Condições habitacionais e Pesca artesanal: Uma análise dos municípios da Bacia de Campos-RJ


Ana Paula Serpa Nogueira de Arruda
Doutora em Sociologia Política (PGPS/UENF), Professora do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Regional e Gestão de Cidades, Universidade Cândido Mendes em Campos dos Goytacazes - RJ

Referências

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1. Introdução

O objetivo do presente trabalho é investigar as condições habitacionais e urbanísticas dos pescadores artesanais na Bacia de Campos – RJ[1], mais especificamente dos municípios de Campos dos Goytacazes, São João da Barra e Macaé. Localizados no norte fluminense, caracterizam-se pela economia petrolífera e portuária que tem efeitos importantes sobre a pesca artesanal.

Este estudo resulta de pesquisa financiada pelo Projeto de Educação Ambiental (PEA) que, como condicionante concedido pelo Licenciamento Ambiental Federal de Petróleo e Gás e projeto de educação ambiental e gerenciado pelo IBAMA, tem por objetivo promover o fortalecimento da organização comunitária da classe pesqueira, por meio da implementação de Projetos de Geração de Trabalho e Renda[2]. O projeto abarca, em sua atual fase, 10 municípios da Bacia de Campos: Arraial do Cabo, Cabo Frio, Macaé, Quissamã, São João da Barra, Campos dos Goytacazes, São Francisco de Itabapoana, Rio das Ostras, Carapebus e Armação dos Búzios.

Mapa dos municípios de atuação da terceira fase do PEA Pescarte

 

Fonte: Pescarte (2022)

Compondo o referido projeto, este estudo se propõe a entender como os pescadores artesanais e seus familiares se apropriam de suas moradias, comunidades e cidades, entendendo, de forma mais pesquisa se dedicado específica, a articulação deste grupo com o ambiente contruído, tendo esta etapa da a uma análise das condições habitacional. Neste sentido, o trabalho apresenta uma análise que procura compreender a relação entre o trabalhar e o morar na vida dos pescadores artesanais.  

Como aponta Silva (2015), para isto é importante identificar e analisar a relação dos sujeitos com a moradia e a vida urbana. Neste contexto, é necessário considerar as origens tradicionais da pesca artesanal, expressas em formas de vínculos e sociabilidades particulares, porque podem resultar em cooperação específica que em alguns momentos interagem – e em outros se contrapõem – com o modo de vida urbano da atualidade.

Como problemática do atual estudo consideramos a expropriação de seus territórios tradicionais – de vida, trabalho, moradia e existência - como um dos aspectos enfrentados pelos pescadores artesanais, na atualidade, que coloca em risco a sustentabilidade deste modo de vida. O senso comum vê as comunidades pesqueiras com certo bucolismo, afastadas da cidade, isoladas da modernidade. Contudo, muitas das “comunidades” ou “vilas” pesqueiras foram tragadas pelas cidades, rompendo o seu isolamento com resultados ambíguos: se trouxe, em alguns casos, maior acesso a serviços e equipamentos urbanos, em outros teve por consequências efeitos perversos, como aumento de violência, custo de vida, quebra de costumes e laços sociais para estes grupos e expulsões das mais variadas formas.

 Em decorrência, no caso da Bacia de Campos (BC), territórios tradicionalmente utilizados pela pesca artesanal têm sido ocupados por outras atividades econômicas tais como o turismo, a pesca industrial, e, especialmente, pela exploração do petróleo e atividades portuárias. Isto acarreta crises a sua base produtiva, reconfigurando seus lugares de trabalho e comunidades de vida coletiva. Como aponta Silva (2015, p.105), o “lado mais fraco da pesca, o dos pescadores artesanais, é marcado por uma série de conflitos e de dificuldade de acesso aos direitos sociais, direitos trabalhistas e políticas públicas”. A esta dificuldade de acesso a direitos pode se acrescentar questões relacionadas à moradia, serviços e equipamentos urbanos – a expropriação destes pescadores dos seus territórios de vida e de existência. Há, em relação à moradia, pressões, para parte deste grupo, do mercado imobiliário sobre estes territórios. 

 Um ponto comum entre os pescadores estudados nas áreas urbanas dos municípios é sua localização em bairros pobres e, por isso, com precariedades latentes no acesso a equipamentos e serviços. Da mesma forma, eles enfrentam os mesmos dilemas aos quais os outros moradores dos bairros em que estão localizados enfrentam, como dificuldade de acesso a serviços urbanos e políticas públicas. 

Para conseguir enfrentar, neste estudo, a complexidade e a diversidade tanto dos sujeitos como dos municípios estudados, dirigimos nossa atenção a formas criativas e recursos que se desenvolvem nestes processos de reconfiguração da moradia e do urbano por meio dos dilemas entre a tradição e a “modernidade”, o passado e o presente: a vila de antes frente ao bairro de hoje - a vizinhança anterior - composta apenas por pescadores, abre espaço a novos sujeitos, destrói e reconstrói signos antes compartilhados e caros aos pescadores e seus familiares. 

Enquanto triangulação metodológica foram usados dados qualitativos e quantitativos. Por meio de uma abordagem quantitativa analisou-se o Censo Pescarte, mais especificamente do bloco Acesso a Serviços Públicos. Na sua 1ª Fase, por meio do Censo PEA Pescarte[3] (20215-2017) foram identificadas 143 localidades, em 32 comunidades como locais de moradia desses pescadores em cada município. Ao fim do censo, com a aplicação de questionários, as equipes responsáveis de educadores socioambientais haviam entrevistado 4.331 pescadores em 3.478 famílias e cadastrados 10.082 pessoas que dependiam diretamente da pesca artesanal para seu sustento.

Além disto, realizamos também, nos anos de 2021 e 2022, entrevistas com pescadoras e pescadores artesanais, considerando que cada um destes sujeitos possui características diferentes quanto à apropriação, articulação e composição da identidade frente a moradia. Por sua vez, consideramos que, uma vez inseridos na cidade, o pescador e seus familiares a vivem, a apropriam e a consomem - seus bens e seus recursos - à medida isto se torna possível diante de seus costumes, tradições e oportunidades oferecidas por estes espaços. 

2. O sentido e o direito do habitar

Uma moradia digna ainda é privilégio de uma minoria de pessoas em nosso país. Contudo, a no seu artigo 6º a Constituição Federal (BRASIL, 1989 afirma que ela constitui um direito social. Também o Estatuto da Cidade, aprovado em julho de 2001, certifica no seu artigo 2º “a garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços ao lazer, para as presentes e as futuras gerações (BRASIL, 2001).”

O ato de "habitar" está na base da construção do sentido da vida, nos modos de apropriação dos lugares da cidade, a partir da casa. Dessa forma, o ato do habitar produz a "pequena história", aquela construída nos lugares comuns, por sujeitos comuns, na vida diária e possui um sentido mais amplo e social.  Não se resume apenas a um lugar para dormir, mas para permanecer e manter laços. Heidegger (1994) nos propõe a revisão do conceito de habitação, recorrendo à genealogia do termo e identificando a relação entre o significado de construir e habitar. “Construir significa habitar. Isto quer dizer: permanecer-se, deter-se.

Ao contrário de poder ser “negligenciável”, Lefebvre (1999) considera o habitar, dentre os níveis do fenômeno urbano, “O essencial, o fundamento, os sentidos provêm do habitar”. A relação do ser humano com a natureza e com a sua própria natureza (ser) reside no habitar. Segundo Lefebvre:

Para reencontrar o habitar e seu sentido, para exprimi-los, é preciso utilizar conceitos e categorias capazes de ir aquém do vivido do habitante, em direção ao não conhecido e ao desconhecido da cotidianidade (...). A relação do ser humano com a natureza e com a sua própria natureza, como o “ser” e seu próprio ser, reside no habitar, nele se realiza e nele se lê. (...) O ser humano não pode deixar de edificar e morar, ou seja, ter uma morada onde vive sem algo a mais ou a menos que ele próprio: sua relação com o possível como com o imaginário. (...) A casa e a linguagem são os dois aspectos complementares do “ser humano”.                                        (LEFEBVRE, 1999: 81)

 

A casa, a habitação, de acordo com Teixeira (2004), é o nosso canto no mundo, é o nosso primeiro universo. Muito além de abrigo e refúgio, a casa, o habitar, faz parte do que somos:

Muito mais do que um espaço feito de tijolo e cimento para abrigar e dar proteção às agressões da natureza e da sociedade, a casa é o lugar onde se realiza vida, onde se produz a identidade, onde a transformação contínua da existência define e efetiva a ressignificação desses espaços (TEIXEIRA, 2004: 19).

 

Para Teixeira, habitar não significa apenas ocupar um lote e possuir uma edificação, mas estar ligada a elementos que garantam qualidade de vida, dentre outras coisas, a existência de atividades econômicas, culturais, sistemas de transportes, comunicação e de abastecimento. Além disto, existe toda uma significação emocional no habitar, já que este é o local das interações e da construção da história de vida dos indivíduos. “É inegável que a habitação é o seu lugar físico, emocional, afetivo e cultural que permite interações mútuas. Portanto, ele a constrói física e afetivamente através de um processo coerente com a sua cultura e com a sua história de vida” (TEIXEIRA, 2004: p. 24).

Neste sentido, habitar vai além da aquisição de um mero espaço físico, mas envolve também a formação de uma coletividade que coloca homens e mulheres em um mesmo espaço organizado, o que vai identificar uma comunidade. E, desta forma, o habitar instaura uma dimensão de comunidade no sentido em que é comum a todos, a formação de um espaço tornado emblemático e, neste sentido, carregado de significados. O sentimento de vizinhança e de comunidade, profundamente enraizado na tradição e costumes locais exerce uma decisiva influência nas características dos seus habitantes gerando neles o sentido de pertencimento. 

O pertencimento é um “processo de incorporação e exteriorização de atitudes que levam à constituição da identidade”, este constitui-se mais que um sentimento, já que se expressa em ações práticas que ressignificam a habitação. A moradia, sob esta condição, tem múltiplas faces que se intercalam por meio de fatores sociais e culturais pelos quais os indivíduos – neste caso, pescadores artesanais – vão constituindo ao longo da vida e de acordo com as suas experiências. (Souza e Silva, 2003) 

De acordo com Maricato (2015), no Brasil, não há carência apenas de habitação, mas de cidades. Neste sentido, seria necessário convergir o direito à habitação (habitar) a democratização da cidade, inclusão, justiça territorial e social. Aprofundando a questão e partindo das peculiaridades da urbanização brasileira, marcada pela profunda desigualdade na distribuição de benefícios urbanos, o Estatuto das Cidades, aprovado em julho de 2001, trouxe como objetivo: “[...] garantir o direito à cidade como um dos direitos fundamentais da pessoa humana, para que todos tenham acesso às oportunidades que a vida urbana oferece”. O mesmo certifica no seu artigo 2º: “A garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços de lazer, para as presentes e as futuras gerações” (BRASIL, 2001). Estariam os pescadores e pescadoras artesanais com este direito garantido? Como aponta Rainha (2016):

Esses trabalhadores são como muitos outros pescadores urbanos brasileiros, invisíveis aos olhos do Estado, que anseia e fomenta com todas as suas forças estratégias que articulam a formação de um espaço moderno e excludente. Essa invisibilidade tem sido responsável por perpetuar e propagar pela sociedade urbana uma série de estigmas e rótulos pejorativos contidos nos discursos que tratam esta categoria de trabalho como sendo dispensável e incompatível com os desejos e os ideais propagados pela modernidade. (RAINHA, 2016, p.117)

Há que se pensar, neste sentido, formas democráticas, participativas e inclusivas de acesso e construção das cidades também para este grupo, pescadores e pescadoras artesanais. Como aponta Sennet (2018) uma cidade aberta requer que aqueles que nela vivem desenvolvam a capacidade de lidar com a complexidade da vida urbana e o desenvolvimento de suas múltiplas formas de sociabilidade. 

Sobre tais conjunturas, é preciso reafirmar o papel do Estado, no que consiste o acesso ao direito à moradia e à cidade, preceitos constitucionais que devem ser expressos por meio de políticas públicas. Claramente, as condições de moradia e acesso a equipamentos e serviços urbanos dos pescadores e pescadoras artesanais a capacidade de atuação do Estado por meio de políticas públicas que cheguem a este grupo. Como temos acompanhado em nossa pesquisa, são muitas as necessidades apontadas por estes sujeitos: saneamento (acesso a água e esgoto), limpeza urbana, transporte – somada a pressão que dá sobre seus espaços de vida e existência, moradia e trabalho. É importante salientar o impacto ambiental que a poluição urbana tem ocasionado sobre espaços tradicionais das atividades da pesca artesanal. Temos nesta pesquisa uma máxima de que é impossível – na atualidade, desarticular a questão urbana da questão ambiental. Como apontado por Martins (2011)

Nesses termos, urge discutir o conceito e a especificidade do meio ambiente urbano, observando a tensão entre assentamento urbano e meio ambiente em todas as suas dimensões. Cumpre aprofundar-se no entendimento da relação entre o homem (sociedade) e a natureza, visando encontrar na teoria os fundamentos das normas e políticas públicas dicotomizadas entre “naturais” e “artificiais”, que passaram a entender as atividades humanas como necessariamente destrutivas da natureza. Dentro dessa análise se poderá explorar o papel que o “urbano” vem desempenhando na relação homem e natureza. É nesses termos que cabe aprofundar o debate sobre a forma da cidade do século XXI, densidade e condições ambientais do assentamento nas grandes concentrações urbanas, e desenvolver alternativas de desenho urbano que contemplem objetivos ambientais e sociais. (MARTINS, 2011, p. 60)

3. Moradia e pesca artesanal

Neste contexto, é essencial repensar o modelo de desenvolvimento econômico e seus impactos sobre o desenvolvimento urbano e ambiental e seu impacto sobre as áreas de pesca artesanal. Nesse processo de produção de desigualdades urbanas, temos o avanço sobre áreas ambientalmente sensíveis, associada a falta de oportunidades e de alternativas para a questão habitacional.

No caso da Pesca artesanal, ao mesmo tempo em que temos uma resignificação da cidade, antes tão distantes as vilas dos pescadores, agora a vemos próxima e por vezes ameaçadora. A “comunidade pesqueira” por vezes se posiciona como um exótico, o bucólico dentro do urbano. É engolida pela cidade, destoando de seu cenário, trazendo o íntimo e o rural para a sua paisagem. Tais comunidades são, por vezes, considerando a produção capitalista do espaço (HARVEY, 2008) e seus processos de acumulação – um entrave ao almejado desenvolvimento - ótica moderna de dominação global e financeirização do espaço. Temos assim, claramente, uma noção inapropriada de desenvolvimento, associado apenas a uma ótica econômica de vertente neoliberal – o que tem causado a estes grupos processos de expulsões (SASSEN, 2020)

Contrariamente, tais territórios são expressão de resistências, constituídas por uma rede de símbolos e significados que formam a identidade dos seus moradores que, por consequência, possuem as representações deste espaço vivido. É um lugar de pertencimento, chamado de comunidade, termo que exprime, segundo Bauman (2003), um lugar aconchegante, conhecido, de vivências coletivas. Também para Silva (2016):

A pesca artesanal, suas localidades, técnicas e embarcações, em contextos urbano-metropolitanos, são rugosidades, que só pelo fato de existirem impõem-se como formas de resistência às pressões e formas de modernização que varrem a história dos lugares. (SILVA, 2016, p. 26)

O urbano, a cidade, tem múltiplas faces e camadas analíticas que se intercalam por meio de fatores sociais, econômicos e culturais pelos quais os indivíduos – neste caso, pescadores e pescadoras artesanais - vão constituindo ao longo da vida e de acordo com as suas experiências. Assim, eles também representam a cidade, com toda a sua complexidade conceitual, e não podem ser invisíveis em sua constituição. Como aponta Agier (2019) para tal análise é necessário observar duas considerações:  considerar a cidade pela visão de quem a vive, seus citadinos (e em nosso caso com a indagação de como os pescadores vivenciam essa experiência urbana); e compreender a cidade enquanto um processo, capturando as múltiplas formas e práticas do “fazer a cidade”, e desta forma observar a sua complexidade.

Enquanto os pescadores e seus familiares são tomados por desafios para se reconhecerem neste “moderno” espaço, aos jovens – filhos e filhas, se abrem caminhos a “novas possibilidades”: refazem suas amizades para além da “área pesqueira”, consomem novos espaços, como shopping, cinemas e praças e buscam outras possibilidades de emprego – para além da pesca artesanal - seduzidos ainda pelas oportunidades da indústria petrolífera e portuária.  A composição familiar destes pescadores pode revelar que, para cada um deles, a cidade possui um significado muito particular. Como já aponta Velho (2002), habitamos em cidades complexas, diferenciadas, com diversos estilos de vida, anseios, costumes e tradições.

É pela moradia e sua conexão com a produção e o trabalho que também adentramos nossa análise. Como aponta Coraggio (1999) a base de grande parte da produção e da economia dos setores populares se encontra em unidades domésticas. Para o autor, esta é uma questão que precisa ser considerada uma vez que reprodução social e produção se confundem, em uma lógica própria de acumulação que perpassa a economia doméstica. Desta forma para o autor: “la economía popular no es una alternativa pobre para pobres, sino un subsistema orgánico de elementos socialmente heterogéneos, dotado de un dinamismo propio, competitivo y de alta calidad” (CORAGGIO, 1999). 

 Com este argumento este autor aponta uma intima relação entre economia popular solidária e a moradia. É a partir da economia existentes nas unidades domiciliares, e do transbordamentos destas relações solidarias para a vizinhança, a comunidade, a economia popular de produção, que se estabelece as bases para uma forma de produção mais justa e cooperativa:

La Economía Popular Solidaria es el conjunto de recursos, capacidades y actividades, y de instituciones que reglan, según principios de solidaridad, la apropiación y disposición de esos recursos en la realización de actividades de producción, distribución, circulación, financiamiento y consumo organizadas por los trabajadores y sus familias, mediante formas comunitarias o associativas autogestionarias. (...) Una característica distintiva es la asociación libre o la preexistencia de comunidades, es decir un nivel secundario de solidaridad que excede al del grupo doméstico. En consecuencia, ni emprendimientos individuales ni familiares se incluyen en esta definición, a menos que estén asociados solidariamente con otros similares. (CORAGGIO et ali, 2010, p.15)

 

A vivência da solidariedade, da criatividade e da cooperação parte, na percepção do autor, pela capacidade de resistência que se consolida nestas unidades domiciliares e que transborda para a vida comunitária. Tal aspecto pode ser observado no caso da pesca artesanal, como uma questão importante pois, a casa por vezes é extensão de um espaço de produção e reprodução social, especialmente pelo trabalho feminino na pesca artesanal. 

Tais questões se evidenciam por exemplo, na comunidade do Terminal Pesqueiro, em Campos dos Goytacazes, em que as mulheres descreveram a atividade conhecida como “Fundo de Quintal”, cuja dinâmica já traduz os níveis de precarização vivenciados cotidianamente por essas mulheres no espaço doméstico. O “Fundo de Quintal” consiste na reunião de mulheres para o descasque do camarão e filetagem do pescado – geralmente na casa da dona do “quintal” e que também é a responsável pelo recebimento do pescado vindo do atravessador. O preço pago pelos atravessadores a essas mulheres vai de 0,30 R$ a 2,50R$[4] por quilo de pescado beneficiado. O trabalho rotinizado, intensificado e precarizado se manifesta em todos os municípios cobertos pelo Projeto PEA Pescarte. Este trabalho, vinculado a moradia, é fortemente marcado pela informalidade, criando dificuldades especialmente para que estas mulheres tenham acesso a direitos constituídos e assegurados pela legislação trabalhista brasileira (CAMPOS, TIMOTEO, ARRUDA, 2018). 

4. Condições de moradia e Pesca artesanal: São João da Barra, Campos dos Goytacazes e Macaé.

Nesta seção trataremos de desenvolver uma análise das condições habitacionais de pescadores artesanais nos municípios de Campos dos Goytacazes e São João da Barra e Macaé.  O objetivo desta etapa é comparar como estes municípios, afetados pela economia do petróleo e pelo desenvolvimento da economia portuária (Porto do Açu e Tepor), apresentaram com base nos dados do último Censo Pescarte, as condições habitacionais e urbanísticas dos Pescadores e pescadoras artesanais. 

É necessário, portanto, analisar e apresentar as condições habitacionais desta população, pois, entende-se que elas são um dos aspectos que perpassam as várias dimensões das desigualdades sociais as quais estão acometidos. Esta vulnerabilidade habitacional tem duas dimensões: interna e externa. As condições habitacionais são um indicador importante para a análise da pobreza – a considerando como um fenômeno multidimensional - internamente pode ser medida pelo acesso aos bens, pelas condições de habitabilidade, pelas características físicas da moradia. Externamente diz respeito ao entorno, ao bairro e ao acesso a equipamentos e serviços públicos. 

Em relação ao lugar, também se observa a interlocução deste grupo com o Estado, em seu papel como um agente modelador do espaço. Também é possível observar a organização dos pescadores – ou falta dela - enquanto um grupo de pressão por demandas coletivas que perpassam a dimensão habitacional e de seu entorno, considerando o papel de mediação relacional do Estado em um campo de forças (Poulantzas, 2000) entre o capital e a classe trabalhadora, o que tem rebatimentos importantes sobre o acesso a políticas públicas, serviços e equipamentos urbanos. Como aponta Silva (2015):

Não é possível compreender a dificuldade de acesso dos pescadores às políticas públicas e a luta por direitos trabalhistas e direitos sociais (moradia, educação, saúde, transporte seguridade) sem compreender os contextos das lutas, que têm seus marcos nas cidades... (SILVA, 2015: 59)

 

É nesse espaço, campo do cotidiano, nos quais as desigualdades são percebidas e vivenciadas. Também é nesse espaço, na escala do lugar, onde a dimensão da vida coletiva se desenvolve, na composição de uma sociabilidade própria marcada por vínculos, conflitos e cotidianidade. 

Evidentemente, os obstáculos para a configuração de cidades mais justas, democráticas e inclusivas se expressam nos municípios de Campos dos Goytacazes, São João da Barra, e Macaé, objeto de estudo desta pesquisa. Por sua vez, estas dificuldades e dinâmicas espaciais atreladas a configuração de um modelo de urbanização desigual e segregador, acaba por alijar os grupos mais pauperizados e vulneráveis - dentre eles os pescadore(a)s artesanais - das oportunidades de acesso a cidade e as políticas públicas. 

Tais aspectos ganham contornos ainda mais dramáticos quando aliados ao modelo econômico que que se instala nestes municípios, de Campos dos Goytacazes, Macaé e São João da Barra, sendo estes municípios receptores de grandes investimentos (GIs): a indústria de extração e exploração (E&P) do petróleo e gás na Bacia de Campos (BC), cuja base industrial foi instalada em Macaé a partir de 1977 e, mais recentemente, o município de São João da Barra começa a abrigar o Complexo do Porto do Açu, construção iniciada em 2007.

 Claramente, estas duas economias têm impacto sobre as dinâmicas urbanas e condições habitacionais destes municípios, com rebatimentos sobre o preço do solo, sobre a especulação imobiliária, bem como sobre a configuração de um modelo de gestão pública que se alia a um ideário de empreendedorismo urbano, disposto a adequar sua ação as necessidades do setor privado. Além disto, estes municípios são receptores de rendas municipais diferenciadas, com acesso a receitas provenientes de Royalties e participações espaciais, embora estas não tenham sido historicamente revertidas em melhorias para a população, especialmente na configuração de políticas urbanas.

Conforme articulamos anteriormente, esta economia tem rebatimentos importantes sobre a atividade de pesca artesanal, e sobre a configuração de seus territórios de trabalho, moradia e existência. Diante desse quadro, estes municípios vivenciaram um processo de expansão urbana que, além da pressão sobre estes territórios, vem causando impactos ambientais que tornam a pesca artesanal ainda mais prejudicada. Por isto é essencial acompanhar estes pescadores artesanais na busca por diagnosticar a relação deles com seus territórios.

Neste contexto, buscamos identificar questões como titularidade, acesso a serviços e equipamentos urbanos, bem como acesso a bens. Sobre a condição da moradia, em Campos dos Goytacazes 78% dos respondentes à essa questão, possuem a casa própria e quitada, 10,2% casa cedida, 5,6% casa própria não quitada, e 4,9% possuem a residência alugada. Em São João da Barra 71,8% dos respondentes à essa questão, possuem a casa própria e quitada, 6,2% casa alugada, 5,7% moradia cedida. Macaé apresentou o maior percentual entre os três municípios de imóveis alugados: 17,1% dos entrevistados. Há ainda 72,8% com casa própria quitada, 3% com casa própria não quitada e 3,7% residindo em imóveis cedidos.   É interessante e merece um acompanhamento qualitativo futuramente, o número de imóveis cedidos em Campos (10,2%). 

 

Tabela 1 - Condição da Moradia (%)

 

Própria,
Quitada

Própria 
não quitada

Cedida

Alugada

Compartilhada

Outros

Total

São João da Barra

71,8

1,7

15,3

7,4

1,7

2,1

100,0

Campos dos Goytacazes

77,0

5,6

10,2

4,9

1,2

1,1

100,0

Macaé

72,8

3,1

3,7

17,1

2,3

1,0

100,0

Fonte: Censo Pescarte (2016)

A Tabela 2 abaixo demonstra se a casa possui água canalizada em pelo menos um cômodo. Como se pode observar, em Campos dos Goytacazes, 87,2% das casas possuem água canalizada em um cômodo e 12,8% não possuem. Em São João da Barra 91,1% das casas possuem água canalizada em um cômodo e 8,9% não possuem. Em Macaé 91,6% possuem água canalizada. Podemos observar que ambos os municípios apresentaram um número significativo de habitações que possuem acesso a rede geral. Contudo, não basta ter acesso a Rede Geral, é importante saber se esta, em virtude de sua qualidade e frequência é a fonte principal de abastecimento. 

 

Tabela 2

Água canalizada em pelos menos um cômodo (%)

 

Sim

Não

Total

São João da Barra

91,1

8,9

100

Campos dos Goytacazes

87,2

12,8

100

Macaé

91,6

8,4

100

 

Fonte: Censo Pescarte (2016)

Neste quesito, em Campos dos Goytacazes 73,3% possuem suas casas abastecidas pela rede geral de distribuição, seguidos de 19,2% cuja principal fonte é proveniente de poço. Outras fontes de abastecimento somam 7,5% (Água cedida por vizinho, carro pipa, de rios, ou outras fontes). Em São João da Barra 81,8% possuem suas casas abastecidas pela rede geral de distribuição, seguidos de 15,5% cuja principal fonte é proveniente de poço. Outras fontes de abastecimento somam 2,8% (Água cedida por vizinho, carro pipa,). Em Macaé predomina o número de moradias com acesso a rede geral de Água (92,2%), seguido da utilização de poço (4,4%).  Em Campos e SJB os municípios há um número importante de moradias cuja fonte principal é o poço.

 

Tabela 3 - Principal fonte de abastecimento de água (%)

 

Rede Geral

Poço

Carro
 Pipa

Rios,
 Lagos, Igarapés

Cedida

Outros

Total

São João da Barra

81,8

15,5

0,3

0

1,1

1,3

100

Campos dos Goytacazes

73,3

19,2

3,4

1,9

0,2

2

100

Macaé

92,2

4,4

1

0

1

1,4

100

Fonte: Censo Pescarte (2016)

É fato que um número significativo de entrevistados apontou dificuldades na frequência de acesso de agua via rede geral em suas residências. Especialmente no município de Macaé, 56% dos entrevistados afirmaram que a rede geral de abastecimento funciona de forma muito irregular, além de relatos de interrupções de acesso no verão. 

Outro aspecto importante se refere ao tipo de esgotamento sanitário. Esta também é uma variável importante que deixa claro a vulnerabilidade na questão habitacional, dos pescadores e pescadoras destes municípios (vide Tabela 4). 

Em Campos dos Goytacazes 50,9% dos entrevistados fazem uso de fossa rudimentar em suas moradias. Seguidamente, 23,6% utilizam fossa séptica. 17,6% das casas fazem uso da rede geral como destino do esgoto. Há ainda 5,1%, das residências que enviam seu esgoto diretamente para rios, lagos ou mar. Alternativas são apontadas por 2,8% dos entrevistados.

Tabela 4 - Tipo de Esgotamento sanitário

 

Rede Geral

Fossa
 Rudimentar

Fossa
 Septica

Direto em 
rio, lago, 
mar

Esgoto à céu
 aberto

Outros

Total

São João da Barra

15,3

66

11,9

4,9

1,3

0,6

100

Campos dos Goytacazes

17,6

50,9

23,6

5,1

2,1

0,7

100

Macaé

63,4

3,7

10,8

22,1

0

0

100

Fonte: Censo Pescarte (2016)

Moradias do Parque Aldeia, Campos dos Goytacazes

 

Fonte: própria autora 

Em São João da Barra 66% dos entrevistados fazem uso de fossa rudimentar em suas moradias. Seguidamente, 15,3% das casas fazem uso da rede geral como destino do esgoto e 11,9% utilizam fossa séptica. Há ainda 4,9%, das residências que enviam seu esgoto diretamente. Sobre esta questão, temos o relato de uma pescadora de Campos dos Goytacazes:

“Estão falando que em 2022 virá um bairro legal pra cá. Eu ouvi dizer, mas não tenho muita esperança [...] aqui a principal dificuldade é com esgoto. Muita vala negra. E quando chove alaga tudo. A água fica na canela.”                                         (Entrevista realizada em 2022)

Macaé, por sua vez, apresenta peculiares em relação ao acesso a rede geral de esgoto sanitário. De acordo com 63,4% dos entrevistados, suas residências possuem acesso a rede geral. Contudo, 22% lançam seu esgoto diretamente em rios, lagos ou mar. Há ainda 10,8% que fazem uso de fossa séptica e 3,7 de fossa rudimentar. 

Outra questão que indagamos no Censo Pescarte foi sobre o acesso a bens, nos domicílios. Destacamos na tabela 5 abaixo o acesso a alguns bens, que podem ser indicativos de ampliação do consumo e renda.

Tabela 5 Acesso a bens

 

Fonte: Censo Pescarte (2019)

O acesso a carro está presente em 38,8% das casas dos entrevistados em Campos dos Goytacazes, e em 32,3% de São João da Barra. Apenas 25,6% dos entrevistados de Macaé apontaram ter acesso carro. Valores abaixo da média nacional, conforme dados da PNAD (2019), em que quase 50% dos domicílios possuem ao menos um carro.

Outra questão interessante é o acesso a geladeira com freezer. 58,6% dos domicílios em Campos afirmaram não ter acesso a este bem, enquanto em SJB este dado foi apontado por 59,3% dos entrevistados. Neste quesito há uma significativa melhora no municio de Macaé: 69,9% dos entrevistados apontaram ter em sua casa geladeira com freezer.

O ar condicionado estava presente em apenas 6% dos domicílios entrevistados em Campos, 6,8% em São João da Barra e 11% em Macaé. O acesso ao computador/notebook no domicílio foi apontado por 16,6% dos pescadores entrevistados em Campos e por 23,5% em SJB, e 39,9 em Macaé. Campos e SJB ficaram abaixo da média nacional, uma vez que a Pnad (2019) aponta a existência de microcomputador em 40,6% das residências brasileiras. 

Comparativamente, podemos observar que os pescadores(as) entrevistados no município de Macaé apresentaram um maior acesso a bens como geladeira com freezer, ar condicionado, computador e máquina de lavar. Em relação a moto e carro, Macaé ficou abaixo dos municípios de Campos e SJB.

Tais dados são sintomáticos das inúmeras vulnerabilidades e dificuldades apontadas por estes sujeitos durante aplicação do Censo (2015-2016) e nas entrevistas realizadas. Estas dificuldades se expressam no acesso a bens domiciliares, bem como no acesso a equipamentos e serviços públicos. Revisitamos estes dados, acompanhando estes dois municípios, e norteando pontos a serem desenvolvidos em nossas entrevistas. 

A tabela 6 abaixo expressa a avaliação dos pescadores quanto ao acesso e disposição de serviços e equipamentos públicos nas áreas de saúde, educação e Cultura/Lazer nos três municípios. Podemos observar, que nos serviços de saúde e educação, há uma aprovação maior pelos pescadores (as) entrevistados no município de São João da Barra e Macaé. Tal aspecto se confirmou em nossas entrevistas, que apontaram, especialmente no município de SJB, novas oportunidades e investimentos no campo educacional, associadas a chegada do Porto do Açu.

Tabela 6 – Serviços e equipamentos públicos

 

Fonte: Censo Pescarte - Organização da autora

Comparativamente, podemos observar que o município de Campos apresentou os maiores números de serviços com nota 0 (zero). O caso do acesso ao serviço de Saúde, por exemplo, foi dado a nota 0 por parte de 37% dos pescadores entrevistados (frente a 11,6% para Macaé e 12,8% para SJB). 

No caso do acesso e existência de equipamentos de cultura e lazer, as avaliações de ambos os municípios foram significativamente negativas, especialmente em Campos do Goytacazes. Neste quesito, 56,8% dos entrevistados de Campos deram nota 0 para o acesso equipamentos de cultura e lazer. De fato, constatamos em nossa pesquisa de campos, a carência de equipamentos, bem como de política de incentivo à cultura em ambos os municípios. Como aponta uma entrevistada de São João da Barra:

Porque... outra coisa que aqui em São João da Barra e as pessoas têm que ir até Campos pra ir a um shopping, pra ir a um cinema. Então por que não faz atividades na rua, bota um telão para as pessoas vir, assistir filme, comer pipoca, tomar um refrigerante, acho que falta essas coisas. O pescador, o que que ele faz? Ele sai pra pescar, final de semana ele fecha o rastro, a mulher fica em casa, ele bebeu cerveja e essa rotina aí que não passa muito disso.   (Entrevista realizada em 2021 – Google meet)

De acordo com um pescador:

Nada. Em questão disso (lazer), é praticamente zero. A gente aqui (Atafona), a gente sai com qualquer pessoa, vai a um lugar e tal. Vai à praia, toma um banho, faz um peixe assado, churrasco, mas não tem nada assim da Prefeitura que possa ser um incentivo. (Entrevista realizada em 2021 – Google meet)

Para um pescador de Campos dos Goytacazes: 

Aqui (Coroa) a gente fica abandonado pela prefeitura. Em termos de política...é como se a gente não existisse. Então, se o pescador não ocupar esse local ele não tem voz.” (Entrevista realizada em 2022)

Macaé, em contrapartida, apresentou um score mais elevado no que consiste ao acesso e avaliação de equipamentos de cultura e lazer: 47,4% deram nota 7 a 10 para este serviço. 

Como podemos observar, os desdobramentos da ausência de políticas públicas, e a configuração de novas práticas urbanas, já podem ser sentidos pelos pescadores. Acompanharemos nesta pesquisa os impactos destas transformações urbanas sobre a vida e espaço de existência dos pescadores e pescadoras de ambos os municípios.

Estamos falando de municípios que experimentaram um aporte significativo de recursos provenientes da economia petrolífera (royalties e participações especiais) mas que ao que parece, perdeu oportunidades importantes de investimentos em políticas que ampliassem o acesso a condições mais justas de moradia, bem como de serviços, equipamentos públicos e políticas públicas. Trata-se ainda de municípios, especialmente SJB, que vislumbram expectativas de crescimento com a economia portuária. Mas, como aponta um pescador entrevistado:

Então, como em todo lugar que cresce, tem o lado positivo e o lado negativo. À medida que cresce a economia, aí vêm peões para trabalhar aqui, vêm pessoas de fora trabalhar aqui. E hoje em dia dizer que a droga não existe e querer radicalizar a droga é uma coisa que é um pensamento ignorante. porque é inevitável, se vem o crescimento num local, numa sociedade e ela vem junto.”  (Entrevista realizada em 2021 – Google meet)

Estes aspectos analisados nos permitiram sumarizar algumas questões importantes na configuração das vulnerabilidades e possíveis macroimpactos a serem acompanhados nesta pesquisa. Em nosso escopo chegamos ao seguinte mapa analítico, que nos permitirá compreender tais macroimpactos sofridos por estes municípios: 

- Especulação e expansão imobiliária;

- Favelização e precarização das condições habitacionais;

- Ausência de políticas públicas de investimento em infraestrutura urbana,

  acesso a equipamentos e serviços públicos;

- Processos de expulsão/reassentamento de famílias da pesca artesanal;

Partimos do pressuposto de uma economia política – petrolífera e portuária - com consequências importantes sobre os territórios de vida, trabalho e existência das famílias de pescadores artesanais do Norte Fluminense e Região dos Lagos. É necessário compreender tais processos e conceituá-los a fim de que tais realidades sociais sejam cientificamente analisadas.

Sobre tais conjunturas - processos de configuração de vulnerabilidades habitacionais, expropriação e expulsões (SASSEN, 2018) - , é preciso reafirmar o papel do Estado, no que consiste o acesso ao direito à moradia e à cidade, preceitos constitucionais que devem ser expressos por meio de políticas públicas. 

Neste sentido, a melhoria das condições de moradia e acesso a equipamentos e serviços urbanos dos pescadores e pescadoras artesanais se articula a capacidade de atuação do Estado por meio de políticas públicas que cheguem a este grupo em favor de suas demandas e particularidades. Como temos acompanhado em nossa pesquisa, são muitas as necessidades apontadas por estes sujeitos: saneamento (acesso a água e esgoto), limpeza urbana, transporte – somada a pressão que dá sobre seus espaços de vida e existência, moradia e trabalho. Ainda é preciso evidenciar o aprofundamento da pobreza especialmente pós-pandemia – aspectos já evidenciado em nossas entrevistas – e pelas demais pesquisas desenvolvidas pelo PEA Pescarte, - bem como aumento da precariedade do padrão de urbanização destes espaços, com baixa capacidade de soluções habitacionais  (seja via mercado, seja por acesso à programas e políticas públicas.

5. Considerações finais

Finalmente, este trabalho visa fornecer aos pescadores e pescadoras um diagnóstico quanto às suas condições de moradia e de acesso à políticas públicas, seus equipamentos e serviços públicos. Entendemos que isto faz parte de um processo formativo de construção de demandas coletivas e de empoderamento destes sujeitos na luta por seus direitos, aspecto incentivado e acompanhado pela atuação do Pescarte.  

Tratamos, desta forma, de possibilidade de reivindicação e intervenção na agenda pública, por meio da organização comunitária que cobre o direito à moradia, à cidade e a um ambiente espacial e social mais justo e igualitário que atenda as necessidades das comunidades tradicionais da Pesca artesanal.

Qualquer ação sobre estes espaços precisa ser pautada na emancipação destes atores, ou seja, na capacidade de a comunidade de pesca artesanal estabelecer uma articulação com o poder público. Isto, por sua vez, deveria começar desde o planejamento, envolvendo, divulgando e discutindo a intervenção propiciando, sobretudo, poder de decisão, através de parceria e de empowerment. Considera-se, assim, não somente os recursos materiais, econômicos e técnicos na elaboração de um projeto habitacionais e urbanísticos sobre comunidades de pesca artesanal, mas também, os culturais e os simbólicos, (Lima,2007), aspectos importantíssimos especialmente em intervenção com comunidades tradicionais.

 

[1] A bacia geológica de Campos é a segunda maior produtora de petróleo do País, se estende do sul da cidade de Vitória (ES) até o Município de Arraial do Cabo (RJ). A região é rica em petróleo, o que propiciou a instalação de várias empresas nas últimas décadas, principalmente ligadas a exploração de óleo e gás natural.

[2] O Pescarte está circunscrito no Programa de Educação Ambiental da Bacia de Campos (PEA-BC) e atua na Linha A – Organização comunitária - conforme estabelece as diretrizes que compõe a NOTA TÉCNICA CGPEG/DILIC/IBAMA 001/10 que propõe a organização comunitária para a participação na gestão ambiental, no âmbito do licenciamento, visando o desenvolvimento de processos formativos junto ao público prioritário definido pelas diretrizes pedagógicas do IBAMA e identificado a partir dos resultados do Diagnóstico Participativo do PEA-BC realizado entre 2011 e 2012.

[3]. A pesquisa censitária possibilitou obter o perfil da pesca artesanal na região Norte Fluminense. Através da análise das variáveis coletadas foi possível entender a atividade da pesca artesanal na bacia de Campos, principalmente no que diz respeito à: caracterização familiar, identificação socioeconômica, moradia e avaliação de serviços e equipamentos públicos, trabalho e trajetória profissional, caracterização da atividade pesqueira, gênero, educação ambiental e (in)segurança alimentar. 

[4]Os valores variam segundo o município, a comunidade e o tipo de pescado que será beneficiado.

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