“Coca, água, latão”: O trabalho por conta própria nos trens cariocas


Maria Julia Batista De Oliveira Reis
Doutoranda em Serviço Social da PUC-Rio

Referências

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Introdução

            O mundo do trabalho passou por diversas transformações marcantes ao longo dos anos. A expressão “mundo do trabalho” relaciona-se ao cenário de mudanças nas condições de trabalho e na perda de direitos de inúmeros trabalhadores (STAMPA, 2011). Diante disso, é percebido que a flexibilização e precarização das relações de trabalho, resultantes deste processo, evidenciaram o estado permanente da questão social. Fenômenos como desemprego e pobreza ganharam nova forma diante da expansão da Globalização.

            Nesse sentido, como principal alternativa para obtenção de renda por meio de trabalho (assalariado) apresenta-se sua informalidade. Em especial, se expande o comércio informal cuja dinâmica está voltada para rapidez da circulação de mercadorias. Antunes (2018) destaca que as relações advindas do capital (em seu sentido destrutivo) têm aumentado cada vez mais o desemprego e o número de trabalhos precarizados em diversos setores. O que vemos como expansão da informalidade seria o crescimento de uma nova característica do desemprego nos dias atuais[1].

            Ao buscar identificar elementos do trabalho e das dinâmicas dos trabalhadores ambulantes e de conta própria que possam evidenciar precarização e informalização na cidade, a apresentação deste artigo foi dividida em quatros partes. Na primeira, discutimos algumas nuances do trabalho por conta própria diante da lógica de sua precarização. A segunda caracteriza a ferrovia no rio de Janeiro, sob responsabilidade da empresa Supervia Concessionária de Transportes Ferroviários S.A. (SuperVia), como espaço de trabalho onde se evidencia a relação entre a empresa e os trabalhadores ambulantes. Na terceira parte apresentamos os dados da pesquisa qualitativa que foram obtidos pela aplicação de um questionário semiestruturado a dez (10) jovens trabalhadores ambulantes. E por último, seguem as considerações finais.

Características do trabalho por conta própria

Com a vitória do neoliberalismo na década de 90, intensificou-se o processo de reestruturação produtiva no Brasil, com isso as empresas tiveram que adotar “novos padrões organizacionais e tecnológicos, novas formas de organização social do trabalho”. (ANTUNES, 2018). Com essas transformações ocorreu o que Antunes chamou de simbiose entre os elementos característicos do trabalho com herança fordista e os novos instrumentos próprios de acumulação flexível; para o autor:

Desde quando começou a ser efetivamente introduzida no Brasil, a partir da década de 1990, a pragmática neoliberal teve claras consequências: o aumento da concentração de riqueza, expansão dos lucros e ganhos de capital, incrementados com a privatização de empresas públicas, além do avanço da desregulamentação dos direitos do trabalho. (ANTUNES, 2018, p. 297)           

A ampliação do projeto neoliberal de sociedade, fez com que as práticas de trabalho precário se expandissem na medida em que ocorria também um desmonte no sistema de direitos. Para Abramo (2006) as persistentes desigualdades de gênero e raça que materializaram o Brasil como nação, foram naturalizadas ao longo do tempo em detrimento da sobreposição de grupos privilegiados. Quem se encontra na condição de desempregado ou no subemprego, pessoas pretas e pardas, vão sentir intensamente os efeitos da crise.

O capital se reinventa e subsidia a precarização do trabalho e novos segmentos proletários no campo dos serviços e do chamado trabalho informal. O acesso ao trabalho protegido, pautado por garantias de direitos conquistados, se afasta a cada dia da realidade da população brasileira. Com o aumento da exclusão, grande parte da população é deixada à deriva de sua inventividade e ousadia para geração de renda para sobrevivência. 

Nos últimos anos, um conjunto de direitos conquistados sofreram tamanhas alterações e flexibilizações em detrimento do empregado que a vida para assalariados ficou cada vez mais difícil. Este processo se iniciou no final de 2016, quando o governo formalmente legítimo de Michel Temer (MDB) apresentou uma Proposta de Emenda à Constituição de nº 287 que propunha uma reforma trabalhista.  Na época, Arthur Maia (PPS-BA) foi designado relator da PEC, que segundo Oliveira (2020), “resultou de um projeto elaborado com estratégica assessoria das entidades empresariais com destaque a FIESP e a CNI”.

Sem demora, o projeto entrou em análise pela Comissão Especial da Câmara dos Deputados e com a maioria (296, sim para 177, não), foi aprovado um mês depois. Por meio da lei federal 13.467[2] instituída em abril de 2017, o ordenamento jurídico que regula as relações trabalhistas foi alterado, flexibilizando dispositivos da Previdência Social, que juntamente com a Assistência Social (para quem dela necessitar) e a Saúde (universal a todos), simbolizam o  maior sistema de proteção social implantado no país, fruto das ações de enfrentamento de movimentos sociais, junto a sociedade civil, formalizado na Constituição Federal de 1998. 

Segundo Carvalho 

A lei, amplamente reconhecida como reforma trabalhista, altera, cria ou revoga mais de cem artigos e parágrafos da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e muda de forma substancial o funcionamento do mercado de trabalho brasileiro quando entrar em vigor em novembro de 2017. Há, no conjunto da Lei no 13.467/2017, uma lógica que busca diminuir, no marco do direito do trabalho no Brasil, a noção de que a venda da mercadoria força de trabalho trata-se de uma relação entre pessoas, substituindo-a por uma visão que trata essa venda como uma relação entre coisas. (CARVALHO, 2017, p. 81).

Questões como jornada de trabalho e remuneração são definidas pelo empregador sem uma fiscalização propriamente dita, fragilizando até a Justiça do Trabalho. Nesse contexto há uma redução do Estado como mediador de conflitos trabalhistas e enfraquecimento das organizações sindicais. A reforma trabalhista representou o desmonte da CLT e aprofundou o fenômeno da informalidade no trabalho, entre outras consequências previstas por José Dari Krein e os estudos desenvolvidos no Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Unicamp[3].

Ricardo Antunes (2018), ao narrar as transformações nas condições de trabalho e organizações de trabalhadores ao longo dos tempos, dispõe de análises que refletem uma nova morfologia do trabalho, dessa forma, analisa a precarização como regra:

O objetivo perfilado pelo governo de Michel Temer, no universo das relações de trabalho, é corroer a CLT e cumprir a “exigência” do empresariado (Confederação Nacional da Indústria/CNI, Federação Brasileira de Bancos/Febraban e assemelhados), cujo objetivo não é outro senão implantar a sociedade da precarização total do trabalho no Brasil (ANTUNES, 2018. p. 299). 

A reforma da previdência pode ser interpretada como a maior devastação dos direitos já conquistados desde Getúlio Vargas. O movimento político teve apoio das elites econômicas, grandes empresas, universidades, da grande mídia, como Folha de São Paulo, Rede Globo,Veja,  que deram apoio ao impeachment da primeira presidenta eleita do Brasil Dilma Rousseff (PT) e evidenciaram falhas da política brasileira e do sistema de direito[4].

Ricardo Antunes, relacionou a lei federal de nº 13.467 ao que chamou de contra reforma trabalhista e associou a “legalização do trabalho intermitente”, aquele onde o trabalhador está disponível, mas nem sempre é solicitado para trabalhar, onde a remuneração é feita pelas horas trabalhadas. Há um aumento da informalidade das relações de trabalho, pois não é pré-definida uma carga horária de trabalho, assim como a remuneração, ou seja não há garantia de mínimo salarial. 

Sem aprofundar essa análise neste momento, há fortes indícios que, com a eleição de Jair Bolsonaro, a informalidade se aprofundou. Discursos que associavam o trabalho por conta própria e o empreendedorismo ganharam força e foram disseminados pelo governo como superação da relação de mando/obediência entre patrão e empregado. As sociólogas Ludmila Abílio e Léa Marques, na pesquisa “Trajetórias da informalidade no Brasil Contemporâneo”[5], já previam um crescimento exorbitante na informalidade do trabalho, sem proteção social, diante da perspectiva distorcida de empreender, ser empreendedor, chefe de si mesmo. 

Dentro do quadro do Brasil, em termos da informalidade, o estado do Rio de Janeiro apresenta suas particularidades. Desde 2018 a taxa de desemprego ultrapassa a taxa nacional, evidenciando além de uma precarização do trabalho uma crise política brasileira que permeou os governos de Sérgio Cabral, Luiz Fernando Pezão, Wilson Witzel e Cláudio Castro. Um dos entraves para o governo Cláudio Castro diz respeito aos altos índices de informalidade no estado, reflexo das desigualdades de rendimentos, das relações entre o governo estadual, federal e municipal para lidar com a problemática e o agravamento de um cenário pela crise sanitária do Covid-19. 

Em números, de acordo com PNAD Trimestral 2022, o estado do Rio de Janeiro, fechou 2022 atingindo a marca de quase 3 milhões de trabalhadores informais, destacando a região metropolitana majoritariamente com 2 milhões 223 mil trabalhadores informais como mostra o gráfico 1 (Trabalhadores Informais - 3º Tri 2022 - Estado do Rio de Janeiro) abaixo:

Gráfico 1 - Trabalhadores Informais - 3º Tri 2022 - Estado do Rio de Janeiro

Fonte: NUPERJ, 2023.

No que diz respeito ao trabalho por conta própria, a RMRJ também recebe destaque. De acordo com a Pnad Trimestral, aproximadamente 1.8 milhões de trabalhadores da Região Metropolitana do Rio de Janeiro são autônomos. Na Região Serrana com 110 mil, o número é o mais baixo como mostra o gráfico 2 abaixo (Trabalhadores por conta própria - 3º Tri 2022 - Estado do Rio de Janeiro). Ainda contem os números absolutos de trabalhadores por conta própria na RMRJ, no Norte/Noroeste Fluminense, na Costa Verde e na Baixada Litorânea.

Gráfico 2 - Trabalhadores por conta própria - 3º Tri 2022 - Estado do Rio de Janeiro

Fonte: NUPERJ, 2023

O trabalho por conta própria se torna possibilidade diante das dimensões da crise estrutural do capital e seus impactos no mundo do trabalho. As novas formas e espaços de sustento para os trabalhadores dão materialidade à flexibilidade tropical de Milton Santos (2006), onde frente aos processos de metamorfoses do mundo do trabalho, há uma adaptação em forma de criatividade que (re)cria sua forma de existir no mundo. Fábio Tozi ao falar da flexibilidade tropical vai mencionar a pirataria como vetor de circulação de mercadorias para população mais pobre. A flexibilidade tropical cria um mercado socialmente necessário que viabiliza o consumo da população mais pobre (TOZI, 2012).

Para análises dos gráficos é preciso levar em conta que as taxas de trabalhadores informais e por conta própria, aqui expostos, acompanham as diferenças geoeconômicas dos municípios fluminenses. A Região Metropolitana do Rio de Janeiro dentre as outras é a região mais populosa, composta por 22 municípios: Belford Roxo, Duque de Caxias, Guapimirim, Itaboraí, Itaguaí, Japeri, Magé, Maricá, Mesquita, Nilópolis, Niterói, Nova Iguaçu, Paracambi, Petrópolis, Queimados, Rio de Janeiro, Seropédica, São Gonçalo, São João de Meriti, Tanguá, Cachoeiras de Macacu e Rio Bonito.

Diante dessa problemática, o trabalho por conta própria se apresenta como possibilidade de sustento e insumos para sobreviver. Devido à rápida circulação de mercadorias, o trabalho ambulante, em especial, se mostra como alternativa diante da crise do mundo do trabalho. Esta atividade segue uma lógica subordinada de si mesmo e precisa ser intensiva para gerar algum tipo de lucro. Estudos recentes de Jordão (2019), Raposo (2019), Pereira  (2020), (Nishiyama, 2020), (Bezerra, 2020), (Cordeiro, 2020), (Silva, 2020), (Felix, 2021), (Silva, 2021a), (Silva, 2021b), (Silva, 2021c), (Ribeiro, 2022) e (Bispo,2022), corroboram para nossa análise quando situam as condições de trabalho ambulante em distintos lugares do Brasil. 

A ferrovia como espaço de trabalho

Neste artigo a investigação e discussão são limitadas ao universo dos trabalhadores ambulantes na Região Metropolitana do Rio de Janeiro que atuam no transporte ferroviário. O sistema de transporte ferroviário integra os trabalhadores ambulantes de diversos pontos dos municípios que compõem a RMRJ em um único sistema de transportes.  O desenvolvimento do sistema de trens urbanos da Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ) se consolidou a partir das transformações da cidade voltadas para a lógica de um espaço urbano mercantilizado. 

No que diz respeito às consequências da reestruturação econômica, o aumento da parceria público privada no setor de transporte se estendeu aos trens urbanos e ficou a cargo da iniciativa privada a função de implementar políticas sociais. Stampa (2011) analisou as consequências das privatizações para seus usuários e como esse processo impactou os trabalhadores das periferias. Esses desdobramentos incidem sobre os modos de vida da população trabalhadora e desvela a questão social em suas particularidades. 

Algumas deficiências no setor público abrem lacunas que refletem os problemas administrativos e estruturais do sistema público (STAMPA, 2011). Nesse sentido, antecedidos por licitação, o governo transfere à iniciativa privada o gerenciamento dos serviços públicos sem se isentar de responsabilidade, concretizando uma forma de parceria público-privada. Ou seja, a empresa efetiva uma política pública, porém cabe ao governo fiscalizar e intervir quando necessário, de modo a garantir a prestação de serviços à população.

Essa transferência se dá pelos discursos que afirmam a ineficiência estatal, porém são propagados para materializar a lógica do capital. 

O processo de privatização gerou desemprego e desmobilizou muitos trabalhadores, que tiveram de disputar acirradamente determinado posto de trabalho para garantir a sua sobrevivência e a de sua família. Além de provocar relações e condições de trabalho instáveis para os trabalhadores que conseguiram permanecer ou se inserir nas empresas que compraram ou obtiveram concessões, como foi o caso da SuperVia ( JORDÃO, 2017).

Desde 1998 a Supervia Concessionária de Transportes Ferroviários S.A.(SuperVia), gerencia todas as atividades e serviços das ferrovias do estado do Rio de Janeiro. Possui uma malha ferroviária de 270 km que se subdividem em cinco ramais (Santa Cruz, Deodoro, Japeri, Belford Roxo e Saracuruna), três extensões (Paracambi, Vila Inhomirim e Guapimirim). A Supervia conta com 102 estações que atendem 12 municípios: Rio de Janeiro, Nova Iguaçu, Duque de Caxias, Mesquita, Nilópolis, São João de Meriti, Belford Roxo, Queimados, Japeri, Magé, Paracambi e Guapimirim (REIS, 2022), como evidencia o Mapa de Linhas abaixo[6].

A Supervia, a partir da concessão, assumiu o compromisso de oferecer um serviço eficaz para atender a população do estado do Rio de Janeiro e, caso isso não seja cumprido, pode ser feito por parte do estado a rescisão ou anulação do contrato (SOUTO, 2001). As informações referentes ao contrato inicial e seus aditivos estão disponibilizadas no site da AGETRANSP (Agência Reguladora de Serviços Públicos Concedidos de Transportes Aquaviários, Ferroviários, Metroviários e de Rodovias do Estado do Rio de Janeiro). 

Os trens transportam em dias úteis cerca de 300 mil pessoas diariamente. Suas estações, acolhem diariamente usuários que estão indo de um destino para outro, trabalhadores das estações e também trabalhadores ambulantes vendendo suas mercadorias. A Concessionária responde a diversas ações públicas no Ministério Público no que diz respeito à acessibilidade, infraestrutura, condições dos serviços e segurança. Manifestações contrárias à tarifa da passagem também é um assunto recorrente quando se trata da Supervia.

Mapa de Linhas

 

Neste cenário temos os inúmeros trabalhadores, usuários do trem, afetados, além dos trabalhadores ambulantes que vivenciam as contradições entre a informalidade/ilegalidade e as formalizações. Os trabalhadores ambulantes vivenciam a dicotomia entre o socialmente aceito e o trabalho ilegal nos trens da Regiao Metropolitana do Rio de Janeiro. Mesmo recebendo o título de Patrimônio Cultural de Natureza Imaterial do estado (Lei Estadual nº 9170/21, os trabalhadores ambulantes são criminalizados pela Supervia, que possui uma campanha de conscientização contra a atividade ambulante e estimula, os usuários a não adquirirem suas mercadorias.

Os passageiros usuários da ferrovia estão compostos por um grande número de jovens homens que são superiores ao de mulheres, adultos e idosos trabalhadores. Pode ser interpretado como sinais das transformações no mundo do trabalho que, para a mão de obra jovem, contribuíram para piorar as condições de seu acesso ao mercado de trabalho.)

Analisam o desemprego juvenil como reflexo das mudanças mais amplas no mundo do trabalho que não estão circunscritas aos jovens, mas os afetam mais intensamente em termos de oportunidades de trabalho. Ao mesmo tempo, leva em consideração o fato histórico de que na América Latina o trabalho precoce ainda faz parte da experiência juvenil para grande parte da população (Cardoso et al., 2009, p.111).

A falta de acesso do jovem ao trabalho ao longo dos anos impactou diretamente em suas escolhas para sua sobrevivência, levando em conta, as dimensões socioculturais de curto e longo prazo do desemprego juvenil. Nesse sentido há um aumento do risco de vulnerabilidades, uma menor qualificação profissional, aumento do desânimo para busca de trabalho, perda de motivação para tarefas que exigem esforço (não recompensado imediatamente) e consequentemente, problemas físicos e mentais. 

Este artigo retrata os trabalhadores que utilizam e se apropriam o espaço da Supervia para comercializar sua mercadoria, entre elas: água, coca cola, cerveja, biscoito, salgados, salame, brinquedos, aparelhos eletrônicos, “pele”, doces e, etc. Neste cenário heterogêneo alguns trabalhadores se autodeclaram camelôs. Não há diferenciação entre ambulantes e camelôs no sentido subjetivo da vivência entre eles, tanto o camelô quanto os ambulantes representam

o trabalhador auto empregado que vende diretamente ao consumidor (varejo) produtos diversos (normalmente miudezas e mercadorias de mais baixo valor), ou presta serviços (normalmente de alimentação), em vias e logradouros públicos (ruas, calçadas, praças, jardins, etc.), fora lojas, em postos fixos ou móveis, ou de forma itinerante levando sua mercadoria junto ao corpo, com ou sem permissão oficial. (PAMPLONA, 2013. p. 230).

            Nos trens da RMRJ, temos a presença de trabalhadores itinerantes e em pontos fixos de algumas estações. Estas estações se destacam das demais, devido à maior concentração de ambulantes itinerantes e de pontos fixos que evidenciam as relações de poder embutidas na ferrovia para organização do trabalho. Chamamos estas estações de estações principais. Estas relações de poder regulam o espaço de trabalho por conta própria da SuperVia, mas não necessariamente são instituídas pelos atores que representam à concessionária. No Ramal Santa Cruz, as estações de Campo Grande, Deodoro, Madureira, Maracanã, São Cristóvão e a estação terminal Central do Brasil foram caracterizadas como estações principais (REIS, 2022). 

Coca, água, latão: os trabalhadores ambulantes nos trens

Partindo das discussões anteriores, buscamos apreender a experiência laboral de dez jovens trabalhadores ambulantes da cidade do Rio de Janeiro. O título desta seção faz referência às estratégias usadas para divulgar mercadoria: “Coca”, é o refrigerante Coca Cola; “água”, vendida com gás ou mineral e “latão”, relaciona-se às cervejas de 473 ml.  Formando uma sincronia com as palavras, os trabalhadores saem anunciando sua mercadoria, trazendo novidades, viabilizando e estimulando o consumo da população usuária do transporte. 

Os procedimentos metodológicos aqui utilizados são comprometidos, em sua abordagem, a respeitar qualquer manifestação que fosse contrária ao objetivo da pesquisa e que atrapalhasse as dinâmicas do trabalho ambulante. Acreditamos ser fundamental a construção de uma relação sincera e de respeito entre o sujeito que investiga e o objeto investigado. Desse modo, a partir do olhar etnográfico, da entrevista semiestruturada, da observação sensível e atenta, do fortalecimento de uma escuta qualificada, buscamos compreender o universo permitido pelo jovem.

Para efeito de organização desta pesquisa qualitativa foi desenvolvido um roteiro de entrevistas que é à base do questionário. O roteiro de pesquisa descreve as dinâmicas de vida e trabalho dos indivíduos que desenvolvem atividade laboral de ambulante nos trens do ramal Santa Cruz, no município do Rio de Janeiro em 2021. Desse modo, analisamos o questionário em quatro variáveis: Educação, Moradia, Trajetórias de trabalho e Dinâmicas de trabalho nos trens, para que as nuances do cotidiano atual desses trabalhadores fossem desveladas. 

Entrevistamos oito homens e duas mulheres entre 16 e 30 anos, remetendo a pensar o conceito de juventude de forma ampliada. Consideramos que a juventude pode ser caracterizada como período da vida humana, onde há a imersão do indivíduo na vida social e no mundo do trabalho. Dos dez jovens, quatro se autodeclaram negros, dois se autodeclaram brancos e 4 pardos. O mais jovem tinha 16 anos e o mais velho, 30 anos. 

Em relação à escolaridade apenas quatro jovens já tinham terminado o ensino médio, para três com ensino fundamental incompleto e três que ainda não concluíram o ensino médio.  Estes dados nos remeteram, não só à evasão escolar, mas a ausência de emprego após a conclusão do ensino médio. Ou seja, não basta concluir os estudos é necessário oportunidades. 

Alguns autores como Caetano e Pomponet (2019), Batista (2015), Réis (2015), entre outros, consideram que os processos de escolarização expandem as possibilidades jovens que buscam uma experiência de trabalho. Para os autores os jovens com menos escolaridade transitam do desemprego para os trabalhos ditos informais, precários e temporários, que estimulam o abandono dos estudos. Este afastamento do ambiente escolar pela necessidade de geração de renda para sobrevivência, fortalece o trabalho por conta própria, pois a movimentação do dinheiro é rápida, ignorando a proteção social e reproduzindo discursos empreendedores. 

 Quando situamos as dinâmicas atuais da sociedade desvelamos uma lacuna deixada pelo poder público. Ao invés de usufruir dos ambientes escolares para efetivar direitos de educação, informação, conhecimento, lazer, esporte, o jovem se vê pressionado a parar fases de sua vida para mais cedo se inserir no mercado de trabalho. Esses jovens, ou melhor, estes jovens possuem cor e classe social. 

Outro apontamento da pesquisa foi o local de moradia dos trabalhadores ambulantes, os dez jovens moram perto da linha férrea, nas periferias urbanas do Rio de Janeiro. Para Milton Santos (2002): 

Morar na periferia é se condenar duas vezes à pobreza. À pobreza gerada pelo modelo econômico, segmentador do mercado de trabalho e das classes sociais, superpõe-se a pobreza gerada pelo modelo territorial. Este, afinal, determina quem deve ser mais ou menos pobre somente por morar neste ou naquele lugar. Onde os bens sociais existem apenas na forma mercantil, reduz-se o número dos que potencialmente lhes têm acesso, os quais se tornam ainda mais pobres por terem de pagar o que, em condições democráticas normais, teria de lhe ser entregue gratuitamente pelo poder público (SANTOS, 2002, p.115).

Percebe-se que há um processo de precarização da vida dos jovens ambulantes e de suas famílias, que permeiam o acesso a transporte, habitação, educação, saúde, mobilidade, ou seja a negação do direito à cidade. A noção de direito à cidade surgiu quando Henry Lefebvre (2008) elevou o espaço urbano ao centro do debate sobre reprodução de desigualdades e dinâmicas de acumulação de capital.

David Harvey (2011), apontou que a forma concreta de direito à cidade é pensar na liberdade de construir e reconstruir a cidade e a si mesmo. Para o autor essa autonomia é importante para demarcar as relações na cidade, porém “progressivamente vemos o direito à cidade cair em mãos privadas ou interesses quase privados”. Neste processo:

O direito à cidade, como ele está constituído agora, está extremamente confinado, restrito na maioria dos casos à pequena elite política e econômica, que está em posição de moldar as cidades cada vez mais ao seu gosto. (HARVEY, 2011, P. 87).

Consideramos, a partir da proposta tanto de Lefebvre (2008), quanto de Harvey (2011) que direito a cidade está relacionada às formas de experimentar a cidade de forma completa, o direito à cidade é variável para entendimento do conceito de Cidadania. É o direito de estar na cidade e transformar a cidade. É o direito a ter autonomia e mobilidade. É o direito de transitar e usufruir da cidade, nas cidades. É ter abrigo, saúde. É ter direitos básicos e acesso a oportunidades. É o direito de existir na cidade. 

As trajetórias laborais, tanto dos jovens, quanto de suas famílias são permeadas pela informalidade e pelo trabalho por conta própria. Os quatro jovens que concluíram o ensino médio, quebraram um ciclo de falta de acesso à educação básica. Contudo, terminar o ensino médio não garantiu o acesso ao trabalho formal com proteção social.  Diante dessa problemática os trabalhadores ambulantes buscam na ferrovia um lugar para obter rendimentos que deem conta de suprir suas necessidades básicas e isso se estende à família. 

Da mesma forma que os ambulantes são vistos como ameaça, há uma cooperação nas estações principais que facilitam a entrada de vendedores no ponto fixo nas plataformas. O número de mercadorias apresentadas por esses vendedores ambulantes é maior, os mesmos locomovem as mercadorias através de carrinhos similares aos de mercados ou fazem várias viagens, montando assim seu ponto de venda fixo. Os ambulantes dos pontos fixos não possuem tempo diante de abordagem surpresa da fiscalização para fuga, diferente dos que atuam de forma itinerante que carregam consigo toda a mercadoria.

Dos dez jovens ambulantes entrevistados, oito jovens nunca trabalharam de carteira assinada. Atualmente, no espaço da Supervia, se expõem a altas horas de trabalho para sobrevivência de sua família, alguns chegam a trabalhar 10 horas por dia. Dois dos entrevistados, por exemplo, não conseguiram mensurar suas horas trabalhadas e não declararam na entrevista sua carga horária de trabalho. 

Em relação aos rendimentos, há uma grande variação. O ambulante que comercializa água, refrigerante, cerveja no ponto fixo tem rendimentos mais altos do que o itinerante, e dobram seu lucro em dias de maior demanda, como em dias de jogos de futebol no Maracanã. Porém essa lógica só vale para ambulantes que trabalham de Madureira a Central do Brasil. 

Outro ponto que desvela as dinâmicas do trabalho informal são as apreensões da SuperVia. Dentre os dez entrevistados, somente uma jovem não havia tido uma experiência de apreensão violenta. Os ambulantes apelidaram de “derrame”, o momento de intervenção/proibição/repressão da SuperVia junto aos ambulantes de forma violenta e dura. 

Em relação a alimentação, nove ambulantes comem suas refeições no espaço da ferrovia e uma jovem ambulante consome sua mercadoria (salgados), pois possui baixos rendimentos. Os ambulantes compram refeições vendidas na própria ferrovia com outros ambulantes parceiros. Quando isso não ocorre, costumam consumir sua própria mercadoria. Devido a disputa para ocupação do espaço com outros ambulantes, estes trabalhadores optam por ficar com suas mercadorias e no espaço da ferrovia. Não há trânsito de parar para almoçar, voltar para casa e retornar ao trabalho. Devido a quantidade de mercadorias, os ambulantes só retornam para casa quando a meta diária for cumprida.  

No que diz respeito às necessidades fisiológicas, os dez jovens ambulantes não possuem acesso direto ao banheiro de algumas estações, pois seu trabalho é considerado irregular. O uso dos banheiros acompanha a lógica do “derrame”. Os trabalhadores ambulantes têm acesso ao banheiro quando não vivenciam esse período. Qual o sentido do “derrame” para a Supervia? 

Há uma dinâmica interessante que é o revezamento quando é necessário ir ao banheiro, onde um ambulante toma conta da mercadoria do outro enquanto ele arranja um lugar para fazer suas necessidades fisiológicas. As questões de gênero também são evidenciadas nesse aspecto, as duas jovens ambulantes entrevistadas relataram dificuldades em fazer suas necessidades fisiológicas, pois o número de homens na estação é maior do que o de mulheres. Diante desse universo de preponderância masculina, as duas jovens se veem a mercê do assédio e violência sexual. 

            Um aspecto importante da pesquisa está relacionado ao desejo de trabalhar com carteira assinada. No momento da entrevista apenas dois jovens tinham esse desejo, e estavam recebendo auxílio desemprego e complementando a renda como ambulante nos trens. Apenas estes dois ambulantes contribuíram para a previdência social em algum momento da sua vida.

Considerações finais

            Muitos são os entraves do comércio ambulante; o espaço da ferrovia se materializa como ambiente de grande circulação de pessoas para o consumo rápido. Os vendedores ambulantes, a partir do seu trabalho informal, se apropriam de locais de grande circulação de massas, a ferrovia, que, por sua vez, vivencia o desmonte de políticas públicas de transportes em detrimento do fortalecimento da iniciativa privada. Entre o socialmente legal e as sanções da concessionária, inúmeros trabalhadores se apropriam da ferrovia como espaço de geração de renda para sobrevivência.             

            O processo de precarização do mundo do trabalho coloca o desafio de pensar, não só, um futuro para as relações de trabalho diante do desmonte de direitos previdenciários, mas qual o protagonismo da juventude nessas relações. Pensar na ferrovia como um espaço de oportunidades e de saída, é pensar em um consenso político entre a SuperVia e o trabalho ambulante, enfraquecendo assim a contradição do “derrame”. É possível pensar em um consenso entre o poder público e os trabalhadores nos trens. 

            As dinâmicas por conta própria no espaço da SuperVia, revelam as formas mais obscuras da precarização e informalização do/no “mundo do trabalho” nos dias atuais. Esta pesquisa revelou que os jovens de nossa pesquisa compõem uma parcela da sociedade que possui um acesso residual das políticas públicas, que impactam em suas escolhas, formas de viver a vida e formas de pensar sobre a vida. O acesso ao trabalho, a renda deste trabalho influencia na forma como o indivíduo experimenta a cidade.

 

[1] Numa entrevista para o jornal Brasil de Fato, Antunes caracterizou como “novo proletariado de serviços”. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2019/04/29/trabalho-precario-intermitente-e-a-antessala-do-desemprego-diz-ricardo-antunes

[2] Conhecida popularmente como Reforma Trabalhista.

[3] https://www.cesit.net.br/

[4] Para saber mais, leitura da tese de doutorado de Lusmarina Campos Garcia, intitulada “A complexa relação entre o direito e política no Brasil: uma análise do impeachment da Presidenta Dilma Rousseff” pelo Programa de Pós Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro de 2022. 

[5] MARQUES, Léa (org) Trajetórias da informalidade no Brasil contemporâneo. Editora: Fundação Perseu Abramo, 2021

[6] https://www.supervia.com.br/pt-br/quem-somos

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