Mulheres na luta por moradia: Insurgência e empoderamento na ocupação Marielle Franco em Florianópolis (SC)


Julia Perin Pellizzaro
Mestranda em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Socioambiental pela Universidade do Estado de Santa Catarina;

Francisco Canella
Doutor em Ciências Sociais pela UERJ; Professor do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Socioambiental da Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC.

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Introdução

O presente trabalho tem como tema as trajetórias de mulheres moradoras da Ocupação Marielle Franco em Florianópolis/SC. Considerando a inserção das mulheres na luta por moradia como um marco em suas vidas, os relatos são analisados sob a perspectiva das práticas insurgentes e do empoderamento das mulheres. A metodologia tem como base as histórias de vida, buscando compreender as transformações ocorridas com o ingresso das mulheres na luta. A história de vida é definida, por Meihy (2005), como uma “narrativa da experiência de vida de uma pessoa” (p.147). Acredita-se ser um método de compreensão da sobreposição das trajetórias individuais e dos processos coletivos. Esta forma de abordagem tem grande vínculo à cultura tanto das entrevistadas quanto da entrevistadora e nisso reside um desafio: não partir de generalizações para que não se busque, durante a entrevista, a sua confirmação.

A abordagem aqui proposta reside na fala e na transcrição fidedigna de relatos para que, somente após a finalização dessa etapa, haja análise e interpretação. Dafne Patai (2010) ressalta que “a preocupação [deve estar] em transmitir algo da riqueza e complexidade da experiência subjetiva”, o que justifica a escolha de uma amostragem diminuída e focada em poucas entrevistadas. Foram realizadas entrevistas com quatro mulheres selecionadas que têm ou tiveram papel protagonista no contexto da ocupação urbana. Além das entrevistas, também se somam à investigação observações participantes e participação militante junto à moradores da ocupação, as mulheres entrevistas incluídas. 

Para analisar o material colhido, elencou-se dois eixos analíticos: insurgência e empoderamento. O primeiro eixo, a insurgência, se coloca devido ao caráter disruptivo das ocupações urbanas – enquanto coletiva – e à ruptura pessoal dada a inserção na luta por moradia das entrevistadas – enquanto individual. No âmbito coletivo e espacial, parte-se de Holston (2013) com a caracterização da cidadania diferenciada e a insurgente. Cidadania insurgente para o autor é um conjunto de práticas coletivas que desestabilizam o sistema vigente que, no caso brasileiro, é profundamente diferenciado e excludente. Para empoderamento, parte-se de Berth (2019) que considera que o empoderamento seja, em primeira estância, individual; mas, quando em coletivo, há também de se considerar que possibilita a “inversão dos mecanismos de poder patriarcais fundados na opressão” (LAGUARDE, 1996, p.209). Friedmann (1996) afirma, ainda, que o processo de empoderamento é capaz de “aumentar a eficácia do [...] exercício de cidadania” (apud LISBOA, 2000, p.42). Ao usar do material colhido e analisa-lo via os dois eixos, buscou-se identificar como, por exemplo, em suas trajetórias a aproximação com movimentos sociais e rupturas com os papeis de gênero intensificaram seu processo de protagonismo no contexto estudado.

Contexto da luta urbana

O território brasileiro expressa a influência – assim como a maioria dos países ocidentais – da dinâmica do capital. Nesta dinâmica encontra-se a desigualdade no acesso ao solo urbano. O direito à moradia é constitucional e se sobressai ao direito à propriedade privada. As conquistas quanto a isto, relembra Canella (2015), estão na Reforma Urbana que conseguiu na Constituinte de 1988 estabelecer a política de desenvolvimento urbano e, depois, em 2001, a regulamentação no Estatuto da Cidade que prega a “função social da propriedade – e da cidade – e na gestão democrática da mesma” (p. 269). No entanto, mesmo a moradia sendo hoje direito constitucional, não há a efetivação desse direito como demonstra o dado da Fundação João Pinheiro de 2019 quando havia um déficit habitacional de 5,876 milhões de moradias. Portanto, a investigação deve iniciar pela fundação da profunda desigualdade quanto ao acesso à direitos sociais – e especificamente do solo e da moradia - no Brasil.

A primeira constituinte brasileira, em 1824, declarava que seriam cidadão todas as pessoas livres. E, embora fundado numa constituição jus soli incondicional, ou seja, que garantia o direito de solo a todos os considerados cidadãos, a lógica de cidadania não ficou isenta de uma distribuição diferenciada de direitos (HOLSTON, 2013, p.98). Essa cidadania diferenciada é pautada, historicamente, segundo Holston (2013) em alguns fatores que surgiram no Brasil império e se mantém até a atualidade. O primeiro fator era a incapacidade de gestão do território continental no Brasil Império, o que fez com que o governo nacional dependesse de elites locais para que seu poder fosse exercido. Essa é uma aliança que perpetuou historicamente a privatização do público por todo o território nacional. Outro fator era a extensa e restritiva burocracia – no sentido de cada caso, um caso - gerada na época do império. Havia, como pontuado por Holston, “uma dependência obsessiva do poder burocrático e estatuário como forma de resolver problemas em localidades distantes e tranquilizar a desconfiança em relação aos próprios representantes” (2013, p.100). Essas resoluções pontuais concederam às ações políticas, em detrimento do âmbito judicial, uma grande importância tornando a usurpação “um risco mínimo com alto retorno previsível para os que detêm o poder político” (HOLSTON, 2013, p.101). Um outro fator ressaltado por Holston é que essa forma de governar politicamente não generalizante e partindo do princípio de que todos os livres eram cidadãos desconsiderava as particularidades sociais da população, como a raça. Esconde-se aí uma máxima de que os hegemônicos – europeus, civilizados – aperfeiçoariam as raças e etnias “inferiores”. Isso gerou um apagamento de necessidades socioculturais específicas que também se perpetuam na forma da cidadania brasileira até a atualidade.

Pensando nos processos específicos da cidade, até a constituinte de 1988 e a luta por moradia nos dias atuais, houve, no Brasil, um caminho de práticas culturais coloniais e higienistas. No início do século XX já havia projetos de “embelezamento e melhoramento” urbanos que são substituídos logo por iniciativas denominadas planos gerais como foram os planos Agache no Rio de Janeiro e o Prestes Maia em São Paulo.  Até os anos 1940, havia também mais diversidade social nas cidades: operários moravam próximos aos seus patrões no Brás em São Paulo, por exemplo. Com a industrialização, houve a expulsão dos pobres dos centros numa tentativa de higienização urbana. 

Nas décadas de 1970 e 1980, dão-se as primeiras movimentações reais de planejamento urbano – em plena ditadura militar - com movimentos sociais urbanos buscando o direito à cidade, baseados, em sua maioria, no direito à moradia. Neste período houve organizações que uniam movimentos de bairro com a técnica de profissionais de arquitetura para desenhar loteamentos e moradias em propostas governamentais. Iniciaram-se neste momento também as ocupações e a unificação dos movimentos pela reforma urbana.

Na década de 1980, arquitetos como Bonduki fundam o Laboratório de Habitação e propõem um atuar políticobuscando formar um canal de comunicação entre o poder público e a comunidade. Na mesma década, a então prefeita de São Paulo Luiza Erundina cria um programa habitacional que organizava mutirões autogeridos com auxílio técnico universitário. No mesmo período, a Constituição Cidadã é promulgada trazendo regulamentações sobre a função social da propriedade urbana e fazendo surgir propostas mais inclusivas como o planejamento urbano participativo. Já nos anos 2000, com o Partido dos Trabalhadores no governo federal, houve mais investimento nos melhoramentos urbanos do que em qualquer outro governo – um aumento de 2000% do crédito imobiliário no país. Mas essas práticas se deram sem políticas públicas efetivas para o controle da especulação imobiliária e da regulação deste mercado, aumentando enormemente o preço da terra. Apesar do investimento em relação ao crédito, o não enfrentamento da causa real – a especulação e a segregação socioterritorial – contribuiu para que aumentasse o déficit de moradia no Brasil. 

Em um recorte mais local, o caso de Florianópolis e sua área conturbada pelos municípios de São José, Biguaçu e Palhoça seguem a lógica nacional de desenvolvimentismo, contudo, não sem particularidades dada sua condição incomum insular. Embora o foco venha a ser a luta por moradia, considera-se necessário que haja uma contextualização histórico social da Grande Florianópolis para tornar clara a atual lógica territorial. 

Mulheres e a luta por moradia

Em um recorte de gênero, buscou-se compreender as lideranças mulheres nas categorias sociais que as atravessam. Como conceito inicial necessário tem-se o gênero proposto por Joan Scott (1995). A autora evidencia como pautar o gênero na anatomia, ou seja, no sexo é um destino errado. Deve-se ter em conta que gênero é uma categoria social entre os sexos embrenhado nas lógicas de poder e, portanto, não é definitivo e estático. Para ela, só será possível observar os processos que atingem as mulheres (e também os homens) 

Se reconhecermos que “homem” e “mulher” são ao mesmo tempo categorias vazias e transbordantes; vazias porque elas não têm nenhum significado definitivo e transcendentes; transbordantes porque, mesmo quando parecem fixadas, elas contêm ainda dentro delas definições alternativas negadas ou reprimidas (SCOTT, 1995, p.93).

            Embora a intenção de Scott fosse mais pensar em como analisar a história e suas variabilidades frente ao gênero, ela acredita que entendê-lo como posição fluida atrelada ao poder faz com que este seja refeito “com uma visão de igualdade política e social que inclua não somente o sexo, mas também classe e raça” (SCOTT, 1995, p.93).

Outro conceito em constante disputa que parte de uma relação de poder é o patriarcado. No entanto, é necessário demarcar que, embora ambos sejam cruciais para entender opressões estruturais, o gênero “deixa aberta a possibilidade do vetor da dominação-exploração” (SAFFIOTI, 2004, p.70). Já o termo patriarcado – assim como androcentrismo, falocracia e falo-logo-centrismo – demarca claramente a presença masculina em um polo. Saffioti (2004) argumenta que o patriarcado é um sistema hierárquico entre sexos, mas que não é inevitável destes. Havia, em sociedades neandertais, uma posição até de prestígio e sagrada das mulheres dada sua capacidade de gerar vida – ainda que já houvesse papéis sociais definidos pelo sexo. Ou seja, não havia hierarquia clara. Saffioti (2004) argumenta que a dominação e exploração das mulheres tem seu início datadas de 6 a 7 milênios atrás quando se percebeu que o homem também tinha papel na reprodução. Para a autora, o patriarcado se pauta, principalmente, na exploração econômica das mulheres por meio dos papeis na produção e reprodução com “intensa discriminação salarial das trabalhadoras, sua segregação ocupacional e sua marginalização de importantes papéis econômicos e político-deliberativos” (SAFFIOTI, 2004, p.106). Como se nota aqui,  Saffioti pontua que o patriarcado é anterior ao capitalismo – sistema socioeconômico que por vezes é colocado como originador da opressão das mulheres. Porém, ainda que anterior, o capitalismo se apropriou e aprofundou a hierarquia e a exploração econômica entre sexos. Embora não seja o foco de Saffioti (2004), ela argumenta que assim como o patriarcado, o racismo - ou a racialização – também foi explorado pelo regime capitalista. Haveria, portanto, para ela, um nó entre patriarcado, racismo e a exploração capitalista – o que será abordado como interseccionalidade[1].

A autora fundamental para se delinear o tema da abordagem interseccional é Audre Lorde (2019)[2]. Para ela, a sociedade atual não possui mecanismos que criem uma convivência entre as diferenças que, para ela, são “mal interpretadas e mal utilizadas a serviço da separação e da confusão” (2019, p.240). A quem interessa essa divisão?Como virá no decorrer da discussão teórica, não se pode afirmar que a opressão patriarcal e racial tem sua fundação no capitalismo. No entanto, dado o sistema capitalista na atualidade, “a rejeição institucionalizada da diferença é uma necessidade absoluta em uma economia baseada no lucro que precisa de forasteiros como superávit” (LORDE, 2019). Isso, por si só, justifica investigar como essas diferenças se sobrepõe e se articulam sobre as sujeitas estudadas. Para Audre Lorde, no entanto, não são apenas os fatores capitalistas, de gênero e de raça, que geram a separação. Categorias como o heterossexismo, a discriminação etária, o elitismo, entre outras, também compõe esse emaranhado hierárquico de opressão-dominação. Para fins da atual pesquisa, contentar-se-á, contudo, com a investigação de gênero – já posto -, classe e raça. 

Para situar-se, portanto, a classe em uma abordagem interseccional, há de se entender como os fundamentos capitalistas influenciaram e seguem influenciando na vida das mulheres. Em sua discussão acerca da exploração capitalista, Silvia Federici (2017), em seu livro Calibã e a Bruxa: Mulheres, Corpo e Acumulação Primitiva, discorre principalmente acerca dos desdobramentos capitalistas e a forma como esses afetam as mulheres. Federici questiona as considerações marxianas em relação ao trabalhor livre – que segundo ela é homem -  e inevitavelmente invisibilizou o trabalho reprodutivo, base do sistema capitalista. Para tanto, a autora questiona o conceito de Marx em O Capital I de acumulação primitiva. Enquanto Marx ([1867] 1909 apud Federici, 2017, p.27) vê a acumulação primitiva focalizando no proletariado assalariado de sexo masculino e pautado no desenvolvimento da produção de mercadorias, Federici (2017) o vê da perspectiva feminista e quais suas alterações na posição social das mulheres na produção da força de trabalho – tanto de cuidado quando reprodutiva. A autora cita, dentre vários fenômenos ausentes no marxismo,

i) o desenvolvimento de uma nova divisão sexual do trabalho; ii) a construção de uma nova ordem patriarcal, baseada na exclusão das mulheres do trabalho assalariado e em sua subordinação aos homens; iii) a mecanização do corpo proletário e sua transformação, no caso das mulheres, em uma máquina de produção de novos trabalhadores. E, o que é mais importante, coloquei no centro da análise da acumulação primitiva a caça as bruxas dos séculos XVI e XVII: sustento aqui que a perseguição às bruxas, tanto na Europa quanto no Novo Mundo, foi tão importante para o desenvolvimento do capitalismo quanto a colonização e a expropriação do campesinato europeu de suas terras. (FEDERICI, 2017, p.26)

Embora no presente trabalho não se tenha a intenção de acompanhar a jornada histórica crítica proposta pela autora, cabe aqui destacar que a transição ao modo capitalista fez com que se construísse os papéis sexuais no modo em que se experiencia atualmente. Federici (2017) assinala que esta ideia transcende a dicotomia de gênero e classe e que a categoria de análise mulher é ainda legítima visto que, na sociedade capitalista, a construção da chamada feminilidade é uma função pautada de exploração do sexo – ou das mulheres - sob o disfarce de destino biológico. Para a autora, “a história das mulheres é a história de classes” (FEDERICI, 2017, p.31). Reside nesta perspectiva um embate quanto à exploração das mulheres e o conceito de patriarcado proposto por Saffioti, uma vez que essa coloca a dominação-exploração das mulheres anterior ao capitalismo. Não é uma pretensão do estágio atual do trabalho discutir profundamente esse embate, basta esclarecer que o patriarcado é, basicamente, um campo de forças no qual as mulheres perdem e que o capitalismo e seu modo de produção é um dos fatores determinantes nessa derrota. 

Retomando a tríade interseccional, se faz necessário ainda tratar do feminismo negro e a posição das mulheres negras socialmente. Silvio Luiz de Almeida em seu livro “O que é racismo estrutural?” (2018) conceitua racismo como “uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento [...] a depender ao grupo racial ao qual pertençam” (p.25). Almeida (2018) diz que o racismo pode ser definido por três concepções: uma individualista na forma de preconceito direto, uma institucional através dos privilégios e mecanismos de poder e dominação, e, por fim, uma estrutural que normaliza o racismo nas relações sociais e políticas e perpetua a desigualdade racial. Em um recorte às sujeitas da pesquisa, a forma como o racismo se manifesta alterou e segue alterando a forma como uma parte das mulheres são colocadas socialmente, portanto: de quê mulheres estamos falando?

Sueli Carneiro (2019) discute como, a despeito das conquistas dos movimentos de mulheres brasileiras, a mulher negra nunca se identificou ao ideal – branco e classista – de tomar as ruas para reivindicar o direito a trabalhar, por exemplo. Ou com a identidade frágil, muito colocada às mulheres brancas mas tido como universal. A autora diz que 

O racismo estabelece a inferioridade social dos segmentos negros da população em geral e das mulheres negras em particular, operando ademais como fator de divisão na luta das mulheres pelos privilégios que se instituem para as mulheres brancas. Nessa perspectiva, a luta das mulheres negras contra a opressão de gênero e de raça vem desenhando novos contornos para a ação política feminista e antirracista, enriquecendo tanto a discussão da questão racial, como a questão de gênero na sociedade brasileira (CARNEIRO, 2019, p. 315).

Lélia Gonzalez (apud PINTO, 2010), balizando a discussão das opressões de gênero e raça, coloca que o feminismo brasileiro fornece dois grandes desafios para o reconhecimento real das mulheres negras. O primeiro é que há uma base eurocentrista que universaliza os valores da cultura ocidental e constitui “mais um eixo articulador do mito da democracia racial e do ideal de branqueamento” (apud PINTO, 2010, p.3). O segundo é a distância entre a realidade experienciada pela mulher negra quando invisibiliza-se sua história de luta e resistência – sendo essa uma cultura que nada tem a ver com o eurocentrismo naturalizado. Carneiro e outras tantas autoras afirmam, então, que, intencionando uma perspectiva palpável e fidedigna a realidade das mulheres, deve-se enegrecer o feminismo, enaltecendo a história das mulheres negras e politizando, enfim, as mulheres – no plural! – e transformando-as em novas sujeitas políticas. 

Entende-se que a superação da invisibilização dessas diferenças (LORDE, 2019), sejam elas quais forem – ou a busca por uma convivência entre diferentes como iguais –, perpassa pela aceitação das lógicas do opressor que existem culturalmente dentro de todas as pessoas, individualmente. Como Paulo Freire (1968) postulou na “Pedagogia do oprimido”, deve-se reconhecer as táticas do opressor inerentes para mudar as estruturas de poder que exploram e oprimem. Nesse viés de reconhecimento de grupos e identidades e busca de entendimento dos aspectos sociais, políticos e econômicos que a pesquisa se coloca: elencar categorias analíticas possíveis para que se entenda essas opressões. Contudo, também se entende que há discordâncias teóricas na revisão conceitual proposta dos conceitos de gênero, patriarcado, a abordagem marxista feminista e o próprio feminismo negro. No entanto, ao ver da pesquisadora, os conceitos convergem para um entendimento das sujeitas em um viés interseccional. Esses embates são válidos pois aquecerão a análise que virá no capítulo a seguir[3].

Antes de elencar, finalmente, como cada um desses conceitos apresentados atravessam as mulheres entrevistadas, precisa-se compreender os movimentos de mulheres que abriram os caminhos para que discussões como esta pesquisa pudesse existir. Essas práticas também se tornarão instrumentos analíticos quando da análise das práticas e heranças sócio políticas das moradoras das ocupações.

O movimento feminista em si é classificado por muitas autoras por ondas. A primeira se dando com o movimento sufragista. Para muitas, o sufrágio não é um feminismo real uma vez que era branco e burguês dado seu caráter libertador pelo trabalho, fato que para mulheres negras e pobres não garantia autonomia social. 

A segunda, na metade do século XX até meados dos anos 90, buscava a libertação dos corpos das mulheres da dicotomia sexual hierarquizada e da naturalização dos papéis sociais como cuidado e reprodução. Visava quebrar a crença que, pela capacidade de reprodução feminina, as mulheres limitavam-se à esfera privada e a condições subalternas. No entanto, como explicitou Pateman (1993), “o feminismo não nega o fato biológico de que mulheres dão à luz, o que ele nega é a afirmação patriarcal de que este fato natural implica que apenas as mulheres possam cuidar das crianças e do lar”. Tinha como um dos lemas, inclusive, “o pessoal é político” – explanando essa saída do doméstico em busca de garantia de direitos em ambas as esferas, públicas e privadas - e tinha como expoentes Simone de Beauvoir, Patricia Hill Collins e Audre Lorde. 

Apesar da segunda onda ser atribuída muito à um feminismo radical, ou seja, de origem, autoras como Lorde, Collins e Gonzalez já tendiam a intersecções de gênero, raça e classe, o que se entende hoje por feminismo interseccional. Essa vertente pode ser considerada já parte da terceira onda: essa tratava da revolta frente a regimes opressores, das várias violências contra a mulher e do empoderamento. Ainda na terceira onda, estruturam-se vertentes como o ecofeminismo, a teoria queer, o feminismo marxista e alguns outros tendendo a áreas diversas como o decolonial. O feminismo decolonial assume um caráter político territorial a partir de e pensado para, principalmente, o sul-global. Segundo Vergès, o decolonialismo no feminismo é 

Reconhecer que a ofensiva contra as mulheres, atualmente justificada e reivindicada publicamente pelos dirigentes estatais, não é simplesmente a expressão de uma dominação masculinista descomplexificada, e sim uma manifestação da violência destruidora suscitada pelo capitalismo. É a despratriarcalização das lutas revolucionárias (VERGÈS, 2020, p.35).

No Brasil, o movimento das mulheres na década de 1980, principalmente, se organizou a partir da luta pela redemocratização. Da potência desse movimento, destaca-se as reivindicações nos encaminhamentos da Constituição de 1988 na qual 80% das propostas feministas foram acatadas – como a destituição do pátrio poder. Desta fase também há rupturas marcantes da posição e espaços de expressão das mulheres: criaram-se revistas feministas e mulheres escreviam para jornais mostrando o ser mulher no âmbito mais público (GOHN, 2007). Em busca de uma eficiência maior do movimento, as mulheres se agruparam à outras “minorias” atrelando-se aos movimentos de esquerda e tendiam a práticas mais fluidas. A partir dessas novas práticas, construiu-se, por exemplo, novas políticas públicas como é o caso dos Conselhos da Condição Feminina. Esses conselhos eram “órgãos voltados para o desenho de políticas públicas de promoção de igualdade de gênero e combate à discriminação contra as mulheres” (CARNEIRO, 2019, p.271). Data desta época ainda a criação das DEAMs ou Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulher juntamente com as casas de passagem e acolhimento de mulheres em situação de violência. 

Há, para Gohn (2007), no entanto, uma centralização das discussões políticas de caráter feminista na academia e, por vezes, ganham representatividade as reivindicações – como creche, melhorias na saúde e educação – mas não as sujeitas. Dessa invisibilização, torna-se difícil entender quem são essas sujeitas e qual sua posição e papel dentro de uma sociedade (dita) democrática. Sueli Carneiro (2019) pontua fortemente que, em decorrência do não protagonismo das mulheres em suas próprias demandas e do caráter eurocêntrico do feminismo brasileiro, “as vozes silenciadas e os corpos estigmatizados de mulheres vítimas de outras formas de opressão, além do sexismo, continuaram no silencio e na invisibilidade” (p.273). Além disso, destaca-se que não há forma.

Pensando no movimento de mulheres no recorte espacial da pesquisa, deve-se ainda entender a relação da luta feminista no contexto urbano. Como supracitado, demandas especificas de infraestrutura básica como saneamento, creches, educação, entre outros, influenciam diretamente a vida das mulheres por serem mais renegadas à esfera privada. A espacialização dos direitos reivindicados pelas mulheres exacerba-se, portanto, na moradia. A conquista da casa significa para as mulheres, como observa Pinto (1994) não só o enfrentamento político em âmbito público, mas também no espaço privado – dentro de suas casas (apud MACEDO, 2002). Reside nessa luta uma ressignificação qualitativa do papel da mulher: não apenas enquanto esposa e mãe, mas também da sua construção de gênero e de poder.

            Pode-se considerar que, no cenário da presente pesquisa, as ocupações e a luta por moradia detém essa relação dialética com as mulheres: são criados também por elas assim como as modificam. Essa mudança qualitativa será chamada de empoderamento. Para Joice Berth (2019), 

Quando assumimos que estamos dando poder, em verdade, estamos falando na condução articulada de indivíduos e grupos por diversos estágios de autoafirmação, autovalorização, autorreconhecimento e autoconhecimento de si mesmo e de suas mais variadas habilidades humanas, de sua história, principalmente, um entendimento sobre sua condição social e política e, por sua vez, um estado psicológico perceptivo do que se passa ao seu redor (p.14).

            Embora, para Berth (2019), o empoderamento seja, em primeira estância, em nível individual, há também de colocar-se que este, quando em coletivo, possibilita a “inversão dos mecanismos de poder patriarcais fundados na opressão” (LAGUARDE, 1996, p.209). Friedmann (1996) afirma, ainda, que o processo de empoderamento é capaz de “aumentar a eficácia do [...] exercício de cidadania” (apud LISBOA, 2000, p.42). Para o autor, ainda, o empoderamento se dá em três níveis: político, social e psicológico. O poder político é a transposição da mulher do meio doméstico – o privado – ao público no sentido de participação no processo de tomada de decisões. Já o poder social trata da autonomia ganhada por meio da informação e da independência financeira, assim como participação e trocas em grupos sociais. O último nível é o poder psicológico que tem caráter subjetivo e advém da consciência individual, podendo ser fortalecido assim como pode fortalecer os poderes social e político pela autoconfiança. 

Conclusão

Como resultado em larga escala, obteve-se um entendimento contextual da ocupação estudada, Marielle Franco, e seu processo de constituição. Essa ocupação localiza-se no Maciço do Morro da Cruz, marco geográfico e social de Florianópolis. É dividida por uma avenida, sendo um lado propriedade privada e o outro público – mais especificamente ZEIS segundo o Plano Diretor vigente. Desde seu surgimento em 2018, sofreu três despejos e várias investidas policiais e da governança local, inclusive durante a pandemia atual. Em outubro de 2021, conseguiu um recesso depois de uma audiência de conciliação entre partes. No entanto, recentemente, houve uma discussão se a parte do terreno privada teria sido repassada à prefeitura como abatimento das dívidas territoriais do proprietário do terreno. Neste fato, partindo da análise da insurgência que caracteriza a ocupação, já há um elemento que se faz presente na maioria dos casos de ocupações urbanas: privilégios institucionais pautados na legislação que beneficiam os grandes donos de terra. Além disso, a Marielle Franco cresceu demográfica e territorialmente no período pandêmico, exacerbando a crise econômica do país e a falta de investimento do poder público em moradia.

Já o resultado focado nas histórias de vidas das mulheres lideranças, exibe-se aqui – a fins parciais – a entrevista de uma delas – que aqui se chamará Gabriela. Esta entrevistada é uma mulher negra de quarenta anos que fez parte da coordenação da ocupação, mas se distanciou por divergências de hierarquia – caráter que pode ser inclusive visto como um empoderamento individual da mesma. Conhecida na ocupação e no asfalto[4], ela é um exemplo de ressignificação do seu papel enquanto esposa, mãe, moradora de ocupação e cidadã. Na questão relativa à trabalho, Gabriela chegou a Florianópolis ainda adolescente e relembra 

Uma das coisas que me marcaram muito da minha chegada em Floripa assim foi quando eu passei a ponte assim que era de manhãzinha assim eu olhei pros prédios assim e eu lembro que eu falei, pensei comigo, cara aqui nunca mais eu vou passar fome, eu vi muitos prédios e eu imaginei faxinando todos aqueles prédios, imaginei aqui vou ter muito trabalho, eu acho que é uma imagem que muitas pessoas que vem de fora pensa, que tem muito trabalho (informação verbal)

Este trecho de sua trajetória demonstra como, para ela, o trabalho era uma das principais razões para sua migração para a cidade. Mas, para além da busca pelo emprego em si, a busca por um sustento demonstra como o trabalho doméstico é majoritariamente realizado por mulheres negras e há uma normalização deste fator. Isso exacerba como o trabalho enquanto gerador de autonomia e liberação das mulheres ainda é excludente e eurocêntrico visto que, para as mulheres negras, não houve um ganho significativo nessa conquista de direito.

No caso dos papeis de gênero, ainda, Gabriela relata embates com seu esposo dado seu papel protagonista nas lutas da ocupação. Na época de sua entrevista, abril de 2021, por exemplo, se referia ao seu esposo como “pai dos meus filhos” e deixava claro como havia um acordo entre ambos de que cada um teria sua casa e que haveria cordialidade devido aos filhos. Em conversas mais orgânicas e recentes – de junho de 2021 em diante -, Gabriela relatou que havia se reconciliado com o “pai dos filhos” porque estava mais afastada da coordenação. Nesse mesmo tema, em outro momento da entrevista, Gabriela diz que sua atividade na luta por moradia e sua atuação de protagonismo dentro da comunidade causavam certo risco a seus filhos devido a presença do tráfico na ocupação. Nesses casos observa-se que havia, e ainda há, um embate pessoal entre o protagonismo na luta - em um âmbito mais público - e sua atuação enquanto esposa e mãe – em um âmbito privado, de sua casa.

Enquanto contribuição, ao conferir visibilidade ao papel das mulheres, o estudo desses relatos permitiu uma compreensão da dinâmica interna da luta por moradia e da organização da ocupação. Além disso, a análise da prática insurgente – de âmbito mais coletivo – e o empoderamento – mais individual – garantem um entendimento de suas ações em diferentes escalas.

 

[1] Pontua-se que Saffioti (2004) não usa com frequência o termo interseccionalidade, contudo, ao postular o nó de patriarcado, exploração capitalista e racismo, entende-se que há uma convergência ao entendimento interseccional.

[2] Embora a referência a esse texto seja de 2019 devido a sua tradução tardia, o texto original foi lançado em 1984: informação necessária para entender o posicionamento da autora.

[3] Assinala-se que, de maneira hipotética, não haverá resolução ou verdade absoluta enquanto conclusão teórica, mas um apanhado de conceitos que auxiliarão na análise das experiências das sujeitas entrevistadas – essas sim, o foco da pesquisa.

[4] A própria moradora identifica os apoiadores das universidades e dos movimentos de luta por moradia como “do asfalto”.

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