O acesso às políticas públicas para agricultura familiar e seu não-recurso (non-take-up)


Paola Beatriz May Rebollar
Doutorado em Engenharia Civil da UFSC, professora do Departamento de Zootecnia e Desenvolvimento Rural do Centro de Ciências Agrárias da UFSC

Stephany Lopes
Graduanda em Zootecnia na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

Gabriela Vieira Imhof
Graduanda em agronomia na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC);

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1 Introdução

Desde o início da colonização brasileira, a grande propriedade formalmente constituída se impôs como modelo agrícola oficialmente reconhecido e recebeu o estímulo de políticas públicas para garantir sua reprodução. De outro lado, os agricultores que se estabeleceram de maneira irregular ocuparam um lugar secundário, sem apoio de políticas públicas e com grande dificuldade de desenvolver suas potencialidades enquanto forma social específica de produção (WANDERLEY, 1996). 

Nas últimas décadas, diferentes políticas públicas voltadas para a agricultura familiar foram estabelecidas. Os beneficiários dessas políticas são agricultores que produzem em estabelecimentos agropecuários com dimensões de até quatro módulos fiscais, cuja mão de obra é predominantemente familiar e obtém a maior parte da renda familiar das atividades desenvolvidas no estabelecimento. São considerados agricultores familiares, também, os assentados de projetos de reforma agrária, os pescadores artesanais, os quilombolas, os extrativistas e os indígenas (BRASIL, 2006; 2011).

No campo da pesquisa acadêmica sobre este tema, tem-se priorizado estudos sobre o surgimento do debate que leva a uma política e as formas de estabelecimento de referenciais e regras para estas ações públicas. Recentemente no Brasil, novas pesquisas têm adotado um referencial teórico denominado Não-Recurso (non – take up) para analisar a efetividade das políticas públicas a partir da perspectiva do acesso ou não-acesso por parte dos beneficiários (DANTAS, MARTINS, MARTINS, 2021; CAZELLA, CAPELESSO, SCHNEIDER, 2020). Por que parte do público-alvo de políticas públicas para a agricultura familiar não acessam seus direitos conforme previsto na legislação?

Santa Catarina apresenta particularidades socioeconômicas, ambientais, culturais e organizacionais diferenciadas dos demais Estados brasileiros, como vem sendo apontado em diferentes pesquisas (CAZELLA, 2006; VIEIRA et.al., 2010). Os sistemas produtivos locais estabelecidos desde a época da colonização europeia promoveram o fortalecimento dos pequenos empreendimentos nos espaços rurais. Porém, a diversidade social e produtiva da agricultura familiar gerou efeitos desiguais entre atores e regiões. Informações apontam que o conhecimento e o acesso às políticas públicas para a agricultura familiar ainda não são homogêneos. Dados provenientes do município de Porto União, localizado na região do planalto norte catarinense que possui um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) alto, indicam que a maior parte dos agricultores conhecem as políticas e as acessam (BÚRIGO, CAZELLA, ROVER, 2014). Por outro lado, dados provenientes de Irineópolis, localizada no planalto norte de Santa Catarina com IDH médio apontam que menos de 25% dos agricultores entrevistados conheciam alguma política pública e as acessavam (CAZELLA, BÚRIGO, ROVER, 2014). 

Este quadro é importante e merece ser investigado uma vez que a efetividade das políticas tem relação direta com seu alcance. Faz-se necessário ampliar a capacidade explicativa sobre as razões que levam os potenciais beneficiários a não acessarem determinadas políticas públicas. Diante disso, o objetivo deste projeto de pesquisa é analisar os motivos que fazem com que famílias de agricultores não busquem os benefícios proporcionados por políticas públicas específicas. 

2 Desenvolvimento territorial sustentável

Durante o século XX surgiram discussões a respeito da diferença entre crescimento (aumento quantitativo) e desenvolvimento (aumento qualitativo) econômico motivadas pelos diferentes estágios alcançados pelos países capitalistas existentes (ARRIGHI, 1997; DE RIVERO, 2001; SACHS, 2000; SENS, 2001; FURTADO, 2003; VEIGA, 2010). Historicamente foi possível observar que alguns países conseguiram alcançar bons níveis de equidade, justiça social e preocupação ambiental após o crescimento e a modernização de suas economias. Estes processos levaram ao aumento amplo de renda e, consequentemente, a uma melhoria da qualidade de vida da maior parte da população. 

Porém, outros países, como por exemplo, o Brasil, mesmo em condições de crescimento econômico não passaram para níveis mais elevados de equidade e justiça social. Ao contrário, aumentaram a desigualdade social e constituíram sistemas políticos baseados na burocracia e no clientelismo. Além disso, seus sistemas produtivos produziram efeitos ambientais negativos para os ecossistemas locais. Devido a este contexto, tais países ainda apresentam comunidades marginais empobrecidas, como por exemplo, comunidades rurais e de periferias urbanas. Estas comunidades apresentam características em comum como baixa inserção na lógica de mercado capitalista formal, poucos recursos convencionais (físicos, financeiros) e muitas necessidades, desde aquelas básicas para sobrevivência (alimentação e moradia) até aquelas que permitem o desenvolvimento da dignidade e da cidadania (educação, lazer, saúde, direitos civis, entre outros). Por outro lado, estas comunidades apresentam características muito diferentes como processo histórico de surgimento, costumes e hábitos, estruturas de relacionamento interpessoal e com outros grupos. 

Na última década do século XX emergiu a ideia de desenvolvimento territorial que mantinha a lógica local, porém sem perder conexões com o nacional e global (PECQUEUR, 2006). O território enquanto unidade de planejamento adquiriu nesta perspectiva contornos diferenciados das unidades administrativas (territórios-dados) e, apesar de enfatizar a localização geográfica como suporte das atividades econômicas, destacou os processos históricos e sociais locais e suas especificidades organizacionais, institucionais e mercadológicas como potenciais para o desenvolvimento, conforme o trabalho pioneiro de Pecqueur (2006). Nesta abordagem o território constitui-se de dinâmicas múltiplas e sobrepostas que implicam no reconhecimento da mútua dependência entre as diferentes unidades de paisagem existentes no mesmo território, bem como, entre as áreas rurais e urbanas (JEAN, 2010). 

A lógica territorial visa superar uma abordagem estritamente setorial (agrícola) do desenvolvimento, implica no (re)conhecimento dos diversos atores sociais, grupos de interesse e organizações que constituem o território enfatizando a relação sociedade-economia-ecologia (ABRAMOVAY, 2010). Esta proposta supera a lógica comunitária porque não implica em pequena escala e supera a lógica regional porque pressupõe uma construção histórica e social e não unicamente um conjunto de recursos em determinado espaço geográfico.

O desenvolvimento econômico de uma zona rural familiar no contexto da economia de mercado, constitui um problema de difícil resolução, especialmente pela dificuldade de acessar mercados rentáveis em função da sazonalidade e tamanho reduzido da produção. Quando as famílias produzem produtos genéricos ou padronizados, ficam submetidas à definição de preços pelo próprio mercado. Se o rendimento gerado é inferior ao preço do trabalho em uma outra atividade econômica ocorre o êxodo, em especial de jovens e mulheres, comprometendo a continuidade desta atividade e de seu complexo cultural diferenciado. A construção de mercados locais é apontada como caminho para geração de renda aos produtores e para a promoção da segurança e soberania alimentar e nutricional.

Mobilizar atributos ambientais, paisagísticos, históricos e culturais associados a sistemas agroalimentares localizados e ao turismo rural, por meio da governança territorial de atores públicos, associativos e privados, pode permitir a geração de uma renda de qualidade territorial que permita a continuidade da agricultura familiar reduzindo a pobreza através de uma prática agrícola sustentável com trabalho decente, com menor desigualdade e promovendo o consumo e a produção responsáveis através da identificação de recursos e ativos que possam constituir uma oferta composta e sinérgica de produtos e serviços territoriais. Neste sentido, as estratégias de desenvolvimento territorial se apoiam nos objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS/ONU).

3 Políticas públicas

O estudo acerca de políticas públicas parte do pressuposto de que, em democracias estáveis, aquilo que o governo faz ou deixa de fazer pode ser formulado cientificamente e deve ser analisado por pesquisadores independentes. Assim, é possível definir políticas públicas como um ramo da ciência política que visa entender como e por que os governos organizam suas estratégias de ação (SOUZA, 2006).

As primeiras pesquisas acadêmicas sobre políticas públicas tiveram início nos anos 1930 com H. Laswell (1936) nos Estados Unidos. Este pesquisador introduziu a expressão análise de política pública e destacou que tais análises deveriam responder às seguintes perguntas: quem ganha o quê, por quê e que diferença faz.

Nas últimas décadas, os estudos sobre políticas públicas voltaram à tona nos meios acadêmicos, especialmente, visando entender as instituições, regras e modelos que regem sua decisão, elaboração, implementação e avaliação. Este renascimento do campo de conhecimento teve relação com a adoção de políticas restritivas de gasto, que passaram a ser adotadas em diferentes países em desenvolvimento, o que aumentou a visibilidade do desenho e da execução de políticas públicas econômicas e sociais. Outro elemento que favoreceu as discussões sobre o tema é o fato de que nos países em desenvolvimento e de democracia recente ainda não se formaram conjuntos políticas capazes de desenhar políticas públicas que promovam ao mesmo tempo o desenvolvimento econômico e a inclusão social de grande parte de sua população (SOUZA, 2006).

Na Europa, a análise de políticas públicas foi retomada na década de 1980 sob a perspectiva de explicar o Estado a partir de suas ações. Muller (2000) definiu esta área do conhecimento como uma sociologia da ação pública e envolveu em suas análises os conceitos de atores, conhecimentos, poder, estratégia e informação. A partir destes estudos foi possível destacar uma série de questões relacionadas ao campo político, tais como a natureza do poder político, o questionamento do Estado como estrutura central na solução de problemas e como agente que impõe a ordem política. Também passaram a ser investigados os limites da racionalidade dos elaboradores de políticas públicas (MULLER, 2000).

As políticas públicas agrícolas brasileiras, historicamente, afetaram e favoreceram as grandes extensões de terras produtoras de mercadorias para a exportação. Desde a década de quarenta até a década de noventa do século passado, a política agrícola subsidiou e controlou em certa medida a produção dos grandes latifúndios através de complexas estratégias tarifárias, alfandegárias e de câmbio visando à modernização e à industrialização do setor agrícola brasileiro (BAER, 2009). Neste contexto, poucas estratégias visando o desenvolvimento dos espaços rurais foram empregadas e praticamente nenhum apoio às pequenas propriedades produtoras de alimentos era concedido.

Nas últimas décadas surgiram políticas públicas voltadas para este setor específico da agricultura brasileira, especialmente no que diz respeito ao crédito e seguro agrícola, à assistência técnica e extensão rural, à comercialização e à regularização fundiária. O surgimento do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) em 1996 deu início a este processo. Mais recentemente, políticas orientadas pela ideia de território começaram a ser aplicadas em áreas específicas dos Estados federados brasileiros, como o programa Territórios da Cidadania. 

As teorias mais recentes sobre o tema do desenvolvimento, apesar de ancoradas no espaço rural, enfatizam a ideia de que as políticas públicas devem operar na dimensão territorial incorporando a noção de solidariedade rural-urbana que reconhece as mútuas dependências e influências destes espaços, conforme apontado por Jean (2010). A ideia de território valoriza a escala local sem isolá-la das escalas superiores, superando a ideia de pequena dimensão, conforme destacou Pecquer (2006). Outro aspecto que vem sendo enfatizado no que se refere a políticas públicas para o desenvolvimento é a implantação de uma governança local e a necessidade de inserir elementos de sustentabilidade (LEVESQUE, 2009; VEIGA et. al., 2010). 

4 Abordagem teórica do Não-Recurso às políticas públicas 

A abordagem teórica de não-recurso visa compreender as limitações das políticas públicas, especialmente, no que diz respeito ao seu alcance e resultados. O objetivo de aplicar esta abordagem é explicar por que pessoas ou famílias não acessam políticas e serviços públicos aos quais têm direito segundo a legislação em vigor (HAMEL; WARIN, 2014; WARIN, 2016). Esta abordagem surgiu nos anos 1930 no Reino Unido. Nos anos 1970, as pesquisas nesta perspectiva passaram a empregar o cálculo da taxa de Não-Recurso (NR), a partir da relação entre o público elegível que recebe o benefício (NeR) sobre o total de indivíduos elegíveis (Ne) (LISTER, 1974; CATRICELOREY, 1976; OUTIN et al., 1979). Esta formulação é criticada porque, enquanto o público elegível que recebe o benefício (NeR) é relativamente fácil de ser quantificado, o total de indivíduos elegíveis (Ne) de uma dada política pública nem sempre é conhecido. Além disso, esta análise não permite explicar por que este fenômeno ocorre. 

Observatoire des Non-Recours aux Droits et Services (ODENORA), vinculado à Universidade Grenoble Alpes (França) formulou outra estratégia de análise que forneceu uma tipologia explicativa das razões pelas quais grupos ou pessoas não acessam as políticas públicas. Esta perspectiva de análise do fenômeno de não recurso às políticas públicas enfatiza as desigualdades sociais que promovem acessos diferenciados aos mesmos direitos. Esta análise remete a ações de escuta e aumento da visibilidade do público alvo que precisam ser sensíveis ao elaborador e aos gestores das políticas públicas.

Esta tipologia consiste em três categorias: 

i) Não conhecimento: quando falta informação sobre a existência ou modo de acesso a determinada política pública ou quando não há proposição do prestador da política pública; 

ii) Não demanda: quando uma pessoa ou família elegível e informada decide não acessar a política por não adesão aos princípios da oferta ou por interesses diversos ou por entender que há desvantagem na relação custo/benefício ou por autoestima ou por constrangimentos decorrentes da complexidade do acesso, do descrédito da sua elegibilidade, das suas chances ou das suas capacidades, da sua dificuldade de expressar suas necessidades;

iii) Não recepção: quando uma pessoa ou família elegível solicita, mas ou não recebe por completo o efeito da política pública em função de abandono do acompanhamento do pedido ou de acordo paralelo com o prestador ou falta de atenção com os procedimentos ou precariedade do serviço do prestador (WARIN, 2010). 

Neste artigo, empregamos as tipologias propostas por Warin (2010) para analisar o acesso às políticas públicas para a agricultura familiar na área de pesquisa.

5 Materiais e métodos

Esta pesquisa foi desenvolvida no município de Paulo Lopes, Santa Catarina, entre agosto de 2022 e junho de 2023. O município está localizado no litoral central do estado e faz parte da área metropolitana de Florianópolis (Figura 1).

Figura 1. Localização do Município de Paulo Lopes, Santa Catarina.

Fonte: IBGE Cidades (2022)

 

A região do atual município de Paulo Lopes começou a ser colonizada a partir de 1677 quando duas famílias se estabeleceram no local hoje denominado de Ponta do Faísca. Aproximadamente cem anos depois, o Coronel Paulo Lopes Falcão estabeleceu algumas famílias açorianas, madeirenses, indígenas e descendentes de africanos, trabalhando na condição de escravos. Somente em 1890 foi criada oficialmente a Freguesia de Paulo Lopes. Em 1930 passou a ser um distrito, vinculado ao município de Palhoça, assim permanecendo até a divisão territorial datada de 1961 quando se tornou um município (IBGE Cidades, 2022).

Historicamente os habitantes locais praticavam agricultura e pecuária para autoconsumo com ênfase na produção de farinha de mandioca em engenhos e se inseriram nos mercados regionais, inicialmente, com a produção de telhas e tijolos e depois com a extração madeireira (IBGE Cidades, 2022; PMPL, 2022).

O censo de 2010 apontou 6692 pessoas residindo no município, das quais 1872 se declararam moradores da zona rural. Em 2017, o censo agropecuário indicou a existência de 235 estabelecimentos agropecuários, dos quais 8% eram conduzidos por mulheres e 92% por homens (IBGE Cidades, 2022). Dados de 2022, fornecidos pelo escritório municipal da Epagri apontam o cadastro de 690 produtores rurais em Paulo Lopes, dos quais 27,5% são mulheres e 72,5% são homens. Destacam-se ainda 5 produtores quilombolas (KNABBEN, 2022). A maior parte dos estabelecimentos se dedica à pecuária (62%), mas também há produção de grãos (notadamente arroz, com a maior área produtiva no município, mas com poucos produtores), fruticultura, olericultura, aquicultura e pesca (KNABBEN, 2022).

Para desenvolver esta pesquisa, foi empregada a metodologia da observação participante que consiste na participação do pesquisador nas atividades do grupo pesquisado e a partir desta vivência obtém as informações para a construção dos resultados da pesquisa (MARCONI e LAKATOS, 2009). A equipe de pesquisa participou de nove eventos abertos ao público dos agricultores familiares do município e entorno, anotando as observações em caderneta de campo. Os eventos foram promovidos pela Prefeitura Municipal (PMPL) e/ou pela Empresa de Pesquisa e Extensão Agropecuária de Santa Catarina (EPAGRI). Os resultados das observações foram analisados a partir da tipologia proposta por Warin (2010) que considera três explicações para o não-recurso: não conhecimento, não demanda e não recepção e descritos qualitativamente.

6 Resultados e discussão 

Esta pesquisa visa contribuir com a adaptação dos modelos teóricos e de análise do não-recurso às políticas públicas no que se refere às especificidades da agricultura familiar catarinense. A partir dos resultados obtidos, pretendeu-se estabelecer conexões para compreender por que, depois de décadas de esforço político no sentido de conceber políticas públicas específicas para a agricultura familiar, ainda persistem estruturas diversas que levam os beneficiários a não acessar seus direitos. 

A partir das reuniões na área de pesquisa foi possível identificar quatro instituições que atuam com a divulgação e acesso às políticas públicas para o desenvolvimento rural sustentável em Paulo Lopes: i) a Epagri, através do escritório municipal, ii) a Prefeitura Municipal de Paulo Lopes, através da Secretaria Municipal de Agricultura, iii) Senar-SC, através da Assistência Técnica e Gerencial e Formação Técnica, iv) a Cooperativa de Crédito Cresol. Estas instituições são representadas por indivíduos que atuam localmente e são os responsáveis por implementar os processos e exercem a discricionariedade nas decisões relacionadas aos cidadãos (LIPSKY, 2010).

Os agricultores familiares de Paulo Lopes são público-alvo de diferentes políticas públicas de apoio como crédito para custeio e investimento (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar - PRONAF), Política Nacional de Crédito Fundiário (PNCF), Assistência Técnica e Gerencial (ATEG/SENAR), vários políticas do governo estadual (Fomento Agro SC, Investe Agro SC, Terra Boa, Jovens e Mulheres em Ação, Prosolo e Água) e Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER).

Dentre todas estas políticas, ficou em evidência durante as atividades das quais a equipe de pesquisa participou, a relevância da ATER como a política mais acessada. A Lei Federal 12.188/2010 define:

I - Assistência Técnica e Extensão Rural - ATER: serviço de educação não formal, de caráter continuado, no meio rural, que promove processos de gestão, produção, beneficiamento e comercialização das atividades e dos serviços agropecuários e não agropecuários, inclusive das atividades agroextrativistas, florestais e artesanais; 

Dentre os objetivos desta política pública que estão definidos no artigo 4o foi possível observar que, em Paulo Lopes, estão sendo mobilizados os seguintes:

“I - promover o desenvolvimento rural sustentável; 

III - aumentar a produção, a qualidade e a produtividade das atividades e serviços agropecuários e não agropecuários, inclusive agroextrativistas, florestais e artesanais; 

IV - promover a melhoria da qualidade de vida de seus beneficiários; 

V - assessorar as diversas fases das atividades econômicas, a gestão de negócios, sua organização, a produção, inserção no mercado e abastecimento, observando as peculiaridades das diferentes cadeias produtivas; 

VIII - aumentar a renda do público beneficiário e agregar valor à sua produção; 

IX - apoiar o associativismo e o cooperativismo, bem como a formação de agentes de assistência técnica e extensão rural; 

X - promover o desenvolvimento e a apropriação de inovações tecnológicas e organizativas adequadas ao público beneficiário e a integração deste ao mercado produtivo nacional; 

XI - promover a integração da Ater com a pesquisa, aproximando a produção agrícola e o meio rural do conhecimento científico; e 

XII - contribuir para a expansão do aprendizado e da qualificação profissional e diversificada, apropriada e contextualizada à realidade do meio rural brasileiro.”

Uma das instituições locais que vem promovendo os objetivos acima listados é a Prefeitura Municipal através da Secretaria Municipal de Agricultura. As ações empregadas para promover o desenvolvimento rural sustentável indicaram que a cadeia produtiva da bovinocultura de corte envolve a maior parte dos produtores locais, principalmente os pluriativos. A pluriatividade é a combinação permanente de atividades agrícolas e não-agrícolas, em uma mesma família que pode representar tanto uma opção familiar quanto uma decisão individual dos membros (SCHNEIDER, 2001). A predominância da pluriatividade e da produção pecuária de corte no município de Paulo Lopes foi verificada há praticamente vinte anos em diferentes pesquisas (SANTIN, 2005; SELL, 2019). A mesma característica também foi observada em outros municípios da planície costeira de Santa Catarina, como Araranguá (ALVES e CHELOTTI, 2020) 

Diante desta realidade, a Secretaria, em parceria com os produtores e com a Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (EPAGRI), definiu como meta aumentar a qualidade e a produtividade desta atividade agropecuária. A EPAGRI é uma empresa pública, vinculada ao Governo do Estado de Santa Catarina, através da Secretaria de Estado da Agricultura, da Pesca e do Desenvolvimento Rural, que foi criada em 1991 para reunir as ações de pesquisa e extensão rural e pesqueira. Está presente em todas as regiões de Santa Catarina na forma de unidades de pesquisa, de extensão, centros de treinamentos, centros especializados e escritórios municipais. A estrutura e capilaridade desta instituição a torna um agente relevante em projetos de desenvolvimento rural e territorial no Estado. Na região de Paulo Lopes, o escritório municipal oferece assistência técnica e extensão rural em consonância com a Lei Estadual 8.676/1992 que estabelece a política estadual de desenvolvimento rural (SC, 1992). O capítulo VI desta lei trata da pesquisa, assistência técnica e extensão rural e o artigo 16 explica que:

O Governo do Estado manterá, com o apoio da União e dos Municípios, serviço de assistência técnica e extensão rural e pesqueira, de caráter educativo, objetivando difundir tecnologias necessárias à viabilização econômica e social das unidades produtivas, à conservação dos recursos naturais e à melhoria das condições de vida, estimulando e apoiando a participação e organização da população rural e pesqueira.

Neste contexto jurídico, o escritório municipal da Epagri oferece assistência técnica e extensão rural aos produtores em três dimensões: atividades de apoio, atividades sociais/ambientais e atividades produtivas. A extensão rural surgiu no Brasil na década de 1940 e ao longo de sua história, especialmente a partir da década de 1980, passou por transformações tanto no que se refere à filosofia do trabalho quanto à prática. Uma das mudanças principais tem relação com um movimento que propôs repensar a extensão enquanto um processo educativo, dialógico e participativo, no qual são empregadas metodologias participativas para que os produtores sejam ativos no processo de construção do conhecimento (MUSSOI, 1985; SILVEIRA, 1993). Essa é a perspectiva que ainda predomina nos dias atuais.

Foi possível observar que, através da utilização de metodologias participativas, produtores, Secretaria de Agricultura e Epagri identificaram a necessidade de melhorar o rebanho bovino e as estratégias de comercialização a fim de aumentar a renda do público beneficiário da ATER e agregar valor à produção. Buscaram o apoio do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (SENAR) que mantém a política de ATEG para cadeia produtiva da bovinocultura de corte. O Serviço Nacional de Aprendizagem Rural - Senar é uma entidade de direito privado, paraestatal, mantida pela classe patronal rural, vinculada à Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil – CNA criado pela Lei nº 8.315/91 que atende gratuitamente produtores rurais. A política ATEG visa promover a aprendizagem de técnicas gerenciais e a introdução de tecnologias e boas práticas relacionadas a diferentes cadeias produtivas. No caso da bovinocultura de corte, a política estimula o uso da inseminação artificial em tempo fixo (IATF) como ferramenta para o melhoramento genético do rebanho e a otimização das práticas de manejo dos terneiros. 

Em uma reunião destinada a apresentar esta política pública e constituir um grupo de trabalho estavam presentes 44 produtores dos quais apenas 6 conheciam e acessavam ATEG. Conforme a tipologia proposta por Warin (2010), o não-recurso a esta política foi classificado como não-conhecimento, ou seja, muitos produtores não sabiam de sua existência. Esta classificação se justifica porque, uma vez apresentados à política 16 produtores presentes optaram por acessá-la imediatamente, e, nos dias subsequentes à referida reunião, foi possível constituir um grupo com 35 produtores que é número mínimo exigido pelo SENAR para a oferta do serviço. Cabe destacar que o programa ATEG se destina a produtores que possuem pelo menos 50 animais. Considerando que na área de estudo os produtores são pluriativos e possuem propriedades de tamanho reduzido com relevo ondulado, o tamanho mínimo de rebanho exigido não é comum, o que excluiu muitos produtores.

A fim de colaborar com o projeto de melhoramento dos rebanhos, a Epagri estimulou os envolvidos a acessar uma outra política pública estadual denominada Programa Terra Boa que, dentre outras ações, distribui cotas compostas por sementes de forrageiras e de insumos para o melhoramento das pastagens que são pagas em três parcelas anuais, sem juros com descontos de 30% incidente sobre a segunda e 60% sobre a terceira parcelas se pagas no prazo. Esta política foi acessada por 30 produtores somente após o movimento de divulgação realizado pelo responsável pela ATER uma vez que os produtores desconheciam a possibilidade. Mais uma vez, o não acesso a esta política foi classificado como não-conhecimento porque os produtores não sabiam de sua existência. É relevante destacar que os produtores locais conheciam e acessavam outros componentes do Programa Terra Boa, especialmente, a ação de distribuição de calcário para correção de solo, como pode ser observado nos eventos nos quais a equipe de pesquisa participou.

O projeto local de melhoramento dos rebanhos bovinos de corte também promoveu estratégias de comercialização através da aproximação das instituições com o frigorífico que opera no território e através da abertura de uma praça de comercialização. A comercialização se estendeu para todo o território e envolveu produtores locais e de municípios vizinhos (Gravatal, Imaruí, Imbituba). A estratégia escolhida foi o leilão que permite o uso da política pública PRONAF (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar) através da linha de crédito para investimento. O acesso a esta linha de crédito não estava claro para os beneficiários. Apesar de todos conhecerem o PRONAF, apenas sete produtores sabiam que poderiam acessar a linha de financiamento para comprar animais no leilão. 

Em uma reunião envolvendo Prefeitura e Epagri foi mencionada uma outra política operada no território, a Política Nacional de Crédito Fundiário (PNCF) que se trata de uma política pública complementar à reforma agrária, uma vez que possibilita a aquisição direta de imóveis particulares, produtivos e regularizados, que não sejam passíveis de desapropriação, com áreas menores que quinze módulos fiscais empregando os recursos do Banco de Terras, criado pela Lei Federal 93/1998. Os objetivos desta política são reduzir a pobreza no meio rural, fortalecer a agricultura familiar, promover melhoria na qualidade de  vida, garantir a autonomia, gerar renda, favorecer a segurança alimentar, reduzir a desigualdade social e possibilitar uma sucessão rural. Apesar da relevância desta política, em Paulo Lopes no ano de 2022 apenas um produtor rural foi beneficiado pelo PNCF. A principal justificativa para esta situação foi o valor disponível para financiamento que está abaixo do preço das terras na região. Este contexto se caracteriza como não recepção da política pública, uma vez que existe uma precariedade na política caracterizada pela distância entre o valor proposto e o valor de mercado das terras no município inviabilizando o recurso para a maioria do público-alvo nesta região. A pesquisa de Romão, Guedes e Búrigo (2019) apresenta uma reflexão importante em relação ao PNCF no que se refere ao papel das instituições que promovem (ou não) o acesso. O autor, a partir da análise de acesso a esta política na região oeste de Santa Catarina, identificou que muitos beneficiários não conseguiam acessar à política em função de “mecanismos informais que orientam as formas práticas de organizar o acesso” por parte dos agentes públicos que operacionalizam o PNCF. Esta análise leva a reflexão de que a razão da baixa procura pelo programa pode ir além da questão do preço da terra e incluir ainda a não-recepção, ou seja, da precariedade do serviço do prestador (WARIN, 2010). O PNCF é um política com nível considerável de burocracia que implica na obtenção e organização de uma série de documentos que torna seu acesso direto por parte do produtor bastante complexo e, por isso, demanda o apoio institucional, seja de ATER ou dos Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural ou, ainda, dos Sindicatos Rurais.

Uma questão que está posta no território, mas não suficientemente presente nas políticas públicas, diz respeito a questão de gênero. Percebe-se nas falas, especialmente da extensionista da prefeitura, uma preocupação com a inclusão das mulheres: “queremos agradecer às mulheres aqui presentes… hoje podemos perceber muitas mulheres envolvidas… temos orgulho de ter uma mulher na presidência da associação”. Mesmo assim, as mulheres estiveram sempre em minoria em todos os eventos nos quais a equipe participou. 

A situação da baixa participação das mulheres em eventos e atividades de planejamento de atividades agrícolas pode ter várias raízes. De um lado, podemos citar o investimento histórico da ATER na capacitação de mulheres rurais voltada para atividades domésticas tradicionalmente femininas que, ao invés de formar e capacitar, as retém em atividades que não geram rendimentos econômicos visíveis, reduzindo seu peso na tomada de decisão (HEREDIA e CINTRÃO, 2012). Assim, muitas mulheres não se identificam como agricultoras, especialmente, quando exercem múltiplas atividades econômicas (pluriativas), uma vez que as atividades domésticas não são remuneradas enquanto as atividades externas à propriedade rural sim. Este modelo de extensão serviu para reforçar a negação do papel da mulher rural enquanto agricultora e trabalhadora rural, pois esta ficava em geral excluída das ações relativas à produção agrícola (SILIPRANDI, 1999). Este contexto, fortemente presente no território estudado reforça a necessidade de políticas públicas específicas para as mulheres a fim de reduzir o êxodo feminino das áreas rurais e aumentar o empoderamento das agricultoras nas famílias e nos espaços públicos.

7 Considerações finais

Esta pesquisa acompanhou, por onze meses, as atividades envolvendo os agricultores familiares, prefeitura municipal e escritório municipal da Epagri no município de Paulo Lopes. A partir da observação participante foi possível observar a demanda coletiva por cinco políticas públicas diferentes: ATER, ATEG, PRONAF, Programa Terra Boa e PNCF. A primeira política era conhecida e acessada por todos os participantes das atividades. Já no que se refere à ATEG, PRONAF e Programa Terra Boa foi possível observar que a maior parte dos agricultores não as conheciam total ou parcialmente e, por isso, não as acessam. 

Já no que se refere ao PNCF foi possível perceber diferentes razões para a baixa procura da política relacionadas a burocracia, valores de operação, inserção nas cadeias produtivas que caracterizam não-recepção desta política. Uma dificuldade em relação ao acesso às políticas para agricultura familiar tem relação com a questão da pluriatividade. Famílias de agricultores pluriativos tem dificuldade em acessar algumas políticas cujo critério de inclusão diz respeito à renda rural. Estes dois aspectos podem estar relacionados ao fato de que muitas políticas públicas para agricultura familiar são planejadas a nível federal, dificultando sua adaptação e efetividade na imensa diversidade existente nas várias regiões do nosso país. 

As políticas públicas tendem a ser mais eficientes e atingir seu público alvo quando existe um projeto de organização de uma cadeia produtiva ou de um conjunto organizado de bens e serviços em um território. Uma vez estabelecido um objetivo coletivo é mais viável que os extensionistas e demais atores sociais sejam capazes de divulgar e operacionalizar políticas específicas que apresentam afinidade com o público alvo. Em geral, as políticas são complexas e demandam o suporte institucional para que os beneficiários consigam acessá-las.

Uma questão de grande importância para a efetividade das políticas públicas parece ser a existência de um planejamento participativo nos municípios. Onde há um planejamento construído coletivamente, envolvendo diferentes atores sociais, considerando a paisagem, a aptidão agrícola, as distintas realidades históricas, culturais e econômicas das famílias (como, por exemplo, a existência ou não da pluriatividade) permite que as ações dos serviços de ATER sejam orientadas por pesquisas e estudo das políticas existentes que são direcionadas aos objetivos destes planejamentos. Esta situação pode promover a melhoria na recepção das políticas por parte daqueles que tem o papel de operacionalizá-las, provavelmente, aumentando sua efetividade. 

Outro aspecto que dificulta o acesso tem relação com o reduzido número de extensionistas e a rigidez das metas institucionais que orientam os trabalhos técnicos. Os extensionistas da prefeitura e da Epagri trabalharam em colaboração e ambos faziam uso das estruturas existentes para desempenhar seus papeis na implementação das políticas públicas. Apesar das dificuldades percebidas no acesso a algumas políticas públicas, fica claro que a política mais acessada e que dá condições de operacionalização a todas as outras é ATER. Ficou claro que os extensionistas foram capazes de adaptar suas metas institucionais aos objetivos dos agricultores locais, o que permitiu organizar um projeto agropecuário e buscar as políticas mais adequadas para tal projeto aumentando a eficiência tanto de suas próprias ações quanto das políticas em si.

Em municípios pequenos com agricultores pluriativos pode ser interessante buscar estratégias para a construção e implementação de políticas públicas que superem a setorialidade e a dicotomia rural-urbana a fim de atender melhor às demandas das famílias com vistas a um modelo de desenvolvimento territorial sustentável que seja capaz de superar a pobreza, promover o trabalho decente, a produção e consumo sustentáveis buscando parcerias e meios de valorizar as atividades produtivas, sejam estas produtos ou serviços, incluindo a valorização das paisagens, da cultura e da história local para criar um diferencial que supere a competição com outros produtos similares. 

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