAC, com o propósito de promover o desenvolvimento econômico, potencializando os investimentos públicos e buscando promover um ambiente favorável aos investimentos privados. Por seus expressivos investimentos, passou a ser considerado o maior programa habitacional para urbanização de favelas da história do país, estando a Urbanização de Assentamentos Precários - UAP inserida no Eixo Infraestrutura Social e Urbana do PAC (CARDOSO e DENALDI, 2018). Entre os objetivos do PAC-UAP constam mitigar danos ao meio ambiente e ações de despoluição, isto é, a recuperação ambiental é tida como critério de priorização para seleção de propostas e um dos itens de financiamento (BRASIL, 2010c, p. 32).

            Alguns projetos financiados pelo PAC-UAP, além de tratarem a dimensão ambiental, também contemplam a dimensão dos riscos. Moretti et al. (2014) analisaram projetos e obras de urbanização realizadas na Região do Grande ABC e financiadas pelo PAC-UAP, por meio da definição de descritores quantitativos e qualitativos. Constataram que a meta de eliminação das situações de risco foi alcançada na maioria dos casos, por meio de medidas como: remoção de famílias, execução de obras como drenagem, contenção geotécnica, retaludamento e revegetação. Entretanto, os autores chegaram a concluir que as soluções geotécnicas contidas nos projetos eram genéricas, desconexas, e incoerentes com a realidade do meio físico-urbano.

            O PAC e posteriormente o Programa Minha Casa Minha Vida - PMCMV representaram avanços em relação aos períodos anteriores em que o direito à moradia não repercutia enquanto uma política pública que viabilizasse sua concretização. Todavia, após as crises econômicas e políticas que se sucederam entre 2015 e 2016, houve uma redução substancial dos programas de cunho redistributivo e descontinuação tanto do PAC, como do PMCMV destinado à Faixa 1, que atendia aos trabalhadores na faixa de até três salários-mínimos  (CARDOSO e DENALDI, 2018).

Avanços foram registrados também, no que tange a produção e revisão dos marcos regulatórios da política urbana e ambiental, os quais são citados por Denaldi e Ferrara (2018):

●      Estatuto da Cidade (Lei n.º 10.257/2001): principal marco regulatório da política urbana, definiu a regularização fundiária como uma questão de direito e previu as Zonas Especiais Interesse Social - ZEIS como principal instrumento para promover sua urbanização e regularização;

●      Lei do Programa Minha Casa Minha Vida (n.º 11.977/2009): tratou da Regularização Fundiária de Interesse Social na sua devida abrangência e estabeleceu instrumentos para promovê-la, como a Demarcação Urbanística e a Legitimação de Posse, que possibilitam que ações de regularização antes exclusivas do poder judiciário sejam realizadas pelo poder executivo municipal;

●      Novo Código Florestal (Lei n.º 12.651/2012): convalida o conteúdo da Lei do MCMV, que admite a regularização de interesse social em Áreas de Preservação Permanente - APPs;

3.2 Perspectiva de aspectos gerais

Após contextualizar os avanços e limitações presentes na perspectiva histórica e política da urbanização de assentamentos precários, trataremos dos avanços e limitações, no que se refere aos aspectos gerais, que refletem ainda nos dias atuais em inúmeros municípios brasileiros. Tais aspectos são:

●      Diagnósticos, projetos e obras;

●      Execução de contratos e licenciamento ambiental;

●      Capacidade institucional;

●      População residente em assentamentos precários;

●      Condição de vida;

●      Áreas de riscos;

●      Articulação entre urbanização e dimensão ambiental;

Em relação aos diagnósticos, projetos e obras, Denaldi e Ferrara (2018) apontam que há necessidade de melhorá-los, desenvolver parâmetros projetivos especiais, conceber soluções integradas de infraestrutura, espaço público e solução habitacional, de acordo com cada contexto, além de refletir sobre a urbanização para além do tecido da favela. As autoras observaram, por exemplo, tomando como referência os estudos de caso (experiências realizadas na Região do Grande ABC), que:

“os projetos elaborados nem sempre são baseados em diagnósticos integrados, frequentemente não estão completos e possuem um grau insuficiente de detalhamento. Com algumas exceções, ainda é evidente que as urbanizações, projetadas e/ou executadas de modo fragmentado, não atingem a qualidade necessária e a desarticulação dos projetos específicos compromete a solução urbanística e ambiental” (DENALDI e FERRARA, 2018, p. 7).

Sobre a execução de contratos e licenciamento ambiental, Petrarolli (2015) e Denaldi et al. (2016), tomando como referência o estudo da execução dos contratos na Região do Grande ABC, apontam a morosidade para execução das obras e a relacionam com o somatório: complexidade de intervenção, qualidade do projeto e território em transformação. Contribuindo com a questão, Cardoso e Denaldi (2018) apontam, como outra implicação, a falta de experiência técnica de governos que não tinham uma atividade permanente em urbanização de favelas.

A morosidade também é apontada por Denaldi e Ferrara (2018, p. 11) no caso dos procedimentos de licenciamento ambiental dos projetos. As autoras colocam que “os prazos de licenciamento estavam colocando em risco a contratação de recursos federais captados – em especial por meio do PAC-UAP – para execução de projetos de urbanização de assentamentos precários”.

            No que diz respeito à capacidade institucional, Cardoso (2007) defende que houve consideráveis avanços. Ele afirma que os quadros técnicos de prefeituras, ONGs e mesmo do setor privado vinham desenvolvendo, até a primeira década do século XXI, um aprendizado especializado, havendo maior disponibilidade de capacidade técnica efetiva para o desenvolvimento de projetos de melhor qualidade. Além disso, indica que alguns núcleos universitários estariam avançando no sentido de contribuir com a formação de novos profissionais.

            Mesmo diante desses avanços, a limitada capacidade institucional, discutida por Denaldi (2003) e por Denaldi e Ferrara (2018), perpassa a temporalidade e segue sendo uma limitação para municípios implementarem atualmente programas habitacionais ou de urbanização de favelas. Mencionam-se as dificuldades de aplicação dos instrumentos, a falta de clareza de atribuições e competências de cada um dos entes envolvidos e a resistência das equipes dos órgãos ambientais que interpretam a lei de forma restritiva.

            Tratando-se de um outro aspecto, o da população residente em assentamentos precários, as taxas de crescimento desta seguem aumentando, sobretudo nas metrópoles, condicionando a ocupação ou a compra de habitações irregulares através do mercado informal, sendo as possibilidades mais viáveis de acesso à moradia para as populações mais pobres. Limitação apontada por Cardoso (2007), mas que segue cabendo no contexto dos anos e décadas seguintes. O autor destaca ainda que “a existência e o funcionamento pleno do mercado informal, aliado à ausência de pressões políticas para a remoção, acabam por deslegitimar a necessidade da regularidade da propriedade [...] a questão da regularização perde força na reivindicação dos movimentos de moradia” (CARDOSO, 2007, p.235).

            Se reconhece que a condição de vida de parcela da população de favelas mudou e melhorou: grande parcela das moradias, que antes nas favelas eram barracos, com o passar das décadas mudou para alvenaria; houve aumento da cobertura de serviços de infraestrutura como água encanada, coleta de esgoto, energia elétrica e coleta de lixo domiciliar; passaram a ser habitadas não apenas pela parcela mais pobre da população.

Mas, apesar das melhorias, outras condições de precariedade continuam, como colocado por Denaldi (2003, p.46): “o grande adensamento dos domicílios, somado à inadequação das condições de iluminação e ventilação e segurança das moradias, resulta em habitações insalubres e de grande precariedade”. A remanescência de condições relacionadas à exposição, suscetibilidade, vulnerabilidade e, consequentemente, riscos, intensificam e, ao mesmo tempo, são intensificados pelo contexto da precariedade.

Outra questão crucial é saber como controlar e monitorar as áreas de risco. Interromper um círculo vicioso de ocupação urbana das áreas de risco é uma preocupação indicada por Carvalho (2020) e deve ser vista como uma das prioridades a ser contemplada pelos projetos de urbanização. Além da urbanização, outro responsável por essa questão é a Gestão de Riscos de Desastres, que deve articular as setorialidades, planejar e agir de forma integrada, caminhar em simultaneidade, convergência e coerência com a urbanização de assentamentos precários. Alguns avanços em relação a isso já foram firmados e limitações seguem, como será apresentado na próxima seção. 

A limitação que se destaca nessa discussão, e que é resultado da sobreposição de todas as anteriores, é o desafio da articulação entre urbanização e dimensão ambiental, ou ainda, como Denaldi e Ferrara (2018) discutem, o desafio de conciliar a urbanização e a garantia do direito à moradia, com ganhos ambientais. As autoras se referem a outras limitações relacionadas com a dimensão ambiental: o desafio de aplicar o arcabouço jurídico e institucional relacionado às políticas urbanas e ambientais, em especial aquele voltado para regularização fundiária; necessidade de melhorar a qualidade dos projetos e garantir sua integral realização nas intervenções para promover a adequada recuperação ambiental e urbanística dos assentamentos. 

Mesmo com todos os avanços apresentados nas duas perspectivas de abordagem dessa seção - I) Histórica e Política; II) Aspectos gerais - percebe-se que limitações, impasses e conflitos permanecem, o que direciona para a necessidade de dar continuidade a esse debate e estudos. Denaldi e Ferrara (2018, p. 14) levantam uma hipótese coerente e relevante de ser comprovada: os avanços relacionados com o aprimoramento do arcabouço jurídico e institucional do planejamento urbano e ambiental, assim como os referentes à reflexão conceitual, ainda não desencadearam, de forma significativa, uma nova práxis. 

Veremos na seção a seguir que uma hipótese semelhante cabe no contexto da Gestão de Riscos de Desastres, dos seus avanços e limitações, dialogando com o contexto da urbanização de assentamentos precários. 

 

4. Avanços e Limitações: gestão de riscos e desastres

Diante da problemática ambiental e de riscos em assentamentos precários, a Gestão de Riscos e Desastres - GRD (articulada com a dimensão da urbanização e com os demais setores da gestão pública) é um elemento que ganha destaque nas discussões sobre as alternativas para lidar com a complexidade da então problemática. 

Ao ser integrada ao Planejamento Territorial e às políticas públicas, a GRD passa a ser fundamental para reduzir os riscos e também as consequências de desastres deflagrados, ou seja, passa a reduzir as consequências da segregação socioespacial, melhorando a qualidade do ambiente urbano na exaustiva tentativa de democratizar as cidades (NOGUEIRA, 2002).

Incorporar a GRD nos processos de planejamento territorial, otimiza a implementação de medidas que visam reduzir o risco existente e evitar a geração de novos riscos no futuro (IDEAM et al., 2014). Assim, o risco como determinante do ordenamento do território não visa restringir ou travar o desenvolvimento que um município pode potencialmente ter, pelo contrário, permite identificar fragilidades e potencialidades territoriais, focando nas possibilidades reais de territórios resilientes e do fortalecimento das capacidades dos distintos atores das dinâmicas espaciais e do planejamento. 

Segundo Lavell (2003), Gestão de Riscos de Desastres - GRD pode ser denominada como um processo social complexo cujo fim é reduzir, prevenir e controlar permanentemente os riscos de desastres que expõem a sociedade, de forma integrada para alcançar o desenvolvimento humano, econômico, ambiental e territorial. Ele defende uma estrutura de gestão pautada em três categorias: Prospectiva (com ações de gestão que abordam e procuram evitar o aumento ou o desenvolvimento de novos riscos de desastres), Corretiva (com ações sobre riscos já existentes que podem afetar a população e seus meios de vida) e Reativa (com ações que abordam todos os aspectos de emergências durante e após a deflagração de desastres). 

A Estratégia Internacional para Redução de Desastres – ISDR (2012) detalha mais a definição ao colocar que a GRD é o conjunto de decisões administrativas, de organização e de conhecimentos operacionais desenvolvidos por sociedades e comunidades para implementar políticas, estratégias apropriadas e fortalecer suas capacidades a fim de reduzir os impactos de ameaças naturais e de desastres ambientais e tecnológicos consequentes. 

Embora se reconheça a GRD como dever do setor público e direito do cidadão, a gestão pública conta com dificuldades conceituais, metodológicas, técnicas, operacionais e institucionais de implementá-la, especialmente a nível municipal. O principal desafio está em garantir que ela seja implementada de forma mais eficaz do que no passado, sendo coerente com as condições territoriais locais e sustentada em fundamentos concretos, de forma a reduzir os riscos de desastres e minimizar seus efeitos (WILHELM, 2013). 

Torres (2010) agrega ao afirmar que é imprescindível institucionalizar a abordagem da GRD para regular o comportamento dos atores envolvidos, os modelos de organização e sua qualidade, os processos de gestão. 

Nos últimos trinta anos, a discussão em torno da GRD vem ganhando mais espaço e relevância no campo da pesquisa acadêmica e no âmbito das políticas públicas. Embora durante muito tempo tenha sido predominante o enfoque na resposta aos desastres, de acordo com Nogueira, Oliveira e Canil (2014, p.177) a partir da última década do século XX “pode-se observar a evolução para uma abordagem mais integrada dos eixos que consideram o conhecimento dos riscos, as ações prospectivas e corretivas para redução dos riscos e a preparação para manejo dos desastres”. 

Houveram avanços no contexto internacional, a exemplo da Década Internacional para Redução de Desastres Naturais - IDNDR (1987-1999), Estratégia Internacional para a Redução de Desastres - EIRD (2000-2004), Marco de Ação de Hyogo (2005), Marco de Ação de Sendai (2015); avanços no contexto nacional do Brasil, a exemplo da criação do Centro Nacional de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais - CEMADEN (2011), Lei 12608/2012 que institui a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil - PNPDEC, Programa 2040 do Plano Plurianual 2012-2015; a nível estadual e municipal, com as legislações municipais de segurança pública e defesa civil, mapeamentos de áreas de riscos, elaboração de  planos de contingência e de planos de redução de riscos - PMRR. Esse último se destaca por ser considerado um dos instrumentos da Ação de Apoio à Prevenção e Erradicação de Riscos em Assentamentos Precários, instituída pela Secretaria Nacional de Programas Urbanos, após a criação do Ministério das Cidades. 

No entanto, persistem fragilidades no campo da gestão pública, nas instituições estaduais e municipais do país, para coordenar ações conjuntas no território. Vale mencionar a carência de políticas públicas e de estudos de riscos que contribuam efetivamente para a tomada de decisões e para o fortalecimento das capacidades e competências das instituições de fomento, gestores e sociedade no geral, visando a atuação necessária e adequada na GRD e no Planejamento Territorial a nível local. 

Ainda hoje muitas gestões municipais apresentam deficiência na GRD e limitada capacidade institucional, mantendo o foco no desastre e não no risco, o que intensifica o desafio da tomada de decisões após o desastre ser deflagrado, além de dificultar o reconhecimento das responsabilidades. Um exemplo de problema refletido por tal situação é a questão das interdições de domicílios e a retirada das famílias. Devido à ausência de ações contidas nas etapas de pré-desastre, como a identificação e avaliação do risco, medidas de prevenção, redução e preparação, a opção que termina por oferecer mais segurança para a gestão pública é a interdição e a retirada. 

Ainda hoje, alguns pesquisadores e muitos gestores públicos vem seguindo uma abordagem conceitual e de investigação voltada apenas para um componente do risco. Nogueira e Paiva (2018)  afirmam que ora restringem-se exclusivamente à exposição, ora à qualidade construtiva, ou ainda, correlacionam-se a indicadores socioeconômicos de escala mais abrangente, que generalizam para todo o assentamento precário determinado nível de vulnerabilidade que, quase sempre, seria mais localizada na prática. 

 Destaca-se, entretanto, que abordagens e métodos consistentes para a escala de detalhe, que permitam associar objetivamente os componentes vulnerabilidades e precariedades ao perigo potencial, já vêm sendo contemplados por pesquisadores nos últimos anos em estudos que buscam o diagnóstico, mapeamento e análise de riscos. A exemplo, podemos citar Oliveira (2018), Sales (2020), Sales e Almeida (2020).

Além disso, predominam estudos e gestões baseadas na identificação das áreas de risco, nos seus mapeamentos, nos níveis através de índices, chegando às propostas generalizadas, pouco efetivas, refletindo por consequência em gestões ineficientes. Trata-se aqui da abordagem do Enquadramento de Risco. Tal abordagem, apesar de ter sua validade, processualmente tem direcionado o foco na remoção das pessoas das áreas de risco e não à eliminação da condição de risco. 

O enquadramento de risco é uma atividade para identificar situações críticas e definir as ações preventivas. O grande problema é que ao identificar e apontar uma situação problemática de risco, usualmente tem surgido a tendência de simplesmente eliminar o elemento em exposição [...] Teoricamente esta abordagem é coerente, porém a ação preventiva, baseada na simples eliminação da exposição pode trazer outros riscos, do mesmo porte ou mesmo maiores que aqueles que existiam anteriormente (MORETTI et al., 2019, p.4). 

Contrapondo a abordagem de enquadramento de risco, a abordagem da Qualificação de Segurança se baseia na necessidade de evoluir no sentido da gradativa redução de riscos, reduzindo a exposição e as vulnerabilidades e aumentando a resiliência, por meio de um planejamento urbano que considere a limitações, as fragilidades físicas e ambientais da área, antes, durante e após uma eventual ocorrência (MORETTI et al., 2019). Ou seja, uma abordagem que não invalida a identificação e enquadramento de risco, mas que também não se restringe a ela: volta o foco principal para medidas prioritárias à eliminação de tal condição, de maneira que a remoção das pessoas do seu próprio lugar não seja a primeira e única solução.

Há também limitações no que se refere a estudos que efetivamente contribuam para a qualificação do tratamento dos riscos em projetos de urbanização de favelas, e, consequentemente, contribuam para a articulação entre dimensões urbana, ambiental e de riscos. Mas, como referência que representa um avanço em relação a isso, podemos citar Nogueira e Paiva (2018) que discutem os aspectos conceituais e históricos da gestão de riscos e desastres no Brasil, no sentido de contribuir para a qualificação do tratamento dos riscos em projetos de urbanização de favelas. 

Os autores, por meio de estudos de caso (três projetos de urbanização de assentamentos precários, efetuados com recursos do PAC na Região do ABC Paulista, que previam simultaneamente a execução de obras voltadas à urbanização e ao tratamento de riscos)  sugerem indicadores para orientar a contemplação do tratamento em projetos:

●      Qualidade do diagnóstico;

●      Resultado da tomada de decisão do projeto de urbanização em relação ao diagnóstico;

●      Compatibilização do projeto de urbanismo, tratamento do risco/consolidação geotécnica e drenagem;

●      Adequabilidade da proposta técnica para mitigação do risco;

●      Adoção de medidas para impedir a construção/desenvolvimento de novas situações de risco;

Embora Nogueira e Paiva (2018) considerem que os indicadores aplicados precisam ser refinados e validados, evoluindo para instrumento mais preciso de avaliação da qualidade do tratamento de risco em urbanização de favelas, eles refletem sobre questões que contribuem para a nossa discussão: a) projetos apresentam diagnósticos de risco considerados insuficientes, sem proposição, precisando de alternativas de intervenção; b) a incipiente integração dos profissionais que tratam do diagnóstico de riscos com o processo de elaboração do projeto de urbanização, resultam em decisões pouco eficientes ou geradoras de custos e impactos sociais desnecessários; c) a “adequabilidade” deve ser a mais importante característica das soluções geotécnicas propostas (não existe um único tipo de obra, intervenção/solução geotécnica, adequado para toda e qualquer situação); d) há pouca integração entre os responsáveis técnicos pela avaliação dos riscos, pela proposição de alternativas geotécnicas, e pela elaboração e implementação dos projetos de urbanização, o que reflete na frágil relação entre as intervenções para redução de risco e o projeto urbanístico implementado. 

Outra fragilidade diz respeito à escala municipal e à cooperação intergovernamental. Os municípios são os locais onde a GRD precisa se materializar de maneira efetiva, uma vez que a maioria dos desastres recorrentes no território brasileiro tem alcance local ou regional. “Todavia, são justamente eles os entes federados mais frágeis, tanto em termos de capacidade econômica quanto técnico-administrativa, colocando um grande desafio para a efetivação da política e sua consolidação em nível local” (NOGUEIRA et al., 2014, p.179). Tal fragilidade é intensificada ainda mais pela dificuldade de cooperação intergovernamental.

Em outras palavras, há muito a se avançar. Partindo-se da ideia da disseminação de uma concepção de planejamento territorial comprometida com a transformação do padrão de desenvolvimento, é possível afirmar: há uma necessidade local, regional e até nacional de contar com aproximações metodológicas e técnico-científicas acerca da GRD, as quais levem em consideração o enfrentamento das dificuldades do pacto federativo, os princípios da GRD, as condições territoriais de cada área, a articulação com os demais setores de gestão, e que, sobretudo, direcionem os gestores às tomadas de decisões mais adequadas e efetivas. 

Conforme Veyret (2007) destaca, é necessário a constituição de um processo de análise, onde a gestão deve ser entendida enquanto formas de intervenção diversas que englobam formulação e implementação de políticas públicas, estratégias, ações e instrumentos de redução e controle de riscos, buscando então o aumento da resiliência das populações e a redução das situações de exposição, vulnerabilidade e risco.

5. Conclusão

A discussão realizada neste artigo nos permite constatar a relação existente entre os assentamentos precários e as áreas de riscos nas cidades, nos possibilitando defender que trata-se de um mesmo contexto e que são simultaneidades urbanas. Aspectos das histórias de ambos surgem juntos, se cruzam e seguem refletindo em limitações e avanços no âmbito da urbanização de favela e da gestão de riscos de desastres, os quais influenciam um ao outro. 

O aumento da população nos centros urbanos e, principalmente, nos assentamentos precários, a conflituosa atuação do Estado historicamente, a constatação da sua incapacidade e do mercado de produzir habitação em escala e custo compatíveis com a demanda e a renda, somada ao reconhecimento da necessidade de serviços de infraestrutura e saneamento e, ainda, ao reconhecimento das condições de riscos e de precariedade, indicaram como prioritária a alternativa da urbanização de favelas. 

A urbanização de favelas, então, consolidou-se como o tipo de intervenção mais praticado e o município assumiu o protagonismo nesse cenário. Diante disso, se esclarece aqui que, mesmo o município sendo o mais indicado para intervir sobre a problemática, a mesma não consegue ser resolvida apenas no âmbito municipal. Denaldi (2003) defende que é necessário ter integração com uma política estadual e federal de habitação, contar com uma política de subsídios para baixa renda e com programas (complementares) que permitam o acesso às moradias, além de haver integração com outras políticas setoriais.

O mesmo acontece em relação à gestão de riscos de desastres em que a esfera municipal também é a mais indicada para institucionalização e para intervir sobre a problemática das áreas de riscos, porém se considera indispensável a interação com as esferas estaduais e federal (como está na Política Nacional de Proteção e Defesa Civil) e ainda com demais políticas e programas, inclusive com os de urbanização de assentamentos precários.

Outro ponto convergente entre a urbanização de assentamentos precários e a gestão de riscos de desastres está nas capacidades institucionais consideradas limitadas. Em relação a primeira, vimos que a limitada capacidade institucional perpassa a temporalidade e segue sendo um impasse para municípios implementarem atualmente programas habitacionais ou de urbanização de favelas. A GRD passa pelo mesmo, quando a ausência de aproximações metodológicas e conceituais, ou a falta de conhecimento e domínio delas, levam inúmeras gestões municipais a não desenvolverem as capacidades institucionais e técnicas necessárias para uma efetiva gestão integral de riscos, enquanto os ambientes vão se tornando mais exposto, as populações mais vulneráveis, o risco mais elevado e, em caso da deflagração de desastres, as consequências se tornarão mais negativas e intensas.

A limitada capacidade institucional reflete no nível de qualidade dos diagnósticos, projetos e obras de urbanização de assentamentos precários, e, por consequência no tratamento de riscos, e aponta para a necessidade de melhorá-los.

Por meio da revisão bibliográfica realizada neste artigo, vimos que nas duas últimas décadas a política de urbanização de favelas foi institucionalizada, difundida e aprimorada. Mas que, mesmo diante de tantos avanços, as limitações persistem e as intervenções nem sempre conseguem promover a integração da favela à cidade, garantir o acesso à moradia adequada, diminuir os níveis de vulnerabilidade social e mitigar os riscos. 

A hipótese levantada por Denaldi e Ferrara (2018, p.14), sobre planejamento urbano e ambiental, permite-nos levantar uma hipótese semelhante no contexto da gestão de riscos de desastres. A primeira, formulada pelas autoras, afirma: “os avanços relacionados com o aprimoramento do arcabouço jurídico e institucional do planejamento urbano e ambiental, assim como os referentes à reflexão conceitual, ainda não desencadearam, de forma significativa, uma nova práxis”. A segunda, resultante da discussão deste capítulo, nos leva à conjectura: apesar da gestão de riscos de desastres - GRD ter seu enfoque implementada no âmbito da legislação, bem como no âmbito científico, ainda permanece inefetiva em determinados municípios que apresentam no seu histórico a ocorrência emblemática de desastres, devido à incidência de limitações da governança, no que se refere à integração da GRD ao planejamento territorial, em termos de legislação municipal e práticas de planejamento urbano.

Por fim, considera-se que há lacunas ainda necessárias de serem abordadas por estudos, sendo essas hipóteses coerentes e relevantes de serem comprovadas, na direção de se buscar potencializar a articulação entre as dimensões urbana, ambiental e de riscos.

 

[1] Aglomerado subnormal, segundo o IBGE (2019), é definido como “forma de ocupação irregular de terrenos de propriedade alheia – públicos ou privados – para fins de habitação em áreas urbanas e, em geral, caracterizados por um padrão urbanístico irregular, carência de serviços públicos essenciais e localização em áreas com restrição à ocupação. No Brasil, esses assentamentos irregulares são conhecidos por diversos nomes como favelas, invasões, grotas, baixadas, comunidades, vilas, ressacas, loteamentos irregulares, mocambos e palafitas, entre outros.”

[2] O termo “tratamento de riscos” usado neste artigo refere-se a todo tipo de intervenção empregado para mitigar ou reduzir riscos identificados no assentamento a ser urbanizado, tomando como referência Nogueira e Paiva (2018).

[3] Como Sales (2020) ressalta, entretanto, é em meio a esse contexto que surgem grande parte das áreas de riscos; “grande parte” porque nem todas são condicionados pela lógica da exclusão e segregação espacial tratada até o momento, o que quer dizer que determinados espaços ocupados por uma população de poder aquisitivo mais elevado não está livre de sofrer com a deflagração de eventos hidrogeológicos, muito embora o risco apresente níveis menos intensos, graças à ausência ou baixo nível de vulnerabilidade social e às capacidades de enfrentamento e de adaptação.

 

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