Escassez hidrorracial: o acesso à água pela lente do racismo ambiental em São Gonçalo, RJ


Andreza Garcia de Gouveia
Doutora em Ciências do Meio Ambiente pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGMA/UERJ); Pesquisadora de Pós-doutorado do Programa de Pós-graduação em Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (LEAU/PROURB/UFRJ)

Ana Lucia Nogueira de Paiva Britto
Doutora em Urbanismo pelo Institut D'Urbanisme de Paris - Université de Paris XII (Paris-Val-de-Marne); Professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e do Programa de Pós-graduação em Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Rosa Maria Formiga Johnsson
Doutora em Ciências e Técnicas Ambientais pela Université de Paris-Est Créteil (França); Professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

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1. Introdução

O direito humano ao acesso à água e ao saneamento foi reconhecido pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 2010, como um direito essencial para a concretização dos demais direitos humanos. O acesso à água tratada financeiramente acessível, aceitável e de qualidade deve ser garantido a todos, obedecendo aos princípios da igualdade e da não discriminação, independente de fatores sociais, econômicos, étnicos, de gênero, ou outros (ONU, 2020). No Brasil, os serviços de abastecimento de água tratada é um dos quatro componentes do saneamento básico (Lei Federal n° 11.445/07). A atualização deste dispositivo legal no ano de 2020, por meio da Lei n° 14.026, estabeleceu a meta de universalização do serviço até o ano de 2033. Todavia, apesar de apresentar alguns alinhamentos com o marco dos direitos humanos, a legislação federal não é explícita em relação a eles. A questão da não discriminação não aparece de forma clara. Existem Projetos de Emenda Constitucional para incluir os direitos humanos à água e ao saneamento na Constituição Federal em tramitação no Congresso Nacional, mas ainda sem aprovação definitiva.

Ainda existe no Brasil cerca de 35 milhões de pessoas sem acesso à água tratada (SNIS, 2022), o que demonstra a existência de um longo caminho a ser percorrido para a concretização da meta de universalização e do respeito ao direito humano. Neste trabalho, examinamos a ausência do acesso à água no contexto das cidades, por concentrar a maior parte da população brasileira. Em 2010, esse percentual era de 84,35%. Os dados preliminares do Censo de 2022 mostram que a população continua se concentrando nos espaços urbanos (IBGE, 2010; 2022a).

A falta de acesso à água da população urbana pode ser examinada sob o prisma da ecologia política urbana. Nessa abordagem, os processos econômicos, políticos e culturais específicos do sistema capitalista são, em grande medida, responsáveis pela (re)produção das naturezas urbanas e do metabolismo urbano, muitas vezes desigual. As naturezas urbanas, como a circulação metabólica da água pela cidade, são moldadas pelas relações de poder, nas quais as elites urbanas são favorecidas em detrimento dos grupos sociais pobres, fazendo com que ocorram grandes desigualdades socioambientais (ZAPANA et al., 2023). No âmbito do ciclo urbano da água, tais desigualdades se manifestam como desigualdades hidrossociais (BOELENS, 2015). A análise na perspectiva hidrossocial enfatiza as relações de poder, as políticas e a participação do Estado e do mercado nos processos de acesso/exclusão da água a indivíduos e grupos sociais (BAKKER, 2003; LINTON, 2010; BUDDS et al, 2014). 

Segundo Barata (2001; 2009) a falta de acesso ao saneamento consiste em um dos fatores determinantes para a relação “saúde x doenças”, onde os mais vulneráveis são indivíduos pertencentes aos grupos destituídos de poder e propriedade. No bojo desta vulnerabilidade, alguns autores têm destacado a população negra como uma das principais componentes destes grupos. Ressaltam a necessidade do levantamento científico da relação entre “condições de saneamento e população negra” ao considerarem esse viés de análise ainda muito incipiente na literatura nacional (CUNHA, 2012; GARCIA, 2009; LOPES, 2005A, 2005B; SANTOS, 2013; JESUS, 2020).

O racismo ambiental é um termo utilizado pela literatura científica para se referir ao processo de discriminação que populações periferizadas ou compostas de minorias étnicas sofrem através da degradação ambiental (CHAVIS, 1993). Trabalhos acadêmicos com esta temática já são bem consistentes nos Estados Unidos devido ao seu contexto histórico social (por exemplo, SWITZER; THEODORO, 2017; SCHAIDER et al. 2019; PAULI, 2020), contudo ainda escassos em outras partes do mundo e no Brasil. 

O presente trabalho, à luz da ecologia política urbana e da abordagem hidrossocial, propõe ir além dos números oficiais totais para levantar uma discussão ainda incipiente no contexto brasileiro e internacional: a relação entre o acesso ao serviço de água tratada e o racismo ambiental, visando explicitar a situação dos indivíduos e grupos sociais ainda deixados às margens deste direito. Busca-se contribuir com o tema, de forma a aprofundar o debate e as discussões sobre o acesso à água tratada, superando um enfoque simplista de cumprimento de metas para um debate social de descumprimento de direitos e de manutenção de injustiças ambientais históricas e estruturais no Brasil. 

Como recorte de pesquisa, será analisado o abastecimento de água tratada no município de São Gonçalo, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Apesar de possuir a segunda maior população do estado e relevância à economia fluminense, São Gonçalo abriga grandes desigualdades sociais e econômicas em seu território, além de possuir mais de 100 mil habitantes sem acesso à água tratada que, em tese, devem ser alcançados pela universalização do serviço até 2033 (SNIS, 2022; BRASIL, 2020).

Ao analisar o acesso à água tratada no município, Gouveia (2017; 2022) e Gouveia et al (2021) verificaram a existência de uma escassez hidrossocial na qual a população mais vulnerável, sob o ponto de vista socioeconômico, é excluída ou submetida a intermitências sistêmicas e prolongadas de água tratada. Os estudos revelam, portanto, uma situação que pode ser qualificada como injustiça ambiental, onde moradores de São Gonçalo-RJ vivenciam condições socioambientais desfavoráveis em decorrência de suas condições socioeconômicas. Este artigo parte da hipótese de que a escassez hidrossocial afeta mais fortemente a população negra, ou seja, que existe uma correlação entre escassez hidrossocial de água tratada e racismo ambiental, resultando o que aqui denominamos de escassez hidrorracial.

Diante da não-disponibilidade dos dados do Censo Demográfico do IBGE de 2022, esta investigação baseou-se em dados do Censo Demográfico de 2010. Como método de análise foram agregados os dados por setor censitário da população que se autodeclarou de cor preta e parda relativos aos cinco distritos administrativos do município de São Gonçalo. Em seguida, utilizando-se do geoprocessamento, foram espacializados os dados agregados por distrito no território municipal e comparados com a disposição territorial da escassez hidrossocial evidenciada por Gouveia (2017) e Gouveia et al (2021). 

2. A ecologia política da água, as relações hidrossociais e as desigualdades do acesso

Segundo Harvey (1996), os ambientes urbanos são produções socionaturais (atuais ou históricas), entendidos como uma natureza transformada ou uma segunda natureza, constituindo-se, portanto, ambientes construídos ou ecossistemas criados socionaturalmente. Para o autor, não seria possível separar a sociedade do seu meio ambiente, pois todo o sistema socioambiental é dotado de significados, tornando-o indissociável. 

Em consonância, a ecologia política considera, em seu campo de análise, os diferentes sentidos atribuídos à natureza e como ela é captada a partir da linguagem e das relações simbólicas que implicam em visões, sentimentos, razões, sentidos e interesses que eclodem na arena política. Martínez-Alier (2015, p.64) define a ecologia política como:

O binômio ‘ecologia política’ pode significar duas coisas. Em primeiro lugar, a política que os ecologistas fazem [...] Em um segundo sentido, ‘ecologia política’ refere-se à influência da política, em um sentido mais amplo (isto é, no sentido da distribuição do poder), na distribuição de produtos e funções da natureza e na distribuição das cargas de contaminação entre diferentes grupos, classes ou categorias de humanos. Sucintamente, ecologia política é o estudo dos conflitos ecológico-distributivos. A partir daí, existem muitas ramificações possíveis.

A partir da Ecologia Política se desenvolve a Ecologia Política Urbana, (EPU) que propõe uma reformulação crítica e contínua do entendimento das relações natureza-sociedade sob a urbanização capitalista. É uma abordagem analítica multidisciplinar que se interessa pelas relações socioecológicas nas cidades, onde o urbano é definido como um processo de contínuos fluxos e transformações dessas relações, que tende a gerar ou fortalecer conflitos ecológico-distributivos, entre eles, o de acesso à água. Os conflitos ecológicos-distributivos são materializados no espaço urbano no acesso desigual dos grupos sociais aos espaços da cidade. Observam-se assim grupos mais pobres, desprovidos de recursos materiais e políticos, localizados em áreas desprovidas de infraestrutura e serviços urbanos e ambientalmente vulneráveis (ACSELRAD, 2004a; 2011; MOLINA et al, 2015). Entre as vulnerabilidades ambientais, Barata (2001; 2009) salienta que a falta de acesso ao saneamento acomete principalmente aos indivíduos pertencentes a grupos destituídos de poder e propriedade.

A Ecologia Política da Água desenvolve-se a partir dos estudos que se concentram na circulação da água nas cidades e as desigualdades que marcam seu acesso.  Busca desvendar as relações de poder que envolvem o uso desse bem, sua gestão e governança como determinantes para o acesso, ou para a falta dele - definidas como relações hidrossociais. Entende que as relações hidrossociais se manifestam tanto nas arenas formais da política e da tomada de decisões, que se expressam por leis explícitas, regras e hierarquias, como também por normas menos visíveis que, muitas vezes, se apresentam como naturais ou inevitáveis (BAKKER, 2003, MARTÍNEZ-ALIER, 2015; ZWARTEVEEN e BOELENS, 2014). 

Os estudos da Ecologia Política da Água têm como ponto de partida o trabalho de Swyngedouw (1995) sobre Guayaquil, no Equador, que mostra o papel das relações de poder no acesso à água. O autor demonstrou como os estratos sociais de rendimento mais elevado na cidade desfrutavam de água potável da mais alta qualidade enquanto os pobres eram cada vez mais vulnerabilizados à baixa qualidade da água. Posteriormente, o campo de estudo foi ampliado com diferentes estudos, muitos deles com foco na água urbana, explicitando em diferentes contextos as relações hidrossociais que produzem desigualdades no acesso. Dentro desse campo destacamos o trabalho de Metha et al. (2014) que aplica a abordagem da Justiça Ambiental Global (GEJ) ao problema do acesso universal à água potável e segura. Examinando as mobilizações da população local em torno da água em localidades periurbanas da Bolívia e da Índia, o estudo demonstra como as injustiças ambientais e as violações de direitos andam frequentemente de mãos dadas e que as lutas pelo acesso à água são também lutas por justiça ambiental.

            Metha et al. (2014) é uma referência importante, na medida em que a maior parte dos estudos que relacionam água e justiça ambiental são norte-americanos e abordam a questão da contaminação da água consumida pela população mais pobre. O caso da cidade de Flint, em Michigan, é emblemático por levantar a questão da justiça ambiental no acesso à água potável nos Estados Unidos. Em 2014, a cidade de Flint mudou a sua fonte primária de água potável do sistema de água para o Rio Flint. A mudança na fonte de água resultou na lixiviação de chumbo dos canos antigos para a água potável de muitos residentes da cidade. Para além das implicações para a saúde pública, a crise em Flint atraiu a atenção nacional, em parte devido à composição demográfica da cidade: a população de Flint é de aproximadamente 55% negros, com mais de 40% da população vivendo abaixo do limiar da pobreza (SWITZER e THEODORO, 2017; SCHAIDER et al. 2019; PAULI, 2020). Contudo, mesmo abordando outra problemática, os estudos norte-americanos são referências importantes na discussão das relações entre injustiça ambiental e acesso à água. 

 

 

3. Injustiça ambiental e racismo ambiental

Neste trabalho, entendemos por justiça ambiental:

O conjunto de princípios que asseguram que nenhum grupo de pessoas, sejam grupos étnicos, raciais ou de classe, suporte uma parcela desproporcional das consequências ambientais negativas de operações econômicas, de políticas e programas federais, estaduais e locais, bem como resultantes da ausência ou omissão de tais políticas (HERCULANO, 2008, p.2).

No extremo oposto, a injustiça ambiental consiste: 

[no] mecanismo pelo qual sociedades desiguais, do ponto de vista econômico e social, destinam a maior carga dos danos ambientais do desenvolvimento às populações de baixa renda, aos grupos sociais discriminados, aos povos étnicos tradicionais, aos bairros operários, às populações marginalizadas e vulneráveis (RBJA, 2001, p.2).

Logo, a injustiça ambiental carrega em sua essência conceitual, uma abrangência de possibilidades de análises, todas firmadas e produzidas por meio do desequilíbrio entre benefícios e encargos ambientais entre indivíduos e grupos na sociedade. Abarca uma diversidade de atores e grupos sociais de forma mais generalizada, focada nas questões de classe, e consequentemente, tem os pobres no cerne das injustiças (PAES e SILVA, 2012). Dessa maneira, evocar as expressões “justiça” ou “injustiça ambiental” para a análise dos conflitos socioambientais presentes na sociedade contemporânea assume uma vasta funcionalidade por sua abrangência de aplicações (BULLARD, 2004).  No espaço das cidades as situações de injustiça ambiental se manifestam quando grupos sociais com determinadas características econômicas, sociais, étnicas, de gênero vivem em espaços precários e sujeitos a riscos, também chamados de “zonas de sacrifício” (PORTO, 2007). 

O debate sobre justiça ambiental emergiu no ano de 1982, após denúncias da comunidade negra de Warren County, Carolina do Norte, Estados Unidos, sobre a instalação de um aterro tóxico de solo contaminado por PCB (Bifenila Policlorada) em sua vizinhança. Essa denúncia veio a se unir a outras sobre situações de injustiça ambiental eclodidas na década de 1970, no território norte americano, marcando seu início com o caso do Love Canal. O Love Canal, no estado de Nova Iorque, ficou conhecido por se tratar de um antigo canal aterrado por uma grande quantidade de resíduos químicos industriais e bélicos, posteriormente descoberto por seus moradores: uma população de operários, predominantemente branca (PACHECO e FAUSTINO, 2013; PAES e SILVA, 2012; HERCULANO, 2008; LEVINE, 1982). Contudo, o caso da comunidade de Warren County, como aponta Herculano (2008), foi um divisor de águas para o recente movimento por justiça ambiental, ao suscitar o fator racial como determinante para o recebimento de passivos ambientais. O conceito de justiça ambiental, originado nos movimentos sociais nos Estados Unidos, passa então a ser incorporado na discussão acadêmica. Nesse contexto, surge a noção de racismo ambiental:

Racismo ambiental é a discriminação racial nas políticas ambientais. É discriminação racial no cumprimento dos regulamentos e leis. É discriminação racial no escolher deliberadamente comunidades de cor para depositar rejeitos tóxicos e instalar indústrias poluidoras. É discriminação racial no sancionar oficialmente a presença de venenos e poluentes que ameaçam as vidas nas comunidades de cor. E discriminação racial é excluir as pessoas de cor, historicamente, dos principais grupos ambientalistas, dos comitês de decisão, das comissões e das instâncias regulamentadoras (CHAVIS, 1993, p.3).

A partir de então, surgiram várias outras denúncias de racismo ambiental no país, o que levou a descoberta de que três quartos dos aterros de resíduos tóxicos no sudeste dos Estados Unidos localizavam-se em bairros resididos por população majoritariamente negra - apesar dos afrodescendentes representarem somente um quinto do total da população da região (PACHECO e FAUSTINO, 2013; HERCULANO, 2017; 2008; PAES e SILVA, 2012). 

No Brasil, em 2001, durante o primeiro evento científico no qual a termo justiça ambiental foi posto em pauta e discutida sua abrangência analítica, foi reconhecida a viabilidade da aplicação da terminologia “racismo ambiental” no contexto brasileiro. A terminologia, caracterizada como um conceito autônomo, mas inserido na definição de injustiça ambiental, emerge da necessidade de se evidenciar fatores raciais nas análises das situações de injustiça, visto que, uma análise baseada meramente sob um enfoque classista poderia encobrir e naturalizar ocorrências de racismo em nosso país (PAES e SILVA, 2012). Como desdobramento, Paes e Silva (2012) apontam que, de maneira geral, os autores debruçados nesta temática (ACSELRAD, 2004a; 2004b; BULLARD, 2004; 2005; HERCULANO, 2006; 2008; PACHECO, 2006; 2008) trabalham com os conceitos de justiça e de racismo ambiental de maneira complementar, evidenciando a necessidade da investigação de ambos.

Atualmente, enquanto nos Estados Unidos somente 13% da população é considerada afrodescendente, o Censo Demográfico de 2010, mostrou que no Brasil, pela primeira vez, a proporção da população autodeclarada preta e parda superou a de autodeclaração branca: 50,7%. Os primeiros resultados divulgados do Censo 2022 demonstram um crescimento ainda maior: 55,51% da população brasileira se autodeclarou preta ou parda. Contudo, se no país da América do Norte as leis e a dinâmica de segregação evidenciavam os espaços a serem ocupados por negros e brancos, no Brasil ocorre uma invisibilização do racismo que, em sua maior parte, torna sua prática e sujeição inconsciente a ponto de ser naturalizada (IBGE, 2010; 2022a; PACHECO e FAUSTINO, 2013; PAES e SILVA, 2012).

Pacheco e Faustino (2013), Paes e Silva (2012) e Jaccoud (2008) enfatizam que culturalmente o Brasil se baseou numa perspectiva de positivização da miscigenação como um “bem” da nação brasileira, na qual, superou seu passado escravagista, alcançando um presente de “boa convivência e paz social” (JACCOUD, 2008, p.55). Segundo os autores, esta narrativa ainda é bem quista nos dias atuais, onde as desigualdades socioambientais, econômicas e discriminatórias são atribuídas à estrutura de classes sociais. A declaração da ONU após a Segunda Guerra Mundial de que “raças não existem” (HERCULANO, 2017, p.3) com o objetivo de extinguir para sempre a perseguição aos judeus, pode ter colaborado com a invisibilização da existência da prática do racismo no país, restringindo-o somente a alguns movimentos quilombolas. Assim, o tema não foi conduzido para uma análise ambiental mais profunda sobre as condições de vida da população negra urbana. Desta forma, o termo de injustiça ambiental e a argumentação classista para responder a submissão de encargos ambientais a grupos sociais mais vulneráveis pode ter sido mais bem aceito e ganhado mais campo nos debates científicos (Ibid).

No entanto, Pacheco e Faustino (2013) e Paes e Silva (2012) salientam que a estrutura de classes no caso brasileiro não pode deixar de considerar o processo histórico da colonização e do uso de mão-de-obra escrava que submeteu à violência e exploração populações inferiorizadas a partir do modelo europeu, culminando em uma institucionalização explícita e naturalização da relação “senhor x escravo” após a abolição da escravatura. Como um dos desdobramentos desta lógica, destaca-se o não aproveitamento da mão de obra assalariada dos escravos recém-libertos após a abolição e a preferência pela mão de obra imigrante. Esse quadro culminou no abandono deste grupo social por parte do Estado, aumentando o contingente de excluídos e a ocupação desordenada dos espaços urbanos como nas periferias e favelas. Ambientes, que no geral, não detinham assistência de políticas públicas, como exemplo, os serviços de saneamento (HELLER, 2006; 2013).

No cenário estabelecido, Herculano (2008), Pacheco e Faustino (2013) e Barreto e Barcelos (2019) chamam a atenção para os dados coletados por pesquisas étnico-raciais nos espaços urbanos em que se demonstra claramente o fator racial nos moradores de áreas com baixos investimentos do poder público (como favelas, cortiços, assentamentos precários, em torno de aterros sanitários e periferias), por quem recaem mais direta e imediatamente as injustiças ambientais. Assim, o racismo ambiental para Herculano (2008, p.16) “diz respeito às injustiças sociais e ambientais que recaem de forma desproporcional sobre etnias vulnerabilizadas”. 

Portanto, de acordo com vários autores, é inegável que o Brasil é marcado por um racismo estrutural, resultado da sua colonização a partir da mão de obra escrava. O racismo, ainda que invisibilizado, tornou-se uma das grandes heranças desse processo e estruturou a nossa sociedade nas questões sociais, econômicas, políticas e ambientais (PACHECO e FAUSTINO, 2013;  BARRETO e BARCELOS, 2019; BASTOS e SILVA, 2021). Mais ainda, o racismo é fortemente presente na “reprodução das formas de desigualdades e violência que moldam a vida social contemporânea” (ALMEIDA, 2019, p. 15). Logo, no caso brasileiro, aplica-se perfeitamente a definição de racismo ambiental de Bullard (2005), que considera este fenômeno como qualquer política, prática ou diretiva conduzida por instituições governamentais, jurídicas, econômicas, políticas e militares que afetem ou prejudiquem racialmente, de forma voluntária ou involuntária, as condições ambientais de moradia, trabalho ou lazer de pessoas, grupos ou comunidades. 

Por fim, como desdobramento da definição de Bullard (2005), Jesus (2020) enfatiza que devem ser incluídas no debate sobre racismo ambiental não apenas as populações negras tradicionais (como quilombolas), caiçaras, marisqueiras, ribeirinhos, entre outros, mas também os grupos étnico-raciais que sofrem de racismo ambiental nas periferias, favelas e subúrbios. Como exemplo, destaca o maior peso da carência de políticas públicas, como de saneamento, que recaem sobre esses indivíduos, reduzindo a qualidade ambiental, saúde e bem-estar.

4. A escassez hidrossocial em São Gonçalo, Região Metropolitana do Rio de Janeiro

São Gonçalo é um município da Região Metropolitana do Rio de Janeiro a 20 minutos da capital (Figura 1). 

Figura 1. Localização do Município de São Gonçalo no Estado do Rio de Janeiro e no Brasil

Fonte: Gouveia et al., 2021. 

É o segundo mais populoso do estado, com uma população de 896.744 habitantes, dividida em 91 bairros e cinco distritos administrativos: São Gonçalo (sede), Ipiíba, Monjolos, Neves e Sete Pontes (Figura 2). Possui um dos melhores PIB do Estado, mas abriga grandes desigualdades socioeconômicas (IBGE, 2022). O serviço de abastecimento de água municipal é realizado pelo Sistema Integrado Imunana-Laranjal que desde 2021 tem a captação e tratamento de água realizado pela Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (CEDAE) e distribuição realizada pela Companhia Águas do Rio, do Grupo Aegea.  

Figura 2. Distritos Administrativos do município de São Gonçalo

Fonte: Gouveia et al., 2021. 

Ao analisar as formas de acesso à água e o serviço de água tratada municipal junto à população de São Gonçalo, Gouveia (2017) e Gouveia et al. (2021) averiguaram que ocorre uma escassez hidrossocial no município, que afeta os indivíduos de menor renda da população, ou seja, de menor capacidade de pagamento pelo serviço de água potável. Espacialmente, a escassez hidrossocial de São Gonçalo concentra-se em dois dos cinco distritos administrativos: Ipiíba e Monjolos (Figura 3).  Os dois distritos possuem simultaneamente a menor cobertura do serviço de água tratada e os piores indicadores econômicos e sociais. 

Ao aprofundar a análise sobre a escassez hidrossocial em São Gonçalo por meio de entrevistas com a população local, Gouveia (2022) observou que mesmo parte da população conectada à rede de abastecimento público dos distritos de Ipiíba e Monjolos sofre de uma segunda dimensão de escassez hidrossocial: a intermitência e insuficiência do abastecimento para o atendimento das necessidades domésticas e individuais básicas. Assim, tal como os indivíduos não ligados ao sistema de abastecimento, os usuários do serviço de água dos dois distritos são obrigados a buscar outras formas de acesso complementar de água, tais como poços, cisternas e carros-pipa. 

Figura 3. Escassez Hidrossocial em São Gonçalo – “Renda média mensal x Abastecimento de água por rede de distribuição” 

 

Fonte: Gouveia et al., 2021.

Verificou-se, portanto, que ambas as dimensões da escassez hidrossocial em São Gonçalo – por não-conexão ao sistema ou por intermitência do atendimento – afetam indivíduos que pertencem a grupos mais vulneráveis socioeconomicamente, pertencentes aos distritos mais pobres do município, Monjolos e Ipiíba.

5. A questão racial no acesso à água tratada: uma nova dimensão da escassez hidrossocial

Frente às constatações realizadas por Gouveia (2017; 2022) e Gouveia et al. (2021) sobre duas dimensões de produção socionatural da escassez de água tratada a indivíduos mais vulneráveis economicamente do município de São Gonçalo, este trabalho buscou aprofundar a análise hidrossocial do acesso à água municipal, averiguando possíveis desdobramentos raciais, e assim, o racismo ambiental. Para tal, debruçou-se na definição de racismo ambiental de Bullard (2005). Para o autor, este fenômeno pode ser praticado por instituições governamentais, jurídicas, econômicas, políticas e militares de forma a afetar ou prejudicar um determinado grupo étnico-racial, mesmo que involuntariamente.  

No que diz respeito ao acesso à água, o presente trabalho baseou-se no caso de Flint, supracitado, e nos estudos do Southern Environmental Law Center, do estado de Virgínia nos EUA, que apresentam casos de injustiça ambiental, onde a poluição da água impacta desproporcionalmente as comunidades negras e outras comunidades de cor do Sul dos EUA. Segundo a organização, em toda a região do sul, os bairros negros enfrentam ameaças à água dos poços e obstáculos para serem conectados aos serviços municipais (SELC, 2023). Este tipo de investigação no contexto norte-americano, onde o racismo ainda era institucionalizado no século XX, e onde existe um movimento negro muito organizado na luta por direitos, são numerosos e consistentes. Contudo, no Brasil o tema do racismo ambiental é recente, tanto entre os movimentos sociais como nas abordagens acadêmicas, mas ressaltamos apertinência dessa lente de análise para o acesso a água.

Ao iniciar a análise sobre a vertente racial no acesso à água tratada em São Gonçalo, observa-se que os grupos sociais historicamente segregados do processo do saneamento brasileiro, como os moradores de periferias, de favelas e de assentamentos precários, com destaque para os escravos recém-libertos após a abolição (HELLER, 2006; 2013; BRITTO et al.,2012), podem ainda sofrer desta lógica segregadora nos dias atuais. De acordo com o Censo Demográfico de 2010, a característica raça-etnia permanece como um fator em comum na maior parcela da população brasileira sem acesso ao saneamento básico. Ao verificar o fator racial no cenário do saneamento nacional, Jesus (2020) observou que apesar de 50,7% da população brasileira se autodeclarar preta ou parda no Censo 2010, este grupo racial detêm os piores indicadores de saneamento. Segundo os dados, 61% da população autodeclarada como negra não possuía cobertura do serviço de água tratada. Em paralelo, para a população autodeclarada branca, o índice de falta de cobertura do serviço de água tratada foi reduzido para 37%. 

Seguindo o direcionamento investigativo entre questões raciais e falta de acesso à água tratada baseado no mesmo censo demográfico, a população de São Gonçalo/RJ de acordo com as autodeclarações de raça ou cor está disposta entre os seus cinco distritos administrativos da seguinte forma:

Tabela 1 - Proporção das autodeclarações de raça/cor ou etnia por distritos administrativos de São Gonçalo/RJ

                        Fonte: elaborada a partir dos dados do Censo do IBGE de 2010.

 

A partir da elaboração de gráficos com as proporções das autodeclarações de raça/cor ou etnia e sua disposição no mapa territorial do município por distritos administrativos, chega-se ao seguinte cartograma (Figura 4):

Figura 4 - Distribuição da população por raça/cor – Município de São Gonçalo/RJ

Fonte: As autoras, 2024.

De acordo com a disposição das autodeclarações de raça ou cor pelo território municipal, percebe-se que a população de raça/cor amarela (de origem oriental) e a etnia indígena possuem uma proporção em relação ao total de habitantes por distrito muito pequena, imperceptível visualmente pelos gráficos apresentados. Portanto, a população de São Gonçalo é formada majoritariamente pelas raças/cor branca, parda e preta. Para efeitos de investigação de uma possível correlação entre a Escassez Hidrossocial e Racismo Ambiental, foram agregadas as autodeclarações da cor preta e parda em uma única variável e mantida a variável de raça/cor branca sem nenhuma modificação. Devido à raça/cor amarela e a etnia indígena juntas não somarem nem 1% em todos os distritos, ambas não foram consideradas na análise deste trabalho. Os resultados obtidos podem ser verificados na tabela a seguir (Tabela 2):  

Tabela 2 - Proporção das autodeclarações de raça/cor branca e preta ou parda por distritos administrativos de São Gonçalo/RJ

             Fonte: elaborada a partir dos dados do Censo do IBGE de 2010.

A partir da elaboração de gráficos com as proporções das autodeclarações de raça/cor branca e preta ou parda, e sua disposição no mapa territorial do município por distritos administrativos, chega-se ao cartograma (Figura 5).

Figura 5 - Distribuição da população de cor preta ou parda e branca – Município de São Gonçalo/RJ

Fonte: As autoras, 2024.

De acordo com os dados do IBGE de 2010 dispostos nas Tabelas 1 e 2 e nos mapas por distritos administrativos, observa-se que os distritos com a maior proporção de indivíduos pretos ou pardos são respectivamente: Monjolos, Ipiíba, Sete Pontes, São Gonçalo, e, por último, Neves. 

Com base nos resultados sobre o fator raça na disposição territorial municipal da cobertura do serviço de água tratada, observa-se que os distritos de Monjolos e Ipiíba são os que possuem, simultaneamente, a maior parcela da população autodeclarada como preta ou parda. São justamente esses distritos que apresentam os piores indicadores socioeconômicos e o pior índice de cobertura do serviço de água de São Gonçalo (GOUVEIA, 2017; GOUVEIA et al., 2021).  Logo, verifica-se que a população dos dois distritos, além de ser submetida a uma escassez hidrossocial de viés econômico, também sofre de uma escassez social que revela um componente racial, ao penalizar em maior proporção a população negra do município. Em suma, este trabalho evidencia que a escassez social da água em São Gonçalo transpassa a questão econômica observada por Gouveia et al.(2021) e alcança a dimensão racial. Ou seja, a escassez hidrossocial compreende também o que aqui denominamos de escassez hidrorracial de água tratada.

 

 

6. Discutindo a escassez hidrorracial em São Gonçalo, RJ

De acordo com Gouveia (2022), a escassez hidrossocial em São Gonçalo, direcionada à parcela da população de maior vulnerabilidade socioeconômica, produz um quadro de injustiça ambiental ao submeter indivíduos específicos aos passivos da falta de saneamento, tais como: a obrigação pela busca individual por soluções alternativas de abastecimento (muitas vezes consideradas inadequadas e até insalubres); impactos econômicos (ao arcar com custos para a perfuração de poços, construção de cisternas e compra de água por carros-pipa); impactos ambientais e de saúde pública (por submetê-los a problemas e doenças associadas à falta de saneamento); impactos sociais; e, até mesmo emocionais. Pior ainda, a investigação aqui apresentada revela que a escassez hidrossocial municipal também potencializa uma das vertentes mais cruéis de injustiça ambiental que é aquela relacionada à raça. 

Ao comparar os dados do total nacional do IBGE de 2010 quanto à relação “raça x acesso à água” aos resultados de São Gonçalo, onde se constata que os distritos com menor cobertura da infraestrutura do sistema de abastecimento de água são os mesmos com a maior proporção de indivíduos pretos e pardos em relação ao total de habitantes do município, verifica-se que essa população, historicamente marginalizada no cerne das políticas públicas, também é submetida a um racismo ambiental estrutural nas questões de saneamento. 

Ressalta-se que este trabalho considera como racismo estrutural (ou sistêmico) o mecanismo estrutural de exclusão racial seletiva no acesso aos benefícios gerados pelo Estado e usufruídos por grupos raciais privilegiados (GELEDÉS, 2013). Assim, o racismo ambiental também verificado nas relações hidrossociais em São Gonçalo, que promove a exclusão seletiva do grupo social de cor preta e parda, é mascarado por uma cultura de aceitação da “ordem natural das coisas” (WERNECK, 2016, p. 545).  Tal cultura de aceitação pode estar fundamentada na narrativa difundida desde a abolição da escravatura, relacionada à positivização da miscigenação (JACCOUD, 2008) e da negação de um “apartheid residencial” (BULLARD; 2004, p.52) que se observa através da segregação dos negros no que tange aos padrões de habitação, uso do solo e acesso às infraestruturas. 

Logo, a escassez hidrorracial em São Gonçalo segue a essência dos demais ciclos hidrossociais: consiste em um produto híbrido de fatores sociais e naturais para o acesso à água. Na lógica da escassez hidrorracial evidenciada, a raça não seria o fator determinante para a falta de acesso à água tratada, contudo, o fator racial é um elemento historicamente determinante no processo de composição da estrutura social brasileira. Dados do IBGE (2022b) mostram que as taxas de pobreza de pretos e pardos são cerca de duas vezes maiores que a dos brancos. Em 2021, considerando a linha de U$$5,50 diários (ou R$ 486 mensais per capita), a taxa de pobreza dos brancos era de 18,6%. Já entre os pretos, o percentual foi de 34,5%, e entre os pardos, 38,4%. Na linha da extrema pobreza (US$1,90 diários ou R$ 168 mensais per capita) as taxas foram 5,0% para brancos, contra 9,0% dos pretos e 11,4% dos pardos. Os dados do IBGE ratificam as considerações de Bullard (1993) sobre intercessões e cruzamentos entre racismo e capitalismo, ondeas desigualdades ambientais não devem ser reduzidas somente às questões de classe, pois classe e raça estão intrinsecamente ligadas em nossa sociedade (PACHECO e FAUSTINO, 2013). O mesmo estudo apresenta que os domicílios da população preta e parda possuem o menor número de cômodos e menor acesso ao saneamento. Em 2019, 88,3% dos brancos no Brasil residiam em domicílios com acesso à rede de abastecimento de água, enquanto esse percentual caía para 81,9% para os pretos e pardos. Portanto, São Gonçalo espelha a realidade brasileira, conforme evidenciado neste estudo.

Em seu estudo, Gouveia (2022) ressalta que além da exclusão ao serviço de abastecimento público de água tratada, a população de São Gonçalo residente em Monjolos e Ipiíba é ainda submetida a uma segunda dimensão de escassez hidrossocial, que atinge também os indivíduos conectados à rede. Esta segunda dimensão caracteriza-se por intermitências prolongadas e desabastecimento que submete os usuários até a 144 horas semanais sem água. Ou seja, mesmo conectada ao sistema, a maior parcela da população autodeclarada negra do município sofre com a falta do acesso seguro à água em seus domicílios. Ao não ter suas demandas por água tratada assistidas pelo serviço ao qual estão conectadas, essas pessoas vulnerabilizam-se ambientalmente ao ter que buscar soluções hídricas alternativas.

7. Considerações Finais

Este trabalho trouxe no seu início os princípios do Direito Humano à Água e ao Saneamento da ONU, destacando que os princípios da igualdade e da não-discriminação devem ser seguidos. Para isso, a ONU salienta a necessidade da implantação de ações afirmativas para grupos historicamente segregados, considerando que “pessoas não iguais poderão precisar de tratamento diferente a fim de alcançar a igualdade material” (ONU, 2014, p.17). Esses princípios obrigam moralmente os Estados nacionais a adotarem medidas de reparação a favor de grupos e indivíduos vulneráveis à exclusão e discriminação, a fim de alcançar a igualdade material. Nesses grupos, a ONU inclui os marginalizados, vulneráveis, estigmatizados e desfavorecidos, tanto no acesso à água e ao saneamento como na sociedade em geral (Ibid). 

Logo, periferias, favelas, assentamentos precários e áreas de menores indicadores socioeconômicos - possuidores das menores coberturas de saneamento e uma grande proporção de indivíduos pretos ou pardos (fato demonstrado no caso de São Gonçalo) – devem ser prioridades de políticas públicas de ações afirmativas. O Supremo Tribunal de Justiça do Brasil define estas como: 

(...) medidas especiais tomadas como objetivo de assegurar progresso adequado de certos grupos raciais, sociais ou étnicos ou indivíduos que necessitem de proteção, e que possam ser necessárias e úteis para proporcionar atais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais, contanto que, tais medidas não conduzam, em consequência, à manutenção de direitos separados para diferentes grupos raciais, e não prossigam após terem sido alcançados os seus objetivos”(Resp1132476/PR, Rel. Ministro Humberto Martins, 2ª Turma, julgado em 13/10/2009, DJe 21/10/2009). 

As ações afirmativas em prol ao cumprimento do direito universal à água e ao saneamento podem incluir em seus parâmetros a dimensão racial. Essas ações, contudo, não se limitam a viabilizar a conexão da população negra, como a de São Gonçalo-RJ, ao sistema de abastecimento público. A conexão é o critério adotado pela Lei 14.026/2020 para verificar o alcance da universalização, mas ela não garante o Direito Humano à Água. É preciso que os serviços sejam fornecidos com qualidade e quantidade, considerando a frequência no abastecimento, de forma a atender as necessidades das famílias, e de forma acessível economicamente. 

Para tanto, o parâmetro de análise da universalização deve ser deslocado das conexões para os indivíduos, como é feito na abordagem hidrossocial para a análise da relação entre água e indivíduos. Questões devem ser respondidas, tais como: De que forma está sendo ofertado e garantido o acesso à água tratada a todos, em quantidade e qualidade, para que seja realmente igualitário e não discriminatório? Apenas elevando a questão dos direitos humanos e da justiça socioambiental para o centro das discussões sobre políticas públicas e saneamento será possível interromper o processo histórico de desigualdades e racismo ambiental, também expresso por meio da escassez hidrorracial de água tratada.

 

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