Expansão urbana e transformações hídricas: análise numa perspectiva histórica da paisagem urbana de Campos dos Goytacazes/RJ
Thais Ferreira Torres
Doutoranda Profissional em andamento em Modelagem e Tecnologia para Meio Ambiente Aplicadas em Recursos Hídricos pelo Instituto Federal Fluminense.
Daniela Bogado Bastos de Oliveira
Doutora em Sociologia Política (UENF); Professora no Doutorado Profissional em Modelagem e Tecnologia para Meio Ambiente aplicadas a Recursos Hídricos (AmbHidro) do Instituto Federal Fluminense
Vicente de Paulo Santos de Oliveira
Doutor em Engenharia Agrícola pela Universidade Federal de Viçosa (2003) na Área de Concentração em Recursos Hídricos e Ambientais; Professor Titular do Instituto Federal Fluminense
Referências
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1. Introdução
Os espaços livres urbanos se configuram como importantes elementos para a população, desde o desenvolvimento das primeiras cidades. Segundo Magnoli (2006), espaço livre é todo espaço não ocupado por um volume edificado. Para Macedo et al (2018), a existência de espaços livres, diversificados e tratados paisagisticamente, melhoram a qualidade espacial urbana. Além disso, os espaços livres são fundamentais para a mitigação de alguns problemas ambientais que se tornaram comuns no meio urbano, como os alagamentos e as inundações.
Tanto os espaços livres públicos quanto os espaços livres privados são subsistemas de um Sistema de Espaços Livres (SEL) urbano, que pode ser entendido como os elementos e as relações entre um conjunto de espaços livres. O SEL não é definido apenas por seus elementos constituintes, mas sim pela relação que existe entre todos os espaços livres de edificação em um determinado recorte escalar, mesmo que não estejam conectados fisicamente. Além disso, o SEL está em constante transformação, de forma a se adequar às demandas da sociedade (QUEIROGA; BENFATTI, 2007; MACEDO et al, 2018).
Os elementos hídricos fazem parte do SEL urbano e podem se apresentar como um espaço formal de uso público, com um conjunto de orlas tratadas urbanisticamente, ou como espaços apropriados informalmente pela população, por fatores de ordem técnica, social ou econômica que influenciam em sua utilização ou não. Ao mesmo tempo, tais elementos, como rios, lagoas e canais, desempenham um papel crucial na drenagem urbana e na redução do risco de inundações. Eles também fornecem habitats para a fauna e flora local, além de serem importantes para o equilíbrio ecológico da região (QUEIROGA; BENFATTI, 2007; SOUZA, 2015).
Com o complexo crescimento das cidades, a expansão urbana passou a afetar ainda mais a dimensão ambiental. A construção de edificações próximas a recursos hídricos geram uma série de problemas socioambientais, que não se restringem aos limites das cidades, pois essas, muitas vezes, se expandem em direção aos rios, canais e lagoas, contaminando suas fontes de água e reduzindo a qualidade e a disponibilidade hídrica (PEIXOTO, 2007; TUCCI, 2008; NUCCI, 2008).
É o que vem ocorrendo com o município de Campos dos Goytacazes, cidade de porte médio, localizada em uma planície no Norte Fluminense. A cidade apresenta importantes elementos de potencial paisagístico que não são valorizados, podendo-se destacar os recursos hídricos (ALIPRANDI, 2017).
O município de Campos dos Goytacazes (FIGURA 1) ocupa uma superfície territorial de 4.032,487 km², possuindo a maior extensão territorial do Estado. Tem uma população de 483.551 habitantes e densidade de 119,91 habitantes por quilômetro quadrado, segundo censo 2022 (IBGE, 2023).
Figura 1 – Localização de Campos dos Goytacazes
Fonte: Elaborado pela autora (2022), sobre base do IBGE (2010)
Campos dos Goytacazes, originalmente caracterizada por uma abundância de cursos d'água naturais e lagoas, emergiu como um povoado, freguesia, vila e cidade na planície adjacente à margem direita do rio Paraíba do Sul. Com o avanço da urbanização, muitos brejos e lagoas foram drenados e desapareceram. Apesar dos inúmeros projetos de construção de canais e da realização de obras de engenharia, incluindo a construção de diques, a cidade ainda enfrenta desafios relacionados à drenagem urbana nos dias atuais (SOFFIATI, 2019).
Figura 2 – Presença marcante do rio Paraíba do Sul na cidade de Campos dos Goytacazes
Fonte: Arquivo próprio (2023)
A cidade de Campos dos Goytacazes tem passado por notáveis transformações territoriais nos últimos anos, incluindo processos de verticalização em determinados bairros e o surgimento de condomínios horizontais fechados em seus arredores da cidade. Essas mudanças levantam questões pertinentes sobre o planejamento da paisagem nesse território (ALMEIDA; ALIPRANDI; PINHEIRO, 2015). Simultaneamente, tais transformações têm um impacto direto nos recursos hídricos urbanos, uma vez que a urbanização, especialmente quando irregular e resultado de segregação espacial, acaba por ocupar as faixas marginais de proteção de rios, canais e lagoas da cidade, além de contribuir para o aumento da poluição por meio do lançamento de resíduos sólidos e esgoto sanitário não tratado.
A planície na qual está localizado o município é formada por um terreno aluvial e uma restinga, sendo considerada a maior das planícies do Estado do Rio de Janeiro (SOFFIATI, 2019). O relevo da região campista é caracterizado por uma grande planície, o que possibilitou a cultura da cana-de-açúcar ao longo dos anos. Os investimentos em petróleo na Bacia de Campos pela Petrobras, na década de 1970, impulsionaram significativamente o desenvolvimento econômico da região, graças aos benefícios provenientes do pagamento dos royalties do petróleo. A principal ligação viária entre o Norte Fluminense e a capital do Estado é a rodovia federal BR-101. Quanto à região ambiental, o município se localiza na Macrorregião da Mata Atlântica (RAMALHO, 2005; ALMEIDA; ALIPRANDI; PINHEIRO, 2015).
Com relação à sua Região Hidrográfica (RH) no Estado do Rio de Janeiro, o município campista se encontra na RH IX – Baixo Paraíba do Sul e Itabapoana. O Comitê de Bacia Hidrográfica (CBH) que atua na região de Campos leva o mesmo nome da bacia hidrográfica (CBHBPSI). Com sede no município de Campos dos Goytacazes/RJ, o Comitê é um órgão colegiado integrante do Sistema Estadual de Gerenciamento e Recursos Hídricos – SEGRHI.
Os CBHs constituem importantes espaços para a internalização e implementação dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), da Agenda 2030, que é um plano de ação para as pessoas, o planeta e a prosperidade, buscando fortalecer a paz universal com mais liberdade e a erradicação da pobreza em todas as suas formas e dimensões, incentivando parcerias para isso. Os 17 ODS almejam concretizar os direitos humanos, sendo integrados e indivisíveis, equilibrando as três dimensões básicas do desenvolvimento sustentável: a social, a econômica e a ambiental. Principalmente com relação aos ODS 6 e 11, o CBHBPSI pode mobilizar esforços, junto aos gestores municipais e ao Conselho de Meio Ambiente e Saneamento (COMAMSA), para enfrentar o agravamento dos danos às águas e ao meio ambiente por meio de um planejamento que priorize a gestão das águas.
No que tange ao ODS 6, os CBHs são fundamentais para se alcançar metas como, por exemplo, a de aumentar substancialmente a eficiência do uso da água em todos os setores e assegurar retiradas sustentáveis e o abastecimento de água doce para enfrentar a escassez de água, ao reduzir, substancialmente, o número de pessoas que sofrem com a escassez de água (meta 6.4), e a meta de apoiar e fortalecer a participação das comunidades locais, para melhorar a gestão da água e do saneamento (meta 6b).
Quanto ao ODS 11, o planejamento urbano integrado à gestão dos recursos hídricos contribui, por exemplo, com o alcance das metas de, até 2030, garantir o acesso de todos à habitação segura, adequada e com os devidos serviços básicos (meta 11.1), de aumentar a urbanização inclusiva e sustentável (meta 11.3), de fortalecer esforços para proteger e salvaguardar o patrimônio cultural e natural do mundo (meta 11.4) e de reduzir significativamente o número de mortes e o número de pessoas afetadas por catástrofes, incluindo os desastres relacionados à água (meta 11.5). Isso porque planejar o espaço urbano, levando em conta a importância das águas urbanas, exige dar acesso à água potável e ao saneamento, assim como evitar a ocupação em áreas de risco, como margens de rios e lagoas, contribuindo também para a preservação dos corpos hídricos.
Na RH IX, uma das principais carências relativas aos recursos hídricos é a insuficiência do tratamento dos esgotos sanitários e a disposição final imprópria dos resíduos sólidos urbanos. A região possui um amplo sistema de canais construídos pelo extinto Departamento Nacional de Obras de Saneamento (DNOS). As canalizações foram construídas com o objetivo sanitário, evitando a propagação de doenças de veiculação hídrica através da drenagem do solo e de desenvolvimento de culturas de sequeiro, como a cana de açúcar e a fruticultura. Atualmente, os rios e sistemas lagunares da região estão com qualidade comprometida, carecendo de maiores investimentos em operação e manutenção dos canais, esgotamento sanitários, proteção e recuperação da vegetação (INEA, 2021).
O processo de expansão urbana “não ordenada” propiciou o surgimento de ocupações irregulares na área urbana de Campos dos Goytacazes, notadamente em espaços territoriais de proteção ambiental que visam a preservação dos recursos hídricos e da paisagem, como as Áreas de Preservação Permanente (APP), que no caso do perímetro urbano de Campos se encontram, principalmente, nas margens dos rios, canais e lagoas da cidade. Algumas dessas ocupções estão localizadas em áreas onde as condições de vulnerabilidade socioeconômica e ambiental, aliadas à especulação imobiliária, determinam o processo “não ordenado” do uso e ocupação do solo, facilitado pela ausência ou precariedade dos adequados mecanismos de controle e fiscalização.
Apesar de pouco valorizado, a região de Campos dos Goytacazes revela um vasto potencial hídrico. Em sua área urbana, encontram-se presentes dois rios de extrema importância: o rio Paraíba do Sul e o rio Muriaé. Na região em que Campos se expandiu a partir da segunda metade do século XVII, localizada na margem direita do rio Paraíba do Sul, havia uma considerável quantidade de lagoas. Durante períodos de cheias, as águas fluíam naturalmente em direção a essas lagoas. No entanto, a urbanização e a necessidade de áreas para a agricultura impulsionaram seu aterramento, resultando na atual existência de diversos canais na região. Por outro lado, a margem esquerda, que foi urbanizada posteriormente, ainda preserva uma significativa quantidade de lagoas urbanas.
Diante dessa poblemática, esta pesquisa surge da observação de que a cidade de Campos dos Goytacazes, rica em recursos hídricos e em constante expansão urbana, tem vivenciado diversos conflitos em sua gestão das águas, principalmente no que diz respeito às ocupações em áreas de vulnerabilidade ambiental e inundações. Além disso, a cidade passou por diversas transformações hídricas e paisagísticas ao longo dos anos, que resultaram em consequências que estão sendo vivenciadas atualmente no meio urbano.
Nesse sentido, objetiva-se com essa pesquisa analisar as transformações hídricas pelas quais o município de Campos dos Goytacazes vem passando ao longo dos anos, identificando e caracterizando como esses elementos hídricos estão inseridos na mancha urbana atualmente e avaliando de que forma o crescimento urbano e as ocupações em áreas de vulnerabilidade ambiental impactam nos mesmos. Para tanto, foi realizado um levantamento histórico das transformações hídricas por meio de revisões bibliográficas e documentais. Além disso, foram realizadas visitas de campo e levantamento fotográfico para elaboração de um diagnóstico dos elementos hídricos existentes em todo o perímetro urbano da cidade, considerando-os como integrantes do SEL, por meio de mapas temáticos.
2. Caracterização da planície de Campos dos Goytacazes e suas transformações hídricas numa perspectiva histórica
A região denominada Baixada Campista ou dos Goytacazes consiste na planície costeira do rio Paraíba do Sul e se estende desde a Foz do Rio Macaé até a foz do Rio Paraíba do Sul, abrangendo cinco municípios: São Francisco do Itabapoana, São João da Barra, Campos dos Goytacazes, Quissamã, Carapebus e Conceição de Macabu (VARGAS et al, 2009).
A morfologia do território de Campos dos Goytacazes apresenta um relevo diversificado, com planícies e tabuleiros. As características geomorfológicas existentes na região desempenharam um importante papel no processo de formação da cidade, já que a presença do Rio Paraíba do Sul atravessando o território, caracterizado por uma extensa e fértil planície, possibilitou o desenvolvimento de atividades econômicas, como as amplas terras de cultivo agrícola e de atividade pastoril (RAMALHO, 2005; ALIPRANDI, 2017).
Essa região era formada por diversos rios, lagoas, brejos e canais perenes e sazonais. Durante o período de maior precipitação pluvial, os corpos hídricos transbordavam, inundando as planícies adjacentes e ampliando o espelho d’água das lagoas, interligadas por uma grande malha de canais e brejos rasos (VARGAS et al, 2009). Essa fisionomia hídrica foi sendo alterada ao longo dos anos, o que explica diversos problemas de drenagem que encontramos na cidade de Campos dos Goytacazes nos dias atuais.
2.1 Transformações hídricas na margem direita e atuação das comissões de saneamento
Desde sua fase inicial, o processo de ocupação da área campista esteve intrinsecamente ligado à abundância de recursos hídricos. Estruturada por um ecossistema caracterizado pela presença de inúmeros rios, lagoas e pântanos, foram necessárias ações antrópicas de caráter permanente para a adaptação à região, resultando em um significativo crescimento no final dos séculos XVIII e XIX (CHRYSOSTOMO, 2009).
A planície flúvio-marinha da Baixada Campista não representa apenas uma das planícies do Estado do Rio de Janeiro, mas a maior delas. Por conta das características geomorfológicas, durante os períodos de transbordamento do rio Paraíba do Sul, as águas se espalhavam pela margem direita, formando diversas lagoas. Por outro lado, as águas que transbordavam pela margem esquerda encontravam terrenos mais elevados e, portanto, acumulavam-se em depressões até que o nível das águas do rio baixasse (SOFFIATI, 2019).
Outra característica marcante da planície é sua baixa declividade, o que dificulta o escoamento das águas fluviais e pluviais. Durante os períodos de cheias, quando ocorria o transbordamento pela margem direita, as águas do Paraíba do Sul escoavam lentamente e formavam extensas áreas inundadas. Foi exatamente na margem direita, problemática em termos de drenagem, que o processo de urbanização da cidade de Campos teve início e onde também se estabeleceu uma parte significativa da indústria sucroalcooleira (SOFFIATI, 2019).
A planície campista também é caracterizada pela abundância de lagoas. As águas do rio Paraíba do Sul, em condições normais, abasteciam essas lagoas por meio do lençol freático. Durante os períodos de cheias, as águas transbordantes do leito do rio também aumentavam o volume das lagoas, assim como as águas pluviais. As lagoas da região podem ser divididas em dois contextos geomorfológicos: as lagoas da planície aluvial (margem direita) e as lagoas de restinga (margem esquerda). Entre as primeiras, destaca-se, até os dias atuais, a lagoa Feia, cercada por várias lagoas menores. Entre as lagoas de restinga, a de maior tamanho é a lagoa do Campelo (SOFFIATI, 2019).
O desenvolvimento econômico da região de Campos a destacou como uma das áreas mais importantes da Província Fluminense durante o século XIX. A dominância das águas desempenhou um papel crucial na expansão do poder econômico, político e social. Na primeira metade do século XIX, as planícies despertaram interesse para a navegação. Às margens do rio Paraíba do Sul, que é o principal rio da cidade de Campos e desempenhava um papel importante no transporte de mercadorias, diversas freguesias, vilas e portos se desenvolveram, muito por conta do cultivo da cana-de-açúcar. Até 1846, a população de Campos atravessava a região central para Guarulhos (atualmente Guarus) por meio de canoas frágeis ou barcas-pêndulo (CHRYSOSTOMO, 2009; SOFFIATI, 2021a).
No final do século XIX, o transporte fluvial pelo rio Paraíba do Sul era realizado por barcas, pranchas e vapores, que transportavam passageiros e mercadorias para os municípios de Muriaé, São Fidelis e São João da Barra. O rio Muriaé era utilizado para o transporte de madeira e produtos agrícolas das fazendas localizadas em suas margens. Além desses rios, outros corpos d'água, como o canal da Onça, do Nogueira e o rio Ururaí, também desempenhavam um papel no transporte de mercadorias (CHRYSOSTOMO, 2009).
Outro recurso hídrico urbano importante na cidade é o canal Campos-Macaé (FIGURA 3), que foi construído durante o período em que o transporte aquaviário era valorizado. A construção desse canal ocorreu no século XIX, antes do advento da ferrovia como principal meio de transporte na região. O canal atravessa quatro municípios da região norte fluminense do estado do Rio de Janeiro, ligando as bacias dos rios Paraíba do Sul, Lagoa Feia e Macaé. Sua construção foi motivada pela necessidade de melhorar as condições de transporte para o escoamento da produção de açúcar e outras mercadorias, além do deslocamento de pessoas (CHRYSOSTOMO, 2009).
Figura 3 – Canal Campos-Macaé
Fonte: Arquivo próprio (2022)
Assim como nas margens dos rios, vários núcleos de povoamento se desenvolveram nas proximidades das lagoas da região de Campos. Portanto, é fundamental considerar o papel do transporte e da circulação de águas fluviais, canais e lagoas ao compreender a política e o desenvolvimento local da região de Campos.
No final do século XIX, com o auge do desenvolvimento da indústria açucareira, havia a necessidade de expandir a área de plantações e aumentar a produtividade agrícola, o que exigiu a drenagem das áreas alagáveis da planície do norte fluminense. Inicialmente, foram criadas comissões de saneamento pelo governo imperial e provincial, posteriormente seguidas por governos estadual e federal (SOFFIATI, 2021a).
A Comissão de Estudos e Saneamento da Baixada do Estado do Rio foi criada como uma primeira iniciativa, estruturada pelo governo do Rio de Janeiro e liderada por João Teixeira Soares, posteriormente substituído por Marcelino Ramos da Silva, entre 1894 e 1902. Em seguida, entre os anos de 1925 e 1930, foi estabelecido um contrato com Francisco Saturnino Rodrigues de Brito para a elaboração de projetos relacionados ao rio Paraíba do Sul e à lagoa Feia. O projeto desenvolvido por Saturnino de Brito foi cuidadosamente elaborado e serviu de base para planos de saneamento subsequentes (SOFFIATI, 2021a).
Esse estudo de Saturnino de Brito incluiu a criação de um plano de drenagem abrangendo todas as lagoas remanescentes na área urbana. O engenheiro propôs a construção de dois canais de drenagem nas laterais direita e esquerda do canal Campos-Macaé, que funcionariam como canais abertos, mas que não chegaram a ser construídos. O canal da direita drenaria a área mais baixa do bairro Pelinca e seus arredores, já dentro do perímetro urbano da cidade. Um canal secundário seria conectado a ele para drenar a lagoa Dourada, localizada atrás de onde atualmente se encontra o prédio da Câmara Municipal de Campos. Esse canal projetado desaguaria sua vazão no canal Campos-Macaé na altura da antiga lagoa do Furtado, que também seria completamente drenada. Pela margem esquerda, outro canal seria construído para drenar as águas das lagoas do Goiabal, Santa Ifigênia e João Maria, desaguando também no canal Campos-Macaé (SOFFIATI, 2019).
Nesse sentido, ocorreram diversas iniciativas para controlar as áreas alagáveis entre 1883 e 1933, com comissões de saneamento empenhadas em proteger os interesses da agroindústria açucareira. No ano de 1933, o governo federal estabeleceu a Comissão de Saneamento da Baixada Fluminense, por meio da Portaria de 5 de julho de 1933, do Ministério da Viação e Obras Públicas. Seu objetivo era realizar um diagnóstico das ações executadas por comissões anteriores, além de formular um programa para o saneamento da baixada fluminense e incorporação de terras produtivas (SOFFIATI, 2021a).
Durante o período de 1933 a 1935, a equipe da nova Comissão elaborou um abrangente plano de ação para resolver definitivamente os problemas nas áreas baixas do Estado do Rio de Janeiro, ao mesmo tempo em que impulsionava as atividades econômicas. As obras subsequentes abrangeram diversos elementos hídricos da região, como a lagoa de Cima e lagoa Feia, os rios Ururaí e Preto, os canais Campos-Macaé e Cacumanga, além de seus afluentes e defluentes, dentre outros. Essas alterações geraram um impacto significativo nos ecossistemas aquáticos da região Norte Fluminense, resultando em mudanças radicais na fisionomia da baixada (SOFFIATI, 2021a).
Em 4 de julho de 1940, durante o período do Estado Novo, foi criado o Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS). Esse órgão federal foi responsável pela abertura do canal da Flecha, conectando a lagoa Feia ao mar. As obras de drenagem concentraram-se entre a margem direita do rio Paraíba do Sul e o canal da Flecha. Foram construídos canais primários entre as bacias dos rios Paraíba do Sul e Iguaçu, e do canal Campos-Macaé foi estendido o canal de Tocos até a lagoa Feia. Por volta de 1950, a rede de canais na margem direita já estava praticamente concluída (SOFFIATI, 2019).
O processo de expansão da área produtiva por meio da drenagem de lagoas, pântanos e áreas periodicamente inundadas continuou até o final das principais obras de drenagem na baixada campista, concluídas na década de 1960. Assim, uma nova configuração hídrica foi estabelecida na baixada campista, onde as enchentes periódicas do rio Paraíba do Sul foram parcialmente controladas por diques, enquanto o excesso de água era direcionado para o sistema Ururaí por meio de canais regulados por comportas, aproveitando a pequena declividade natural existente. O escoamento para o oceano passou a ser realizado pelo canal da Flecha (CARNEIRO, 2004; SOFFIATI, 2021a).
Neste contexto, foram criadas sucessivas comissões de saneamento e órgãos responsáveis pelos estudos e obras da Baixada Campista. O Quadro 1 abaixo resume as entidades que atuaram nesse período.
Quadro 1 - Entidades responsáveis por estudos e obras hidráulicas na baixada fluminense
Período |
Comissão / Entidade |
1883 |
Comissão Major Rangel Vasconcelos |
1894 - 1902 |
Comissão de Estudos e Saneamento da Baixada do Estado do Rio de Janeiro |
1910 - 1916 |
Comissão Federal de Saneamento da Baixada Fluminense |
1912 |
Comissão do Porto de São João da Barra e Baixada do Nordeste do Estado do Rio de Janeiro |
1918 - 1925 |
Comissão do canal de Campos a Macaé |
1925 - 1928 |
Comissão de Estudos e Obras contra as inundações da Lagoa Feia e Campos de Santa Cruz |
1925 - 1930 |
Contrato com o Engenheiro Francisco Saturnino de Brito para estudos e projetos no Paraíba e Lagoa Feia |
1929 - 1930 |
Comissão de Saneamento do Estado do Rio de Janeiro |
1933 - 1940 |
Comissão de Saneamento da Baixada Fluminense Em julho de 1936 foi transformada em Diretoria de Saneamento da Baixada Fluminense (DSBF). |
1940 – 1989 |
Dep. Nacional de Obras de Saneamento – DNOS Reorganizado em 1946 e reestruturado em 1962 |
Fonte: Elaborado por TORRES, 2022, com base em SOUTO (2016)
Dessa forma, o período compreendido entre o início da década de 1930 e meados da década de 1970 se destaca pela implementação de projetos significativos de drenagem na região da Baixada Campista, resultando em amplas transformações e ações no processo de controle das águas, impulsionadas por diversos fatores político-institucionais, econômicos e socioculturais.
Na porção sul do município, construíram-se novos canais para drenagem de áreas pantanosas e lagoas, com o intuito de expandir a disponibilidade de terras para o cultivo de cana-de-açúcar. A região correspondente à lagoa Grande foi submetida ao processo de drenagem pelo canal de São José, enquanto o brejo do Cachorangongo e as lagoas da Caraca e da Barata foram drenados pelo canal do Rosário (SOFFIATI, 2019). Ao longo dos anos, essas áreas, originalmente drenadas e destinadas à atividade agrícola, passaram a ser ocupadas pela expansão urbana, originando novos bairros.
As obras executadas, que acarretaram a transformação da paisagem hídrica na região Norte Fluminense, têm sido alvo de críticas desde o século XIX. Alberto Ribeiro Lamego expressou dúvidas pertinentes acerca das intervenções realizadas pela Comissão/Diretoria de Saneamento da Baixada Fluminense. Brito (1944, p. 313-314), afirmou que “Os campistas [...] devem ficar avisados de que não se lhes pode oferecer a segurança absoluta, e sim relativa, nas obras que se fizerem, sujeitas que ficarão às ameaças das enchentes maiores”.
A comunidade científica, já na década de 1970, embasada em princípios da ecologia, expressou severas críticas às obras realizadas pelo Departamento Nacional de Obras de Saneamento (DNOS) na região Norte Fluminense. Jornais, como O Globo, divulgaram matérias que ressaltaram as profundas e irreversíveis alterações ambientais provocadas pelo DNOS nessa região (SOFFIATI, 2005).
Vale ressaltar que os canais, tanto naturais quanto construídos, desempenham um papel fundamental na drenagem urbana do município. O canal Campos-Macaé, acompanhado pelos canais de Cacumanga, Coqueiros e Cambaíba, constitui o núcleo central desse sistema. No entanto, os canais menores também possuem extrema importância, uma vez que desempenham um papel significativo como vias de drenagem, especialmente durante períodos de intensas chuvas.
No que diz respeito às transformações ocorridas nas lagoas, pode-se afirmar que elas foram afetadas ou drenadas devido à expansão urbana e à pressão exercida pelos setores econômicos. Na área urbana de Campos, havia inúmeras lagoas, muitas das quais não chegaram a receber denominação oficial. No local onde atualmente se encontra o Parque Alberto Sampaio, existia a Lagoa do Furtado, que foi suprimida e renomeada como Lagoa do Osório, após ter sido drenada pelo Canal Campos-Macaé. Atualmente, a região frequentemente sofre com alagamentos durante fortes chuvas (SOFFIATI, 2013).
Figura 4 – Ruas alagadas na região central de Campos
Fonte: Arquivo próprio (2022)
No bairro Lapa, também havia uma lagoa denominada Curtume, que desapareceu após ter sido drenada. Na antiga Rua Santa Ifigênia (atual Rua Marechal Floriano), existia uma pequena lagoa com esse nome, a qual foi drenada para o Canal Campos-Macaé, e sua área foi aterrada com resíduos. Nas proximidades do Liceu de Humanidades de Campos, encontrava-se a Lagoa Dourada, também chamada de Lagoa da Baronesa (SOFFIATI, 2013).
Próximo à Igreja Nossa Senhora do Saco, localizava-se a Lagoa do Saco, que se conectava ao Córrego do Cula, um dos quatro braços do rio Paraíba do Sul na região. Assim como ocorreu com outras lagoas, ela foi drenada pelo Canal do Saco, atualmente ainda existente, que recebe apenas águas pluviais e esgoto. Além dessas, no lado oposto da cidade, próxima ao entroncamento Campos-São João da Barra, situava-se uma grande lagoa registrada como Lagoa da Rua Sete de Setembro (SOFFIATI, 2013).
Na estrutura urbana atual, o Mapa 1 abaixo ilustra as localizações das lagoas que existiam no século XIX na área central da cidade e que vieram a ser extintas por conta das diversas alterações realizadas no sistema hídrico da margem direita da cidade de Campos.
As lagoas ilustradas por Saturnino de Brito em planta elaborada no ano de 1926 na malha urbana de Campos não existem mais. Em uma das plantas do Plano Urbanístico de Coimbra Bueno, elaborado em 1944, essas lagoas já não são mais evidenciadas, indicando possivelmente que essas lagoas tenham sido drenadas ou aterradas, seja por terra ou resíduos, prática bastante comum nos séculos XIX e XX.
As lagoas que foram progressivamente eliminadas ao longo do tempo foram submetidas a um processo inadequado de drenagem e seus terrenos ocupados por edificações e vias urbanas. Por isso, quando ocorrem precipitações de grande intensidade na cidade, as áreas anteriormente ocupadas por essas lagoas extintas são identificadas como os principais pontos de alagamento.
Mapa 1 – Malha urbana atual indicando localização das lagoas existentes no ano de 1926 conforme planta elaborada por Saturnino de Brito
Fonte: Elaborado por TORRES, 2023, com base em SOFFIATI (2019)
É importante ressaltar que muitas dessas transformações dos recursos hídricos foram planejadas e executadas pelo poder público, não se restringindo apenas a ações individuais decorrentes de uma expansão urbana não ordenada pelo poder público. Essas alterações refletiam a mentalidade predominante na época, que priorizava o desenvolvimento econômico em detrimento do meio ambiente. Felizmente, a partir da década de 1970, observou-se uma mudança nessa concepção, e atualmente há uma maior conscientização ambiental e preocupação com as consequências a curto e longo prazo dessas modificações.
2.2 As transformações na margem esquerda e a expansão urbana
A cidade de Campos dos Goytacazes começou a se desenvolver no século XVII, após a chegada dos Sete Capitães. Enquanto a urbanização progredia na margem direita, na margem esquerda, o núcleo de Guarus foi estabelecido mais tardiamente, com o propósito de catequizar os indígenas por meio de missionários católicos (SOFFIATI, 2021b).
Posteriormente, atividades econômicas como a extração de madeira foram iniciadas. Em seguida, o cultivo de cana-de-açúcar e a criação de gado passaram a predominar no território inicialmente conhecido como Guarulhos. Para facilitar o escoamento da produção, foram abertos três canais de navegação: o da Onça, o do Nogueira e o de Cacimbas (SOFFIATI, 2021c).
Esse terreno da margem esquerda do rio Paraíba do Sul é caracterizado pela presença de tabuleiros e uma ampla faixa de restinga. Essas terras estão localizadas em uma altitude um pouco mais elevada do que o nível médio do rio. Como mencionado anteriormente, antes das obras de contenção, as águas que transbordavam do rio encontravam retenção nas áreas que formavam as lagoas, enquanto o restante retornava ao rio quando o seu nível baixava (SOFFIATI, 2021c).
Conforme também supramencionado, durante a fundação do núcleo de Campos, muitas lagoas e brejos foram drenados. No entanto, enquanto na margem direita da cidade as lagoas foram suprimidas pela urbanização, em Guarus o processo de urbanização preservou a existência da maioria delas. Por se tratar de uma área que recebeu inicialmente menores investimentos de infraestrutura e onde houve uma expansão urbana voltada à abrigar a parcela mais vulnerável da população, ocorreram menos modificações no terreno natural, de maneira que as lagoas naturais se mantiveram, porém sofrendo grandes impactos, como fragmentação, lançamento de esgoto não tratado, despejo de resíduos sólidos e ocupação de suas APP.
No que diz respeito às ações das comissões de saneamento, o DNOS atuou principalmente na margem direita do rio Paraíba do Sul, embora também tenha ocorrido intervenção na margem esquerda. Nessa área, as lagoas de tabuleiro, valorizadas por Saturnino de Brito por sua capacidade de mitigar inundações, foram transformadas para fins agropecuários e agroindustriais. Por meio da abertura de canais de drenagem e instalação de comportas, o DNOS proporcionava terrenos para a atividade agrícola (SOFFIATI, 2021c).
Entre o Rio Muriaé e o Córrego da Cataia, formaram-se lagoas devido ao represamento natural de antigos rios que desciam do tabuleiro ou da região elevada de Morro do Coco em direção ao Muriaé. Esse é o caso das Lagoas das Pedras, Limpa e da Onça, tendo sido esta última completamente drenada pelo Canal da Onça. A Lagoa das Pedras sofreu alterações significativas devido à atividade agropecuária e, atualmente, está sujeita aos impactos da urbanização (SOFFIATI, 2013).
Dentro do perímetro urbano atual, as lagoas do Cantagalo, do Vigário, Maria do Pilar, Taquaruçu, da Olaria, do Jacú e da Boa Vista estão sendo cada vez mais cercadas e afetadas pelo crescimento urbano em Guarus. A Lagoa do Cantagalo já foi fragmentada, com parte de sua área ocupada por edificações. A Lagoa do Vigário também teve sua forma alterada, sendo dividida por uma avenida.
A Lagoa Maria do Pilar foi praticamente toda drenada, e ao seu redor foram construídos o Hospital Geral de Guarus (HGG) e um conjunto habitacional de interesse social. O mesmo ocorre com lagoas menores, artificiais ou fragmentos de outras lagoas mais antigas, como as lagoas do Sapo e lagoa Azul, encontradas no bairro Parque Eldorado, que estão completamente cercadas pela urbanização. Uma das lagoas do Sapo (FIGURA 5) foi literalmente cercada, por meio de muretas de alvenaria e grade, com o intuito de evitar que as águas da lagoa, em período de cheia, atingissem as edificações que ficam em suas margens.
Figura 5 – Lagoa cercada
Fonte: Arquivo próprio (2023)
As Figuras 6 e 7 a seguir ilustram como a expansão urbana tem avançado em direção a essas lagoas da margem esquerda do rio. As imagens de satélite comparam a ocupação urbana do ano de 2004 com a do ano de 2022.
Figura 6 – Expansão urbana - (A) Área 1 de Guarus no ano de 2004, com localização das lagoas e (B) Área 1 de Guarus em 2022, com novas áreas de expansão demarcadas
Fonte: Elaborado por TORRES, 2022, sobre base do Google Earth (2022)
Figura 7 – Expansão urbana - (A) Área 2 de Guarus no ano de 2004, com localização das lagoas e (B) Área 2 de Guarus em 2022, com novas áreas de expansão demarcadas
Fonte: Elaborado por TORRES, 2022, sobre base do Google Earth (2022)
Pode-se perceber que, nos últimos anos, ocorreram significativas expansões urbanas nas proximidades de várias lagoas em Guarus. A Lagoa do Vigário, cujos arredores foram ocupados desde o início da urbanização de Guarus, permanece cercada por habitações, sendo o centro da área na margem esquerda.
As lagoas Taquaruçu, Maria do Pilar e Cantagalo também sofreram expansões urbanas significativas em suas proximidades. No bairro Parque Eldorado, próximo às lagoas do Sapo e Lagoa Azul, surgiram diversos conjuntos habitacionais.
A cidade continua a se expandir, e muitas das novas construções nos diferentes bairros de Guarus estão ocupando APP das lagoas, ficando inclusive muito próximas de áreas sujeitas a inundação. Devido ao fato de essas áreas nem sempre estarem com água, ocorrem ocupações irregulares. No entanto, durante chuvas intensas ou com o aumento do nível do lençol freático ou dos canais de interligação, muitas dessas áreas ocupadas por habitações podem vir a sofrer com inundações.
As transformações que os corpos hídricos de Campos dos Goytacazes sofreram no decorrer dos anos resultam em uma situação atual com elementos fragmentados e não valorizados.
2.3 Situação atual dos recursos hídricos no perímetro urbano de Campos dos Goytacazes
Como já salientado, a paisagem campista sofreu significativas transformações hídricas no decorrer de seu crescimento urbano. Cursos d’água foram alterados, canais foram abertos e lagoas foram drenadas.
Diante disso, buscou-se nesse trabalho caracterizar os principais elementos existentes atualmente no perímetro urbano de Campos dos Goytacazes, identificando a localização das lagoas e canais inseridos na estrutura urbana, bem como as faixas marginais e áreas sujeitas a inundação vinculadas às lagoas existentes na margem esquerda da cidade.
Para tanto, foram realizadas visitas de campo, análise de imagens de satélite e pesquisa bibliográfica e documental.
O Mapa 2 identifica os recursos hídricos existentes no perímetro urbano. Objetivou-se com esse mapa identificar onde os elementos hídricos estão inseridos dentro do espaço urbano, possibilitando uma melhor análise da paisagem da cidade e da relação que a população tem com esses elementos.
Mapa 2 – Identificação dos recursos hídricos
Fonte: Elaborado por TORRES, 2022
Dados do satélite: Google Earth (2021); Dados cartográficos: IBGE (2010) e PDCG (2020); Projeção: UTM DATUM SIRGAS2000 Zona 24S; Fonte das lagoas: Projeto de Alinhamento de Orla (2004), PDCG (2020), Google Earth (2021); Fonte dos canais: PDCG (2020), Google Earth (2021)
Percebe-se que as lagoas Cantagalo, Vigário, Maria do Pilar e Taquaruçu, assim como as lagoas de menor porte, estão sofrendo um cerco implacável por conta da expansão urbana em Guarus. As lagoas Cantagalo e do Vigário foram modificadas pela urbanização, tanto espontânea como por ações promovidas pela Prefeitura de Campos dos Goytacazes, e atualmente se encontram dividas em duas partes, aqui denominadas de norte e sul.
A lagoa Maria do Pilar se difere das demais por atualmente não possuir espelho d’água, se constituindo em brejo, na margem do qual foram construídos o HGG e um núcleo do programa habitacional "Morar Feliz" da prefeitura.
Nota-se que a malha urbana está estrangulando diversas lagoas, como a lagoa Taquaruçu (FIGURA 8), considerada no art. 66, IV, g do Plano Diretor de Campos dos Goytacazes (PDCG), instituído pela Lei Municipal Complementar n°015/2020, o centro de uma Unidade de Conservação. Já a lagoa da Olaria teve suas dimensões reduzidas ao ser drenada em grande parte pelo canal do Vigário.
Figura 8 – Lagoa Taquaruçu
Fonte: Arquivo próprio (2023)
Algumas lagoas, apesar de não estarem inseridas dentro do perímetro urbano, afetam diretamente esse e devem ser analisadas em conjunto, em razão da bacia hidrográfica. As mais próximas são as lagoas Brejo Grande e das Pedras, essa última inclusive é utilizada para fazer delimitação de parte do perímetro urbano.
Também é importante observar que esses recursos hídricos são parte de um sistema, onde todos contribuem para o bom funcionamento do meio ambiente urbano. Mas muitas das ligações existentes entre esse elementos foram desfeitas, como no caso do canal natural que ligava a lagoa do Vigário ao rio Paraíba do Sul. Em outros casos foram instaladas comportas, como no encontro do canal Vigário com o rio Paraíba do Sul, que são abertas ou fechadas de acordo com o nível d’água.
Apesar das fragmentações e do estrangulamento, exercidos pelo crescimento urbano e pelas modificações promovidas pelos diversos governos ao longo das décadas, os rios, canais e lagoas atuam em conjunto. E esse sistema hídrico funciona como um subsistema do SEL urbano.
Os mapas temáticos de caracterização dos recursos hídricos foram confeccionados no software QGis 3.14, onde também puderam ser obtidas informações de área e perímetro (Tabela 1). Ressalta-se que essas medidas são aproximadas, pois sofrem variações de acordo com o nível d’água e, no caso das lagoas que foram demarcadas a partir de coordenadas do PAO, indicam as dimensões oficiais. Porém, observou-se que essas dimensões são maiores que o espelho d’água atual.
Tabela 1 – Informações dos recursos hídricos de Campos dos Goytacazes
LAGOA |
ÁREA (m²) |
PERÍMETRO (m) |
FONTE |
Boa Vista |
912194,81 |
7362,2 |
1 |
Cantagalo (Norte) |
263615,11 |
3025,07 |
2 |
Cantagalo (Sul) |
34149,56 |
830,13 |
2 |
Furnas |
268525,92 |
2745,39 |
2 |
Jacú |
92027,46 |
1454,8 |
2 |
Maria do Pilar |
187488,78 |
3150,15 |
2 |
Taquaruçu |
805825,5 |
10073,22 |
1 |
Vigário (Norte) |
220729,23 |
3122,14 |
1 |
Vigário (Sul) |
260583,44 |
2544,87 |
1 |
Fonte: Dados da pesquisa, organizado por TORRES (2022)
Ainda com relação às lagoas, identificou-se que com a expansão urbana as edificações estão bastante próximas ou até mesmo construídas dentro das Faixas Marginais de Proteção (FMP), áreas de vulnerabilidade ambiental. Na maior parte das lagoas foi adotada a FMP de 30 metros, conforme regra geral da legislação para corpos hídricos desse tipo, ratificada na Portaria SERLA n° 324. No caso da Lagoa de Vigário, área de ocupação mais antiga e de grande densidade habitacional, a FMP é de 300m, por constar na lista de Áreas de Interesse Especial do Estado, Anexo 1 da Lei Estadual n° 1.130 de 12 de fevereiro de 1987, assim como outras lagoas do município, como Feia, Jacaré, de Cima, Limpa, Açu, Campelo e Salgada. Essas FMP estão indicadas no Mapa 3.
Mapa 3 – Faixa Marginal de Proteção
Fonte: Elaborado por TORRES, 2022
Dados do satélite: Google Earth (2021); Dados cartográficos: IBGE (2010) e PDCG (2020); Projeção: UTM DATUM SIRGAS2000 Zona 24S; Fonte das lagoas: Projeto de Alinhamento de Orla (2004), PDCG (2020), Google Earth (2021); Fonte dos canais: PDCG (2020), Google Earth (2021)
Segundo a Lei Federal nº 14.285/2021, que alterou o Código Florestal (Lei 12.651/2012) e trata sobre as faixas marginais de curso d'água em área urbana, por se tratar de uma área urbana considerada consolidada, a FMP poderia ser reduzida, a critério do município, desde que respeitada a largura mínima de 15m. Entretanto, existe ação de inconstitucionalidade a respeito dessa medida, pois embora o município seja o ordenador urbano constitucionalmente estabelecido, pela ótica das competências sempre tem que se respeitar as diretrizes das leis federais e o município poderia ser mais restritivo, não o contrário. De qualquer forma, não se encontrou legislação municipal de Campos dos Goytacazes que formalize essa alteração. Assim, oficialmente, centenas de edificações se encontram instaladas dentro da FMP da Lagoa do Vigário.
Para além das áreas com espelho d’água, existem ainda dentro da estrutura urbana as áreas no entorno dessas lagoas e que estão sujeitas a inundação, a depender do nível d’água dos elementos hídricos. Essas áreas foram obtidas através de dados do INEA e do vigente PDCG (MAPA 4).
Mapa 4 – Áreas inundáveis
Fonte: Elaborado por TORRES (2022)
Dados do satélite: Google Earth (2021); Dados cartográficos: IBGE (2010) e PDCG (2020); Projeção: UTM DATUM SIRGAS2000 Zona 24S; Fonte das lagoas: Projeto de Alinhamento de Orla (2004), PDCG (2020), Google Earth (2021); Fonte dos canais: PDCG (2020), Google Earth (2021)
Percebe-se que são extensas essas áreas inundáveis, principalmente no entorno das lagoas Boa Vista e Cantagalo. Entretanto, por serem áreas que nem sempre estão com espelho d’água, estão sujeitas e já possuem diversas ocupações irregulares, favorecendo ainda mais a ocupação em áreas de vulnerabilidade ambiental no município. A Lagoa Brejo Grande, oficialmente delimitada fora do perímetro urbano, também possui uma extensa área inundável dentro do perímetro urbano, ocupando uma grande parcela de terra na porção norte da cidade.
As Figuras 9 e 10 apresentam parte do relatório fotográfico que ilustra a situação atual dos principais recursos hídricos do perímetro urbano campista.
Figura 9 – Levantamento fotográfico das lagoas existentes no perímetro urbano - (A) Lagoa do Vigário; (B) Lagoa Cantagalo; (C) Lagoa do Sapo e (D) Lagoa Taquaruçu
Fonte: Arquivo próprio (2022)
Nota-se a presença de edificações bem próximas aos rios, canais e lagoas de Campos. Além disso, pode-se observar em muitos deles a presença de resíduos sólidos em suas margens. A eutrofização observada na água de diversas lagoas e canais, como lagoa do Sapo e canal do Pq. Rosário, indica um aumento da disponibilidade de nutrientes, possivelmente consequência do despejo irregular de esgoto não tratado.
Figura 10 – Levantamento fotográfico dos canais existentes no perímetro urbano - (A) Canal Campos-Macaé; (B) Canal Coqueiros; (C) Canal Pq. Rosário e (D) Canal do Cula
Fonte: Arquivo próprio (2022)
Todos os canais do perímetro urbano tiveram sua estrutura alterada por ação humana, como retificação de seus cursos d’água ou, em muitas partes, direcionamento para galerias pluviais subterrâneas.
É o caso do canal do Cula, também conhecido como Queimado no trecho próximo à antiga Usina do Queimado. Ele foi direcionado para galerias de águas pluviais subterrâneas a partir da travessia na BR101, ao entrar na área de urbanização mais antiga. No trecho de urbanização mais recente, ele foi retificado para abrir espaço para instalação de novas edificações.
Nota-se, por fim, que os elementos hídricos estão intrinsecamente inseridos na paisagem e no desenho urbano, fazendo parte do cotidiano da população, apesar de na maioria das vezes serem vistos como um problema e não como algo a ser valorizado. Eles foram modificados ao longo dos anos, suprimidos e fragmentados, enquanto outros foram construídos de forma artificial. Edificações invadiram suas margens e suas planícies de inundação e, como consequência, a cidade atual deve lidar com as águas que atingem as edificações no período de cheia e com as diversas ruas que ficam alagadas durante as chuvas de grande intensidade.
3. Considerações Finais
As transformações territoriais pelas quais a cidade de Campos dos Goytacazes tem passado ao longo do tempo resultaram em significativas alterações em sua paisagem urbana. Paralelamente, essas transformações exerceram um impacto direto nos recursos hídricos urbanos, uma vez que a urbanização, especialmente quando não planejada, tende a ocupar as faixas marginais de proteção de rios, canais e lagoas da cidade, além de contribuir para o aumento da poluição.
Esses corpos hídricos têm sido objeto de significativas mudanças decorrentes da implementação de projetos de drenagem na região da Baixada Campista, principalmente a partir da década de 1930, impulsionados por diversos fatores político-institucionais, econômicos e socioculturais. Muitas lagoas foram drenadas e canais foram construídos por meio das diversas comissões de saneamento que atuaram na região, mas quando ocorrem precipitações de grande intensidade na cidade, as áreas anteriormente ocupadas por essas lagoas extintas são identificadas como os principais pontos de alagamento.
O território urbano localizado na margem direita da cidade, inicialmente ocupado, teve maiores alterações em seus recursos hídricos, enquanto a margem esquerda ainda preserva muitas de suas lagoas, apesar dessas terem tido suas comunicações com o Rio Paraíba do Sul alteradas, além de sofrerem o impacto da poluição.
O município de Campos dos Goytacazes possui elementos hídricos de grande potencial paisagístico, mesmo que ainda não sejam valorizados. Por meio do diagnóstico e dos mapeamentos realizados, verifica-se que os recursos hídricos são importantes elementos da paisagem campista e impactam diretamente na estrutura urbana. Mesmo que por muito tempo tenham sido vistos como empecilhos para o desenvolvimento urbano, sendo drenados e retificados, atualmente devem ser visto na perspectiva de que são importantes elementos do SEL urbano e de papel fundamental para a resolução de problemas como inundação e alagamento, de modo a termos uma cidade mais sustentável, que cumpra com sua função socioambiental. Políticas ambientais-urbanas que conservem os corpos hídricos da bacia do BPSI, além de favorecer à territorialização dos ODS 6 e 11 que propiciam a equidade intergeracional, permitem que os rios, as lagoas e os canais contem a história e revelem o potencial do patrimônio natural do Norte Fluminense.