Desigualdade nas mesorregiões nordestinas: uma análise multidimensional dos anos 2000
Juliana Bacelar de Araújo
Doutoranda em Desenvolvimento Econômico na Universidade Estadual de Campinas. Tem experiência na área de Economia, com ênfase em mercado de trabalho, emprego, rendimentos e dinâmicas regionais
Cassiano José Bezerra Marques Trovão
Doutorando em Desenvolvimento Econômico pelo IE/UNICAMP, atuando principalmente nos temas: Mercado de Trabalho, Desigualdade e Macroeconomia Keynesiana.
1 Introdução
Uma das heranças mais marcantes do desenvolvimento brasileiro é a intensa desigualdade regional. De acordo com Hoffmann (1978), esse processo de concentração econômica no Sudeste/Sul intensificou-se durante o período da ditadura militar, quando o crescimento da indústria brasileira, especificamente entre 1960-1970, ocorreu com o aumento do grau de concentração tanto da renda quanto do poder econômico, em um país que já apresentava, historicamente, um padrão de distribuição bastante concentrado. Esse movimento também já tinha sido ressaltado pelo Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste (GTDN) – (1967), que destacou o aumento da disparidade no nível de desenvolvimento entre o Nordeste a o “Centro Sul” do país, reflexo do processo de concentração industrial que ocorreu na região Sudeste.
O início do processo de integração inter-regional da estrutura produtiva brasileira deu-se nos anos 1960, a partir da transferência de frações do capital produtivo nacional e internacional das áreas mais industrializadas do país em direção a outras regiões, em especial o Nordeste. Isso foi, primeiramente, identificado por Moreira (1976) e, posteriormente, confirmado por Guimarães Neto (1989).
Entre os finais das décadas de 1970 e 1990, o grau de desigualdade de renda medido pelo Coeficiente de Gini manteve-se estável, em torno de 0,60, para o Brasil. Observa-se um aumento do indicador apenas no final da década de 1980, atingindo 0,64 em 1989, e uma queda no início dos anos 1990, retornando ao patamar de 0,60 (BARROS; HENRIQUES; MENDONÇA, 2001). A região Nordeste segue a mesma tendência, porém com valores relativamente maiores do índice de Gini, o que indica a permanência de uma maior concentração de renda na região.
Em termos de estrutura produtiva, o Nordeste do final da década de 1990 apresentava uma importante diversidade produtiva sub-regional, com crescente heterogeneidade intrarregional. Como afirma Araújo, foram criadas “[...] novas áreas de expansão que abrigam, hoje, estruturas modernas e dinâmicas, as quais convivem com áreas e segmentos econômicos tradicionais, contribuindo, assim, para tornar a realidade regional muito mais diferenciada e complexa” (ARAÚJO, 2000, p. 194).
Nos anos 2000, o Brasil apresentou sinais de recuperação econômica, com importante geração de empregos e crescimento da renda nacional. A partir de 2004, a expansão do crédito e do consumo das famílias, a manutenção do crescimento das exportações, decorrente do movimento favorável do crescimento internacional (até a crise financeira de 2008/09), e a reativação do investimento produtivo e em infraestrutura econômica e social permitiram que o País mantivesse um ritmo sustentado de crescimento do PIB.
Nesse ambiente de retomada do crescimento, em que o mercado interno registrou um peso relativamente maior do que o do mercado externo, observou-se que as regiões mais atrasadas economicamente (Norte e Nordeste) apresentaram um forte dinamismo do produto e da geração de emprego, em especial do emprego formal, além de um crescimento médio da renda acima das outras regiões. Nesse processo, também merecem destaque a implementação e consolidação de programas sociais de transferência de renda, a política de reajuste real do salário mínimo, bem como a expansão do crédito para o consumo, que, juntos, se mostraram elementos dinamizadores para essas regiões.
Outro reflexo importante desse novo momento da economia brasileira é a queda da desigualdade de renda, medida pelo Coeficiente de Gini, que passa de um patamar de 0,60, em 2001, para 0,54, em 2009, de acordo com os dados da PNAD (IBGE).
Como destaca Dedecca et al. (2008, p. 2):
As reduções do Índice de Gini nos anos 80 e 90 ocorreram em um contexto de elevada instabilidade econômica, caracterizada por declínio do nível de atividade, redução do nível de emprego, incremento expressivo do desemprego e uma situação de fortes tensões inflacionárias. Ademais, o movimento foi significativamente mais circunscrito a um curto espaço de tempo. A tendência atual de redução apresenta características bastante distintas. Ela começa em um ambiente de instabilidade econômica, correspondente ao período 2000-2002, mas vai se consolidando, a partir de 2003, em outro, marcado pela recuperação econômica com recomposição do nível de emprego, queda do desemprego e baixa inflação. Ademais, ela vem perdurando durante todos os anos da década, mostrando uma duração significativamente mais longa que aquela observada para as quedas da desigualdade ocorridas nos anos 80 e 90.
Na região Nordeste, soma-se, a esse cenário positivo nacional e internacional, a retomada do investimento produtivo e em infraestrutura, realizado, sobretudo, no âmbito do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que possibilitou grandes investimentos produtivos, como refinarias de petróleo e obras de infraestrutura (Transposição do Rio São Francisco e ferrovia Transnordestina, por exemplo). Dessa forma, espera-se que ocorram mudanças importantes na estrutura produtiva da região, além das transformações que já estão acontecendo com os investimentos privados, a exemplo da indústria naval, indústria de papel e celulose, agronegócio, entre outros.
Em relação aos indicadores sociais, as informações disponíveis revelam, para o Nordeste, um ritmo mais acelerado de queda da pobreza extrema (pessoas com rendimento familiar per capita inferior a ¼ do salário mínimo) e da melhoria do IDH. Apesar disso, a região segue liderando os piores indicadores sociais do país (GUIMARÃES NETO, 2010).
A partir do entendimento da desigualdade como um fenômeno complexo e multidimensional, extrapolando os problemas associados a concentração de renda, o presente trabalho busca analisar a evolução desse processo, em um contexto de crescimento econômico com redução da concentração de renda no Brasil. O objetivo é entender se esse processo recente teve reflexo na desigualdade intrarregional no Nordeste. Para tanto, a abordagem proposta parte da elaboração de diversos indicadores socioeconômicos, em distintas dimensões, de forma a compreender as diferenças entre as mesorregiões nordestinas.
As mesorregiões representam uma forma de organização regional/territorial no interior de cada unidade da federação. Elas são determinadas pelo processo social, condicionadas pelo quadro natural e articuladas, espacialmente, por elementos como as redes de comunicação e de lugares. A utilização das mesorregiões como unidade de análise permite o diagnóstico de identidades regionais construídas pela sociedade ao longo do tempo. Também possui vantagens ligadas ao norteamento de políticas públicas e contribui para o sistema de decisões, permitindo um exame mais detalhado das questões associadas à localização das atividades econômicas, sociais e tributárias, além de subsidiar o planejamento e os estudos regionais, identificando as especificidades das estruturas espaciais das regiões metropolitanas e/ou de outras formas de aglomerações urbanas e rurais (IBGE, 1990).
A partir do Mapa 1 é possível identificar as 42 mesorregiões que compõem a região Nordeste, segundo o bioma a que pertencem.
Mapa 1 – Nordeste: Mapa das mesorregiões segundo biomas
Fonte: IBGE (1990).
Para realizar essa discussão, o artigo é divido em três seções, mais esta introdução. Primeiramente, apresenta-se a dinâmica da economia e do mercado de trabalho das grandes regiões nos anos 2000, com o intuito de situar a região Nordeste no contexto nacional. Em seguida, realiza-se uma abordagem multidimensional da desigualdade entre as mesorregiões nordestinas, a partir da observação dos coeficientes de variação de diversos indicadores socioeconômicos. Por fim, as considerações finais retomam e articulam a discussão feita ao longo do texto.
2 Dinâmica da economia e mercado de trabalho das grandes regiões brasileiras nos anos 2000
Como já ressaltado, o início dos anos 2000 se destaca pela retomada do crescimento da atividade econômica e pelo processo de reestruturação do mercado de trabalho nacional, tendências que se reproduziram nas grandes regiões do país. No que se refere ao produto interno bruto, constatam-se alterações muito reduzidas das participações das grandes regiões brasileiras na trajetória recente. Ao longo dos anos 2000, não ocorreram praticamente mudanças significativas de peso das macrorregiões brasileiras. Todavia, evidencia-se um modesto declínio na participação da região Sudeste e pequenos aumentos relativos nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste (Tabela 1).
Na análise do crescimento real das economias regionais, observa-se que as regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste apresentaram uma trajetória de expansão, entre 2000 e 2011, mais intensa que a média da economia nacional, com taxas médias anuais de 5,5%, 4,2% e 4,8%, respectivamente. A economia do Sudeste, que registrou uma expansão anual de 3,4%, e da região Sul, com incremento do produto de 3,1% a.a., demonstraram uma trajetória expansiva menos intensa que a da média do país (3,5%) – como pode ser observado no Gráfico 1.
Verifica-se, além disso, um decréscimo das taxas de crescimento populacional nas macrorregiões brasileiras ao longo das últimas décadas. Nos anos 2000, apenas as regiões Norte e Centro-Oeste, de ocupação mais recente, apresentaram um incremento populacional acima da média nacional, o que também representa um aumento da participação da população dessas regiões (Tabela 2). Todavia, destaca-se que a população da região Nordeste detinha, em 2010, 27,8% do total do Brasil, enquanto sua participação no produto era de apenas 13,5%. Essa questão, isoladamente, já representa uma disparidade importante entre as dinâmicas demográficas e econômicas; o problema se agrava, na medida que se observa que, em 2010, 47,8% da população rural vivia nessa região.
No que tange ao mercado de trabalho, nota-se uma elevação mais expressiva da taxa de participação1 das regiões Centro-Oeste e Sul, que passaram, respectivamente, de 61,4% para 63,0% e de 62,2% para 63,2%, entre 2000 e 2010, segundo os dados do Censo Demográfico para a população com renda familiar per capita maior que zero. Em seguida aparece o Sudeste, com uma taxa de participação que se elevou de 59,9% para 60,6%. A região Norte manteve sua taxa de participação estável. Já o Nordeste apresentou uma retração devido ao maior crescimento médio da PIA em relação à PEA. Ou seja, nessa região, o crescimento da inatividade foi maior que o da PEA, fato decorrente do crescimento dos ocupados sem remuneração e do autoconsumo com menos de 15 horas, que, neste estudo, foram considerados inativos (Tabela 3).
O desemprego caiu, de maneira generalizada, em todas as macrorregiões brasileiras. A taxa de desocupação, ou desemprego aberto, passou de 14,0%, em 2000, para 7,1%, em 2010. No Sul, essa taxa reduziu-se de 11,1% para 4,4%. No Sudeste, passou de 14,9% para 6,9%; no Centro-Oeste, de 12,5% para 6,2%; no Norte, de 14,0% para 8,1%; e no Nordeste, de 14,5% para 9,3%. Enfim, houve um maior crescimento da população ocupada na região Norte, seguida pelo Centro-Oeste, Sudeste, Sul e, por último, o Nordeste. Todavia, quando se analisa o emprego no setor privado, maior responsável pelo dinamismo da geração de empregos nesse período, constata-se que a região Nordeste apresentou um crescimento médio de 4,7% ao ano, ficando atrás apenas das regiões Norte (7,2% a.a.) e Centro-Oeste (5,1% a.a.).
Concernente ao segmento formal do mercado de trabalho, percebe-se que, no período analisado, em função da criação de novos postos de trabalho e da formalização de postos existentes, as regiões Norte e Nordeste apresentaram as maiores taxas médias de crescimento do emprego formal. A região Norte expandiu a geração de postos de trabalho formal em 8,2%, o Nordeste cresceu 6,2% e o Centro-Oeste, 5,7% ao ano – ritmo mais intenso que a média nacional (5,3% a.a.). As duas outras regiões registraram crescimento médio inferior à média do país, 4,8% e 5,0% a.a. nas regiões Sudeste e Sul, respectivamente (Gráfico 2).
O maior crescimento do emprego nas regiões Norte e Nordeste destaca-se como um ponto relevante na distribuição do emprego formal. Como se vê na Tabela 4, houve um aumento da participação dessas regiões no total de ocupados formais, passando de 4,2% para 5,5% e 16,7% para 18,2%, respectivamente. Ainda assim, a região Sudeste continua sendo responsável por mais de 51% do total de emprego formal e, considerando-se a quantidade de empregados gerados para cada 10 empregos no total, apreende-se que 4,7, aproximadamente, são gerados nessa região. Em síntese, os dados da RAIS sobre o emprego formal registram o fato de que o Norte e Nordeste exibiram um crescimento mais intenso. As regiões Centro-Oeste e Sul aproximam-se mais da dinâmica nacional e a região Sudeste apresenta uma expansão relativa menor, conquanto siga como líder na geração de empregos formais.
A análise da evolução da participação da ocupação remunerada com contribuição para a Previdência Social corrobora a tendência de formalização do emprego na economia brasileira (Gráfico 3). Há um expressivo crescimento da população ocupada remunerada com contribuição, que passa de 49,8%, em 2000, para 61,8%, em 2010. Seguindo a dinâmica do emprego formal, esse crescimento é maior nas regiões Norte, Centro-Oeste e Nordeste. Por fim, observa-se a perda de peso relativo tanto da ocupação remunerada sem contribuição quanto da não remunerada. Entretanto, em 2010, a ocupação não remunerada ainda representava 8,6% dos ocupados no Nordeste e 6,9%, no Norte. Essa ocupação não remunerada ainda era bastante expressiva na região Nordeste, que detinha 1,7 milhões dos 3,2 milhões de não remunerados do Brasil.
Acrescenta-se que, de acordo com os dados dos Censos Demográficos (IBGE), o rendimento médio mensal de todos os trabalhos para a população ocupada apresentou, igualmente, um maior incremento nas regiões Nordeste, Centro-Oeste e Norte.
Guimarães Neto (2010) sublinha, para tal contexto, o aumento relativo do poder de compra das populações da região Norte e Nordeste, que foram beneficiadas pela valorização expressiva do salário mínimo e pela expansão das transferências governamentais de renda, assim como o forte crescimento do crédito para pessoa física nessas duas regiões e o papel exercido pelo financiamento à atividade produtiva, em especial, aos investimentos de longo prazo realizados pelo BNDES. Ele destaca os grandes projetos do PAC, que têm levado refinarias, siderúrgicas, infraestrutura econômica e habitação, entre outros projetos, para essas regiões, além de salientar o papel exercido pelas aplicações dos fundos constitucionais, realizadas pelos Bancos Públicos, em especial para o caso do Nordeste a partir de 2003.
O autor também assinala, no que se refere à qualidade de vida das populações regionais, que o IDH estimado até 2007 mostra que, embora o nível dos indicadores sociais do Nordeste e Norte sejam inferiores ao do Brasil e demais regiões, a intensidade da melhoria observada em tais regiões foi bem mais significativa. Ao analisar os outros componentes ou dimensões do IDH (renda, longevidade e educação), Guimarães Neto constata que essa evolução está associada a um conjunto de ações e políticas que se diferenciam de uma região para outra. Finalmente, os indicadores usualmente utilizados para medir a pobreza mostram que houve um declínio muito significativo da participação das famílias em situação de pobreza extrema em todas as regiões, com a região Nordeste registrando um decréscimo um pouco mais intenso entre 2003 e 2008 (GUIMARÃES NETO, 2010).
Em síntese, essa mudança do cenário econômico se refletiu em um processo de reestruturação do mercado de trabalho em todas as macrorregiões, com melhorias importantes na distribuição de renda e redução das desigualdades de renda entre as regiões brasileiras. Contudo, a redução da desigualdade precisa ser entendida de maneira mais ampla. Considerando isso, realiza-se, a seguir, um estudo mais detalhado, a partir de uma abordagem multidimensional, de forma a contemplar indicadores de mercado de trabalho e renda, condições de vida e consumo, educação, demografia, saúde e discriminação. O objetivo da análise é fornecer elementos capazes de produzir uma compreensão mais profunda da evolução desse fenômeno, destacando as diferenças entre as mesorregiões nordestinas. Ademais, por meio do estudo dos coeficientes de variação dos diversos indicadores multidimensionais, intenta-se verificar se os impactos positivos desse período proporcionaram uma alteração no quadro de desigualdade entre as mesorregiões nordestinas.
3 Desigualdade nas mesorregiões do Nordeste: uma análise multidimensional
Vários estudos vêm apontando para uma indiscutível redução da desigualdade de renda corrente, medida pelo Índice de Gini2; outros mostram que esse fenômeno também pôde ser observado em nível regional3. A Tabela 5 apresenta alguns indicadores de concentração de renda que corroboram a ideia de uma tendência de redução da concentração de renda no Brasil e no Nordeste nos anos 2000.
Apesar da expressiva redução desses índices, o nível de concentração ainda se encontra em patamares elevados, sobretudo na região Nordeste. Assim sendo, para o entendimento da questão da desigualdade econômica e social, é visível a insuficiência de uma análise focada apenas na dimensão econômica, medida, em especial, em termos monetários. Entendendo a necessidade de se averiguar, sob uma ótica multidimensional, os benefícios que o recente crescimento econômico, a recuperação do mercado de trabalho e o incremento das políticas públicas têm proporcionado para a questão da desigualdade, pretende-se, nesta seção, desenvolver uma análise multidimensional da desigualdade entre as mesorregiões nordestinas nos anos 2000. Como apontado anteriormente, as mesorregiões são unidades espaciais que auxiliam no entendimento das disparidades socioeconômicas no interior da região Nordeste.
Dedecca (2009) propõe uma metodologia de análise multidimensional da desigualdade que, além de considerar as dimensões estabelecidas pela renda monetária de mercado, leva em conta relevantes aspectos de natureza não monetária. Seu objetivo é compreender: i) as “transformações da estrutura produtiva e do mercado e das relações de trabalho e suas implicações para a mudança na distribuição de renda do trabalho”, focalizando as mudanças na estrutura ocupacional, o processo de formação das rendas do trabalho e as alterações na distribuição de renda; ii) as “transformações da estrutura produtiva e das instituições socioeconômicas e suas relações com a distribuição da riqueza e a evolução do bem-estar” – atentando-se para os demais processos de distribuição do excedente econômico, principalmente os que são efetuados por meio de políticas públicas e propriedade de ativos. (DEDECCA, 2009, p.19)
Como especificado na Tabela 6, o autor desenvolve uma gama de indicadores, divididos em cinco dimensões, quais sejam: rendimento; educação e saúde; condições de vida; mercado de trabalho e risco socioeconômico e discriminação.
Dedecca (2009, p. 22) ressalta que “[a] iniciativa amplia os esforços existentes, mantendo a dimensão econômica, mas introduzindo explicitamente o papel das instituições para a desigualdade, através das dimensões não associadas ao rendimento”. O pesquisador, posteriormente, aprimorou sua metodologia (DEDECCA, 2012), tendo dividido os indicadores em seis óticas para o caso do Censo Demográfico: mercado de trabalho e renda; condições de vida e consumo; educação; demografia; saúde (agravante da condição social); e discriminação.
A Tabela 7 traz o comportamento do coeficiente de variação, que representa a relação entre o desvio-padrão de cada indicador, para todas as mesorregiões nordestinas, em relação à média da região Nordeste. Para cada indicador, a redução percentual do coeficiente de variação indica uma diminuição da dispersão entre as mesorregiões do Nordeste, pondo em destaque uma alteração positiva na condição de desigualdade intrarregional. No sentido contrário, o aumento da variação percentual do coeficiente estudado assinala uma ampliação na dispersão e a consequente piora da desigualdade desse indicador entre as mesorregiões nordestinas.
Os dados de mercado de trabalho e renda apontam uma redução da disparidade entre as mesorregiões nordestinas. Merecem destaque os indicadores de taxa de desemprego, formalização e incidência de programas sociais. Em relação à incidência do trabalho agrícola, apesar do aumento da desigualdade entre as mesorregiões, houve uma melhora do indicador médio para o Nordeste e suas mesorregiões. A redução da incidência da renda do trabalho e da participação da renda do trabalho na renda total foi acompanhada de um aumento da disparidade entre as mesorregiões para esses indicadores.
O estudo das condições de vida e acesso a bens demonstra, em sua maioria, um crescimento da desigualdade entre as mesorregiões nordestinas, embora seja possível observar uma melhora individualizada das mesorregiões para grande parte dos indicadores, como a redução da proporção de famílias sem acesso à energia elétrica, água encanada e banheiro exclusivo. Ressalta-se uma redução da disparidade entre as mesorregiões apenas nos indicadores de densidade de morador por banheiro, proporção de famílias com rede inapropriada de esgoto e proporção de famílias sem veículo particular.
Em termos educacionais, verifica-se uma redução da desigualdade entre as mesorregiões estudadas nos dados de taxa de escolarização, defasagem escolar (6 a 14 anos) e incidência do ensino médio completo. No entanto, os indicadores de taxa de analfabetismo e incidência do ensino superior demonstram uma ampliação da desigualdade dentro do Nordeste, ainda que individualmente as suas mesorregiões tenham apresentado uma melhora em tal dimensão.
Os aspectos demográficos indicam uma redução da desigualdade entre as mesorregiões do Nordeste. Somente o indicador de tamanho médio das famílias expressa um aumento da disparidade.
Quanto aos indicadores de saúde que tentam observar alguns aspectos agravantes para a condição social, nota-se, em todas essas perspectivas, uma diminuição da desigualdade intrarregional.
Os dados relativos à discriminação também mostram uma redução das disparidades entre as mesorregiões nordestinas. A exceção encontra-se nos indicadores de taxa de analfabetismo de negros e brancos, que apresentam uma evolução desfavorável do ponto de vista da desigualdade intrarregional.
Em síntese, constata-se, em geral, uma redução da desigualdade intrarregional no Nordeste entre 2000 e 2010. Não obstante, é razoável afirmar que a melhora de grande parte dos indicadores em todas as dimensões não se traduziu em uma transformação estrutural da condição desigual entre as mesorregiões nordestinas. Isso ocorreu porque alguns indicadores mostraram um aumento da desigualdade e porque o patamar de grande parte deles ainda é bastante elevado.
Essas conclusões podem ser corroboradas a partir dos dados básicos que serviram de subsídio para a composição dos coeficientes de variação. A partir da análise desses indicadores por dimensão e mesorregião, é possível identificar, espacialmente, onde ocorreram as principais reduções das desigualdades intrarregionais no Nordeste, bem como mostrar onde alguns indicadores ainda permanecem elevados e/ou ampliam a dispersão.
Em relação ao mercado de trabalho e renda, três indicadores destacaram-se na redução da disparidade: as taxas de desemprego e formalização e a incidência de programas sociais. As maiores taxas de desemprego em 2000 foram observadas nas mesorregiões metropolitanas de Salvador e do Recife e no Leste Potiguar, 22,0%, 21,0% e 18,0%, respectivamente. Essas mesorregiões continuaram apresentando as maiores taxas em 2010, mas com uma redução expressiva (12,3%, 12,7% e 11,4%, nessa ordem), sendo as três únicas mesorregiões nordestinas com taxas de desemprego acima de dois dígitos. Ressalta-se, ainda, que a queda do desemprego foi mais acentuada entre as regiões que apresentavam as maiores taxas.
Já no que se refere à taxa de formalização, sua ampliação foi maior entre as mesorregiões que apresentavam menores índices de ocupação remunerada com contribuição para a previdência, resultado da forte expansão do emprego formal e da contribuição à previdência ao longo dos anos 2000 no país e, em especial, na região Nordeste (Gráficos 2 e 3). Duas mesorregiões do Piauí e do Maranhão demonstravam as mais baixas taxas de formalização em 2000: Centro Maranhense (9,9%), Sudeste Piauiense (11,4%), Sudoeste Piauiense (11,5%) e Leste Maranhense (11,7%). Essas mesorregiões exibiram uma importante melhora desse indicador em 2010, passando para 26,3%, 27,9%, 31,7% e 29,9%, respectivamente. O Sertão sergipano, que possuía uma taxa de formalização relativamente maior que as já citadas (15,2% em 2000), foi por elas ultrapassado e exibiu um indicador relativamente menor em 2010, isto é, 23,2%.
A incidência dos programas sociais4 expandiu-se, seguindo a dinâmica nacional de consolidação e ampliação dessas políticas. A respeito desse ponto, convém citar que o crescimento dos programas sociais foi maior entre as mesorregiões que exprimiam menores incidências dos programas sociais, ou seja, em regiões extremamente pobres e que precisam de uma atenção especial da política pública. A mesorregião do Sul Maranhense apresentava uma participação de apenas 0,5% das famílias inseridas em programas sociais em 2000, passando para 40,9% em 2010. Mesmo com o efeito positivo do alcance dos programas sociais, ainda há, em média, um grande peso relativo de famílias que necessitam desses benefícios na região Nordeste (38,4%).
Conquanto seja notório o crescimento da desigualdade intrarregional em função da ampliação do coeficiente de variação para a maioria dos indicadores de condição de vida e consumo, não se pode desprezar que houve uma melhora generalizada em todos os indicadores dessa dimensão entre 2000 e 2010. Reduziu-se a proporção de famílias sem acesso à energia elétrica, que, em média, era de 14,1% em 2000, decrescendo para 2,6% em 2010, como reflexo do programa Luz para todos. No Sudeste Piauiense, 37,0% das famílias não tinham acesso à energia elétrica em 2000. Em 2010, o percentual caiu para 14,8%. No Nordeste, porém, essa mesorregião permaneceu com o menor índice de acesso a esse tipo de bem público.
Frisa-se, igualmente, a democratização do telefone entre as famílias, especialmente com a ampliação dos aparelhos celulares nos anos 2000. Todas as mesorregiões detinham mais de 50% de suas famílias sem acesso a telefone em 2000, enquanto que em 2010 todas apresentaram mais de 50% de acesso. Um exemplo da forte expansão desse bem de consumo pode ser verificado no Sertão Sergipano: 94,6% de suas famílias não possuíam telefone em 2000, com queda para 37,2% em 2010.
Em termos educacionais, observa-se, por um lado, a diminuição do coeficiente de variação entre as mesorregiões nordestinas para três dos cinco indicadores estudados. Por outro, há a persistência de altos índices de analfabetismo na região. Isso é verificado, por exemplo, no Sertão Alagoano, que esboçou uma redução da taxa de analfabetismo de 49,1% em 2000 para 28,8% em 2010, mas, ao mesmo tempo, manteve-se como representante do maior percentual nessa área da avaliação: pelos dados, mais de ¼ de sua população ainda era analfabeta. Já no que se concerne à incidência do ensino superior, é comprovado o crescimento e interiorização da educação superior no país e no Nordeste, porém, como demonstram os números, as mesorregiões metropolitanas do Recife e Salvador, Mata Paraibana e Leste Potiguar continuaram concentrando os maiores índices de acesso a esse nível educacional.
Os indicadores da dimensão demográfica apontam uma redução da desigualdade entre as mesorregiões nordestinas, com exceção do tamanho médio das famílias. Houve queda da razão de dependência, movimento diretamente relacionado à transição demográfica que vem sendo observada no país e na região Nordeste, decorrente da diminuição das taxas de mortalidade e fecundidade da população. Segundo o relatório do Banco do Nordeste do Brasil (BNB), o “processo de envelhecimento da população ocorreu de maneira gradual e a Região [Nordeste] ainda apresentou manutenção do bônus demográfico” (Banco do Nordeste do Brasil, 2014, p. 75). No plano intrarregional, é possível observar esse movimento especialmente nas mesorregiões que apresentavam as maiores razões de dependência. O Sertão Alagoano, por exemplo, tinha uma carga de dependência de 80,1% em 2000, passando para 65,9% em 2010.
No que se refere aos indicadores de saúde que pretendem captar algum aspecto agravante para a condição social, constata-se, para o conjunto das mesorregiões, uma diminuição da desigualdade intrarregional. No entanto, é importante ressaltar a necessidade da difusão dos equipamentos de saúde para além das mesorregiões metropolitanas e/ou capitais, nas quais há uma maior concentração dos serviços de saúde.
Os indicadores relacionados à discriminação também indicam uma redução das disparidades entre as mesorregiões nordestinas, exceto nas taxas de analfabetismo de negros e brancos. Nesse período, a taxa de analfabetismo caiu mais rápido entre os brancos que entre os negros. As maiores taxas de analfabetismo para os dois recortes de cor/raça em 2000 são observadas no Sertão Alagoano e, apesar da importante queda entre 2000 e 2010, permaneceram bastante elevadas – 30,5% entre os negros e 24,4% entre os brancos.
Em conclusão, o conjunto de dados analisados demonstra que, mesmo com a redução da desigualdade entre as mesorregiões nordestinas entre 2000 e 2010, não há indicativos de mudanças estruturais. Regionalmente, o Leste Maranhense e o Sertão Alagoano, por exemplo, ainda possuem grande parte dos piores indicadores estudados.
4 Considerações finais
As significativas mudanças do cenário econômico do país se refletiram em um processo de reestruturação do mercado de trabalho na região Nordeste e em suas mesorregiões, com aumento do emprego formal, redução do desemprego e melhorias importantes na distribuição de renda e redução das desigualdades de renda. Todavia, não se pode deixar de reconhecer que alguns indicadores da região revelam que a realidade social e econômica ainda é muito desigual entre as macrorregiões brasileiras, o mesmo ocorrendo dentro da própria região Nordeste, como pode ser visto nos dados das suas diversas mesorregiões.
O início dos anos 2000 apresentou um cenário econômico mais favorável (até 2008), o que permitiu a recuperação e o incremento de políticas públicas. Diante desse cenário, verificou-se uma melhoria da maioria dos distintos indicadores das mesorregiões nordestinas e uma queda da desigualdade intrarregional em uma das regiões mais pobres do Brasil, como é o caso do Nordeste.
Entretanto, em um contexto internacional menos favorável e com o dinamismo da economia nacional demonstrando dificuldades para uma retomada sustentada do produto nacional, alguns desafios se apresentam. Em primeiro lugar, a continuidade do crescimento econômico é condição necessária, embora não suficiente, para a manutenção e avanço dos ganhos obtidos e para a estruturação de um mercado mais favorável aos trabalhadores. No que se refere à questão regional, faz-se necessária uma política nacional de desenvolvimento regional que parta de uma perspectiva centrada nos diferentes espaços e que explore os desafios e as potencialidades de cada região, a fim de se reduzir as desigualdades socioeconômicas inter e intrarregionais. Em paralelo, é importante que as principais políticas nacionais setoriais levem em consideração as desigualdades regionais, como no caso da política de ampliação das universidades públicas no país. Tal política favoreceu o Norte e o Nordeste, particularmente em suas porções não litorâneas, onde, historicamente, tinham-se concentrado os campi do Sistema Federal de Ensino Superior.
Notas
1 Taxa de Participação é definida pela relação entre a População Economicamente Ativa (PEA) e a População em Idade Ativa (PIA).
2 Ver: DEDECCA (2008), BARROS et al., (2007) e NAÇÕES UNIDAS (2010).
3 HOFFMANN (2005) e HOFFMANN (2007).
4 Bolsa Família, BPC, Previdência social etc.
Referências
ARAÚJO, T. B. Ensaios sobre o desenvolvimento brasileiro: heranças e urgências. Rio de Janeiro: Revan/Fase, 2000.
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