A regionalização das políticas setoriais: o caso do Plano SAFRA entre 2013 e 2016


Diogo Diniz de Sousa
doutorando e mestre em Geografia e bacharel em turismo, ambos obtidos pela Universidade de Brasília. Professor externo no Centro de Excelência em Turismo da UnB (março de 2023 a março de 2024)

Referências

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1.Introdução

Há no Brasil uma forte cultura do planejamento, que remonta ao inicio do século XX, sobretudo após a ditadura varguista do Estado Novo. Este processo de planejamento teve seus altos e baixos e, no período mais recente de nossa história, recobrou certo vigor. Este planejamento, a partir da década de 1990, passou a ter um caráter setorial, pensando o que o pais precisava em sua sucessivas tentativas de enfim tornar-se um país desenvolvido. Mas nenhuma política, seja ela energética, agrícola ou industrial, pode existir fora do espaço. Este fato foi bastante negligenciado pelo planejamento no Brasil, mesmo quando se tratava do planejamento de uma região – no caso da SUDENE – Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste.

O fato de as ações estratégicas não haver sido pensado no espaço não quer dizer que elas não tenham tido consequências no espaço; quer dizer apenas que estas consequências não foram antevistas. Este trabalho visa realizar esta avaliação tomando como exemplo a política de crédito rural coordenada pelo Plano Safra. O período aqui em análise vai de janeiro de 2013 até junho de 2016, recorte temporal para o qual há dados disponíveis que propiciam este tipo de análise. Por se tratar de uma política nacional o espaço analisado será todo o território nacional.

Para cumprir este objetivo o artigo está dividido entre esta introdução, duas seções e algumas considerações finais. A primeira seção resgata o histórico do planejamento no Brasil e sua relação com o território e a segunda em que se avaliarem os efeitos do plano safra no espaço ou sua espacialidade.

Ao fim do artigo chega-se a conclusão de que a política de crédito rural, no lugar de promover uma dispersão dos recursos públicos pelo território, concentra-o em determinadas regiões que são, em geral, aquelas regiões em que as atividades agropecuárias são mais desenvolvidas.

Planejamento e Políticas Setoriais No Brasil

O planejamento regional surgiu em decorrência de desdobramentos da intervenção do Estado na economia, ao desenrolar das políticas keynesianas do New Deal. No Brasil, consistentemente foram planejadas após o advento da Segunda Guerra Mundial e o fim do Estado Novo. Antes desse período, eram elaboradas apenas ações conjunturais e de rápida solução, como a ajuda do Estado para manter o equilíbrio em algum ciclo econômico, como o café e as intervenções com vistas ao equilíbrio de mercado, lançadas pelo Convênio de Taubaté, em 1906, e o suporte para a produção de borracha, com a criação da SDB – Superintendência de Desenvolvimento da Borracha, na Região Norte (Furtado, 2003) e o saneamento de alguma pontualidade na vida brasileira em decorrência de catástrofes ou fenômenos naturais, como intervenção para minimizar a seca na Região Nordeste.

Essa teoria que o planejamento e, consequentemente, as políticas regionais, foram substancialmente elaboradas pelo Estado Nacional no Pós-guerra, foi atestada na Constituição Federal de 1946, como pode ser observado em seu Artigo 198:

Na execução do plano de defesa contra os efeitos da denominada seca do Nordeste, a União dependerá, anualmente, com as obras e os serviços de assistência econômica e social, quantia nunca inferior a três por cento da sua renda tributária (BRASIL, 1946).

Esta institucionalização serviu, por ora, para dar um aspecto de continuidade na execução da política, assim como uma solidez de seu financiamento e, por último, uma compreensão de que a questão regional deveria ser solucionada pelo Governo Federal, pensamentos estes não existentes antes da proclamação daquela Carta Magna. Em decorrência desse fato, o IOCS – Inspetoria de Obras Contra as Secas e passou a se chamar DNOCS – Departamento Nacional de Obras Contra a Seca, ainda no Governo Eurico Gaspar Dutra, que, em tese, formulariam políticas públicas e não somente ações focais, como a construção de açudes e reservatórios de águas (BRASIL, 2013). Além disso, outras autarquias foram criadas para dar suporte aos investimentos, sobretudo no Nordeste: a CVSF – Comissão Vale do São Francisco, embrião da hoje CODEVASF, em 1948, e o Banco do Nordeste, em 1952.

Segundo Costa (2000), do início do Governo democrático de Getúlio Vargas, em 1953, até a instauração do Regime Militar de 1964, foram implementadas as primeiras políticas concisas de integração territorial, com uma lógica de “equiparar as regiões mais atrasadas” com as dinâmicas do centro-sul do país.  Como prova, é perceptível o aumento das dos artifícios com vistas à substituição de importações, que já existiam desde 1932, mas, nesse instante, o Estado Brasileiro passou a ser o grande promotor dessa industrialização, por meio de infraestrutura e do próprio protagonismo do Estado como empreendedor, criando empresas de desenvolvimento nacional, como a Petrobrás. Tanto nos governos Getúlio e, no Governo JK, o local de instalação dessas empresas, bem como a infraestrutura dotada no território eram investidas nessa metodologia de equiparação das regiões.

 Além disso, segundo Rocha Neto & Oliveira (2013), o Plano de Metas (1956-1960), na Era Kubitschek, “[foi] a primeira referência implícita sobre a questão regional em planos regionais” (ROCHA NETO & OLIVEIRA, 2013. p: 166). Um ponto importante deste Plano foi à opção política de interiorização do Brasil, como a expansão da malha rodoviária, adquirindo um caráter de distribuição ao longo de territórios com déficits socioeconômicos, para dotá-las de comunicação “com o mundo civilizatório”, criando, subjacentemente, uma política regional. Além dessa meta, a construção de Brasilia também teve, como objetivo, a ocupação do interior do Brasil, propondo que o desenvolvimento fosse levado ao Centro-Oeste. Por fim, conforme aponta Costa (2000), deve a ser referenciada a criação da SUDENE – Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste, uma autarquia que deveria propiciar políticas para a resolução das disparidades regionais nordestinas, em comparação ao Centro-Sul do Brasil.

Com o Golpe de 1964, há a instauração de uma remodelagem do Estado: passa a ser tecnocrático e burocrático, com um viés mito mais centralizador e impositor. Obviamente que, desde a Independência do Brasil já continha este fenótipo em sua gênese. Mas, a partir da ditadura militar, estes fatores passam a ser mais contundentes.  Segundo Moreira (2012), mesmo com as políticas de interiorização e transferência de indústrias e dotação de infraestrutura provenientes do Estado, a indústria, bem como o mercado de trabalho, e consequentemente, o capital, estavam concentrados, maciçamente, na Região Sudeste, com ênfase, no Estado de São Paulo. Com isso, surgiu a necessidade política, sobretudo por uma estratégia de Nação.

Foi criado o Programa de Ação Econômica do Governo (PAEG), utilizados entre 1964 a 1966 e o Plano Estratégico de Desenvolvimento, de 1968 a 1970. Ambos tinham como objetivo o desenvolvimento regional e atenuar as disparidades entre as regiões, assim como, um viés de colonização dos estados nas porções setentrionais do Brasil. Em decorrência disso, a política regional se integrou à tutela do Ministério do Interior e passou a ter características de interação de todo o território nacional. Além disso, segundo Costa (2000), foram criadas outras superintendências para autarquias para apoiar o governo central nesse processo de inserção do Estado nas regiões: a SUDAM e a SUDECO, além da manutenção da SUDENE e suas respectivas formas de financiamento: FNO – Fundo do Norte e o Banco da Amazônia, na Região Norte; o FCO – Fundo do Centro-Oeste e o FNE – Fundo do Nordeste.

Mas, as principais políticas na Era Militar para a questão regional foram esquematizadas no corpo dos Planos Nacionais de Desenvolvimento. Ao longo do período existiram três, onde o I PND teve a natureza de modernizar os setores produtivos do país. Já o II PND teve concentrado para diminuir as desigualdades sob o ponto de vista da integração entre as regiões brasileiras e o III PND teve uma tímida descentralização, com caráter multissetorial e com a participação das outras esferas de poder, além da parceria com a iniciativa privada. Segundo Senra (2011), as PND’s não foram um sucesso uníssono, pois:

Os resultados das políticas de desenvolvimento regional dessa fase são controversos. Um dos pontos mais relevantes é a formação de polos industriais na periferia do país, principalmente no Nordeste, o que contou com benefícios fiscais e creditícios além de pesados investimentos em empresas estatais. (SENRA, 2011. p:9).

Em suma, conforme Moreira (2012), o Regime militar foi exitoso em espalhar, pelo território brasileiro, infraestruturas e indústrias, sobretudo pertencentes a empresas estatais e a criação de autarquias e fundos de investimentos, bem como incentivos fiscais, diminuindo, quantitativamente o número de empresas da porção Sudeste do Brasil e redistribuindo para outras áreas. Mas, a integração não passou de esporádicos interesses puramente econômicos.

A partir da década de 1980, um movimento propiciado mundialmente, exceto nos países socialistas, passou a fazer parte do cotidiano político-econômico dos países. Segundo Schimidt (1999), o neoliberalismo era uma maneira de enfraquecer o poder estatal na realidade conjuntural nacional e global e passá-las para uma maior participação dos investidores e do próprio desdobramento do capital, por meio de privatizações e abertura ao mercado, além da venda de ativos e serviços públicos e limite nos gastos públicos. Com isso, houve um arrefecimento das políticas públicas, como expõe Araújo (2000):

No projeto neoliberal, não há espaço para o Estado planejador e nem para o Estado produtor. [A década de 1980 e 1990] nos mostram que os dois, junto com o capital privado (nacional e multinacional), foram os principais agentes de mudanças [nas regiões] (ARAÚJO, 2000, p: 94).

Apesar da predominância do neoliberalismo e do abrandamento das demandas e do planejamento estatal, mesmo no final da década de 1980, no Brasil, as políticas públicas regionais ainda estavam na agenda do Estado, quando passaram a constar na Constituição de 1988, em seu Artigo 43: “Para efeitos administrativos, a União poderá articular sua ação em um mesmo complexo geoeconômico e social, visando a seu desenvolvimento e à redução das desigualdades regionais” (BRASIL, 1988). Portanto, apesar da incursão do projeto neoliberal, as políticas públicas regionais ainda tinham um caráter de envolvimento do Nacional para resolvê-las. De fato, as políticas públicas regionais na década de 1980 ainda existiam com certa força, segundo Rocha Neto & Oliveira (2013), somente decaindo em 1990, com um pomposo plano de desestatização das empresas controladas pelo Governo Federal e da projeção do neoliberalismo no Brasil. A partir desse instante, segundo Araújo (1993), durante o Governo Collor de Mello, o Estado passa a fragmentar as políticas públicas e deixa-las segmentadas e setorializadas.

Como visto, o fenômeno histórico das políticas regionais teve duas grandes gerações. A primeira, com um forte viés estatal, com enfoque centralizador e impositor. A segunda, com um viés de um Estado fraco, com enfoque de aporte às empresas e ao capital, além de uma descentralização política. Cagubueira (2000) acrescenta mais características, sendo que no primeiro momento, há um crescimento visto de fora, por meio de forças exógenas e a criação de polos de crescimento, o qual ele nomenclatura de “modelo difusor”. E no segundo momento, após 1980, há uma intervenção com vistas à “inovação, qualidade, flexibilidade, espírito empreendedor, [com a] mobilização do potencial endógeno”, chamando de “modelo territorialista”. (CABUGUEIRA, 2000. p: 118). Com isso, principalmente com a desconcentração do poder, há um enfoque nos atores, nas demandas e nos conflitos locais, o que faz as políticas serem setorializadas para atores, demandas e conflitos distintos.

Na realidade da política pública regional, no Brasil, não houve grandes diferenças no disposto ao parágrafo acima. As regiões existiram para dar suporte à essas políticas setoriais – paradoxalmente foram nomeadas na Era FHC de “política regional”, sofriam de intensa desarticulação institucional, somente aliviada com a criação do Ministério da Integração Nacional, em 1999 – deveriam dar uma base institucional para os atores-agentes que reproduziam o capital, sem entender, de fato, o qual é complexo o território e o seu uso, com o intuito de solucionar, pontualmente, alguns setores da economia.  Segundo Rocha Neto & Borges (2011), as políticas setoriais acabaram por existir, principalmente, por duas questões: pelo desmonte do Estado como formulador de políticas públicas, e, portanto, com a eminente anulação da intervenção governamental no saneamento de disparidades, existente, sobretudo à procura de medidas imediatas e de curto prazo. A segunda é a econômica. Devido a crise econômica até meados da década de 1990, o Governo Federal, com a ideologização impregnada às políticas de segunda geração, existiu o privilégio de políticas públicas onde o capital poderia ser mais dinâmico e influenciava mais a economia e tendia a busca ao saldo positivo da balança comercial brasileira. É importante ressaltar que, como havia o privilégio para alguns agentes-atores e não a totalidade, a desigualdade regional era acentuada, pelo fato da visão quase que majoritariamente econômica.

Somente em 2003, com a retomada de políticas públicas regionais, compreendendo não mais unicamente a economia, a qual Steinberger (2013) atribui as políticas regionais de terceira geração, com características de desaceleração do neoliberalismo e a inserção gradativa do Estado na constituição de políticas públicas nacionais, há, implicitamente, o entendimento que as demandas do capital se enfraquecem, enquanto que outros agentes-atores, outrora excluídos, são incluídos no processo das políticas públicas. Concluí Rocha Neto & Borges (2011), que pós-2003, as políticas setoriais são “integradas às políticas regionais” (ROCHA NETO & BOGES, 2011. p: 1646), sendo as políticas setoriais e regionais dotadas de um novo contexto socioeconômico: desenvolvimento econômico na escala local-regional, com a superação das desigualdades socioeconômicas. Em contraponto, há também, o surgimento de conflitos, por antes, havia a presteza a um grupo que compunha tal setor. Nesse instante, vários atores são protagonistas na execução e na aplicabilidade da política pública. Portanto, o Estado volta a atuar com certa importância, com distintos fins, não só meramente com vistas ao superávit primário.

O Plano Safra No Território

A Geografia da agropecuária brasileira mudou sensivelmente nos últimos 40 anos. As maiores mudanças se deram com a produção de grãos no Cerrado. Estas transformações não ocorreram de forma espontânea, foi antes resultado de um esforço de coordenação realizado pelo Estado brasileiro, a política agrícola.

Dentre as principais políticas agrícolas adotadas nos últimos 40 anos podem ser destacadas: i) Programa de Cooperação Nipo-Brasileira para o Desenvolvimento dos Cerrados (PRODECER), que desde 1996 encontra-se em sua terceira fase; ii) Criação da Empresa Brasileira de Pesquisa Agrícola – EMBRAPA, em 1972; iii) Plano Agrícola e Pecuário, lançado anualmente a cada ano-safra. As duas primeiras políticas destacadas têm recebido atenção nos artigos de Pessôa e Inocêncio (2014) e Marcos Paulo Fuck (2005). É sobre a terceira que nosso trabalho está centrado.

O Plano Agrícola e Pecuário, mais conhecido pelo público como Plano Safra, organiza a atividade agropecuária no Brasil por meio de:

i) Sinaliza ao setor privado, principalmente a maioria dos chamados “produtores rurais” (eufemismo para latifundiários) tanto a área (geográfica) de onde deve realizar seus investimentos, por meio da política de zoneamento agrícola e sinalização de preços mínimos para as culturas que podem ali ser plantadas com o aval da política, quanto da área (setorial) para onde estes devem fluir (cultura, armazenagem, irrigação, renovação de maquinária, etc).

ii) Oferece crédito subsidiado (dizer como é este subsídio) para o custeio e comercialização da safra bem como para os investimentos.

A política de financiamento agropecuário possui dois pilares: a obrigatoriedade e o subsídio. Note-se que, mesmo assim, a participação dos bancos privados é muito baixa, jogando papel central os bancos públicos e cooperativos. A obrigatoriedade é definida pela lei de 4.829/1965, que confere ao Conselho Monetário Nacional a função de determinar a fonte dos recursos e as diretrizes do crédito rural; historicamente, tem-se escolhido um percentual do Valor Sujeito a Recolhimento (VSR), constituído basicamente da poupança nacional. O subsídio implícito no crédito rural é, grosso modo, a diferença entre a taxa de juros paga pelo produtor e a taxa de captação do recurso. Esta taxa é, para a maior parte dos recursos, a remuneração da poupança, a taxa do Sistema Especial de Liquidação e Custódia (SELIC) e a Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP) – esta última no caso de recursos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). O quadro abaixo demonstra a evolução destas taxas para o período em análise.

Tabela 1 – Sínteses de custo de captação dos recursos (SELIC), da taxa de juros paga pelo produtor rural e estimativa da taxa de subsídio entre janeiro de 2013 e junho de 2016.

Período

SELIC (%a.a.)

Taxa de juros do Crédito Rural (%a.a.)

Subsídio (% a.a.)

Julho de 2012 a junho de 2013

7,31%

5,50%

1,81%

Julho de 2013 a junho de 2014

9,75%

5,50%

4,25%

Julho de 2014 a junho de 2015

11,85%

6,50%

5,35%

Julho de 2015 a junho de 2016

14,05%

8,75%

5,30%

Média do período

10,74%

6,56%

4,18%

Fonte: Elaboração própria com dados do Banco Central do Brasil, 2016a.

Para a estimação realizada acima adotamos apenas a maior taxa de juros – aquela praticada para os grandes produtores – desconsiderando, portanto, as taxas que incidem sobre algumas linhas especiais investimento, sobre os empréstimos a agricultura familiar e para os médios produtores. Logo, trata-se de uma estimativa conservadora, pois trata o subsídio para todos os casos como naquele em que ele é menor. Os empréstimos aos pequenos e médios produtores totalizaram cerca de 25% do valor contratado entre janeiro de 2013 e junho de 2016 (BACEN, 2016).

Além de promover o desenvolvimento da agropecuária brasileira, a política agrícola deve promover o desenvolvimento regional. Não apenas por razões legais – como a previsão da preocupação com o desenvolvimento regional na Constituição de 1988 bem como nos diversos Planos Plurianuais (PPAs) que a seguiram –, mas também por reiterados avisos de autoridades políticas (BRASIL, 2003) e científicas (ARAÚJO, 1993; COSTA, 2000).

Apesar de dever promover o desenvolvimento regional, encontramos elevada concentração de seus recursos no território. Vejamos. Ao adotar a taxa média do período – outra simplificação conservadora, já que o montante contratado cresce a cada ano e os últimos anos apresentam as mais altas taxas de subsídio na tabela 1 – para todos os empréstimos entre janeiro de 2013 e junho de 2016, agregados por Unidade da Federação, temos o quadro que segue abaixo:

Tabela 2 – Estimativa do subsídio implícito no crédito rural, entre jan-2013 e junho de 2016, por Unidade da Federação.

UF

Subsídio

UF

Subsídio

PR

R$ 13.045.666.875,60

PI

R$ 715.889.362,13

RS

R$ 11.222.634.448,41

CE

R$ 458.770.306,30

SP

R$ 10.230.054.355,90

PE

R$ 440.859.395,62

MG

R$ 9.727.854.092,50

PB

R$ 232.120.194,11

MT

R$ 6.682.571.965,10

AL

R$ 225.980.709,93

GO

R$ 6.658.009.735,71

SE

R$ 221.726.464,06

SC

R$ 5.138.642.420,13

RJ

R$ 191.596.007,81

MS

R$ 5.138.642.420,13

RN

R$ 156.342.397,15

BA

R$ 5.138.642.420,13

AC

R$ 127.651.867,24

TO

R$ 1.451.274.261,72

DF

R$ 102.407.765,59

ES

R$ 1.292.510.719,40

AM

R$ 79.918.483,23

MA

R$ 1.090.345.286,71

RO

R$ 69.086.077,70

Não informado

R$ 924.942.006,97

RR

R$ 68.200.515,03

PA

R$ 877.748.998,07

AL

R$ 12.425.914,88

 

 

Total

R$ 78.381.271.576,30

Fonte: Elaboração própria com dados do Banco Central do Brasil, 2016a.

Conforme fica demonstrado acima, apenas os 4 primeiros estados, Paraná, Rio Grande do Sul, São Paulo e Minas Gerais, contratam a maior parte do crédito agrícola e ficam, em nossas estimativas, com 56% do subsídio dado a agropecuária nacional.

Mais do que avaliar se a política agrícola tem sido capaz de frear a tendência, inerente ao mercado, de privilegiar determinadas regiões (BRASIL, 2010, p. 68), compete à pesquisa crítica identificar qual regionalização tem sido incentivada. Neste sentido, a construção de mapas é uma importante ferramenta para uma análise da espacialidade das políticas setoriais. O mapa 1, nos permite não só uma visualização sintética da política de crédito rural, mas da agropecuária brasileira.    
 Mapa 1 – Crédito rural contratado entre janeiro de 2013 e junho de 2016, por mesorregião.

























Fonte: Elaboração própria, com dados do Banco Central do Brasil, 2016a.

O primeiro aspecto que pode ser destacado deste mapa é a importância do Brasil Central na agropecuária. O mapa representa a existência de uma imensa região contígua que vai do oeste de Santa Catarina ao sul do Pará (de sul a norte) e do oeste da Bahia à região de fronteira com Paraguai e Bolívia. Podemos observar, assim, a transformação de uma das regiões descrita por Santos e Silveira nos seus “quatro Brasis”: a região Centro-Oeste. Se no final da década de 1990 ela era “constituída pelos Estados de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás e Tocantins” (SANTOS e SILVEIRA, 2001, p. 271), agora inclui também o oeste de Minas Gerais (principalmente o triângulo mineira), o oeste baiano, o sul do Pará e do Maranhão, o oeste do Paraná e de Santa Catarina. O que unia esta região há vinte anos é o mesmo que ainda lhe dá sentido: o cultivo de produtos da agricultura globalizada (SANTOS e SILVEIRA, 2001, p. 271), principalmente grãos.

O mapa 1 também demonstra que a política agrícola, e o crédito agrícola em específico, tem efeito em quase todo o território nacional: das 136 mesorregiões existentes apenas 10 não receberam recursos para crédito agrícola. Das 126 restantes, 92 receberam até 61 milhões. As 34 mesorregiões que mais receberam recursos foram responsáveis por 43% do crédito contratado.

Outra questão levantada pela análise do mapa 1 é utilização da escala para a análise geográfica. Enquanto a análise mesorregional dá destaque ao centro-oeste e seu entorno, a análise estadual dá destaque os estado do Sul e Sudeste.  As quatro Unidades da Federação com maiores valores contratados (Paraná, Rio Grande do Sul, São Paulo e Minas Gerais) concentraram 56% do total. O fato de as últimas regiões apresentarem mesorregiões com menores áreas faz com que o total de crédito por elas contratado caia na menor categoria, haja vista a estreita correlação existente na agropecuária entre área e capital adiantado (crédito).

A análise espacial do crédito rural total, mapa 1, nos permite apreender o movimento geral, mas pode deixa escapar da análise especificidades que podem ser importantes. Agrupar os dados entre crédito agrícola e pecuário nos dá maior conhecimento da divisão territorial do trabalho e também melhor entendimento da dinâmica de expansão da agropecuária, suas regiões de fronteira, etc. O mapa 2 apresenta as estatísticas agrícolas e o mapa 3 as pecuárias.

MAPA 2 – Crédito contratado para atividades agrícolas entre janeiro de 2013 e junho de 2016.

Fonte: Elaboração própria, com dados do Banco Central do Brasil, 2016a.

O crédito para agricultura se encontra mais presente nas regiões sul e sudeste. Ademais, sua presença na região de fronteira agrícola se faz na parte “consolidada” da fronteira. O mapa também demonstra que as regiões que recebem maior aporte financeiro são aquelas dedicadas à produção de grãos, principalmente milho e soja na região centro-oeste, oeste do Paraná e no MATOPIBA. 

A grande concentração do crédito para a agricultura faz com que o método utilizado ara dividir as classes que compõe o mapa, as quebras naturais, tenham poucas ocorrências nas classes superiores e muitas ocorrências nas classes inferiores, criando um maior número de regiões claras no mapa quando comparado com o crédito total ou mesmo pecuário.

O último destaque do mapa 2 diz respeito ao papel ocupado pelo município de São Paulo que, apesar de não figurar no imaginário social como região agrícola, aparece como município com  o maior volume de crédito contratado par a agricultura. Isto se deve ao fato de São Paulo jogar papel central na comercialização dos produtos agrícolas e o crédito para comercialização ser extremamente concentrado. Ainda que o peso do crédito de comercialização no crédito total seja baixo, 15% (R$ 81 bilhões), o peso da capital paulista nele é extremado: 10% (R$ 8,7 bilhões (5,2 do agr.).

MAPA 3 – Crédito contratado para atividades pecuárias entre janeiro de 2013 e junho de 2016.

Fonte: Elaboração própria, com dados do Banco Central do Brasil, 2016a.

Como se depreende do mapa 3, a dinâmica da pecuária é menos desigual internamente. Isto leva a um menor número de pontos muito claros e maior incidência de polígonos médios e médio escuros. A definição de classes realizada o método das quebras naturais demonstra que há, nos dados relativos a pecuária, maior uniformidade no crescimento dos dados.

Além disso, a função da pecuária bovina de expandir a fronteira agrícola fica bastante clara no mapa 3, principalmente quando comparado ao mapa 2. Apesar de ser possível observar sua forte presença em regiões agrícola consolidadas, como o triângulo mineiro, é inegável já esteja presente em lugares para os quais a agricultura ainda caminha. Vale citar, como exemplo desta dinâmica, sua presença mais acentuada no Acre, na fronteira com o Paraguai e a Bolívia e saindo da região Centro-Oeste rumo ao Norte, principalmente nos estados do Pará, Tocantins e Maranhão.

No Sul a pecuária é mais diversificada. Lá ganha maior relevo a avicultura, principalmente no oeste catarinense e sudeste paranaense. É valido lembrar que o Sul do país possui uma estrutura agrária um pouco mais democrática do que o restante do país e, por isso mesmo, as cooperativas jogam um papel mais importante nesta região. Mesmo uma produção centralizada, como a avicultura com 4 empresas dominando a maior parte do mercado nacional, precisa tratar esta região de forma diferenciada, por meio da integração dos produtores, ainda que consiga subordiná-la.

Por fim, uma análise pormenorizada no crédito para investimento no período permite verificar onde ocorre maior modernização da agricultura e para onde estão se deslocando os capitais frutos da própria expansão agropecuária. Para este fim construiu-se o mapa 4, que demonstra um grau elevado de dispersão do investimento agropecuário pelo território nacional. 

Três regiões vêm a relevo no Sul do país: o sudoeste do Rio Grande do Sul, o oeste catarinense e oeste paranaense, com particular destaque para a mesorregião do Centro Ocidental Paranaense. Estas regiões foram bastante beneficiadas por mudanças recentes em alguns programas de investimento. A região gaúcha em destaque, por exemplo, foi beneficiada pela redução do custo do crédito destinada à irrigação, que chegou a 3% na safra 2013/2014. A zona produtora de aves e suínos se beneficiou da política adotada pelo Inovagro, que facilitou a troca de equipamentos para aquelas regiões que já estavam no mercado em detrimento das entrantes (BANCO CENTRAL DO BRASIL, 2016b). No caso paranaense, o benefício se deu por meio da política nacional de incentivo a troca de equipamentos, que beneficia mais as regiões densas (SANTOS & SILVEIRA, 2001), por possuírem mais do que trocar.

MAPA 4 – Crédito rural contratado investimento entre janeiro de 2013 e junho de 2016.

 

 

Fonte: Elaboração própria, com dados do Banco Central do Brasil, 2016a.


           Destaca-se que a maior parte das regiões beneficiadas com o subsídio ao investimento estão vinculadas a produção de grãos. Dentre elas pode-se sublinhar toda a porção ocidental de Minas Gerais, a parte norte dos estuado do Mato  Grosso e do Mato Grosso do Sul (principalmente nordeste).

Outra região que vem apresentando elevados índices de investimento são aquelas nas proximidades da Ferrovia Norte-Sul. A facilidade propiciada pela ferrovia para o escoamento da produção pelo porto de Taqui, no Pará, impulsionou o desenvolvimento da produção de grãos na região. São os investimentos para viabilizar esta produção que podem ser observado no mapa nas mesorregiões do oeste tocantinense, do sudeste do Pará, nordeste do Mato Grosso e norte de Goiás.

Na região Norte o destaque fica para o Acre, que apresenta vulto significativo de investimento (mesmo para níveis nacionais) nas suas duas mesorregiões. As maiores

Considerações Finais

O estudo da regionalização da política de crédito rural nos permitiu observar a baixa preocupação existente entre os formuladores de políticas setoriais com o planejamento regional, haja vista os poucos mecanismo de distribuição do crédito para regiões não consolidadas pelo agronegócio. Excetuam-se os mecanismos vinculados aos Fundos de Desenvolvimento do Norte e Nordeste, mas mesmo estas exceções parecem estar presentes apenas por força da Carta Magna.

Apesar das diferenças trazidas pelos diversos mapas, uma zona contígua que vai da região da triplica fronteira, no Sul do Brasil, até o sul do Pará se faz unipresente. Fruto das políticas adotadas nos últimos 40 anos, esta área também mostra transformações, principalmente sua expansão “para fora”, isto é, empurrando seus limites a leste em direção cerrado nordestino, ao norte devastando parte significativa da floresta amazônica e a oeste em direção ao Paraguai e a Bolívia, deixando inclusive de respeitar os limites nacionais, como demonstra o caso dos “brasiguaios” [1].

O fundamental quanto a esta região, contudo, não sofreu alterações: segue sendo a região responsável por produzir grãos para exportação, principalmente para Ásia. Inicialmente mais vinculado ao Japão, como no caso do PRODECER, a região vem se vinculando todos os mais à China. O maior peso da Ásia nas relações comerciais fez com que se buscasse uma alternativa para exportação mais rápida; eis a proliferação de portos ao Norte do Brasil, onde é possível economizar alguns dias em relação aos portos do Sul e Sudeste brasileiros. Hoje os portos do chamado “arco-norte” são responsáveis por 20% das exportações de grãos (BRASIL, 2016).

A política agrícola logrou, portanto, promover uma maior interiorização do Brasil. Não fez, porém, uma interiorização para o Brasil. Este movimento não fez mais do que levar para regiões mais distantes do litoral as funções do Brasil na Divisão Internacional do Trabalho.

 

[1]O termo brasiguaio tem sido utilizado para designar os brasileiros proprietários de terras que tem comprado terras no Paraguai e dirigido atividades agropecuárias neste país. Veja por exemplo: http://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,crise-no-paraguai-expoe-conflito-entre-sem-terra-e-brasiguaios,892259

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