Territórios de uma Política de Saúde municipal: adversidades que geram diversidades na Atenção Primária à Saúde


Diogo de Souza Vargas
Doutor em Políticas Sociais pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro - UENF. Professor de Anatomia na Uniredentor/AFYA Itaperuna/RJ; atualmente Cirurgião-dentista da Prefeitura Municipal de Campos dos Goytacazes - RJ

Rodrigo da Costa Caetano
Doutorado em Geografia pela UFF. Professor Associado da Universidade Estadual do Norte Fluminense UENF

Jacinta de Aguiar Medeiros
Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (PPGSP/CCH/UENF); Prefeitura Municipal de Campos dos Goytacazes/RJ, Secretaria Municipal de Saúde

Referências

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1. Introdução

            A dicotomização da vida nos faz pensar e agir a partir do dualismo: riqueza ou pobreza, saúde ou doença, universal ou focal, certo ou errado, rural ou urbano. O desconhecimento das singularidades/especificidades além das diversidades já categorizadas e conceitualmente pré-estabelecidas nos estudos clássicos podem, inadvertidamente, conduzir à construção de arquétipos e, por consequência, levar à tomada de medidas descontextualizadas, ineficientes ou impróprias à determinada realidade. 

A incessante caracterização geográfica em rural ou urbano, por exemplo, compactuando com “modelos engessados” pode, na globalização contemporânea, tolher a percepção das particularidades locais e das inúmeras transformações ocorridas na sociedade capitalista. Esse paradigma dicotômico vigorou por muito tempo, indo de encontro com o que é abordado e aventado atualmente, tendo a dialética subsidiária de uma reflexão mais profunda, associando a concepção conceitual à conformação social, política e econômica da sociedade.

Dessa forma, ao partir para o campo da prática do planejamento e da execução das políticas sociais em suas diferentes esferas de atuação, a adoção de modelos como dos “opostos” rural e urbano parece não ser um caminho promissor. Nesse sentido, coloca-se a possibilidade em realizar um movimento epistemológico de auperar tal perspectiva dicotômica na prática intelectual acadêmica, não obstante muitos ainda a adotarem– até por ser uma via oportunística para a execução de políticas como no caso daquelas focalizadas em saúde. 

Tratando a Saúde como a Política Social em questão, cumpre destacar a sua forte correlação com a Geografia. Aparentemente díspares pelos núcleos de formação, mas as ciências de Saúde e da Geografia que se apresentam afins em termos do campo da praxis com intercessões e complementaridades ao contribuir tanto para a reflexão quanto para o encaminhamento de soluções em diferentes escalas. Entender melhor as doenças globais, regionais e locais em seus contextos e processos de dispersão; compreender a influência da segregação sócio-espacial no estilo e/ou na qualidade de vida; analisar o acesso aos bens e serviços de saúde de determinada população; e investigar os direcionamentos das Políticas Sociais relacionadas ao espaço geográfico: são exemplos das possíveis e profícuas articulações.  

As Políticas em Saúde, geralmente, são pensadas e executadas conforme a divisão federativa do território nacional, e que se espraiam, territorailmente, a áreas periféricas e rurais onde, muitas vezes, homens e mulheres vivem em condições díspares e pertencem a baixas estratificações socioeconômicas, dentro de um contexto de desigualdade de oportunidades – por vezes destoante da realidade de regiões centrais de um mesmo município. 

Existe, portanto, a necessidade da adequação das práticas profissionais de saúde ao território, compreendido como uma determinada área geográfica, com limites e população adstrita, e que pelos aspectos qualitativos correspondentes às práticas sociais, econômicas, políticas e culturais, conferem vida dinâmica à respectiva porção do espaço (MONKEN et al, 2008). Assim, faz-se necessário uma customização na condução das políticas pelos gestores, considerando as condições sociológicas, geográficas, culturais e o sempre e reiterado discurso da escassez dos recursos públicos.

O grande entrave do Sistema Único de Saúde (SUS), e que leva a dificultar a materialização do direito social constitucional do acesso universal à saúde, é o seu subfinanciamento, complementado pela deficiência da gestão do sistema e pela coexistência de interesses diversos do bem comum, ressaltando os mercantis das empresas privadas (OCKÉ-REIS, 2013). 

Sente-se, portanto, a real e urgente demanda em discutir como as ações de saúde pública têm sido realizadas, inclusive como se desenvolvem, no mesmo município frente às adversidades territoriais, no que tange à limitação de recursos e a garantia de acesso aos serviços numa lógica equitativa. 

De forma objetiva, a depender das especificidades territoriais, o atendimento essencial para uma população pode não ser tão imprescindível para outra, e, ainda, um exagero para uma terceira, ainda que habitem na mesma municipalidade. As diversidades sociais, os modelos “inflexíveis” de saúde e a limitação de seus recursos públicos, compõem um quadro geral da saúde pública cuja ineficiência é recorrente. Nesse tripé conjuntural, bastante representativo em Campos dos Goytacazes/RJ, cabe analisar as particularidades das suas localidades de Murundu e de Conceição do Imbé a respeito da Atenção Primária à Saúde (APS). 

Inicialmente, será apresentado, sucintamente, o perfil da localidade de Murundu de forte característica rural, e na sequência o de Conceição do Imbé, representada por remanescentes Quilombolas e assentados rurais. Para ambas, caminha-se rumo às políticas locais de saúde, com embasamento no modelo nacional vigente da APS e que são executadas majoritariamente nas Unidades Básicas de Saúde (UBS).   

É fato que diretrizes fundamentadas nos preceitos nacionais devem ser seguidos. No entanto, cabe aos gestores e aos profissionais de saúde se sensibilizarem pelas especificidades encontradas in loco, no sentido de universalizar sem padronizar. Torna-se, então, imprescindível adaptar as ações em saúde aos territórios, contradizendo Barcellos (2008, p. 2008), que o “município como o nível mais inferior no qual é exercido o poder de decisão sobre a política de saúde no processo de descentralização”. Independente do meio, rural, urbano, ou um híbrido, o mais importante é compreender a heterogeneidade destes ambientes com suas ressignificações, a coexistência de realidades e a carência de estratégias específicas. 

O percurso escolhido tem como ponto de partida alguns estudos contemporâneos envolvendo os espaços geográficos, bem como as políticas públicas de saúde propostas pelo Governo Federal após a criação do SUS. A partir daí, como estudo de caso nos municípios anunciados, será discutida a descentralização e a municipalização, seus objetivos e os desafios que apontam, hodierno, para a necessidade da individualização da assistência à saúde ofertada. Otimizar recursos financeiros e evitar desperdícios, superposições tem o fim de atingir um grau maior de resolutividade. 

2. Dinâmica territorial e Saúde Pública 

A alta concentração de médicos nos centros urbanos e sua má distribuição pelo território rural nacional estão diretamente ligadas às desigualdades socioeconômicas e regionais, consequências diretas do baixo investimento público e do desinteresse do capital privado nas regiões carentes e longínquas (ROMULO e BRANCO, 2008). Ao estudar o Projeto Mais Médicos nas comunidades Quilombolas, Pereira et al. (2015) estruturam a desigualdade no acesso à saúde em diversos obstáculos, sendo os principais: a disponibilidade dos serviços e sua distribuição geográfica, a disponibilidade de recursos humanos qualificados, os recursos tecnológicos e o financiamento das ações em saúde. O que se observa, portanto, são desigualdades desacompanhadas do enfrentamento das adversidades em prol de uma atenção à saúde satisfatória. 

A noção acerca do conceito de território, mesmo sobressaindo à perspectiva limítrofe, articula-se às políticas sociais de saúde e contribui para a compreensão da realidade local, podendo subsidiar os gestores públicos a planejar de maneira mais apropriada a sua rede assistencial de saúde. Aprofundar o conhecimento acerca do território-zona representa aperfeiçoar a política social na rede municipal de saúde, tanto pela utilização de recursos públicos quanto pela observância às demandas epidemiológicas locais. 

Contudo, compõe o cerne do estudo um olhar sobre a saúde pública do município de Campos dos Goytacazes/RJ, em especial para as localidades destacadas e os desafios administrativos pelos contrastes considerados. Para tanto, dados disponíveis nos sistemas de informação em saúde serão complementados com a percepção empírica sobre a Estratégia de Saúde da Família (ESF) destas localidades, extremamente relevante à expansão, qualificação e consolidação da saúde por favorecer uma reorientação do processo de trabalho com maior potencial de aprofundar princípios, diretrizes e fundamentos da atenção básica, o que amplia a resolutividade e impacta a situação de saúde das pessoas e da coletividade, além de propiciar uma importante relação custo-efetividade (DAB, 2022). Pretende-se, nesta complementação, corroborar no deslindar dos pormenores significativos. 

Aqui, inspira o método artesanal de Becker (1994), tendo como base a vivência de campo, permitindo a realização de um ensaio reflexivo a partir dos elementos encontrados.  Para o estudo, trabalhos de campo nas Unidades Básicas de Saúde da Família (UBSF) de Murundu (UBSF Murundu) e de Conceição do Imbé (UBSFCI), colocam-se em condições de interpretar as particularidades e de estabelecer parâmetros comparativos, visando à compreensão analítica a partir daqueles cotidianos, permitido pela observação participante atuando como uma estratégia no conjunto da investigação e como parte do método em si mesmo para a compreensão da realidade (MINAYO, 1994). Trata-se de um estudo de caso, uma vez que a pequena quantidade de unidades de análise permite uma observação no interior de cada caso (DENIS e CHAMPAGNE, 1997).

Nos estudos contemporâneos sobre o meio rural observa-se a flexibilização e a transformação da vida no campo, cada vez mais próximo da cidade, sobretudo nos aspectos políticos, econômicos e sociais, o que põe em xeque a dicotomização destes espaços. Portanto, torna-se dificultoso delimitar fronteiras precisas, uma vez que as categorias simbólicas construídas a partir de representações sociais podem não corresponder às realidades distintas nos aspectos cultural e social (CARNEIRO, 1998).

Contudo, apesar da proliferação do urbano no campo, não se pode generalizar o processo de “descampezinação”, como se o espaço rural estivesse ameaçado de extinção. Este ainda possui valores próprios, sem “abrir mão” dos princípios sócio-históricos específicos (CARNEIRO, 1998), mas que adquire novos ares, uma “nova ruralidade” (WANDERLEY, 2000) que não mais permite a permanência da polarização, mas que integrações e interações assimétricas não silenciem as disputas socioespaciais e as reconfigurações decorrentes (RUA, 2006).

            Portanto, tanto o rural quanto o urbano não podem ser precisamente delimitados, muito menos tratados como se fizessem parte de um espaço homogêneo, pois portam ressignificações, dinamismos e influências mútuas, que caracterizaram traços de coexistências. Assim, as Políticas Sociais não devem ser gestadas de forma unívoca, a uma ou a outra categoria espacial, muito menos centralizada e verticalizada. Desconsiderar a realidade social, sobretudo a participação da população das territorialidades para a elaboração das estratégias de ação não parece coadunar à efetivação das ações públicas em saúde.

 

 

3. O município e seus territórios: dois contextos sob uma gestão

No estado do Rio de Janeiro observou-se uma tímida implantação da ESF até 2007, demonstrando o desinteresse político estadual em aderir aos princípios federais. Impulsionado em nível nacional pela política do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mesmo iniciada antes de 2007, a estratégia de capilarização da APS no estado se apropria do carro chefe da política de saúde adotada ao momento no país (GERSCHMAN e SANTOS, 2016).

O fato do estado do Rio de Janeiro não aderir efetivamente às diretrizes de saúde propostas pelo Ministério da Saúde foi reproduzido no município de Campos dos Goytacazes/RJ. Uma semelhança que não se trata de mera coincidência, pois a governadora da época foi, posteriormente, prefeita deste município entre os anos de 2009 e 2016. 

O município de Campos dos Goytacazes, situado na região Norte Fluminense do Estado do Rio de Janeiro, compreende uma área de contrastes econômicos, sociais e ecológicos, reflexo do seu contexto histórico-ambiental, demarcado pelas atividades das indústrias sucroalcooleiras. O município é dono da maior porção de terras do estado, com uma área de 4.026,696 km2, e com a população estimada em 514.643 habitantes (IBGE, 2022). 

Após a descoberta de petróleo e gás na Bacia de Campos houve um aumento significativo da receita municipal decorrente do recebimento dos respectivos royalties, gerando um crescimento de demandas e oportunidades, acompanhadas pelo desenvolvimento regional (CARVALHO e TOTTI, 2006), o que pode ter contribuído para a expansão do processo de urbanização, registrado em 2010 em 90,3% (IBGE, 2022). 

Todavia, tal desenvolvimento não ocorreu nas mesmas proporções, tendo em vista o descontentamento da população para com as Políticas Sociais oferecidas, expresso rotineiramente nos veículos de comunicação local, assim como na perspectiva do descompasso entre a riqueza municipal produzida (PIB per capita) e o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) (IBGE, 2022). Descontentamento este estendido ao âmbito regional, considerando a rede de serviços de saúde e de educação, públicos e privados, o que provoca um intenso deslocamento populacional para a “cidade”.

Em tempos recentes, e em via oposta à queda de recursos referentes ao petróleo, os recursos federais destinados à APS municipal chegaram a atingir a cifra de R$ 15,8 milhões em 2015, embora a aplicação efetiva destes nas áreas específicas tenha representado apenas 0,15% (FUNDO NACIONAL DE SAÚDE, 2021). Tal fato denota precariedade na gestão destes recursos e, consequentemente, reflete o pouco interesse no desenvolvimento de ações efetivas e voltadas para a promoção da saúde e para a prevenção de doenças, bem como para o tratamento de enfermidades que demandam pouca tecnologia e que podem ser prestadas nas localidades distantes dos centros urbanos. 

Nesse sentido, uma das bases do tripé da ineficiência das Políticas Sociais em saúde, a limitação dos recursos públicos, não pode ser utilizada como justificativa para incipiências de cobertura e de qualidade nos serviços de saúde no município estudado, uma vez que se observava disponibilidade financeira aos investimentos contrastando com a pouca utilização destes no beneficiamento da saúde de seus munícipes. 

A reimplantação municipal da ESF, ocorrida a partir de 2014 – após seis anos de inativação por motivo de impedimento judicial referente à contratação irregular de recursos humanos, expressa o atraso na aplicação desse modelo de saúde, já fortalecido no país desde então (VARGAS, CAMPOS e VARGAS, 2016), o que já fora parcialmente abordado nos parágrafos anteriores. Deste modo, deixa grande parte da população alheia, desassistida, resultando na sobrecarga dos serviços de urgência e emergência municipais (LYRA, 2011); fato que se arrasta até os tempos atuais.

A fim de sintetizar a história de implantação e da evolução das equipes de Saúde da Família em Campos dos Goytacazes, Lyra (2011) esclarece que a ESF iniciou em fevereiro de 1999, com 33 equipes, perfazendo um total de 52.304 famílias cadastradas, e de 196.970 indivíduos assistidos. Em 2006, a ESF se expandiu, atingindo a marca de 53 equipes. Ao final de 2016, entretanto, contava com apenas 16 equipes de Saúde da Família (BRASIL, 2020), o que garantia uma estimativa de cobertura assistencial de 55.200 pessoas, ou aproximadamente 11,69 % da população, representando uma regressão substancial dos dados ao longo dos anos, incompatível com os avanços observados no país. 

Percebe-se, portanto, o vácuo deixado quando comparado ao ano de 2008, no qual chegou a atingir 55 equipes implantadas (perfazendo 23,74% de cobertura). O que era para ser uma tendência, o aumento da cobertura populacional pela ESF, traduz-se no descaso municipal para com o aprimoramento da política, bem distante das médias nacional (44,65%), estadual (33,41%) e da própria capital do estado (42,14%) (BRASIL, 2020). 

Os números, contudo, acabam por traduzir uma retração no desenvolvimento de políticas de saúde municipal nos últimos anos na área preventiva e, consequentemente, demonstram a necessidade da discussão acerca da melhoria das questões relacionadas ao acesso dos munícipes aos serviços de APS por meio da Saúde da Família.  Épossível afirmar a necessidade de expansão e o fortalecendo das UBS, a fim de cobrirem uma parcela cada vez maior da população em seus respectivos territórios, considerando as diferentes realidades, como nos casos de Murundu e Conceição do Imbé, apresentados a seguir. 

3.1 Murundu

Localidade dentro no 18º distrito Sta. Maria, distante a aproximadamente 50 Km da sede municipal, Murundu registra uma pequena população de crianças e considerável população adulta autodeclarada “não alfabetizada” (17%). Ao todo são 213 famílias cadastradas pela equipe de saúde local, tendo aproximadamente 500 pessoas residindo no território. Quanto à ocupação, a população adulta apresenta os seguintes percentuais: 25,4% são do lar/doméstica; 20,8% aposentado/pensionista; 15,4% “Serviços Gerais”; 11% “trabalhador rural”; 3,4% “desempregado”; e apenas uma única pessoa declarou exercer função de nível superior. Tais dados foram coletados em visitas mensais às residências, e que são constantemente atualizados pela Equipe de Saúde que compõe a ESF local.

Com a reimplantação da ESF no município de Campos dos Goytacazes, em 2014, graças à adesão ao Programa Mais Médicos (PMM), Murundu foi contemplado com um médico que exerce suas funções laborais durante quatro dias na semana e por oito horas diárias (fato inédito até então para a localidade). Reflexo do cenário nacional, a carência de médicos atuantes no SUS foi um limitador para a efetiva expansão de programas e ações de saúde, especialmente nas periferias dos grandes centros e nos municípios interioranos (CECCIN e PINTO, 2005).

Com a chegada do PMM e a reorganização da ESF, muitos serviços de saúde passaram a ser oferecidos nos domicílios e em espaços coletivos, tais como escolas, igrejas e associações de bairro, assim ampliando a cobertura e o acesso da população. Além de prestar atendimento para a recuperação da saúde, a equipe realiza atividades com foco na promoção e na prevenção de agravos à saúde, tais como a realização de palestras e de campanhas educativas, coadunando com as particularidades do território, que no caso destoa do município ao qual pertence. 

Nesse contexto, de caracterização pelas carências, para a localidade são necessárias estratégias em prol da saúde diferenciadas às das áreas mais desenvolvidas, devendo imperar no planejamento dos gestores públicos municipais os princípios combinados da justiça social e da equidade, frente às diversas realidades apresentadas. Eis que cabe apresentar o segundo ponto do tripé da ineficiência: o desconhecimento das diversidades sociais.

No plano operacional da assistência, popularmente chamados de “profissionais da ponta”, a Equipe da ESF precisa atuar ativa e especificamente em relação aos problemas da comunidade segundo o território em questão. Quanto à questão de gestão municipal, a falta de insumos, de medicamentos da farmácia básica, de materiais para curativos e para a realização dos tratamentos odontológicos no “posto de saúde” de Murundu (UBSFM), por exemplo, tem repercussões e proporções diversas caso ocorressem no centro da cidade, onde as pressões políticas e midiáticas são mais contundentes, e apesar do acesso a estes aparatos por meios diversos. 

Em contrapartida, nas regiões centrais do município em análise, existem acessos alternativos às carências estruturais observadas: pelas unidades de saúde estarem mais próximas uma das outras; pela utilização de outros dispositivos públicos de saúde: centros de referência e hospitais – situados centralmente; ou mesmo pela recorrência aos serviços privados: dispostos em maior número nos locais de aglomeração urbana. Portanto, tratar de forma igual os residentes nas distintas localidades neste município de grandes extensões territoriais fundamenta o terceiro segmento do tripé da ineficiência: a adoção de modelos “engessados” de Políticas Públicas.

Devido à carência de trabalho local, os jovens procuram atividades laborativas na sede municipal. Por conta das distâncias a serem percorridas no possível movimento pendular, sob o efeito da ineficiência na oferta de transporte público em horários alternativos, estes acabam residindo mais próximo ao local de trabalho, resultando numa localidade de poucos jovens e de muitos idosos. Isso por si só é capaz de direcionar as ações coletivas em saúde, pois o fato de possuir uma população com a idade mais avançada remete à importância de realizar palestras sobre alimentação saudável, relacionando-as ao diabetes e à hipertensão, por exemplo, ao invés das ações educativas com crianças e jovens, tais como palestras sobre prevenção de cárie, amamentação ou uso de drogas na adolescência.

Quanto às características culturais do território, há que se ter uma preocupação. O grande número de aposentados e declarados “não alfabetizados” prejudica a execução de ações educativas, principalmente às relacionadas ao uso correto de medicamentos. Um desafio a ser enfrentado: idosos, por vezes analfabetos, que residem sozinhos e utilizam diversos medicamentos e em horários variados – um campo fértil para a utilização equivocada conforme recomendações do profissional prescritor, acarretando sérios riscos e agravos à saúde, inclusive o de não alcançar o efeito desejável da conduta medicamentosa.

No que se refere às atividades assistenciais, como consultas de pré-natal, por exemplo, não possuem a mesma frequência, em termos quantitativos, do que as consultas relacionadas aos problemas crônicos de saúde (hipertensão, diabetes e câncer). Tal fato demonstra a necessidade do profissional médico atuar incisivamente nestas linhas de cuidado, o que não era possível antes do PMM. Com a equipe frequentemente próxima ao usuário, dirigindo-se, inclusive, ao seu encontro nos territórios mais restritos, o quadro evidenciado se embebe de profissionalismo e de solidariedade, expressando a ideia de humanização do atendimento. 

3.2  Conceição do Imbé

A comunidade de Conceição do Imbé tem na composição um assentamento quilombola, situado na zona rural do 9º distrito Morangaba de Campos dos Goytacazes, na chamada “região serrana”, a 49 km da área central da cidade. O acesso à localidade se dá por via asfaltada, ainda que com a disponibilidade reduzida de transporte público, o que dificulta a movimentação entre o território e a região central do município. 

Numa sucinta e generalizada observação do perfil populacional da região, residem aproximadamente 246 famílias, em torno de 750 pessoas, todas cadastradas pela ESF local. Quanto ao perfil sócio-econômico, os moradores têm como principais fontes de renda a atividade agropecuária, a pesca, a construção civil, além da agricultura familiar (SCHNEIDER e NIEDERLE, 2008).

Diante da necessidade de proteção e de aproveitamento do solo, essas áreas ganharam dinâmicas específicas, apesar do difícil acesso e por estar distante da região central do município e das demais comunidades no entorno. De certa forma, vive-se num isolamento relativo, impondo dificuldades no acesso às políticas públicas e à rede de serviços privados (NEVES, 2004).

Quanto às Políticas Sociais ofertadas pelo poder público municipal à população, além da UBSFCI, a rede educacional da localidade possui uma creche com quarenta e três (43) crianças matriculadas, quatro escolas de Ensino Fundamental do primeiro ao quinto ano com um total aproximado de cento e vinte e um (121) estudantes matriculados, distribuídas ao longo da extensão territorial do distrito. Tais informações foram obtidas por meio do trabalho de campo realizado junto às Direções das escolas, em 2018, enquanto uma das autorias da pesquisa em tela trabalhou na UBSFCI.

As moradias em alvenaria, na sua totalidade, utilizam-se de fossas rudimentares, não havendo serviço de tratamento de esgoto. Quanto ao abastecimento hídrico, a população recorre a diversas fontes: poços semi-artesianos, cacimbas, água de rio sem tratamento prévio e água de nascente colhida a céu aberto, segundo dados dos Agentes Comunitários de Saúde. Por fim, existe uma pequena parcela populacional que se beneficia na área mais central do distrito de água fornecida pela concessionária “Águas do Paraíba”, ficando as demais expostas a outras fontes.

Por meio de relatos dos moradores durante as visitas domiciliares realizadas pelos membros da equipe e nos atendimentos realizados nas dependências da UBSFCI local, percebe-se que, em relação à utilização dos serviços da Rede de Assistência à Saúde, grande parte da população é depenente do SUS para consultas na Atenção Primária e na Atenção Especializada, ambas devendo ser ofertadas pela rede pública municipal.  

A equipe da ESF local representa o esteio central em relação à saúde dos moradores, segregados espacial e socialmente (NEVES, 2004), corroborando para essa dependência: a deficiência de mobilidade devido à precariedade dos transportes públicos, o que dificulta o acesso a outros locais de saúde; o baixo número de famílias que possuem plano privado de saúde (menos que 0,5% das famílias); e o alto percentual de idosos residentes na localidade, elevando os índices de doenças crônicas, necessitando de intervenções em maior frequência, quadro também evidenciado na sessão anterior. 

4. Conclusão

As políticas de saúde adotadas nas localidades não podem ser meras reproduções do modelo centralmente estruturado. Precisam ser pensadas enquanto “estratégia de desenvolvimento rural, como um meio de assegurar a cidadania do homem do campo” (DIMPÉRIO, M. G. et al, 2009).

Pensando em justiça social, tratar de política de saúde para um território com particularidades predominantemente rurais e de dificuldades estruturais requer estratégias diferenciadas, estando ciente que os limites espaciais para o estudo da saúde possuem contradições (MONKEN et al, 2008)Os processos sociais e ambientais, portanto, transcendem limites geométricos, quer seja pela população heterogênea, quer seja pela hibridez territorial, pelos conflitos e pelos interesses particulares inerentes às localidades: o que dificulta ainda mais a tomada de ações coletivas, quando não particularizadas.

No sentido de reduzir as iniquidades em saúde, torna-se necessário ofertar serviços condizentes com as necessidades dos grupos sociais mais vulneráveis, de maneira diferenciada para essa parcela da população, a fim de anular a desvantagem inicial de acesso (BARATA, 2009). Segundo o documento produzido pela 11ª Conferência de Saúde, na prática, observa-se que o SUS deve oferecer condições de atendimento desigual para os desiguais, caso contrário, irá reforçar a produção de padrões geradores de desigualdades (BRASIL, 2000).   

            Mediante o exposto, acredita-se que as equipes das UBSFM e UBSFCI assumem um papel importante no que diz respeito à assistência à saúde dos residentes e que devem, portanto, manter uma agenda voltada para a avaliação constante do trabalho desenvolvido pelas equipes multiprofissionais, visando à oferta de ações e de serviços humanizados às comunidades, combatendo as iniquidades em saúde e que sejam capazes de transformar a si próprios e a fomentar o protagonismo necessário ao processo de saúde. 

Para tal, a gestão pública precisa estar comprometida com a realidade de seus territórios, contribuindo efetivamente para o sucesso do trabalho dos profissionais locais de saúde locais.

Padronizar a execução das políticas de saúde, como se tem feito de forma equivocada no decorrer dos anos,é, no mínimo, desconsiderar as desigualdades existentes, comprometendo a efetividade desta política e interferindo na resolutividade dos resultados. Tal atitude, além do mais, contraria as normas da Política Nacional de Atenção Básica, pois compete às Secretarias Municipais de Saúde programar as ações a partir da base territorial e segundo as necessidades de saúde das pessoas, utilizando da programação local, inclusive (BRASIL, 2000).

Mais do que ser um município rico em termos de PIB per capita, o que verdadeiramente vale para se ter índices aceitáveis de saúde é a igualdade de oportunidades, a coesão social, e a adoção de ações equitativas na educação, na assistência social e na saúde. Assim, torna-se preocupante a correlação entre a riqueza produzida, com destaque para os royalties do petróleo e gás, o IDH de Campos dos Goytacazes, e os dados referentes à educação e saúde (IBGE, 2022).

As decisões em saúde, então, não devem ser tomadas de forma verticalizada, forçando a adoção de medidas “protocolizadas” advindas da secretaria municipal de saúde, sem a concepção dos profissionais e, sobretudo, ignorando a participação popular. Infelizmente, diante do exposto, não se observou um diálogo constante e construtivo em prol políticas de saúde entre gestores e os demais agentes do processo saúde-doença, fato que endossa a explicação acerca das dificuldades e dos desafios apresentados nos relatos. 

Uma política pública eficiente é tarefa essencial para o bem-estar da população. Ainda mais no campo da saúde e em tempos de crise econômica nacional, o que limita o acesso da população à rede privada. Para tanto, a descentralização da saúde, fruto da criação do SUS, objetiva aproximar os recursos financeiros da realidade na qual serão utilizados, carecendo de comprometimento do poder público municipal em compreender as diferenças entre as comunidades que compõem seu próprio território, para uma intervenção estratégica. 

As diversidades locais precisam estar manifestadas nas designações governamentais das políticas de saúde, dentre outras Políticas Sociais, de forma que arrefeçam as adversidades das populações adstritas em territórios marcados pelas “distâncias” de oportunidades e “carências” de cidadania. Logo, os projetos em prol da saúde pública devem ser desenvolvidos juntamente com a população, com os saberes elaborados sobre a experiência local concreta, a partir de suas vivências, que se distinguem, geralmente, das experiências dos profissionais de saúde e do gestor municipal. 

            As prioridades de saúde, as tendências demográficas, o desenvolvimento social e econômico, os perfis epidemiológicos, as previsões financeiras de curto, médio e longo prazos são fatores que precisam ser considerados na definição das políticas municipais de saúde. Assim, os avanços nas condições de saúde da população estarão alicerçados em medidas consistentes, capazes de enfrentar as restrições impostas pelo contexto econômico e social.

            Diante do cenário, torna-se indispensável à responsabilização do executivo, além da efetiva participação dos usuários do SUS enquanto agentes ou protagonistas na condução desse processo de construção coletiva dos seus direitos, previstos primeiramente na Constituição Cidadã de 1988 (BRASIL, 2012).

Coadunando com a oferta de políticas sociais universais, consistentes e permanentes aos cidadãos, o estudo acaba por apontar para a necessidade de ampliação da APS municipal e de avanços na ESF em Conceição do Imbé e em Murundu, assim como em todas as localidades congêneres no território de Campos dos Goytacazes/RJ, facilitando o acesso dos usuários aos serviços de saúde e, por efeito, minimizando os impactos negativos sobre a saúde dos munícipes em quadros de maiores vulnerabilidades.

Compreender os valores da sociedade e procurar promover a igualdade de oportunidades entre os munícipes, perseguindo o caminho da equidade no acesso aos serviços públicos em saúde, torna-se premissa fundamental para um modelo promissor, que, somado à correta e responsável utilização dos recursos públicos destinados para este fim, contribui para a consecução das políticas sociais em saúde.

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