Metrópoles latino-americanas: experiências e desafios

Ribeiro, Luiz César Queiroz.
A metrópole em questão: desafios da transição urbana. 
Rio de Janeiro: Letra Capital, 2017. 313 p. 
ISBN 978-85-7785-505-6
 
 

A metrópole em questão: desafios da transição urbana constitui uma coletânea de textos elaborados pelo professor Luiz César Queiroz Ribeiro no escopo de suas reflexões desenvolvidas no programa de estudos de governança democrática dentro Observatório das Metrópoles.1 Os trabalhos reunidos no livro buscam compreender a ordem urbana brasileira em suas especificidades e níveis de transição, à luz da teoria crítica e de uma perspectiva latino-americana de estudos urbanos. Tendo como ponto de referência a periferia do mundo capitalista contemporâneo, o livro repercute a iniciativa em criar um movimento intelectual-acadêmico que retome o projeto de pensar a especificidade dos processos de urbanização e de mudanças das grandes cidades pensando as características de suas escalas2 e morfologias sociais. 

Neste sentido, os textos expressam a compreensão a respeito das vicissitudes na realidade urbano-metropolitana brasileira diante dos desafios de desenvolvimento nacional e das novas relações entre economia, sociedade e território. Por meio de uma releitura da realidade teórico-metodológica do processo de urbanização no país, a hipótese do autor sustenta que a ordem urbana brasileira deve ser entendida como uma configuração socioespacial híbrida, desigual e combinada – no sentido de que ela é a expressão de um processo de diversificação, concentração e dispersão de diversos fatores, dentre os quais destacam-se as questões da moradia, renda, cidadania e direitos civis. 

As décadas de 1950 a 1970 representam o marco teórico e conceitual para compreender em que consistiam as especificidades do caráter periférico da economia nacional e os paradoxos envolvidos no processo de modernização da sociedade brasileira. Isso implica em reconhecer que os caminhos percorridos pelo Brasil - e outros países latino-americanos - rumo ao crescimento precisariam confrontar, inevitavelmente, os problemas dos arranjos sociais, as conjunturas peculiares da reprodução da força de trabalho e das condições de moradia, em um contexto de precarização e subdesenvolvimento que geravam uma urbanização sui generis.

As características da metropolização brasileira decorreram das condições econômicas, sociais e políticas que presidiam a industrialização acelerada no país a partir da segunda metade dos anos 1950, sob a hegemonia do capitalismo monopolista, centrado no complexo industrial-financeiro. Essa expansão industrial também engendrou a constituição de uma ordem urbana condizente com a forte concentração do poder econômico, social, político e cultural das classes possuidoras da renda e da riqueza. Tal fenômeno implicou a criação de uma dinâmica de organização social do território fundada na lógica da criação, destruição e recriação de sucessivas fronteiras internas de reprodução da desigualdade social, que serviriam de instrumento de gestão da conflitualidade social do capitalismo industrial periférico ocorrido no Brasil.

Este processo até os anos 1970 se caracterizou pela intensidade e velocidade da mobilização da força de trabalho por meio da migração das massas rurais, gerando a precoce metropolização (sobretudo nas duas maiores cidades do país, São Paulo e Rio de Janeiro), constituindo um urbano precário e improvisado. Nos anos 1980, então, o Brasil se tornou ainda mais urbano e mais metropolitano, onde “quase 160 milhões de pessoas vivem em áreas urbanas, levando a uma taxa de urbanização de 85%” (RIBEIRO, op. cit., p. 215). A consolidação desses espaços, fruto da rápida e radical passagem de um país rural e agrícola para um contexto majoritariamente urbano é a expressão do desafio que o autor chama de transição urbana. Nesse momento, o sistema de cidades passa a refletir também a integração regional resultante da implementação de políticas publicas, que privilegiavam dar suporte, sobretudo, aos espaços do capital industrial. 

Para Luiz César Ribeiro, portanto, a eficácia desse modelo de urbanização se fundou, antes de tudo, na manutenção de um regime político caracterizado fortemente por governos autoritários e interesses oligárquicos, o que permitiram uma incorporação parcial das massas urbanas ao sistema político e social, controlando seus benefícios e o pretenso crescimento econômico acelerado. Este processo teve como resultado a construção de uma “cidadania regulada” (p. 141), expressão cunhada por Milton Santos e trabalhada pelo professor Ribeiro em boa parte do livro, para explicar como esse modelo de urbanização parcial e incompleto privilegiou alguns segmentos da sociedade em detrimento do conjunto das massas, na medida em que excluiu o padrão de proteção social aos trabalhadores urbanos e legitimou uma ordem social ao mesmo tempo competitiva e estamental.

Tal regime estimulou uma tendência à autossegregação das classes superiores e a fragmentação do espaço em homogêneas concentrações territoriais da população, conformando diferentes meios sociais que não apenas reproduzem as desigualdades de condições e posições, mas também fragmentam a consciência de classe, na opinião do autor. Logo, mesmo que as metrópoles brasileiras tenham ingressado na sociedade urbana, ainda assim elas permanecem fortemente “precárias e improvisadas”, posto que despreparadas para cumprirem seu papel de espaços sociais fundamentais para a produção da riqueza e da reprodução da vida social.

Sendo assim, o livro propõe como desafios à transposição dessa lógica diferentes dispositivos que poderiam fomentar os avanços sociais nas metrópoles, tais como: i) a retomada de políticas urbanas e habitacionais regulatórias e de promoção de bem-estar coletivo, bem como a provisão de moradias de interesse social; ii) o fortalecimento de ações públicas de regulação do mercado de terras e ordenamento do uso e da ocupação do solo; iii) a transformação política e o enfrentamento das hierarquias sociais, para diluir as categorias excludentes.

A obra está dividida em três seções. A Parte I intitulada “As metrópoles e a formação da ordem urbana” busca compreender as dinâmicas de constituição dos espaços metropolitanos, seu poder de articulação e polarização do território nacional, além dos novos arranjos espaciais e suas conexões com as transformações de bases produtivas. A Parte II, “As metrópoles e a transição na ordem urbana”, traz um panorama das estratégias metodológicas e epistemológicas para compreender especialmente as transformações urbanas ocorridas no período 1980-2010. Valorizando a literatura de autores como Aníbal Quijano, Roberto Schwartz e Celso Furtado, este tópico incentiva a retomada de um pensamento latino-americano capaz de capturar a historicidade de nossos processos de urbanização em sua relação com as particularidades apresentadas pelo desenvolvimento capitalista no continente. Já a Parte II, “Os desafios metropolitanos”, descreve as oportunidades que se apresentam às metrópoles latino-americanas para construir uma nova agenda de intervenção nas cidades. O foco dessa terceira parte está em dialogar sobre as condições que materializem a transformação das metrópoles da América Latina em um território no qual prevaleçam padrões de intervenção política – em matéria de provisão de serviços públicos – e de regulação pública que expressem a mediação entre interesses particulares e o interesse geral.

A morfologia e a dinâmica urbana descritas em A metrópole em questão traduzem uma organização social do território de nossas metrópoles baseadas na lógica da criação e recriação de fronteiras econômicas e sociais. Por este motivo, podemos concluir que a verdadeira metamorfose da ordem urbana conclama a necessidade de se construir uma nova agenda de intervenção nas cidades, combinando a compreensão critica da dinâmica urbana e a intervenção nos espaços institucionais, nos espaços sociais e nas esferas públicas. Especialmente no Brasil, torna-se indispensável desenvolver processos democráticos de planejamento urbano que visem reverter as desigualdades sociais que marcam as nossas metrópoles. Mover práticas insurgentes e novas linguagens culturais, estimular o planejamento urbano politizado são umas das muitas alternativas possíveis, na perspectiva da promoção social, da democracia e do direito à cidade.

Notas

1 Rede de estudos urbanos vinculada ao INCT (Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia) que reúne pesquisadores, universidades, instituições governamentais e não-governamentais. Seus trabalhos focalizam as metrópoles latinoamericanas, os fenômenos de aglomeração urbana, dentre outros arranjos.  As instituições reunidas na rede estão interligadas em 14 cidades brasileiras atualmente, sob a coordenação geral do IPPUR/UFRJ.

2 O geógrafo Neil Smith (1984) foi o teórico que inaugurou a perspectiva mais promissora de escalas, entendida como a dinâmica territorial resultante das lutas sociais por poder e controle político. Tomamos aqui a definição de escala tramada nas reflexões de Brandão (2011), para quem “a escala espacial, socialmente produzida, deve ser vista como um recorte para a apreensão das determinações e condicionantes dos fenômenos sociais referidos no território” (BRANDÃO, op. cit., p. 243). Ao mesmo tempo, o conceito de escala permite desvendar processos sociais, econômicos e territoriais singulares. Escala também é vista como arena política, e lócus do exercício de poder e de hegemonia.

Referências

SMITH, Neil. Uneven development: nature, capital and the production of space. Oxford: Basil Blackwell, 1984.

BRANDÃO, Carlos. Estratégias hegemônicas e estruturas territoriais: o prisma analítico das escalas espaciais. Bahia Análise & Dados, v. 21, p. 303-313, 2011.

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