Estratégias de prevenção ao suicídio e a racionalidade hegemônica: reflexões a partir do campo do Desenvolvimento Regional


Carlos Stavizki Junior
Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional - PPGDR/UNISC

Virginia Elisabeta Etges
Doutorado em Geografia Humana na USP/SP; Professora no Curso de Geografia e no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional da Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC.

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1. Introdução

Antes da prevenção ao suicídio se tornar um “imperativo global”, sua possibilidade mobilizou atores e instituições em escalas territoriais menores, com experiências de construção política que datam do início do século XX. Entretanto, até hoje a temática produz mais dúvidas do que certezas, o que dificulta a formulação de explicações para territórios com alta incidência de suicídios, como no caso do Estado do Rio Grande do Sul (MENEGHEL et al., 2004; CEVS, 2018; SIM, 2023)[1].

A partir da segunda metade do século XX, novos modelos de políticas públicas foram sendo implementados para reduzir a incidência deste tipo de morte no mundo, porém a produção científica a respeito da historicidade de políticas deste tipo é, ainda, escassa sobretudo no Brasil. David Gunnell e Stephen Frankel (1994), em uma revisão sistemática sobre programas de prevenção à mortes autoprovocadas no mundo, identificaram cerca de 19 estratégias com critérios de avaliação até 1993, das quais apenas duas permitiam uma análise de impacto sobre a taxa social de suicídio após a execução de ações de prevenção (GUNNELL, FRANKEL, 1994). Mais tarde, a Organização Mundial da Saúde produziu manuais e diagnósticos sobre o fenômeno, inclusive divulgando ações exitosas de prevenção ao suicídio em países membros (OMS, 2000; 2014; 2018). Apesar disso, a adesão dos governos nacionais ao tema é, até o momento, pouco efetiva.

Diante disso, objetiva-se analisar neste trabalho, as diferentes estratégias de prevenção ao suicídio implementadas como políticas públicas no Rio Grande do Sul, destacando a relação do território com a problemática, segundo um estudo ecológico do fenômeno e da problematização das principais políticas públicas implementadas na última década (2012 – 2022), a partir de dados no Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) – base de dados do Sistema Único de Saúde (SUS). Os dados foram categorizados por Região de Saúde, sendo um total de 30 regiões, das quais 22 registraram uma taxa de mortalidade superior à média estadual em 2022 e todas registravam uma média superior à média nacional no mesmo período. As reflexões teóricas sobre o tema baseiam-se em duas categorias centrais: racionalidade e incidência de suicídios no território riograndense.

O trabalho está dividido em três partes, cada qual propondo uma problematização das estratégias de prevenção a partir das categorias centrais do estudo. A primeira parte dedica-se a racionalidade hegemônica que organiza a ação de atores e instituições envolvidos com as estratégias de prevenção ao suicídio na atualidade, destacando os diferentes argumentos que envolvem o assunto. A segunda parte traz uma breve apresentação das políticas de prevenção ao suicídio no Brasil e no Rio Grande do Sul, a fim de demonstrar os principais argumentos utilizados na Esfera Pública. A terceira parte está voltada à análise crítica dos dados epidemiológicos e empíricos do estudo. Por fim, conclui-se o trabalho ressaltando que o campo do Desenvolvimento Regional é capaz de inovar ações de prevenção ao suicídio no âmbito das políticas públicas, além de incluir o território como agente na promoção de diagnósticos e soluções ao fenômeno.

2. Existe uma racionalidade hegemônica em ações de prevenção ao suicídio?

Em 2014, a Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou um relatório que é, até hoje, um importante referencial para a construção de políticas de prevenção ao suicídio, intitulado “Preventing suicide: a global imperative”. Neste documento, atualmente traduzido em 11 línguas, é oferecido um panorama do fenômeno no mundo e relatos de experiências sobre estratégias positivas para redução do número de mortes, praticadas por países membros da OMS. Destaca-se que neste relatório, apenas 28 países afirmaram possuir políticas de prevenção ao suicídio em âmbito nacional, e destes, apenas 13 declaravam ter estratégias efetivas (OMS, 2014, p. 49). 

Apesar disso, articula-se no mundo, através da OMS e suas instituições correlatas, um conjunto de metas para enfrentamento da tendência de aumento dos suicídios no mundo, incluindo a redução de [no mínimo] 10% deste tipo de óbito, anunciadas no Plano de Ação sobre Saúde Mental (2013-2020) da OMS (OMS, 2013). Este Plano de Açãosugere aos Estados-membros que criem serviços de intervenção em casos de ideação suicida e automutilação em seus territórios e qualifiquem seus instrumentos de coleta e análise de dados epidemiológicos. Infelizmente, estas metas não foram alcançadas até 2020, como estavam previstas. Ao contrário, a tendência de óbitos deste tipo no mundo cresceu, e uma de suas causas está associada aos impactos sociais e nas políticas de saúde pública que a pandemia de Covid-19 causou (WHO, 2021). Atualmente, as metas da OMS relacionadas ao tema estão incorporadas aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU)[2].

Todavia, é necessário observar o sentido dado a estas estratégias e qual o significado das ações promovidas por atores e instituições. Estes elementos dizem respeito à racionalidade hegemônica que conduz e instrumentaliza a ação, o que resultará em tipos específicos de agir. O tipo de agir, por sua vez, indicará o sentido dado à ação, fornecendo os elementos para identificação da razão prática que, em dado momento, condiciona as estratégias de prevenção ao suicídio no Brasil e/ou em seus territórios. Neste sentido, é fundamental a compreensão dos argumentos mobilizados pela incidência de suicídio de um território, a fim de captar o sentido destes argumentos na Esfera Pública. 

Segundo Durkheim (2000), a explicação mais sólida sobre as causas da morte voluntária deriva da “ruptura dos laços sociais” do indivíduo, contrapondo o saber hegemônico de sua época que relacionava o ato à loucura. Durkheim põe à prova as teses do século XIX sobre o tema, que explicavam a morte voluntária com base em fatores genéticos, psicológicos e étnicos/raciais das vítimas. Ao refutar estas teses, a partir da confrontação destas explicações aos dados de sua pesquisa, o sociólogo oferece um método que analisa a incidência de suicídios a partir da sociedade e não do indivíduo.

[...] esse método tem o defeito de postular a diversidade dos tipos sem os atingir diretamente. Pode estabelecer sua existência, seu número, mas não suas características distintivas. [...] Uma vez conhecida a natureza das causas, poderemos tentar deduzir delas a natureza dos efeitos, que se encontrarão, assim, ao mesmo tempo caracterizados e classificados, pelo simples fato de que serão vinculados a suas respectivas origens. (DURKHEIM, 2000, p.168).

Durkheim (2000) concebe três categorias para explicar as motivações da ideação suicida, a partir do tipo de vinculação que o sujeito tem com a sociedade: a) suicídio egoísta, aquele no qual o indivíduo está isolado da sociedade, no sentido de não nutrir laços sólidos de solidariedade com um grupo social, levando-o a sentimentos de solidão e abandono (DURKHEIM, 2000, pp. 257 – 270); b) suicídio altruísta, aquele em que o indivíduo está fortemente ligado ao grupo, ao ponto da sua existência ser posta em segundo plano na relação com a sociedade. É o caso — muito argumentado pelo autor — do serviço militar em tempos de guerra e da lógica de sacrifício, ao colocar sua vida em risco em prol de um “bem-comum” (DURKHEIM, 2000, pp. 270 – 300); c) suicídio anômico, aquele relacionado à inadequação do sujeito às normas, regras ou valores da sociedade, ou o seu contrário, quando a sociedade carece de tais normas, ao ponto de infligir forte sofrimento aos indivíduos. O suicídio anômico, que deriva do conceito de “anomia”, é o tipo mais discutido pelo sociólogo e o que melhor expressa sua teoria, no que diz respeito à influência da sociedade na incidência de suicídios (DURKHEIM, 2000, pp. 303 – 355). O sociólogo propõe, também, classificações mistas destes três tipos de suicídios – suicídio ego-anômico, suicídio anômico-altruísta e suicídio ego-altruísta (DURKHEIM, 2000, p. 378).

Para além de suas contribuições à problemática, a obra Le Suicide, é um marco para as ciências sociais, sendo um referencial indispensável para análises sociológicas de toda natureza. Para além desta obra, Durkheim oferece conceitos fundamentais para a compreensão deste fenômeno, em especial sua noção de “fato social” como algo externo ao indivíduo; ou a ideia de “funções sociais” dos indivíduos em sociedade. Em suma, Durkheim nos ajuda a compreender as relações entre a ideação suicida e as estruturas de normas sociais que coordenam os territórios e são capazes de infligir sofrimento aos indivíduos e/ou grupos sociais.

Em atualização a este debate, Bertolote (2012) discute as experiências de prevenção ao suicídio no início do século XXI, argumentando a favor dos “fatores de proteção”, compreendidas como “características psicológicas” que guardariam alguma vantagem em relação ao comportamento suicida – “inteligência emocional, [...] senso de responsabilidade pela família [...] objeções morais e religiosas ao suicídio”, são alguns dos fatores de proteção defendidos (BERTOLOTE, 2012 p. 75). Em estudo anterior, Bertolote e Fleischmann (2002) destacam o tratamento de transtornos mentais como o principal fator de proteção para o suicídio, sustentando que a maioria das mortes por suicídio poderiam ser evitadas se as vítimas fossem “tratadas a tempo” (BERTOLOTE; FLEISCHMANN, 2002, p. 183).

Os resultados da pesquisa de Bertolote e Fleischmann (2002), sustentado em dados de mais de 15 mil óbitos por lesões autoprovocadas, teve forte influência no campo da saúde mental brasileira, sendo utilizado como fundamentação teórica para a elaboração das Diretrizes Nacionais de Prevenção ao Suicídio (BRASIL, 2006). A força dos argumentos sobre a relação entre transtornos mentais e ideação suicida, serviu [e serve] como defesa da intervenção psiquiátrica e farmacológica, ao passo que reduz o valor das explicações sociológicas sobre o fenômeno.

Como um terceiro contraponto, está a posição do psiquiatra e psicanalista chileno, Roosevelt M.S. Cassorla, um dos precursores do debate no Brasil e autor do livro “O que é suicídio”, de 1985 (Editora Brasiliense). Nesta obra, o tema é problematizado a partir do campo da psicanálise, articulando categorias próprias do campo e discutindo sobre o significado da morte para o suicida (CASSORLA, 1985, p. 22). Em recente atualização desta obra, Cassorla (2017) expõe críticas à hegemonia do pensamento médico a respeito das causas do suicídio, enfatizando o “sofrimento mental” como categoria principal em qualquer análise sobre a ideação suicida.

Esse sofrimento será identificado e tratado pelo profissional de saúde, que deverá utilizar todos os meios de que dispõe para ajudar seu paciente, incluindo medicamentos, tratamentos biológicos, abordagens sociais e psicológicas, tratamentos psicoterápicos de variadas orientações e, eventualmente, internações. (CASSORLA, 2017, p. 40).

Nota-se que a temática é complexa e encontra discursos diferenciados e antagônicos. Até hoje, poucos estudos foram capazes de indicar uma “solução” para o problema, e aqueles que o tentaram, perceberam que a realidade social impede que o fenômeno seja medido pelas mesmas métricas de outros problemas públicos. O conhecimento produzido até aqui sobre o tema é incapaz de indicar um caminho que seja efetivo a todos os territórios, sendo inevitável a ampliação do debate para efetivação das ações de prevenção.

3. Estratégias de prevenção ao suicídio no Brasil e no Rio Grande do Sul

O Brasil foi o primeiro país da América Latina a propor uma política de Estado para a prevenção ao suicídio, através da portaria nº 1.876, de agosto de 2006, que instituiu as Diretrizes Nacionais para Prevenção ao Suicídio. Até hoje, estas diretrizes servem como guia para ação de profissionais e serviços vinculados à Política Nacional de Saúde Mental (PNSM), a exemplo dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e Hospitais Psiquiátricos. A portaria marca um avanço institucional em relação à problemática, que passou a compor as agendas de políticas públicas de saúde mental no país. As Diretrizes Nacionais nascem na esteira das ações da OMS para a redução da mortalidade autoprovocada, em especial pelas propostas de intervenção do Suicide Prevention Program (SUPRE), que serve de modelo para os atores que coordenaram a política de saúde mental do país na época. Isto fez com que a elaboração das Diretrizes considerasse descobertas recentes sobre o fenômeno e problematizasse este conhecimento na Esfera Pública.

Destaca-se que as Diretrizes Nacionais reconhecem as vulnerabilidades regionais do país como fatores de risco para o suicídio, além de propor um nivelamento do acesso aos serviços públicos de saúde mental, propondo intervenções em questões como a fome, pobreza e violência como ações de prevenção ao suicídio (BRASIL, 2006). Ademais, sua publicação inicia um processo de inclusão do tema nas agendas de políticas públicas do país, resultando na criação de políticas estaduais e municipais de prevenção ao suicídio, mesmo que de forma residual e concentrada em regiões marcadas pela alta incidência do fenômeno.

Machado, Leite e Bando (2014) ao analisarem o processo de criação de políticas de prevenção ao suicídio no Brasil, destacam o Distrito Federal como a primeira unidade federativa a programar uma política pública sobre o tema, através da Portaria nº185/2012. Entre outras ações, esta política instituía protocolos para intervenção em casos de tentativa de suicídio (BRASIL, 2012). A ênfase dada, por esta política pública, às equipes de urgência e emergência demonstra a referência que a política mantinha com as especialidades médicas. A referência à intervenção clínica é um reflexo da hegemonia da razão prática na relação com o fenômeno. A política de prevenção do Distrito Federal foi revogada em 2018, somando pouco mais de seis anos de intervenção no território. Parte de seus protocolos foram incorporados à Rede de Atenção Psicossocial (RAPS)[3] do SUS, que passou a instrumentalizar a atuação profissional em situações de “risco de suicídio” (MACHADO; LEITE; BANDO, 2014).

Já em relação às políticas de prevenção ao suicídio no Estado do Rio Grande do Sul, nota-se uma trajetória distinta e mais incisiva em relação à participação do Poder Público na promoção de estratégias e políticas públicas, além de uma abertura para intervenções interdisciplinares. Destaca-se, que o Rio Grande do Sul possui a maior incidência de suicídios por número de habitantes do Brasil, com uma taxa de mortalidade superior a 13 óbitos a cada 100 mil habitantes em 2022, sendo que em algumas de suas regiões de saúde, este índice pode ser até três vezes maior (SIM, 2023; CEVS, 2018). Em comparação à média nacional de suicídios, que em 2022 foi de 6,5 óbitos a cada 100 mil habitantes, reconhece-se que a incidência de óbitos deste tipo no território justifica sua problematização.

Neste sentido, o território acumula experiências pioneiras de mobilização social e política em prol da diminuição da taxa social de suicídios. A primeira delas, já citada, foi a realização do I Seminário Nacional de Prevenção ao Suicídio, que ocorreu na cidade de Porto Alegre em 2006 e serviu como palco de lançamento das Diretrizes Nacionais de Prevenção ao Suicídio (BRASIL, 2006). No ano seguinte, em 2007 foi lançado o Programa de Prevenção à Violência (PPV) em 50 municípios com maior incidência de mortes violentas no Estado, incluindo aqueles com altas taxas de suicídio. No mesmo ano foi realizado o I Fórum Estadual de Prevenção da Violência, em Porto Alegre, onde foi anunciado o Programa de Prevenção do Suicídio (PPS), que viria a ser implementado em 10 municípios gaúchos com maior taxa social de suicídios (STAVIZKI JUNIOR, 2021).

Um dos exemplos é a experiência do município de Candelária/RS, que criou, em 2009, uma das primeiras políticas de prevenção ao suicídio em nível municipal que se tenha notícia no Brasil, intitulada “Programa Vida Sim” (CONTE et al., 2012). Este programa teve como objetivo capacitar equipes de atenção básica em saúde a identificarem casos de ideação suicida e a construírem um fluxo de encaminhamento destes casos para os serviços especializados em saúde mental. O Programa Vida Sim teve duração de três anos e é considerado como uma experiência exitosa, inclusive sendo referenciado pelo Ministério da Saúde como um “caso de sucesso” (BRASIL, 2009) e tendo suas ações incorporadas às rotinas de trabalho das equipes de saúde mental em diferentes municípios, além de reduzir o número de óbitos no período de realização do programa (CONTE et al., 2012, p. 2024).

Em 2014, o território gaúcho se destaca novamente ao ser o primeiro Estado brasileiro a realizar a campanha “Setembro Amarelo”, em parceria com a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), Conselho Nacional de Medicina (CNM) e o CVV. Esta campanha teve um impacto relevante para abertura de diálogo sobre o tema na Esfera Pública, sendo atualmente a maior campanha de prevenção ao suicídio do Rio Grande do Sul e do Brasil (STAVIZKI JUNIOR; VICCARI, 2018).

Em 2016 o governo estadual criou o “Comitê de Promoção da Vida e de Prevenção do Suicídio do Rio Grande do Sul”, vinculado à Secretaria Estadual de Saúde. A criação do Comitê Estadual nasce por iniciativa governamental, porém responde a uma demanda de atores e instituições que, mediante ao aumento da taxa social de suicídios no Estado, propõem a elaboração de uma Política Estadual de Prevenção do Suicídio, sendo este o objetivo principal do Comitê Estadual (RIO GRANDE DO SUL, 2016).

Em 2018, a Secretaria Estadual de Saúde instituiu, através da Portaria nº 678/2018, o “Observatório de Análise de Situação do Suicídio no Estado do Rio Grande do Sul”, coordenado pelo Núcleo de Doenças e Agravos não transmissíveis (DANT) da Divisão de Vigilância Epidemiológica (DVE) do CEVS/RS (RIO GRANDE DO SUL, 2020). O Observatório do Suicídio, como é conhecido, é uma iniciativa da Escola de Saúde Pública (ESP/RS) e assume a tarefa de “produzir conhecimento e condições para o aperfeiçoamento da atenção à saúde dos usuários em situação de risco para o suicídio (ideias de morte, ideação suicida, plano, tentativa de suicídio e suicídio consumado) e seus familiares ou sobreviventes” (SES/RS, 2018, Art. 2º).

Por fim, a mais recente ação promovida pelo Estado gaúcho foi o lançamento do “Plano Estadual de Promoção da Vida e Prevenção do Suicídio (2022 – 2025)”, em julho de 2022. Este plano é resultado de dois anos de articulação política entre o Comitê Estadual e as Coordenadorias Regionais de Saúde (CRS), construído de forma colaborativa a partir de quatro eixos norteadores: a) Promoção da vida e prevenção do comportamento suicida; b) Vigilância epidemiológica de óbitos e tentativas de suicídio; c) Comunicação e informação sobre o fenômeno no Estado; e d) Gestão em saúde em todos os níveis de atenção. Estes eixos formam os objetivos específicos do Plano, que deve ser efetivado em todas as regiões do território até dezembro de 2025 (SES/RS, 2022, p. 6).

Figura 1. Linha do tempo das principais políticas públicas do Brasil e do Estado do Rio Grande do Sul para prevenção ao suicídio, entre 2006 e 2022.

Fonte: Atualizado pelos autores, segundo STAVIZKI JUNIOR (2021).

A trajetória relatada até aqui, que à primeira vista parece ser um processo linear de avanços e conquistas políticas, esconde elementos que tornam sua problematização indispensável para extrair do movimento da realidade as contradições deste processo. Sabe-se que a temática enfrenta barreiras culturais e políticas na Esfera Pública e que a intervenção para redução de incidência não é homogênea.

4. A incidência de mortes autoprovocadas no território e as perspectivas de redução da taxa social de suicídios no Rio Grande do Sul

A incidência de suicídios no território gaúcho é considerada alta em relação à média nacional e em comparação com outros Estados, inclusive na Macrorregião Sul do país. Pesquisadores de diferentes campos e épocas analisaram a incidência de mortes causadas por lesões autoprovocadas no território, enfatizando a expressividade da taxa social de suicídios no Rio Grande do Sul (MENEGHEL et al., 2004; CONTE et al., 2012; BOTEGA, 2014; MACHADO; LEITE; BANDO, 2014; DIANIN, 2015, CEVS, 2018).

Em 2020, a taxa média de suicídios no Rio Grande do Sul foi o dobro da média nacional, sendo que o Estado registrou uma média de 12,42 óbitos a cada 100 mil habitantes, enquanto a média nacional foi de 6,53 óbitos a cada 100 mil habitantes no mesmo período.

 

Tabela 1. Taxa social de suicídios dos Estados brasileiros em 2020.

Unidade da Federação

Suicídios por 100 mil hab.

Unidade da Federação

Suicídios por 100 mil hab.

Acre

8,05

Paraíba

6,39

Alagoas

5,01

Paraná

8,12

Amapá

5,92

Pernambuco

4,69

Amazonas

7,44

Piauí

9,54

Bahia

4,94

Rio de Janeiro

4,54

Ceará

6,60

Rio Grande do Norte

6,65

Distrito Federal

6,48

Rio Grande do Sul

12,42

Espírito Santo

6,18

Rondônia

7,74

Goiás

8,38

Roraima

5,70

Maranhão

4,79

Santa Catarina

10,73

Mato Grosso

7,40

São Paulo

5,10

Mato Grosso do Sul

8,69

Sergipe

5,61

Minas Gerais

7,74

Tocantins

7,36

Pará

4,50

BRASIL

6,53

Fonte: IBGE (2023); MS/SVS/CGIAE - SIM (2023). Organizado pelos autores.

A comparação entre unidades da federação evidencia a relevância da problemática no território gaúcho. Além disso, se reduzirmos a escala de análise às regiões de saúde (que no Rio Grande do Sul divide-se em 30 regiões) a incidência é ainda mais acentuada, sendo que em certas regiões de saúde a taxa de suicídios supera o dobro da média estadual. A tabela 2 apresenta os indicadores mais atuais do fenômeno (2022), categorizados por região de saúde.

Tabela 2. População estimada, taxa social de suicídios e taxa de tentativas de suicídio por 100 mil habitantes nas Regiões de Saúde do Rio Grande do Sul (RS) em 2022.

Região de Saúde do RS

TS. 2022

Tx.TS.            2022

Suicídios 2022

Tx.S. 2022

População Estimada

Alto Uruguai Gaúcho

61

25,6

30

12,6

238.313

Araucárias

55

41,15

17

12,7

133.661

Belas Praias

119

79,26

35

23,3

150.146

Bons Ventos

145

65,71

29

13,1

220.661

Continua:  Região de Saúde do RS

TS. 2022

Tx.TS.            2022

Suicídios 2022

Tx.S. 2022

População Estimada

Botucaraí

120

100,31

31

25,9

119.625

Caminho das Águas

103

53,92

41

21,5

191.015

Campos de Cima da Serra

189

190,03

13

13,1

99.456

Capital e Vale do Gravataí

1373

58,65

182

7,8

2.341.155

Carbonífera/Costa Doce

142

34,35

43

10,4

413.389

Caxias e Hortênsias

739

127,52

79

13,6

579.519

Diversidade

147

63,47

43

18,6

231.604

Entre Rios

131

102,77

17

13,3

127.467

Fronteira Noroeste

170

73,12

42

18,1

232.501

Fronteira Oeste

335

70,34

50

10,5

476.229

Jacuí Centro

173

83,55

25

12,1

207.056

Pampa

134

70,54

25

13,2

189.963

Planalto

395

97,38

65

16

405.617

Portal das Missões

99

74,47

22

16,5

132.940

Rota da Produção

81

48,55

24

14,4

166.830

Sete Povos das Missões

105

35,92

57

19,5

292.322

Sul

793

90,73

115

13,2

874.062

Uva Vale

160

88,13

30

16,5

181.547

Vale da Luz

137

109,26

33

26,3

125.390

Vale do Caí e Metropolitana

388

51,02

76

10

760.412

Vale do Paranhana e Costa Serra

185

81,61

30

13,2

226.680

Vale do Rio Pardo

472

136,68

72

20,8

345.327

Vale dos Sinos

282

35,07

68

8,5

804.028

Vales e Montanhas

224

101,64

63

28,6

220.378

Verdes Campos

457

99,41

75

16,3

459.692

Vinhedos e Basalto

338

112,32

40

13,3

300.938

Rio Grande do Sul

8252

73,36

1472

13,1

11.247.923

Legenda: Taxa por 100 mil habitantes (Tx), Tentativas de Suicídio (TS), Suicídios (Ns), População (Np). Cálculos: Ns/Np x 100.000 = Tx.S e TS/Np x 100.000 = Tx. TS.

 

Fonte: IBGE (2023); MS/SVS/CGIAE - SIM (2023). Organizado pelos autores.

As regiões de saúde com maior incidência de suicídios localizam-se na região central do Estado, e as regiões com menor incidência estão em áreas metropolitanas do território, onde a população supera os 2.000.000 de habitantes. A análise regional auxilia na compreensão do fenômeno como um problema do território, porém este tipo de análise deve estar relacionado aos outros indicadores sociais, econômicos, de qualidade de vida e de desenvolvimento das regiões, incluindo ainda, características históricas e culturais de cada recorte territorial. O Mapa 1 busca representar cartograficamente estes dados.

As explicações para a alta incidência de óbitos autoprovocados nas regiões de saúde do Botucaraí, Vales e Montanhas e Vale da Luz são inconclusivas. Os indicadores sociais utilizados pelo Índice de Desenvolvimento Socioeconômico - IDESE (Saúde, Renda e Educação) indicam perdas em municípios destas regiões, porém em comparação a outras regiões, esta relação é pouco explicativa (IDESE, 2019). 

Mapa 1. Representação cartográfica das taxas de suicídio a cada 100 mil habitantes nas regiões de saúde do Estado do Rio Grande do Sul em 2022.

Fonte: MS/SVS/CGIAE - SIM (2023). Elaborado por Carlos Stavizki Junior (2023).

Outras hipóteses, como a influência de elementos culturais dos povos imigrantes destas regiões, a exemplo da tradição germânica (MOURA, 2016); o impacto do uso de agrotóxicos em propriedades agrícolas da região (FRANK; MONTEIRO, 2020); ou ainda, “o acirramento que as políticas econômicas têm infringido à população trabalhadora, especialmente aos seus segmentos mais vulneráveis” (MENEGHEL et al., 2004, p. 810), são algumas das possíveis explicações para alta incidência de suicídio nas regiões interioranas do Rio Grande do Sul. Entretanto, até o momento, não é possível afirmar quais as causas para este fenômeno ser tão marcante no território.

5. Considerações Finais

O trabalho destacou três categorias ligadas à prevenção do suicídio no Rio Grande do Sul. Primeiramente, problematizando as bases da racionalidade que organiza a ação de atores e instituições envolvidos em estratégias de prevenção, enfatizando os discursos de maior influência no âmbito acadêmico. A questão “qual a estratégia de prevenção ao suicídio mais eficaz na atualidade” está em aberto e sua resposta tende a caminhar pela complexidade dos campos científicos. É neste ponto que se encontra o campo do Desenvolvimento Regional e sua articulação entre teorias sociais, bases conceituais e preocupação com os territórios e suas particularidades.

Em seguida, foram apresentadas algumas das principais políticas de prevenção ao suicídio no Brasil e no Rio Grande do Sul, evidenciando o processo de institucionalização deste debate a partir do campo da saúde. Esta relação indireta entre Estado e prevenção ao suicídio tem se mostrado frutífera na construção de equipamentos de ação; mas pouco eficaz na diminuição da taxa social de suicídios do território. A alta incidência do fenômeno no território é significativa, sobretudo em regiões interioranas, onde as mortes autoprovocadas tornam-se um problema público emergente.

Por fim, destaca-se a incompletude deste debate e a necessária abertura de uma agenda de pesquisa sobre o impacto das políticas de prevenção ao suicídio no Rio Grande do Sul, em especial por haver um histórico de ações voltadas à problemática e que hoje estão sintetizadas em um Plano Estadual para Prevenção ao Suicídio (2021 – 2025). É neste sentido que o campo do Desenvolvimento Regional é convidado a contribuir com o aperfeiçoamento do debate, considerando o território e seus agentes como promotores de soluções aos problemas públicos contemporâneos.

 

[1] O território gaúcho mantém a maior taxa de suicídios por 100 mil habitantes do Brasil desde a década de 1980, e em 2022, registrou uma média de 13,1 óbitos a cada 100 mil habitantes, enquanto a média nacional foi de 6,5 óbitos a cada 100 mil habitantes, considerando os dados atualizados pelo Sistema Nacional sobre Mortalidade do Sistema Único de Saúde (SIM/DataSUS, 2023).

[2] No objetivo nº 3 dos ODS (2015 – 2030), “Saúde e Bem-estar”, a prevenção ao suicídio faz parte do bloco de ações que visam “assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para todas e todos, em todas as idades”, mantendo-se a meta de redução de, no mínimo, 10% das mortes autoprovocadas até 2030 (UN, 2022).

[3] A Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) foi instituída no Brasil pela Portaria nº 3088/GM/MS, de 23 de dezembro de 2011, tendo como objetivo principal a ampliação do acesso à atenção psicossocial da população em geral, promovendo a vinculação das pessoas com transtornos mentais e suas famílias aos serviços de Saúde Mental, como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). Além disso, um dos princípios da RAPS é garantir a articulação e integração dos pontos de atenção das redes de saúde no território, qualificando a assistência por meio do acolhimento, do acompanhamento contínuo e da atenção às urgências psiquiátricas (BRASIL, 2011).

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