Planejamento na periferia: ação estatal na Baixada Fluminense ao longo do tempo (1942/1979)
Lucia Helena Pereira da Silva
Doutorado em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Professora de História e docente permanente do Programa de Pós Graduação em Desenvolvimento Territorial e Políticas Públicas da UFRRJ
Referências
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GONDIM, Linda Maria de Pontes. A prática de planejamento dentro das burocracias públicas: um novo enfoque dos papéis desempenhados pelos planejadores in Rev. Adm. Pub., Rio de Janeiro, 25(2):57-72, abr/Jun. 1991
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SILVA, Lucia. Região Metropolitana da Guanabara: planejamento urbano, cidade do Rio de Janeiro e Baixada Fluminense In Revista Arquivo da Cidade do Rio de Janeiro n.12, 2017, p.43-58
SOUTO, Adriana Branco Correia. Tabuleiro de damas para um jogo de xadrez: emancipação de Duque de Caxias vista por Nova Iguaçu através do Correio da Lavoura. Nova Iguaçu: UFRRJ, 2014 (monografia de História).
1. Introdução
Baixada Fluminense faz parte da Região Metropolitana da cidade do Rio de Janeiro (RMRJ). Baixada Fluminense (BF) é o território que hoje ocupa o que era o antigo município de Iguaçu, desta forma a região é formada apenas por oito municípios: Belford Roxo, Duque de Caxias, Japeri, Mesquita, Nilópolis, Nova Iguaçu, Queimados e São João de Meriti, e não os treze, comumente designado pelo governo estadual.
Esta afirmação tem como base duas posições; a primeira é que nos perfilamos com a ideia de uma Baixada Histórica, ou seja, identificamos como região aquele território que foi constituído a partir de uma história em comum, visto que todos os municípios foram distritos que se emanciparam de Iguaçu entre os anos de 1943 e 1999. O município-mãe Iguaçu foi criado em 1833 e hoje equivocadamente é visto apenas como antecessor de Nova Iguaçu. O antigo município é a Baixada do qual faz parte o atual Nova Iguaçu.
A segunda relaciona-se à atuação do Estado (nas instâncias federais e estaduais) no território. Defendemos que a pouca efetividade das políticas públicas para a região decorre de uma visão equivocada do que seria Baixada Fluminense. Ressaltar a especificidade da configuração defendida, aquela com oito municípios, não desconsidera as relações que podem ser estabelecidas (e são) com os outros cinco e principalmente as que sustentam a ligação da metrópole com a sua periferia, que podem ser acionadas quando o objeto for a região metropolitana. Marcar as diferenças que existem dentro da periferia, que as políticas desconsideram, não é excluir os outros cinco municípios que oficialmente compõem a sub-região e que podem ser articulados à Baixada quando vistos conjuntamente pela ótica da região metropolitana ou da periferia. Não há exclusão, mas um jogo de escalas, potencializando as relações estabelecidas especificamente dentro do território, o que garantiriam efetividade das políticas públicas
Baixada Fluminense é vista como periferia da cidade do Rio de Janeiro, área ocupada urbanamente depois da década de 1940 através dos inúmeros loteamentos, seguindo as linhas do trem. Naquele momento foi confeccionado um Plano de Melhoramentos pelo governo estadual e somente no final do século XX e início do XXI, os municípios teriam seus respectivos planos diretores. Há muitas diferenças entre o Plano de Melhoramento de 1942 e os planos diretores dos últimos 20 anos, não só porque o primeiro englobava toda a região e potencializou e ratificou uma dinâmica de ocupação do território, na forma dos loteamentos, que produziu todos os problemas que os planos diretores atuais tentam resolver, décadas depois, mas também na forma e objetivos de cada um, sendo o primeiro representativo de um ideário voltado ao melhoramento/embelezamento, ainda que articulado ao saneamento como enxugamento de terras.
Assim, este texto tem dois objetivos. O primeiro visa apresentar o plano de 1942 visto que é pouco conhecido da historiografia e foi um “plano integrado” para a região, enquanto o segundo procura analisar as proposições da FUNDREM para as UUIOs (Unidades Urbanas Integradas do Oeste), em função de ter sido uma experiência de planejamento para a Baixada entre os anos de 1975 e 1989, com o sentido de defender que atualmente os planos diretores, por ficarem restritos aos seus respectivos municípios, não são eficientes e deveriam, sob coordenação da Câmara Metropolitana (ou outra instância), ter um planejamento como o já realizado pela FUNDREM, que os viam conjuntamente, como região (UUIO), ou seja, defendemos um planejamento regional para além da região metropolitana em si.
Desta forma o texto está dividido em duas partes, além desta introdução e das considerações finais. O primeiro visa apresentar o Plano de Melhoramento de Nova Iguassu[1] de 1942, de autoria do engenheiro Lincoln Continentino, desconhecido da historiografia.
Fig. 1. Antigo Município de Iguaçu/atual Baixada Fluminense na RMRJ
Fonte: Decreto Lei 311 de 02/03/1938 e Lei Complementar nº 184, de 27 de dezembro de 2018
A segunda parte visa relacionar a experiência da FUNDREM na região, com o objetivo de mostrar que já existiu uma atuação integrada entre os municípios que formam a região, sob a gestão da Fundação, ou seja, planejamento regional para dar conta da fragmentação política existente do território do antigo município-região.
2. Plano Melhoramento de 1942 de Lincoln Continentino
O plano de 1942 foi elaborado no bojo de outros que estavam sendo confeccionados dentro do governo do estado do Rio de Janeiro, sob os auspícios do interventor Amaral Peixoto, em plena ditadura do Estado Novo, e como tal foi apresentado na “Exposição de Urbanismo do Estado do Rio de Janeiro” (ou Exposição de Urbanização das Cidades Fluminenses) em 08 de agosto do mesmo ano (Silva, 2023). Diferente de um plano diretor, era um conjunto de obras de embelezamento, melhoramento de vias de escoamento de laranja e de estudos para implantação de rede de esgotamento sanitário e água. Todas as sedes de distritos, que eram também estações ferroviárias, foram dotadas de equipamentos urbanos como asfaltamento (ou macadâmia), renovação das praças e iluminação pública.
Essa renovação urbana, aparentemente dispersa no território, já que o município era grande (maior que o Distrito Federal), não tinha relação direta com a vida econômica do município, eminentemente rural, mas com a capital federal, cuja população estava se deslocando para os loteamentos baratos abertos na área localizada no limite entre os dois municípios. A modernização dos núcleos urbanos em torno das estações potencializaria a chegada de milhares de novos moradores, sem conexão com a dinâmica econômica do município, calcada na produção e exportação da laranja.
O plano apresentava um conjunto de obras disperso no território, mas que seguia a lógica da ocupação por adição da malha urbana da cidade do Rio de Janeiro. Assim, se internamente apresentava-se de forma fragmentada (aumento da malha urbana por dispersão), se articulada ao Distrito Federal, a ocupação urbana dava-se por adição seguindo as linhas férreas, adentrando ao município de Iguaçu.
Iguaçu era grande exportador de laranja, respondendo por 30% das receitas do Estado na década de 1930 (PANTOJA, 1992), por isto foi “agraciado” com plano juntamente com Petrópolis, Campos, Niterói, Araruama, Magé e Barra do Piraí, a partir da atuação do Departamento das Municipalidades, órgão estadual, centralizador das demandas dos municípios fluminenses.
Para o que cabe aqui, o plano ratificou as centralidades existentes de alguns núcleos urbanos, justamente aqueles que eram sedes de distritos, em detrimento de outros. Dentro do munícipio havia mais de sessenta de estações de trens, mas só algumas aglutinavam e atraíam população, principalmente por serem lugares com mais de um modal de transporte. Toda estação tinha um pequeno comércio, mas aquelas que se transformaram em lugares de baldeação, passaram a receber um público maior e esse fluxo potencializou o aumento de serviços e comércio local.
Apesar de ser um município rural, os melhoramentos em determinados núcleos garantiram infraestrutura necessárias para a proliferação dos loteamentos, além de consolidá-los como centro de comércio e lazer. O plano de melhorias foi executado nas zonas centrais dos atuais municípios de Duque de Caxias, Nilópolis, São João de Meriti, Queimados e o Distrito-Sede (Nova Iguaçu), no entorno das estações, além de abrir vias de escoamento de laranja e ligação entre os principais núcleos urbanos da região, como a de Heliópolis a Belford Roxo, por exemplo, com isto garantindo centralidade à algumas estações
Todo o município foi contemplado, mas sem dúvida, o Distrito-Sede (o atual centro de Nova Iguaçu) foi o mais favorecido. Não só porque era onde vivia a elite citricultora, mas porque grande parte da produção era escoada pela estação. Foram vários melhoramentos executados, desde vias abertas ou asfaltadas até praças remodeladas. É importante ressaltar que as vias abertas permitiram transformar a área central de Nova Iguaçu em uma importante centralidade da região, visto que todos os distritos se comunicavam diretamente com a sede por via terrestre.
O plano de melhoramento de Lincoln Continentino pode ser pensado como uma agenda de obras, que só tem inteligibilidade se articulado ao dessecamento das terras da Baixada, protagonizado pelo governo federal, com a Comissão de Saneamento da Baixada, comandada pelo engenheiro Hildebrando de Góes, que drenou grande parte das áreas alagadas da região, fazendo emergir quase ¼ das terras antes embrejadas, consideradas então como foco de doenças e improdutivas, mas seu enxugamento trouxe um problema: o que fazer com o novo estoque de terras?
Havia dentro do governo federal dois projetos de modernização em disputa, que aliados às articulações políticas do governo estadual produziram uma atuação aparentemente desconexa no território, mas que ao fim e ao cabo, garantiram um perfil de ocupação na região. A questão era o que fazer com as novas terras dessecadas: urbano industrial ou agricultura moderna voltada à exportação, no caso, a laranja. Essas duas possibilidades de desenvolvimento foram acionadas como argumentos para legitimar as intervenções voltadas à drenagem das terras. A Cidade dos Motores projetada por Atílio Correa Lima e a criação do núcleo colonial São Bento (Duque de Caxias) são exemplos da atuação pendular realizada pela União.
A Cidade dos Motores, núcleo urbano planejado para abrigar um conjunto de grandes fábricas, na prática só teve a FNM (Fábrica Nacional de Motores), mas foi pensada para fazer parte de uma rede que envolvia Volta Redonda e outros pequenos núcleos urbanos locais(Vila Ema e Chácara Rio-Petrópolis, por exemplo), direcionada exclusivamente para industrialização, aproveitando-se da proximidade das duas metrópoles, Rio e São Paulo, os maiores mercados consumidores e fornecedores (de recursos humanos e materiais), além de facilidade de exportação.
No decorrer dos trabalhos foram realizadas várias conferências, entre as quais a do brigadeiro Guedes Muniz, que falou sobre “a cidade dos motores”. Durante a palestra foram projetados slides referentes ao assunto. A conferência impressionou vivamente o auditório, que se inteirou da obra realizada pelo governo na Baixada Fluminense e da sua influência decisiva para o progresso do Brasil (A Noite de 21/12/1944, 2 ed., p. 20)
A proximidade da capital federal também era acionada na defesa do uso das terras para a agricultura, seja aquela voltada à exportação por conta dos portos, ou como cinturão verde, fornecedor de hortifrutigrangeiro à grande cidade, então capital do país.
Com a construção de um canal de três metros de largura e cinco quilômetros de extensão, desapareceram os pântanos e com eles o impaludismo, e transformados agora em campos de cultura, onde se veem grandes plantações de laranjeiras, morangos e cereais (...) dividiram a zona saneada em duas grandes glebas... (O Campo, jan/35, p.40)
Para além desta discussão, outras ações do governo federal criaram condições que permitiram a aceleração da ocupação urbana, principalmente com a eletrificação da Central do Brasil (ainda que nas outras linhas só tenham ocorrido nas décadas seguintes) e principalmente a unificação das tarifas. Esta última conjugada com a atuação do governo estadual, que facilitou a abertura de grandes loteamentos (como Jardim Gramacho, inicialmente com 7.000 lotes), viabilizou a primeira emancipação, dividindo pela metade o grande município, além de patrocinar a confecção do plano de melhoramentos.
É importante destacar que o plano de obras foi utilizado como instrumento de barganha política dentro do Departamento das Municipalidades, garantindo o controle do interventor sobre a máquina administrativa estadual, além de permitir a constituição do grande poder que o PSD teria nas décadas seguintes no estado. Sob a capa de discurso técnico, o plano (de obras) de melhoramentos efetivamente embelezou a praça Paulo de Frontin e as ruas próximas à estação de Nilópolis; as ruas do entorno da estação de Nova Iguaçu, a praça da matriz e as ruas entre a praça e a estação de São João de Meriti, assim como a praça da estação de Queimados, de São Mateus e o centro da então Caxias (ainda sem o Duque)
Esse conjunto de obras foi realizado nas sedes dos distritos do então grande Nova Iguaçu, com a execução da prefeitura sob a direção de um plano do governo do estado, enquanto nas terras saneadas, longe dessas estações, pequeno e grandes empreendimentos imobiliários passaram a proliferar sem nenhum planejamento e controle do Estado, principalmente no novo Duque de Caxias, emancipado no último dia de 1943.
Os grandes loteamentos (Vila Ema, futura Imbariê, Vila Araçy futura Parada Angelica, por exemplo) que proliferaram naquele período, ocorreram nas terras saneadas, antes alagadas, espalhadas no grande município e que se conectavam com as estações contempladas com as obras do plano, reproduzindo em pequena escala a dinâmica centro – periferia, mas acentuando e ratificando a desigualdade de alocação de serviços e equipamentos no território, dando visibilidade às características de periferia ao processo de ocupação urbana, que começava a se consolidar na região.
O plano de Constantino, fruto das articulações políticas em nível estadual, garantiu um conjunto de equipamentos que consolidou a centralidade de alguns núcleos em detrimento de outros, que aliados aos grandes empreendimentos, em sua maioria em terras drenadas pela Comissão (depois Departamento), longe dessas centralidades passaram a ser opção viável de moradia de grande parte da população que se deslocava para a região. É importante ressaltar que esses grandes loteamentos, sem nenhuma infraestrutura tinha a anuência dos governos estadual e municipal, em um período de Ditadura.
A população atraída pelas melhorias patrocinadas pelo plano, que na prática produziu uma pequena “vitrine do progresso” (Neves, 1986) em algumas estações, e pelo saneamento, em 1940 já representava 70% dos habitantes, mas ocupavam menos de 30% do território. Seria essa população que politicamente apoiaria as emancipações, jogando xadrez em um “tabuleiro de damas” (Souto, 2014), visto que eram os interesses do interventor a principal mola política de atuação do governo no território em tempo de Ditadura.
O plano de obras esteve restrito ao município de Nova Iguaçu, mas pode ser considerado como instrumento de ação coordenada no grande território, visto que tinha a preocupação de ser abrangente, sendo realizado em todos os distritos, e o produto dessa intervenção foi por muito tempo os únicos equipamentos existentes na região. Essa ação não pode ser pensada como planejamento regional, ainda que seu alcance tenha sido a região, ou melhor, o território do antigo município-região.
3. FUNDREM e a suas UUIOs: uma experiência de planejamento
Foram necessários trinta e três anos para que um outro conjunto de ações fosse realizado de forma coordenada pelo governo estadual no território do antigo município-região, agora dividido em quatro municípios: Duque de Caxias, Nilópolis, Nova Iguaçu e São João de Meriti. Sob os auspícios da FUNDREM, instituição criada para atuar como assessoria técnica aos municípios que compunham a recém instituída região metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ), vários estudos e ações foram realizados na Baixada.
Diferente do plano de obras, conjunto de intervenções no território, a FUNDREM, em seus primeiros anos, também sob uma Ditadura, agora civil militar empresarial, tinha o objetivo de reunir em um único espaço os 14 municípios que compunham a região metropolitana para estudar, discutir e recomendar soluções aos problemas urbanos comuns, e como assessoria técnica com recursos do governo federal disputava com a prefeitura do Rio a força política do recém-criado Estado do Rio de Janeiro pela Fusão.
Indesejada pelas partes, segundo Motta (2000), a Fusão da antiga Guanabara e do Rio de Janeiro foi “um casamento na polícia” já que os grupos políticos dos dois estados se viam prejudicados, achando que um estado iria drenar os recursos existentes do outro, o primeiro porque era mais industrializado, o segundo porque tinha recém-descoberto petróleo em Campos. Os grupos políticos de cada unidade via na união forçada a diminuição de sua influência. Apesar da criação da região metropolitana ter sido o principal argumento para a Fusão, o governo militar via na desestabilização das forças políticas da Guanabara um fator positivo, pois faziam oposição à Ditadura.
A FUNDREM foi instituída no primeiro dia de governo do novo Estado, fruto da Fusão patrocinado pela ditadura militar, como resultado de uma discussão que estava sendo travada desde 1968 sobre como resolver os problemas advindos do processo de metropolização da cidade do Rio de Janeiro, já que a metrópole ficava em um estado e sua periferia em outro. A CHISAM (Coordenação de Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana do Grande Rio), criada pelo governo federal através do decreto 62.654/68, construiu um impasse para os políticos da cidade do Rio, pois em nome dos problemas de habitação no Grande Rio, a instituição interferia na dinâmica da cidade. A resposta do governo Negrão de Lima (1965/70) foi a constituição de um grupo de estudo, que produziu o Documento Base de 1969.
Para o que cabe aqui, a CHISAM foi a ratificação formal da existência da região metropolitana, exigindo naquele momento a intervenção do governo federal nas duas unidades da federação. Esta ação, ainda que voltada para a habitação era vista com desconfiança pelos políticos cariocas, pois poderia ser o primeiro passo de uma intervenção efetiva na cidade, afinal era gestão de Costa Silva (1967/69)
Algumas objeções a serem vencidas são as seguintes: como a Guanabara tende a ser tipicamente uma cidade oposicionista, teme-se que a oportunidade da instituição da região Metropolitana seja aproveitada pelo governo federal para intervir no estado. A par disso, raciocinando numa perspectiva de curto prazo, a opinião pública da Guanabara alega que qualquer tipo de integração com os municípios vizinhos, extremamente pobres, terá como consequência a transferência para eles de recursos normalmente aplicados na Guanabara. (Guanabara, 1969, p. 13.5, grifo meu)
O Documento Base saiu em 1969 com três propostas de atuação da cidade-estado na região metropolitana. Sob a coordenação do economista João Paulo de Almeida Magalhães, mas formado por um grupo multidisciplinar, a primeira girava em torno de atuação consorciada entre a Guanabara e os demais municípios de sua periferia, a segunda proposta voltava-se à criação de um novo estado da Guanabara englobando esses municípios, e finalmente a terceira, a Fusão, negada prontamente, aliás, uma interpretação do Documento é entendê-lo como resposta contrária à ideia da Fusão, aventada pelos governos militares. (Silva, 2017)
Fig.2 Capa do Documento Básico de 1969
Fonte: Guanabara, 1969
A efetivação da fórmula cooperativa e a do novo Estado composto apenas pelos municípios da RM esbarravam em muitos problemas, desde a falta de experiência com uma atuação consorciada até retirar a capital do outro estado para anexá-lo ao da Guanabara, tal como ocorreu com Niterói depois. Entre 1969 e 1974 a Fusão ganharia força como discurso legitimador da resolução dos problemas urbanos advindos do processo de metropolização da cidade. Assim, fica inteligível o primeiro ato do governo do novo Estado ser a constituição da FUNDREM.
A FUNDREM foi instituída como um super órgão, e formalmente colocava a questão regional na agenda governamental do recém Estado, pois já estava na do governo federal. Não se pode pensar a criação da Fundação sem articulá-la ao II PND do governo Geisel, ao I PLAN RIO e principalmente com a SECPLAN do novo governo estadual, que juntos formavam um “sistema estadual de planejamento”. É importante salientar que a denominada macrocefalia da economia do estado, com a concentração das atividades econômicas na região metropolitana deu-se pelo deslocamento das principais atividades industriais da cidade do Rio para a sua área contigua, em função dos efeitos das ações da FUNDREM no período tratado, garantindo a vitória de um tipo de planejamento e mantendo a concentração da economia na RMRJ, que ainda hoje concentra ¾ da população e do PIB do estado.
Na prática o deslocamento deu-se da cidade para a sua área metropolitana e a integração preconizada no I PLAN RIO ocorreu onde já existia essa articulação (de infraestrutura, principalmente), ou seja, entre a metrópole e a sua grande periferia, sendo potencializada pela autonomia da FUNDREM, o mesmo não ocorreu com o interior, visto que o DESUR (Departamento de Desenvolvimento Urbano e Regional) não tinha a mesma autonomia da FUNDREM, que sob o controle da SECPLAN, ao qual era subordinado, estava voltado ao assessoramento dos municípios do interior e não tinha o mesmo recurso financeiro.
A FUNDREM, inicialmente, era um órgão fundamentalmente voltado ao planejamento dos municípios da região metropolitana, enquanto o DESUR, voltado aos do interior; repartições públicas com o mesmo objetivo, mas com características distintas (financeira e de pessoal). Na gestão de Faria Lima, a Fundação tinha o perfil tecnocrático, e foi nesse governo que uma coleção foi produzida pelo órgão: Plano Diretor, primeira tentativa de agregar informações e estudos, assim como propor soluções aos problemas encontrados na RM. Foi o período de maior produtividade da Fundação, pois tinha capacidade técnica (funcionários especializados) e recursos financeiros para viabilizar as obras recomendadas aos municípios. Politicamente, somente o recém governo do município do Rio tinha condições de competir e executar obras propostas pela FUNDREM
Segundo Gondim (1991), a instituição era hierarquizada e mesmo com perfil técnico dos funcionários, já que todos tinham formação em planejamento, poucos tinham acesso efetivamente aos espaços de decisões, mesmo na primeira gestão, onde a administração era autoproclamada de apolítica.
[As decisões] eram tomadas por aqueles que ocupavam os cargos mais altos: O Governador, o Secretário de Planejamento e os dirigentes da Fundrem. (...) O caso da Fundrem mostra que o conhecimento na área de planejamento, por si só, não garante aos planejadores do corpo técnico a participação no processo de tomada de decisões, nem diretamente, nem na qualidade de assessores (GONDIM, 1991: 61)
Ainda assim, naquele período, foi apresentada a coleção Plano Diretor, onde a Baixada Fluminense surgiria formalmente como uma sub-região da área metropolitana, através das UUIOs, ocupando cinco volumes (Proposição, Duque de Caxias, Nilópolis, Nova Iguaçu e São João) da coletânea. Todos os municípios da região RM foram estudados e apresentados na coleção como unidade política administrativa, cuja ligação era estabelecida diretamente com a metrópole, com exceção da Baixada, cujos municípios foram agrupados nas UUIOs, ou seja, além da ligação com a cidade do Rio eram articulados entre si, já que pensados como uma sub-região.
Fig 3. Capas da coleção dos planos diretores das UUIOs
Fonte: FUNDREM, 1979
Baixada Fluminense seria então um território específico dentro da Região Metropolitana, com as UUIOs, cujo título indicava a unidade e a integração entre os municípios, ainda que formalmente os estudos e propostas fossem realizados em cada unidade político- administrativa. Nos estudos e nas proposições os municípios eram articulados entre si enquanto sub-região e com a metrópole. Na coleção, em vários momentos do texto, as UUIOs eram substituídas pelo termo Baixada Fluminense, o que era novidade, visto que o mais utilizado e popular, naquele momento, era Grande Rio para se referir a periferia imediata à metrópole. Para a grande imprensa carioca, o estudo das UUIOs geraria um único plano diretor, o da Baixada.
O planejamento governamental não pode ser feito em cima de conhecimentos empíricos, tem que partir de dados concretos, e para isto é que estamos fazendo um criterioso levantamento estatístico, nunca antes tentado, dentro do plano diretor das Unidades urbanas Integradas de Oeste declara Silvio Ferreira Carvalho
Esse plano diretor que envolve também os municípios de Nilópolis, Caxias e São João de Meritique apresentam situação em tudo semelhantes à Nova Iguaçu – está sendo preparado sob a orientação da Fundrem (O Fluminense de 14/01/1978, p.26, grifo meu)
Ainda na imprensa, os problemas dos municípios eram destacados individualmente, mas a solução envolvia os demais, refletindo a leitura que a FUNDREM fazia em suas Proposições, neste sentido, os jornais popularizavam uma visão e a aprofundava, como expectativa.
Eles têm demostrado a maior boa vontade para conosco e o fato de estarmos desenvolvendo conjuntamente com a Fundrem o plano diretor das Unidades urbanas Integradas de Oeste e a prova mais concreta do que estou lhe afirmando. Depois que estivermos de posse do plano vamos ter as diretrizes para uma atuação administrativa mais consciente, principalmente com relação à política de ocupação do solo (O Fluminense de 26/01/1978, p.20, grifo meu)
O termo Baixada foi popularizado pela imprensa, ligado especificamente a um território, cujo sinônimo eram as UUIOs, adjetivado como fluminense para se diferenciar do espaço carioca. O interessante era que nos periódicos cariocas, as notícias evocavam a possiblidade da FUNDREM resolver os problemas de todas as “cidades dormitórios” da região, através de um único plano diretor para as UUIOs, a partir da disciplinarização do uso do solo; ao mesmo tempo em que informavam a ação concreta do uso dos recursos da Fundação, que na prática, financiava asfaltamento de rua, organizava a coleta do lixo, construía praças e rodoviárias, obras aparentemente desconexas
Foram assinados ontem, entre a Fundação para o Desenvolvimento da Região Metropolitana (FUNDREM) da secretaria de Planejamento do Estado e a prefeitura de Nilópolis três convênios, no valor de Cr$ 882 mil 359, para a execução do projeto de tratamento paisagístico da praça Jose Bonifácio, aquisição de uma ambulância e pavimentação e obras na rua João Pessoa
A praça José Bonifácio terá 3 mil metros quadrados e contribuirá para a população local ter opção para recreação, descongestionando as poucas áreas existentes nos municípios vizinhos que são utilizados também por estes moradores, ampliando as ofertas de equipamento esportivo-recreativo no próprio município e nas Unidades Urbanas Integradas de Oeste... (Diário de Notícias de 06/10/1976, p. 8)
Comparando as informações dos jornais com os textos da coleção onde estão os cinco volumes das UUIOs é possível perceber que nos primeiros anos, o aporte financeiro da Fundação permitiu a realização de inúmeras obras na região, antes da conclusão dos estudos, não só criando a expectativa de um plano diretor como solução para todos os problemas, além de materializar a falta de organicidade no conjunto de ações do Estado. As principais intervenções na região ocorreram enquanto se fazia o estudo. Oficialmente nunca foi aventado um plano diretor único para as UUIOs, mas a imprensa veiculava essa ideia. O que ocorreu foi a apresentação de “anteprojeto de lei de zoneamento” para cada um dos municípios como solução dos problemas levantados detalhadamente nos estudos.
É importante ressaltar que aparentemente as UUIOs teriam uma configuração espacial diferente daquela composta pelos quatro munícipios, já que deixava de fora distritos de Duque de Caxias e de Nova Iguaçu e inseria algumas regiões administrativas da cidade do Rio, visto que nas proposições (volume 1) a FUNDREM informava que o critério utilizado para configurar as UUIOs era uma divisão intrametropolitana com base no grau de urbanização. Assim, havia o núcleo da RM composto por parte da cidade do Rio de Janeiro e a zona sul de Niterói, enquanto a periferia intermediária, área de estudo das UUIOs, seria formada pela zona oeste da metrópole, S João de Meriti, Nilópolis, três distritos de Nova Iguaçu (Sede, Belford Roxo, Mesquita) e dois de Duque de Caxias (Sede e Campos Elíseos). Apesar de informar essa configuração, ou seja, colocar as UUIOs como periferia intermediária, logo em seguida apresentava apenas os quatro municípios com o detalhamento de seus distritos e excluía as regiões administrativas da cidade do Rio de Janeiro, assim ao término da explicação da área de estudo fica claro que as UUIOs seriam formadas apenas pelos quatro municípios da Baixada Fluminense (Fundrem, 1977, p.15), ainda que intenção inicial tenha sido fazer uma divisão intrametropolitana com base na ocupação urbana (núcleo metropolitano, periferia intermediária, orla marítima e franja urbano-rural, onde estariam os distritos excluídos de Nova Iguaçu e Duque de Caxias).
No volume de Proposições, além de explicitar a área de estudo denominada de UUIOs apresentava o principal objetivo do estudo: disciplinar o crescimento da região, visto que a constatação era que o processo de ocupação urbana acelerada ocorreu depois das obras de saneamento (dessecação das terras) na região, promovidas pela Comissão de Hildebrando de Goes na década de 30, induzindo os loteamentos, inclusive informando que S João, Nilópolis e o 1º distrito de D. de Caxias não tinham mais áreas loteáveis na década de 1970 e que no processo nunca houve “um comportamento saudável do mercado imobiliário” (p.27), gerando distorções na massa edificada. A preocupação com os loteamentos justificava-se porque “em toda a Baixada, o uso predominante do solo é o residencial” (p.31), mas as áreas centrais dos municípios estavam densamente ocupadas e as demais não.
O processo de loteamento ocorrido na Baixada Fluminense e que ainda persiste comprometeu extensões de terras em tal monta que seria impossível ao poder público, a curto prazo, prover estas áreas de serviços e equipamentos necessários a sua ocupação, em padrões de urbanização convencional
Por outro lado, a atuação das concessionárias de serviços públicos tem se pautado em atender, prioritariamente, às áreas mais densamente ocupadas, obtendo, assim, maior rendimento para seus investimentos e um mais rápido retorno do capital empregado permitindo-lhes fazer novas aplicações (FUNDREM, 1979, p 43)
O estudo ratificava a consolidação do processo iniciado nos anos 40 (cuja base se assentava na tríade saneamento-trem-loteamento) e registrava que as áreas densamente ocupadas eram aquelas próximas às estações com alguma infraestrutura e serviços, enquanto as mais distantes, a ocupação ainda se encontrava rarefeita, assim a explosão populacional dava-se em áreas já habitadas em oposição à existência de outras, ainda vazias. A Fundação utilizava seus recursos na tentativa de minimizar as “faltas” identificadas no estudo, por isto urbanização de praças e asfaltamento de ruas eram informados cotidianamente nos jornais, mas curiosamente em áreas já consolidades. Eram essas distorções que a FUNDREM tentava resolver, mas que mantinha, ao financiar obras em lugares já adensados, e sem adentrar na discussão sobre as forças políticas que interagiram na atuação da Fundação, que, sob tensão com as prefeituras, garantiram a execução das obras, financiando-as antes do término das pesquisas e das propostas formuladas na coleção.
Para viabilizar a polinucleação recomendada pela FUNDREM na região metropolitana, em especial nas UUIOs, buscou-se o reforço ou o estímulo das funções econômicas (industrial, de serviços e residencial) dos principais núcleos urbanos existentes na região, a partir das potencialidades levantadas no estudo, cujo resultado eram as diretrizes que constavam na proposta de zoneamento dos municípios.
- Reforçar os centros comerciais de Nova Iguaçu e Duque de Caxias, conforme diretriz estabelecida pelo I PLAN-RIO em sua política de polinucleação da região metropolitana, (...)
- Estimular a criação de uma rede de centros secundários na Baixada (...)
- Propiciar a implantação de modelos de ocupação residencial diferenciados, levando em consideração aspectos como: acessibilidade aos mercados de emprego, existência ou proximidade de equipamentos e infraestrutura (implantada e projetada) e condicionantes naturais, (...)
- Compatibilizar a distribuição dos usos industriais com a política de localização industrial da região metropolitana
- Preservar as áreas cultivadas e as que apresentem potencial para atividades agrícolas, evitando o surgimento de novos loteamentos urbanos
- Preservar e proteger as áreas florestadas e os mananciais
- Preservar e proteger áreas com potencial turístico-recreativos (FUNDREM, 1979, p 44-45)
Com base nessas diretrizes, os técnicos da Fundação buscaram ler a região e criar instrumentos de forma integrada que promovesse novas tendências de ocupação e desconcentração de atividades que adensavam os principais centros locais. Como solução apostaram em plano diretores municipais, porque apesar de ler as UUIOs como região, politicamente não era viável a sua atuação e gestão no território com base em um planejamento regional. Na prática, a atuação da Fundrem reforçou as centralidades existentes, reproduzindo o modelo centro-periferia na periferia.
4. Considerações preliminares
As UUIOs foram a primeira tentativa de pensar a região da Baixada Fluminense como uma sub-região da RM. A visão integradora ficou restrita ao planejamento, visto que as ações realizadas pelas prefeituras ocorreram descoladas dos estudos, cujo resultado foram os anteprojetos da lei de zoneamento que ficaram como recomendação. A novidade se perdeu na prática cotidiana das prefeituras, não só pela falta de técnicos especializados, como os que existiam na FUNDREM, mas principalmente pelo uso político dos recursos financeiros da instituição, comumente em obras desconexas, ainda que necessárias, e foi esse uso que reforçou o processo de ocupação que a instituição tanto queria mitigar.
O uso dos recursos nos primeiros anos, justamente no momento em que a Fundação tinha maior capacidade financeira, comprometeu as recomendações apresentadas nos estudos anos depois, expostas na coleção de 1979. A polinucleação desejada pela instituição era em novos núcleos e não nos que já estavam consolidados, produtos do Plano de Melhoramentos e do Saneamento (enxugamento de terras) da década de 1940. A novidade de pensar de forma integrada o território como região, acabou sendo subsumida pelas ações das prefeituras, realizadas sem coordenação, na maioria das vezes com a anuência do governo do estado, visto como apolítico. Faltam estudos sobre a relação dos técnicos da Fundação com as prefeituras, e politicamente como as municipalidades, algumas sob intervenção, buscaram e usufruíam dos recursos da FUNDREM ainda no período de ditadura
A Fundação orientou no campo do planejamento uma atuação integrada entre os municípios da RM e em especial das UUIOs, que no trabalho de macrozoneamento da RM, também de 1979, aparece como Baixada Fluminense. A instituição buscou se sobrepor à fragmentação política existente na sub-região. Neste sentido, sua atuação pode ser pensada como uma experiência vitoriosa de planejamento regional, principalmente por explicitar que cada município sozinho não iria resolver seus problemas. As recomendações, no caso das UUIOs, envolveram os quatro municípios, seja conjuntamente em relação à metrópole ou entre si. Exemplos disto foram a proposta de criação de um parque multiuso em Nova Iguaçu, pensado como espaço de lazer dos quatro municípios e de um discurso assentado nos objetivos do I PLAN RIO, de 1975, buscando criar instrumental para servir de base ao desenvolvimento exposto no plano. Se a proposta do parque de Nova Iguaçu pode ser vista como exemplo material de visão integradora, as diretrizes e os objetivos de curto e médio prazos descritos nos trabalhos da Fundação, também, visto que apontam para uma programação totalmente articulada com uma ideia de desenvolvimento regional exposto no I PLAN RIO.
Ao mesmo tempo em que a atuação da FUNDREM pode ser pensada como uma experiência de planejamento, com as características da tecnocracia daquele momento, cujo efeito é ainda hoje a concentração da economia do estado e da população na região metropolitana, a ação política da Fundação com os municípios foi desastrosa, pois as barganhas davam-se na esfera da captação de seus recursos e seu trabalho serviu para legitimar obras que garantiram a manutenção de um processo de ocupação. As proposições da FUNDREM mostram o compromisso com um planejamento integrado, muito em função dos técnicos ali alocados, mas a viabilização das propostas revela a falta de sintonia entre a instituição e as prefeituras, nesse sentido me parece que houve uma atualização nas formas de fazer política do governo estadual, pois lembra a atuação do Departamento das Municipalidades do tempo do Amaral Peixoto.
Por fim, pode-se encontrar similitudes entre o Plano de 1942 e a coleção Plano Diretor produzida pela FUNDREM, visto que ambos foram realizados durante duas Ditaduras, cujo discurso técnico escondia as práticas e barganhas políticas dos governos estaduais, e finalmente ambos consolidaram, em momentos diferentes, uma lógica de ocupação no território que reproduziu a dinâmica centro-periferia, ainda assim é inegável que podem ser vistos como exemplos de atuação integrada no grande território, o primeiro porque a região era apenas um único município, já o segundo porque a fundação o leu como uma sub-região da RM
[1] O município Iguaçu passou a ser denominado de Nova Iguaçu em 1938 (decreto lei 392). E a nova ortografia criada nos Acordos de 1943 e 1945 começaria a ser popularizada na década de 1950